CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA
DENÚNCIA DO CONTRATO
CONHECIMENTO DO MÉRITO NO SANEADOR
Sumário

I - Nos contratos de arrendamento com duração ilimitada, o senhorio pode denunciar o contrato para habitação própria, após seis meses de duração efetiva (art. 1100.º, n.º 1 do CC), e sempre para depois dos dois anos de duração efetiva (art. 1103.º, n.º 10).
II - Nos contratos com prazo certo, a renovação automática ocorre no termo do contrato e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior (art. 1096.º, n.º 1), estabelecendo a lei que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo (n.º 3 do art. 1097.º CC). Excetua-se deste regime o caso de o senhorio ter necessidade de habitação para si ou para os seus descendentes em 1.º grau, aplicando-se nessa situação, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º (ex vi art. 1097.º, n.º 4).
III - Constituindo o n.º 4 do art. 1097.º CC uma exceção ao n.º 3, não deixa o mesmo de exprimir a intenção legislativa, referenciada no introito do diploma que o introduziu, em 2019, de corrigir situações de desequilíbrio entre senhorio e arrendatário. Sendo assim, além da interpretação segundo a qual o n.º 4 é apenas uma exceção ao n.º 3 e não um princípio geral em matéria de contratos de arrendamento para habitação com prazo certo, é admissível uma outra: a que vê neste n.º 4 a consagração de um princípio geral, em matéria de contratos com prazo certo, da possibilidade de denúncia pelo senhorio em caso de necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau, pois não se vê razão para efetuar distinção entre os prazos (curtos ou longos) dos arrendamentos com prazo certo em ordem a permitir a denúncia pelo senhorio, por esta razão (necessidade para habitação), para uns (os de curta duração), e excluí-la para outros (os de longa duração), os quais podem mesmo ter já vigorado por longos anos (até 30 anos, que é o máximo previsto pela lei – art. 1095.º, n.º 2 CC).
IV - A decisão sobre o mérito em fase de despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.
V - Sendo possíveis diferentes interpretações do n.º 4 do art. 1097.º do CC, é prematuro inibir desde já o senhorio de ver apreciado, em sede de saneador-sentença, o direito de denúncia que invoca, impondo-se que os autos prossigam para julgamento e apreciação dos fundamentos factuais invocados para tal denúncia.

Texto Integral

Processo n.º 3709/23.7T8PRT.P1

Sumário do acórdão proferido elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

AUTORA: AA, divorciada, residente na Rua ..., n.º ..., 1.º Dto, Caldas da Rainha.

RÉU: BB, residente na Rua ..., Hab ..., Porto.

Por via da presente ação declarativa, a A. peticiona o seguinte:

a) seja declarada a resolução do contrato de arrendamento que celebrou com o R., com fundamento no disposto nos artigos 1097.º, n.º 4, 1101.º, 1102.º e 1103.º, todos do Código Civil;

b) seja o Réu condenado a entregar o imóvel locado à Autora livre e devoluto de pessoas e bens.

Alega para o efeito que, em 26 de setembro de 2019, celebrou com o R. um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo por dez anos.

A A. necessita do locado para habitação de uma filha, intenção que deu a conhecer ao R. por carta de fevereiro de 2022, recusando-se o R. a entregar-lhe o locado.

Contestou o R. dizendo que a oposição à renovação do contrato pelo senhorio não é admissível porque o contrato dos autos foi celebrado por prazo certo que ainda está em curso.

Mais impugna os fundamentos da denúncia.

A A. exerceu contraditório.

Veio a ser proferido saneador-sentença, datado de 27.1.2024, julgando improcedente a ação.

Deste despacho recorre a A., visando a procedência da ação, com base nos seguintes argumentos que assim alinhou em conclusões:

A. Nos termos do disposto no artigo 1097.º, n.º 4 do CC, o senhorio pode denunciar o contrato de arredamento com prazo certo por necessidade de habitação do locado para si ou para um seu descendente em 1.º grau.

B. Resulta, pois clarividente que, tanto na generalidade dos agentes económicos como no próprio legislador ficou patente que, com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, ao senhorio foi facultada a possibilidade de denunciar o contrato de arrendamento com prazo, no caso de necessidade da habitação para si ou para um descendente em 1.º grau, por via do disposto no artigo 1097.º, n.º 4 do Código Civil.

C. Tendo o legislador optado por facultar ao senhorio a faculdade de denunciar o contrato de arrendamento a termo certo, não tem qualquer sentido que a referida denuncia esteja limitada apenas e tão só para os casos em que esteja em causa o prazo dos 3 anos obrigatórios no âmbito da primeira renovação do contrato.

D. A introdução desta faculdade de denúncia do contrato de arredamento visou proteger o senhorio no âmbito contratos de arrendamento a termo certo, estendendo assim o regime aplicável aos contratos a termo incerto.

E. Não existe qualquer razão razoável para se entender que o legislador optou por beneficiar os senhorios que tenham celebrado contratos a termo certo de curta duração, podendo beneficiar do instituto da denuncia contratual, em detrimento dos senhorios que tenham celebrado contratos de longa duração.

F. O entendimento redutor, limitativo, injustificadamente desigualitário de que o artigo 1097.º, n.º 4 apenas se aplica nos casos de oposição à primeira renovação do contrato com prazo certo por parte do senhorio, cujo efeito se produz decorrido três anos desde a data da sua celebração, é claramente atentatório do disposto no artigo 13.º da CRP.

G. Tanto merece proteção o senhorio que necessita da casa para nela habitar, que tenha celebrado um contrato de arrendamento a termo certo com prazo inferior a 3 anos como aquele que tenha celebrado um contrato de arredamento a termo certo com um prazo superior a 3 anos.

H. Ao ter decidido como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 1097.º, n.º 4 do CC e bem assim os artigos 1101.º, 1102.º e 1103.º do Código Civil.

I. A interpretação adotada pelo Tribunal a quo no sentido de entender que o artigo 1097.º, n.º 4 do Código Civil apenas se aplica nos casos de denuncia do contrato de arredamento a prazo certo nos contratos de duração inferior a 3 anos, viola o disposto no artigo 13.º da CRP, ao proporcionar um tratamento diferenciado de forma injustificada a situações essencialmente idênticas.

O R. contra-alegou, opondo-se à procedência do recurso.

Objeto do recurso:

Está em causa saber se o senhorio pode pretender o locado com base na necessidade para habitação própria ou de descendentes em 1.º grau no contrato de arrendamento com prazo certo superior a três anos.

FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto dada como provada em primeira instância:

1.º Encontra-se registada a favor da autora a aquisição da fração B correspondente à habitação ..., rés-do-chão direito, da Rua ..., Hab ... ... Porto, arrumos com o n.º ..., e lugar de garagem na Cave, com entrada pelo número ... da Rua ..., descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ..., sob o número ..., correspondente à fração W, ambas as frações descritas na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº.../freguesia ....

2.º Com data de 26 de setembro de 2019, a Autora e o Réu celebraram o acordo intitulado “contrato de arrendamento para habitação com prazo certo”, no qual aquela declarou dar, com início em 01 de outubro de 2019, de arrendamento ao aqui Réu, que, por sua vez, declarou tomar de arrendamento, a moradia e lugar de garagem já identificados no ponto 1. (cf. cláusula segunda do contrato junto como doc. n.º 1).

3.º O referido acordo foi celebrado com a duração de 10 anos, renovando-se automaticamente no seu termo por períodos de 1 ano, se não houver oposição à renovação nos termos previstos nos artigos 1097.º e 1098.º do Código Civil (cf. n.º 2 da cláusula segunda do contrato junto como doc. n.º 1).

4.º Resulta ainda do referido acordo celebrado entre a Autora e o Réu que, nos termos do preceituado no artigo 1045.º do Código Civil, se após a cessação do contrato de arrendamento, o inquilino não restituir o imóvel no prazo estipulado é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição da moradia o valor da renda estipulada (cf. n.º 5 da cláusula segunda do contrato junto como doc. n.º 1);

5º. Mais acordando as partes que o Inquilino fica obrigado a pagar à senhoria todas as despesas judiciais e /ou extrajudiciais (nomeadamente honorários com advogados e custas processuais) decorrentes desse incumprimento (cf. n.º 6 da cláusula segunda do contrato junto como doc. n.º 1).

6.º Para efeitos de renda mensal, acordaram as partes a quantia de €1.200,00 nos primeiros 36 meses, sendo que do 37.º ao 72.º mês a renda será de 1.300,00 e, após o 73.º mês, inclusive, até ao seu termo será de €1.500,00 (cf. cláusula terceira do contrato junto como doc. n.º 1).

7.º Com a assinatura do presente acordo a Autora deu de quitação a quantia de €3.000,00, que corresponde ao pagamento referente à caução e à última renda do contrato em apreço (cf. cláusula terceira do contrato junto como doc. n.º 1);

8.º E a renda referente ao primeiro mês (outubro de 2019) do dito contrato de arrendamento teve lugar até ao dia 8 desse mesmo mês de outubro de 2019 (cf. cláusula terceira do contrato junto como doc. n.º 1).

9.º A Autora é mãe de CC (cf. certidão de nascimento, com o código de consulta ..., que se junta como doc. n.º 2 e que se dá por integralmente reproduzida),

10º. Autora enviou uma missiva ao Réu, datada de 25 de fevereiro de 2022, missiva essa endereçada para a morada do Réu indicada no aludido contrato de arrendamento, sita na Rua ... ..., ... ... VCD, registada com aviso de receção cujo conteúdo foi por si rececionado em 21 de março de 2022 (cf. doc. n.º 5 que se junta e aqui e dá por integralmente reproduzido).

11.º O teor dessa missiva com o assunto “denúncia do contrato de arrendamento” era o seguinte: “Exmo. Senhor BB, Serve a presente para, na qualidade de advogado da Senhora Dr.ª AA (cf. procuração que se anexa), proprietária da moradia sita na Rua ..., Hab ..., ... Porto, e senhoria no âmbito do contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, no qual V. Ex.ª é inquilino, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1097.º, n.º 4, 1101.º, 1102.º, 1103.º, todos do Código Civil, transmitir intenção da minha constituinte em denunciar o mencionado contrato de arrendamento, atento o facto de necessitar do referido imóvel para habitação da sua filha que, conforme lhe foi transmitido atualmente reside na cidade do Porto.

Para o referido efeito e estando reunidos os requisitos previstos no artigo 1102.º, designadamente o facto de não ter qualquer imóvel na área do concelho do Porto e concelhos limítrofes, desde há um ano, capaz de satisfazer as necessidades de habitação da sua filha; e, bem assim, o facto de ser proprietária do imóvel objeto do presente contrato de arrendamento há mais de dois anos; vem informar que se encontra disponível para proceder ao pagamento do montante equivalente a um ano de renda, na data em que V.Ex.ª entregar o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens.

Assim sendo e nos termos do artigo 1103.º, n.º 1 do Código Civil, deverá V.Ex.ª desocupar o referido imóvel até ao dia 31 de agosto de 2022, satisfazendo-se, assim, o prazo mínimo de 6 meses a contar da presente data, que lhe é conferido para o mencionado efeito.

Mais informo que é intenção da minha cliente agendar data para visita ao locado, a qual contará com a minha presença, pedindo-lhe, desde já que me indique duas ou três datas alternativas para o efeito.” - cf. doc. n.º 6 que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

12.º Missiva que foi também enviada por email datado de 21/03/2022 (cf. doc. n.º7 que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

13º Apesar do envio e respetiva receção da missiva supra aludida de denúncia do aludido contrato de arrendamento, o aqui Réu optou por recusar desocupar o imóvel.

14º.Tendo respondido por missiva datada de 22 de março de 2022 nos seguintes termos:

“Exmo. Senhor Dr.,

Acusando a receção do seu email datado de 21.03.2022, acompanhado de um anexo com uma cópia de uma carta datada de 25.02.2022, venho dizer o seguinte:

a) Desde que arrendei o apartamento da sua cliente que não resido na Rua ..., ... ... VCD, pelo que não poderei receber as cartas remetidas para esse endereço;

b) O seu email não veio acompanhado da procuração referida no mesmo, pelo que agradecia o envio da mesma;

c) A denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio com fundamento na necessidade de habitação pelo próprio ou pelo seu descendente em 1.º grau apenas se aplica no âmbito dos contratos de arrendamento de duração indeterminada, conforme resulta inequivocamente do disposto nos artigos 1099º e 1101º (O senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes…), ambos do Código Civil;

d) Ora, como sabe, o contrato de arrendamento outorgado por mim e a sua cliente foi celebrado com o prazo certo de 10 anos, com início em 01.10.2019, renovando-se no seu termo por períodos sucessivos de 1 ano, se não houver oposição à sua renovação;

e) Deste modo, os Artigos 1101º, 1102º e 1103º, do referido diploma, não são aplicáveis ao contrato de arrendamento em questão, não existindo fundamento para a denúncia invocada;

f) Por sua vez, dado que o contrato de arrendamento prevê um prazo certo inicial superior a três anos, fica igualmente prejudicada a aplicação do Artigo 1097º, também do Código Civil.

Pelo exposto, não reconheço a denúncia comunicada por V. Excia. mantendo-se o contrato de arrendamento em vigor, pelo menos, até 30.09.2029, salvo se vier a cessar a sua vigência em momento anterior por motivo legalmente válido.

Desde modo, também não existem razões para a realização da visita ao local arrendado.”- cf. doc. n.º 8 que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

Fundamentos de direito

É indisputado achar o negócio dos autos arrimo sob a égide do arrendamento para fins habitacionais, uma vez que a A. deu de arrendamento ao R. um espaço destinado à habitação deste.

Depois, está em causa uma das formas da sua cessação, a denúncia, esta elencada entre as formas de cessação do arrendamento, no art. 1079.º do CC.

A questão que se coloca é a de saber se, como entendeu o tribunal recorrido, este negócio não poderia ser terminado, a impulso da senhoria, por denúncia por necessidade do locado para habitação da sua filha, antes de decorrido o prazo para o qual foi gizado e que é de dez anos, com início a 1.10.2019 e fim a 1.10.2029.

Ou seja, se a senhoria tem que esperar até 2029 para obter a habitação, apesar de alegar estar dela carecendo a sua filha.

Em primeiro lugar, impõe-se precisar conceitos, estabelecendo a distinção entre denúncia e oposição à renovação.

Como explica Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, 11.º Edição, p. 169), “estas duas figuras distinguem-se porque na primeira [denúncia], aplicável aos contratos de duração indeterminada, a declaração do senhorio a pôr termo ao contrato pode ocorrer em qualquer altura, enquanto na segunda, aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado um prazo renovável, apenas pode ocorrer no fim desse prazo, impedindo que o contrato se renove por períodos subsequentes. Uma vez que o contrato de locação é sujeito a um prazo supletivo, mesmo que as partes não o determinem (cfr. art. 1026.º), o processo de extinção da relação locatícia para o futuro constitui normalmente um caso de oposição à renovação”.

A denúncia é, pois, uma forma de extinção contratual por via de uma declaração unilateral, não fundada (portanto, ad nutum ou ad libitum), e com eficácia ex nunc, estando o seu fundamento genérico ligado à proibição de vínculos perpétuos e à consequente preservação da liberdade jurídica dos sujeitos.

A oposição à renovação, por sua vez, está disciplinada nos artigos 1097.º e 1098.º do CC e carateriza-se pelo facto de que a declaração em que se pretende pôr termo à relação de arrendamento, aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado um prazo renovável, apenas pode ocorrer no fim desse prazo, impedindo que o contrato se renove por períodos subsequentes. Trata-se de uma espécie de denúncia.

A lei distingue entre os arrendamentos com prazo certo (arts. 1095.º e ss.) e aqueles que têm duração indeterminada (arts. 1099.º e ss.), sendo aplicáveis aos primeiros normalmente a oposição à renovação e aos segundos a denúncia.

Está fora de dúvidas que os contratos com duração indeterminada podem terminar mediante denúncia do senhorio (art. 1099.º) e que esta denúncia só pode ocorrer após seis meses de duração efetiva do contrato (art. 1100.º, n.º 1, CC). Neste caso, da denúncia pelo senhorio não pode resultar uma duração total do contrato inferior a dois anos (art. 1103.º, n.º 10).

De modo que, nos contratos com duração ilimitada, o senhorio pode denunciar o contrato para habitação própria, após seis meses de duração efetiva, e sempre para depois dos dois anos de duração efetiva.

Nos contratos com prazo certo, a renovação automática ocorre no termo do contrato e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior (art. 1096.º, n.º 1), sendo que qualquer das partes se pode opor à renovação (art. 1096.º, no 3), variando o regime consoante a oposição à renovação seja realizada pelo senhorio ou pelo arrendatário.

A lei estabelece, assim, que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo.

Excetua-se deste regime o caso de o senhorio ter necessidade de habitação para si ou para os seus descendentes em 1.º grau, aplicando-se nessa situação, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º (art. 1097.º, n.º 4).

Daqui resulta que, apesar de a lei prever um prazo mínimo de um ano para o arrendamento, na prática obriga o senhorio a manter o arrendamento por três anos, face à ineficácia da oposição à renovação durante esse período.

Todavia, esses três anos não terão que decorrer se (salvaguardados os períodos da denúncia) o senhorio necessitar da casa para habitação própria ou de descendentes em 1.º grau.

Decorre da inserção do n.º 4 do art. 1097.º e da subdivisão II da Divisão I, relativa à duração dos contratos de arrendamento, ter o legislador apenas previsto a denúncia para habitação em caso de contratos com duração indeterminada e de contratos com duração certa inferior a três anos?

Qual a razão para subtrair ao regime da denúncia, com este fundamento, os contratos com duração determinada superior a três anos, nomeadamente com dez, vinte ou trinta anos?

Sendo a denúncia um modo típico de fazer cessar os contratos de duração indeterminada, ou de longa duração, a lei, em 2019, não deixou de a estender aos contratos de prazo certo, o que fez no n.º 4 do art. 1097.º.

Antes disso, este normativo só contava com os n.ºs 1 e 2, com conteúdo correspondente ao atual.

Os n.ºs e 3 4 do art. 1907.º CC foram introduzidos pela Lei 13/2019, de 12.2, diploma que teve em vista a implementação de Medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.

Visando estas normas a salvaguarda da segurança e estabilidade do arrendamento, estabeleceram como prazo mínimo do arrendamento três anos, para os arrendamentos a prazo.

Porém, mesmo nesses casos – de contratos com duração de, pelo menos, três anos – a nova lei permite ao senhorio vir a impedir que o contrato tenha uma duração de três anos, se se verificar a hipótese criada no n.º 4.

Ora, constituindo este n.º 4 uma exceção ao n.º 3, não deixa o mesmo de exprimir a intenção legislativa, referenciada no introito do diploma, de corrigir situações de desequilíbrio entre senhorio e arrendatário.

Sendo assim, além da interpretação consignada em primeira instância[1] – segundo a qual o n.º 4 é apenas uma exceção ao n.º 3 e não um princípio geral em matéria de contratos de arrendamento para habitação com prazo certo – é admissível uma outra: a que vê neste n.º 4 a consagração de um princípio geral, em matéria de contratos com prazo certo, da possibilidade de denúncia pelo senhorio em caso de necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau.

É que, se essa possibilidade não existia, antes da alteração do 2019, passou a existir depois deste diploma, o que expressa uma diferente conceção legislativa em matéria de denúncia em caso de necessidade para habitação.

E, se a mesma é admissível para os contratos com duração mais curta – três anos[2] – os quais, pela sua natureza potenciam maior insegurança e instabilidade para o arrendamento, por maioria de razão se deve admitir para os contratos com duração superior, como o dos autos, que foi celebrado por 10 anos e que, assim, mais se aproximam do contrato de duração indeterminada para os quais a lei prevê, logo a partir dos seis meses de vigência, e sem prejuízo do decurso de dois anos (que, nestes autos, decorreram em outubro de 2021, tendo a denúncia sido efetuada por carta de fevereiro de 2022), a possibilidade de denúncia com este fundamento específico.

Na verdade, a razão de ser do n.º 4 – impedir que o senhorio se veja privado do locado, caso dele necessite para a habitação – se é válida para os contratos de curta duração, é ainda mais premente para os contratos de longa duração.

De modo, que a interpretação que da lei extrai a A. em via de recurso é, tal como a da Ré, admissível e corresponde aos cânones interpretativos previstos no art. 9.º do CC.

Desde logo, esta interpretação não briga com o teor literal da lei que, como reconhece a sentença, não prima pela clareza, considerando a sistematização dos arts. 1095.º e ss., e a repentina referência que no n.º 4 se faz a uma denúncia não antes prevista para os contratos com termo.

A interpretação subjacente ao recurso também não coloca em causa o espírito da lei, mormente a de 2019, que é o de promover a estabilidade dos arrendamentos com prazo certo. É que, se se admite a denúncia para os casos de contratos com duração inferior, por maioria de razão tem de se admitir para as situações de prazos superiores, por natureza mais próximos dos contratos eleitos como permitindo esta forma de extinção do vínculo negocial.

Respondendo a um argumento exposto pelo R. em contra-alegações, diremos que não se vê que a interpretação pretendida pela A. impusesse que a epígrafe do art. 1097.º, além de oposição à renovação, mencionasse também denúncia pelo senhorio.

Aquela epígrafe não o menciona, mas o certo é que n.º 4 citado não deixa de a admitir, pelo menos, para os casos do n.º 3…

A remissão do n.º 4 para o regime da denúncia prevista para os contratos de duração indeterminada, por outra parte, é feita para as regras que aqui interessam, ou seja, as relativas aos montantes a pagar pelo senhorio em função desta extinção contratual[3], ao modo como deve ser comunicada a denúncia, à obrigação de usar o espaço para a finalidade da habitação própria e à indemnização pelo incumprimento desta obrigação, não sendo necessária a remissão para o art. 1101.º posto que no próprio n.º 4 já se diz qual é o fundamento da denúncia (necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes).

Assim vistas as coisas, não se vê razão para efetuar distinção entre os prazos (curtos ou longos) dos arrendamentos com prazo certo em ordem a permitir a denúncia pelo senhorio, por esta razão (necessidade para habitação), para uns (os de curta duração), e excluí-la para outros (os de longa duração), os quais podem mesmo ter já vigorado por longos anos (até 30 anos, que é o máximo previsto pela lei – art. 1095.º, n.º 2 CC).

Essa interpretação, que ficou exposta em primeira instância, poderia mesmo ser inconstitucional, como pretende a recorrente, quer por violação do disposto no art. 13.º da Constituição por si invocado, quer por poder colocar em causa o direito de propriedade do senhorio, defendido pelo art. 62.º do Texto Fundamental, uma vez que apenas permitiria ao senhorio que necessita do locado para nele habitar (ou para um descendente em primeiro grau), vir a obtê-los muitos anos após a denúncia, quando permite a outros tal recuperação em curto espaço de tempo (antes do decurso de três anos, para os arrendamentos com prazo certo, e após a vigência de dois anos, para os arrendamentos de duração indeterminada).

Veja-se que o direito de propriedade dos senhorios, em caso de necessidade para habitação, foi mesmo erigido pelo TEDH como justificativo da denúncia, por exemplo, no ac. Scollo c. Itália, de 28.9.1995, que considerou que a lei italiana desrespeitava o direito de propriedade de um senhorio que alegara necessitar do imóvel mas apenas o conseguira recuperar doze anos após a denúncia do contrato – e, tão-só, porque o arrendatário procedera voluntariamente à restituição, por considerar o tribunal ter sido rompido o justo equilíbrio de interesses (equilíbrio esse que a lei de 2019 visou repor).

Este como outros casos são citados por David Magalhães, O arrendamento na jurisprudência do TEDH, in I Congresso de Direito do Arrendamento, coord. de Menezes Leitão, Almedina, 2019, ps. 33 e ss., onde o autor alude, ainda, às decisões Velosa Barreto e Immobiliare Saffi que, na sua ótica, “revela [m] uma mudança de paradigma. Se na primeira se aceitou que a necessidade habitacional do proprietário era inferior à do inquilino e, com isso, se justificaria que o contrato não pudesse ser denunciado, na segunda foi tido em conta que a tutela do arrendatário alcançada pela proibição de despejo se torna mais onerosa à medida que persiste no tempo, até chegar ao ponto de restringir excessivamente o direito de propriedade” (sublinhado nosso).

Menciona, ainda, o acórdão Hutten-Czapska que, para si, “tem, outrossim, o mérito de pôr o dedo uma ferida há muito aberta: o interesse da comunidade em providenciar habitação a quem dela necessite exige uma distribuição equitativa dos respectivos custos financeiros e sociais, o que não ocorre quando se oneram apenas os senhorios, a quem é imposta a manutenção dos arrendamentos. Do que se conclui, inequivocamente, que não é legítimo transformar a propriedade privada num substituto dos esquemas de protecção social. São estes que devem ser chamados a satisfazer os direitos sociais como o direito à habitação”.

Sendo possíveis estas interpretações, afigura-se-nos que, em sede de despacho saneador, é prematuro inibir desde já a A. de ver apreciado o direito de denúncia que invoca.

Com efeito, a decisão sobre o mérito em tal fase processual só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.

Como se escreveu no ac. desta secção, de 6.5.2024, relatado pela aqui segunda adjunta, no proc. 1059/23.8T8PRT.P1: “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final”.

Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…”.

Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema”.

Quer isto dizer que se impõe o apuramento sobre os factos impugnados pelo R. e relativos à necessidade de habitação no Porto por parte da filha da A., em ordem a verificar-se se estão reunidos os requisitos desta forma de extinção do contrato de arrendamento, cabendo, depois, aplicar o direito aos factos e tendo presente, neste momento, a não linearidade da interpretação que merece o disposto no n.º 4 do art. 1097.º do CC.

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e revogar o saneador-sentença recorrido, devendo os autos, oportunamente, prosseguir para julgamento.

Custas pelo R.


Porto, 10.7.2024
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
_________________
[1] E que parece merecer acolhimento por alguma doutrina. Diz Edgar Valles, in Arrendamento: constituição e extinção, 4.ª Ed., 2023, p. 168:” O senhorio não pode proceder à denúncia dos contratos com prazo certo. Por isso, terá de “suportar” o arrendatário até ao prazo para a oposição à renovação”. O autor não explicita, contudo, o que deve entender-se face ao n.º 4 do art. 1097.º do CC.
[2] Embora, para alguns, se exija um prazo de quatro anos, correspondente ao ano inicial e aos três anos da renovação forçada, assim, Rui Paulo Ataíde e Ramalho Rodrigues, Denúncia e oposição à renovação do contrato de arrendamento urbano, Revista de Direito Civil (n. 2), 2019, ps. 297 e ss.
[3] Situação que alguma doutrina até entende dever ser de afastar. Assim, Edgar Valente, Arrendamento Urbano, comentário às alterações legislativas introduzidas ao regime vigente, Almedina, 2019, em anotação ao art. 1097.º, p. 13 e 14, escreve: “Neste sentido e ao remeter o n.º 4 do artigo 1097.º para o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º, fica por esclarecer se, além da invocação e comprovação daqueles requisitos, à semelhança do que sucede na denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio com base no mesmo fundamento, também terá, em sede dos contratos de arrendamento com prazo certo, de pagar ao arrendatário uma indemnização correspondente a um ano de renda. Da leitura que realizamos do preceito e da necessidade de operar as “devidas adaptações”, entendemos não haver lugar ao pagamento da referida indemnização uma vez que não é possível estabelecer grau de comparação entre a obrigação de pagamento da indemnização num contrato de duração indeterminada e num contrato com prazo certo, isto porque, nos primeiros, sendo de duração indeterminada, podem ter já uma duração efetiva de vários anos ao momento em que o senhorio o denúncia para sua habitação ou dos seus descendentes, ao invés do que sucede nos contratos de prazo certo em apreço, em que, a fim de se prevalecer da exceção prevista no n.º 4 do artigo 1097.º, o contrato terá de ter, necessariamente, uma duração efetiva inferior a três anos. Perspetivada a aplicação do pagamento da referida indemnização em sede dos contratos de prazo certo, poderíamos estar perante uma situação verdadeiramente paradoxal em que as partes celebram um contrato de arrendamento pelo período de um ano, na pendência do qual vem o senhorio opor-se, nos termos do n.º 1 do artigo 1103.º ex vi do n.º 4 do artigo 1097.º, à renovação por necessidade do imóvel para sua habitação para produzir efeitos ao fim desse período de um ano, em que o senhorio, para a oposição ser válida, teria que pagar ao arrendatário uma indemnização que comportaria simplesmente a totalidade dos rendimentos prediais que obteve relativamente a esse imóvel durante o único ano de vigência do contrato, o que permitiria ao arrendatário, por outras palavras, obter o reembolso total das rendas por si pagas e gozar o mesmo, gratuitamente, durante esse ano, o que seria perfeitamente injustificado e totalmente desprovido de sentido. Assim sendo e pelo exposto, entendemos que a remissão do n.º 4 do artigo 1097.º para o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º, se refere apenas à necessidade de invocação e comprovação dos requisitos a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 do primeiro preceito, bem como à necessidade de observância da forma e prazo de antecedência mínima de seis meses na comunicação a realizar, mais se aplicando a necessidade de dar ao locado a utilização por si invocada na comunicação de oposição à renovação, no período de três meses após a desocupação e durante, pelo menos, dois anos, sob pena de ser responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente a dez anos de renda, constante do n.º 9 do artigo 1103.º, para a qual o legislador expressamente remeteu o n.º 4 do artigo 1097.º, indemnização esta que não se confunde com aquela a que respeita o n.º 1 do artigo 1102.º, uma vez que naquela, a respetiva génese reside na utilização dolosa por parte do senhorio de um fundamento inexistente a fim de obter a cessação do contrato e respetiva desocupação do locado, antes do prazo legalmente permitido” (sublinhado nosso).