CONDOMÍNIO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
INSPECÇÃO JUDICIAL
AUTO
NULIDADE
REAPRECIAÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário


1 – O Condomínio não tem personalidade judiciária para deduzir pretensão que visa reconhecer que determinada parcela de terreno integra o imóvel construído em propriedade horizontal.
2 – Tal falta de personalidade judiciária é de conhecimento oficioso e deve ser declarada pelo Tribunal da Relação, ouvidas as partes sobre a verificação dessa exceção dilatória, implicando a absolvição da instância dos demandados.
3 – Realizando-se inspeção judicial, deverá ser elaborado auto que contenha todos os elementos recolhidos que sejam úteis à decisão a proferir.
4 – Se o Tribunal fundamenta a sua convicção para a apreciação da matéria de facto provada e não provada na inspeção judicial realizada, comete uma nulidade se, realizada tal diligência, nada tiver sido registada em auto.
5 – Tal nulidade tem de ser arguida no prazo de 10 dias, a contar da notificação da sentença, pois que só então a parte toma conhecimento que, apesar de não ter sido elaborado auto de inspeção, se considerou a diligência de prova realizada como útil para a decisão da matéria de facto controvertida.
6 – Tal nulidade não tem, porém, relevo se, na situação em julgamento, a impugnação da matéria de facto se refere, apenas, a factualidade inapreensível através desse meio probatório.
7 – Verificados os demais pressupostos para a sua constituição, a construção de um muro com uma abertura com determinadas características pode ser suficiente como sinal visível e permanente para a afirmação de uma servidão por destinação de pai de família.

Texto Integral


Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Fernanda Proença Fernandes
2º Adjunto: José Manuel Flores

Processo 2207/20.5T8BCL.G1
Juízo Central Cível de ... – Juiz ... – Tribunal da Comarca de ....

I – Relatório (elaborado com base no que que foi efetuado na decisão de 1.ª Instância):

AA e BB instauraram a presente ação de condenação, sob a forma de processo comum, contra o condomínio Edifício ..., representado pelos administradores CC e DD; CC, EE e FF; GG; HH; II e JJ; GG e KK; LL; MM; NN; OO PP; QQ; RR e SS; EMP01..., Ldª; TT; UU; VV; DD e WW; XX e YY; ZZ e AAA; EMP02..., Ldª; BBB e CCC; DDD e EEE e FFF; GG; GG e HH; GGG e HHH; III e JJJ; KKK; LLL; MMM e NNN, alegando, em síntese, que são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam nos arts.º 1.º e 2.º da petição inicial e dele é parte integrante a parcela de terreno onde está instalado um Posto de Transformação (PT) e que se situa entre a Rua ... e o muro construído pelo anterior proprietário com entrada para o prédio dos autores; se essa parcela de terreno não estiver incluída no prédio, então foi constituída uma servidão de passagem por destinação de pai de família sobre essa parcela e em benefício do prédio dos autores, para lhe permitir o acesso a partir da Rua ..., porquanto até 2002 todo o prédio descrito com o n.º ...07 no Registo Predial pertenceu ao mesmo proprietário, a interveniente, que destacou parte desse prédio, criando a descrição n.º ...03 e depois procedeu à alienação do prédio destacado; os sinais visíveis e permanentes, além da passagem marcada no terreno, são evidenciados pela abertura deixada no muro.

Com tais fundamentos concluem pedindo:

A) a condenação dos réus a reconhecer que a área compreendida entre a Rua ... e delimitada pelo muro em bloco de cimento identificado no art.º 23º da petição inicial faz parte integrante da descrição ...07 da Conservatória do Registo Predial ..., que é propriedade dos autores;
Subsidiariamente, para o caso de se entender que a área em causa não integra a propriedade dos autores, ou que não a integre totalmente,
B) seja declarada a existência de uma servidão de passagem constituída sobre a dita área, por destinação de pai de família para servir o prédio dos autores, com a largura de 5,36 m, desde a Rua ... até ao limite dos prédios dos autores;
C) a condenação dos réus a demolir a tapagem do muro a que procederam, a desocupar a área de objetos e de quaisquer outros bens que aí tenham colocado;
D) a condenação dos réus no pagamento solidário de uma sanção pecuniária compulsória de 200,00 euros por cada dia de atraso no cumprimento do que vier a ser sentenciado.
Citados de forma válida e regular, contestaram os réus pugnando pela improcedência da ação, e deduziram pedido reconvencional, alegando que o prédio dos autores beneficia de outras entradas, não existindo a entrada alegada pelos autores; que sempre foram os réus que procederam à limpeza e tratamento do espaço onde está instalado o Posto de Transformação; essa parcela de terreno, com cerca de 500 m2 integra o prédio dos réus, que se encontra registado no registo predial a seu favor.
Pedem então que se declare e se reconheça que os réus reconvintes são os únicos donos e legítimos possuidores das frações autónomas que integram prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, composto de cave, ..., ... andar e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob a descrição número ...03 e inscrito na respetiva matriz sob o número ...51, onde se inclui a parcela de terreno que confronta com a Rua ..., devidamente delimitada pelo murete onde está instalado um equipamento (PT - Posto de Transformação), da ...; se condene os autores reconvindos a reconhecerem tal direito e a absterem-se de praticar quaisquer atos turbadores do seu exercício.
Pedem ainda que os autores sejam condenados como litigantes de má-fé em multa e, ainda, a pagarem aos réus uma indemnização de 40.000,00 euros.
Replicaram os autores, impugnando a matéria da reconvenção, e pedindo a condenação dos réus como litigantes de má fé.
Suscitaram ainda o incidente de intervenção acessória provocada de EMP03..., Ldª, que foi admitida a intervir nos presentes autos e apresentou contestação.

Realizada audiência final foi proferida sentença que julgou:
“. a ação improcedente, e, consequentemente, absolve os réus dos pedidos;
. a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:
- reconhece-se que os réus/reconvintes são donos das frações autónomas que integram prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, composto de cave, ..., ... andar e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob a descrição número ...03 e inscrito na respetiva matriz sob o número ...51;
- absolve-se os AA./Reconvindos do demais peticionado”.

Inconformados, vieram os autores apresentar recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:
“I. Do supra exposto resulta que o presente recurso tem por finalidade: (i) a verificação da nulidade por omissão de formalidade legal respeitante à ausência de auto de inspeção judicial com a indicação/identificação dos elementos relevantes para a decisão da causa e por consequência com influência direta nesta e a declaração da nulidade da sentença; (ii) a alteração da matéria de facto dada como não provada, através da reapreciação da prova produzida e, mesmo que a matéria de facto não seja alterada, o que não se concede (iii) alteração da decisão de direito quanto a cada uma das questões que são colocadas.
II. Primus, e quanto à nulidade por preterição de formalidade legal com influência na boa decisão da causa, uma vez que não foi lavrado auto de inspeção judicial, a decisão sobre a matéria de facto funda-se numa omissão de formalidade essencial que tem influência na decisão da causa e que se prende como o facto de não ter sido lavrado auto da inspeção judicial realizada ao local pelo Tribunal a quo, com identificação dos elementos úteis para o exame e decisão da causa e que permitiriam aferir da valoração feita pelo Tribunal a quo e da bondade da sua fundamentação, inclusivamente, porque tal meio de prova é invocado na decisão sobre a matéria de facto.
III. Ora, a inspeção judicial é um meio de prova que pode ser requerido pelas partes para esclarecer os factos com interesse à decisão da causa (cf. Artigo 490º do CPC).
IV. In casu, era essencial a deslocação do Tribunal ao local objecto dos autos para se esclarecer os factos alegados quanto às passagens existentes nos terrenos, à sua configuração, a possibilidade ou não de utilização, os acessos, etc.
V. Tendo a diligência sido realizado, impunha-se que um auto fosse lavrado e que no mesmo fossem registados todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa (cf. artigo 493º do CPC).
VI. Na fundamentação de facto da sentença de que ora se recorre, é feita referência expressa à inspeção judicial: “Na inspeção judicial observou-se o local a partir de todas as alegadas entradas”.
VII. Sucede, porém, que se desconhece quais os elementos úteis que relevaram para o exame e decisão da causa e que tenham sido percecionados pelo Tribunal.
VIII. “I- A inspeção judicial feita ao local em audiência de julgamento configura um meio de prova (direta) a percecionar diretamente pelo tribunal, cujo resultado será por ele apreciado livremente. II- Essa diligência e o seu resultado devem ficar a constar de auto. III- A sua omissão está sujeita ao regime geral das nulidades, configurando tal uma nulidade secundária. IV- A razão de ser dessa sua obrigatoriedade de redução a auto tem, essencialmente, a ver com o permitir um melhor e mais efetivo exercício dos poderes de controle, em matéria de facto, se sobre ela vier a recair recurso. V- Tendo o tribunal, em audiência de julgamento, deslocado ao local, a fim de inspecionar o mesmo, sem que tenha feito constar dos autos os elementos relevantes observados, não obstante tenha invocado essa inspeção na motivação da decisão da matéria de facto que proferiu, a irregularidade processual cometida torna-se inconsequente/inócua, se essa decisão não fora impugnada no recurso interposto da sentença final, pois que em nada influiu no exame ou na decisão da causa.” (Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 01.04.2020, processo 213/17.6T8OHP.C1)
IX. Nessa medida, a não observância do preceituado no artigo 493º do CPC, com influência na decisão da causa, constitui uma nulidade secundária, nos termos e para os efeitos do artigo 195º do CPC, e que tem, obrigatoriamente de ser invocada nesta sede.
X. Nem os Recorrentes, nem o Venerando Tribunal da Relação, terão conhecimento da perceção que o Tribunal a quo retirou da deslocação ao local que lhe permitiu decidir como decidiu quantos aos factos provados e não provados.
XI. Ergo, não poderá a fundamentação, nem a decisão, quanto à decisão sobre a matéria de facto proceder, por omissão grave de formalidade essencial para a boa decisão da causa.
XII. Secundus e quanto à nulidade da sentença, entendem os Recorrentes que a sentença peca por ser ininteligível e, ainda, por ser omissa na pronúncia sobre questão que foi diretamente posta à consideração do tribunal.
XIII. Assim, a sentença é ininteligível porque, efetivamente, deixa no limbo da incerteza a questão de direito sobre a passagem: afinal podem os Recorrentes usar aquela passagem ou podem os Recorridos tapar aquela passagem?
XIV. “I -A decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de factos (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio.”
(Ac. STJ de 07.05.2008, processo n.º 3380/07).
XV. Destarte, a sentença é nula nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 615º do CPC.
XVI. Mas, a sentença é, também, omissa na pronúncia em relação ao pedido de demolição do muro de tapagem e de retirada de todos os bens que impedem a passagem.
XVII. “A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objeto do recurso, em direta conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.” (Ac. STJ de 03.10.2017, processo 2200/10.6TVLSB.P1.S1).
XVIII. Por conseguinte, o Tribunal a quo peca por omitir pronúncia sobre o pedido deduzido pelos Recorrentes relativamente à demolição do muro de tapagem construído pelos Recorridos e, por conseguinte, “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. (Ac. TRL de 08.05.2019, processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3).
XIX. Vicio que dita também a nulidade da sentença, atenta a alínea d) do artigo 615º, n.º 1 do CPC.
XX. Sem prejuízo, e ainda que não se considerassem as nulidades aqui invocadas (o que não se concede), a sentença peca igualmente por traduzir uma deficiente valoração da prova e por encerrar em si uma má aplicação do Direito vigente.
XXI. Entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo não procedeu à realização conveniente do exame crítico da prova produzida, violando o n.º 4 do artigo 607º do CPC.
XXII. Da conjugação da prova produzida – documental e testemunhal – e dos factos aceites por acordo e não impugnados, resulta evidente que não poderia o Tribunal a quo decidir como fez em relação à matéria de facto não provada.
XXIII. Com o devido respeito, o Tribunal a quo não procedeu à análise crítica da prova produzida e, não o tendo feito, expendeu uma decisão fundada em erro de pressuposto de facto.
XXIV. Por conseguinte, deverão os factos não provados constantes dos n.ºs 4, 5, 6, 7 e 8 darem-se como provados, passando a integrar a matéria de facto provada, adicionando-se novas alíneas à decisão sobre a matéria de facto provada, como segue:
JJ) Para preservar a entrada e o acesso à propriedade pela Rua ..., a ante proprietária ao separar os prédios garantiu o acesso à área que ficava da sua propriedade.
KK) A abertura no muro, onde se deveria colocar um portão, constituía o acesso ao resto da propriedade, passando da Rua ... pelo espaço referido na alínea Q) dos factos provados.
LL) A ante proprietária do prédio utilizou este acesso, estando no terreno traços evidentes de passagem.
MM) A área de 500 m2 destinava-se também ao acesso ao prédio mãe.
NN) E, não obstante o prédio ter outras entradas, o acesso ao prédio dos Autores/Reconvindos foi sendo feito pela entrada da Rua ....
XXV. Destarte, admitida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, porque os condicionalismos legais foram cumpridos pelos Recorrentes, entende-se que o Venerando Tribunal da Relação dispõe dos meios suficientes para alterar aquela decisão sobre a matéria de facto provada e, consequentemente, alterar a decisão de Direito.
XXVI. Efetivamente, do notório erro de julgamento de facto e da má apreciação da prova produzida, resulta um desvio na aplicação do Direito que é feita pelo Tribunal a quo, que, também neste considerando, merece censura.
XXVII. Resulta cristalino que a admissão de construção de um muro, com uma entrada, que delineava uma passagem que permitia o acesso ao prédio do ante proprietário é um sinal claro da existência da servidão de passagem pois que houve notória intenção de assegurar a utilidade de tal passagem: “Os sinais hão de revelar a serventia de um prédio para com o outro. Isto significa que hão-de ter sido postos ou deixados com a ‘intenção’ de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro.” (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 634).
XXVIII. A existência de tais sinais resulta dos factos provados nas alíneas P), Z), HH) e II) e sairá reforçada do facto não provado no n.º 4 que merece reapreciação e transposição para o elenco de factos provados.
XXIX. De notar, porém, que não é exigível a prova de uma vontade subjetiva do primitivo proprietário de constituição da relação de servidão, sendo bastante a prova de sinais que revelem “a vontade ou consciência de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objectivamente corresponda à de uma servidão aparente.” (Mário Tavarela Lobo, “Manual do Direito das Águas”, vol. II, pág. 243).
XXX. Ademais, não se olvide que os Recorrentes venderam parte do terreno, através de destaque, logo não seria curial ou lógico que os mesmos se colocassem numa situação de encravar o seu próprio terreno se não existisse a servidão de passagem pela Rua .... É a própria Sociedade Chamada que confirma que existia essa passagem para servir o prédio que, mais tarde, vendeu aos Recorrentes (cf. artigos 32º e 34º da Contestação da Interveniente).
XXXI. Existem, por isso, indícios de evidência da servidão de passagem, através da constatação da realização de obras destinadas a facilitar ou a tornar possível tal servidão.
XXXII. Por conseguinte, é evidente que o segundo requisito legal se verifica e por isso, em conjunto com os demais requisitos, a servidão de passagem por destinação de pai de família é uma realidade fáctica e jurídica que deve ser decretada judicialmente.
XXXIII. Em conclusão, a decisão do Tribunal a quo merece a censura do Tribunal Superior, pela fragilidade da sua fundamentação fáctica e jurídica e por violar os seguintes normativos legais:
a. Artigo 413º do CPC por não ter atendido a todas as provas produzidas
b. Artigo 607º, n.º 4 do CPC por falta de exame crítico da prova produzida
c. Artigo 607º, n.º 5 do CPC por não ter aplicado uma prudente convicção na apreciação da prova
d. Artigos 341º, 342º, 346º, 358º, 361º 376º do Código Civil por violação das regras respeitantes ao ónus da prova e à produção de prova plena

TERMOS EM QUE, COM A DEVIDA VÉNIA E O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS., POR ESTAR EM TEMPO, SER ADMISSÍVEL E TER LEGITIMIDADE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E APRECIADO E, EM CONSEQUÊNCIA
DEVE:

1. PROFERIR-SE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA E INITELIGIBILIDADE, ORDENANDO-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR SENTENÇA QUE NÃO PADEÇA DE QUALQUER INVALIDADE.
SEM PREJUÍZO E SEM CONCEDER, DEVE
2. PROCEDER-SE À REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO E, CONSEQUENTEMENTE, DEVE SER PROFERIDO ACÓRDÃO QUE REVOGUE A SENTENÇA, DECLARANDO-SE A EXISTÊNCIA DE SERVIDÃO DE PASSAGEM POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA, ORDENANDO-SE, CONSEQUENTEMENTE, A DEMOLIÇÃO PELOS RECORRIDOS DO MURO DE TAPAGEM NAQUELA PASSAGEM.
COM O QUE SE FARÁ JUSTIÇA!”

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De igual modo, interpôs apenas o réu Condomínio recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu julgar a reconvenção parcialmente procedente, todavia absolveu os autores em reconhecer a parcela de terreno que confronta com a Rua ..., devidamente delimitada pelo murete onde está instalado um equipamento (PT- Posto de Transformação), da ...; e consequentemente se condene os AA./Reconvindos a reconhecerem tal direito e a absterem-se de praticar quaisquer atos perturbadores do seu exercício.
b) Pelo que, pelo depoimento prestado, pelas referidas testemunhas, diga-se isento, de forma clara, os factos dados como não provados no item 9, 10 e 12 teria necessariamente de ser dados como provados.
c) Assim, ao contrário do que se refere na douta sentença recorrida, existe matéria de facto suficiente para, em conjunto com a presunção de propriedade derivada do registo (art. 7.º Cód. Reg. Predial), reconhecer-se a propriedade sobre os terrenos a favor do recorrente.
d) Ora, beneficiando o recorrente da presunção de propriedade conferida pelo registo (art. 7.º Cód. Reg. Predial), competia à recorrida ilidir tal presunção, provando que a parcela de terreno reivindicada não estava de facto originariamente inserida nos terrenos do recorrente, o que a recorrida não logrou fazer.
e) Pelo contrário, provou-se antes que a parcela de terreno estava de facto integrada no terreno do recorrente, que logrou sempre obter atos de posse.
f) Pelo que, entende o recorrente, salvo o devido e douto entendimento, que a douta sentença, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art.º 7º do RGP, artigo 1268º do cc e 1287 do cc.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá a sentença em crise e aqui recorrida, ser revogada”.
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Apenas os autores contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e o incorreto valor atribuído ao mesmo, justificando, de seguida, as razões pelas quais o mesmo deveria ser julgado improcedente.
Cumprido o contraditório relativamente a esta duas questões, veio o Tribunal a alterar o valor atribuído ao recurso, determinando o pagamento da taxa de justiça em falta, que foi paga pelo réu Condomínio, tendo em dois momentos distintos, admitido ambos os recursos apresentados (despachos de 09/04/2024 e de 31/05/2024).
Não obstante ter admitido o recurso apresentado pelo réu Condomínio, foram as partes ouvidas sobre a falta de personalidade judiciária deste réu, considerando o pedido reconvencional que era objeto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 - se o réu Condomínio tem personalidade judiciária que lhe permita efetuar o pedido reconvencional que é objeto do recurso de apelação que apresentou;
2 - se a sentença é nula por omissão de pronúncia ou por ser ininteligível.
3 - da impugnação da matéria de facto suscitada pelos autores.
4 - se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito.
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III - Fundamentação de facto:

Os factos que foram dados como provados na decisão proferida são os seguintes:

“A) Os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio misto composto por: a) Casa do Rés-do-chão, andar e dependência; b) Casa do Rés-do-chão, dois pavimentos e dependência e, c) Lavradio, por o terem adquirido por compra à Sociedade “EMP03..., L.da”.
B) Prédio esse sito no Lugar ..., freguesia ... – ..., inscrito na matriz predial da freguesia ..., sob os artigos ..., ..., os urbanos, e o rústico sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição ...07.
C) À data da aquisição do prédio pelos AA., por escritura pública de compra e venda celebrada em 28 de Dezembro de 2018, a área total do prédio era de 6.754 m2.
D) E confinava a norte com a Rua ... e o Edifício ...; a sul com o caminho público, a nascente com a Rua ... e Edifício ... e a poente com o ribeiro.
E) Os RR. são: O 1º é o Condomínio e respetivos Administradores do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...03 e com a propriedade horizontal registada pela Ap. ...2 de 2002/09/11.
F) O prédio urbano descrito na alínea E), com a área de 4000 m2, foi destacado do prédio identificado nas alíneas A) e B).
G) Os restantes RR. são, cada um, proprietário da fração identificada a propósito da identificação individual e comproprietários das partes comuns do dito edifício.
H) O prédio originário antes do destaque referido na alínea F) tinha a área de 10.754 m2.
I) O prédio dos AA. foi adquirido pelos ante ante proprietários, por compra em processo de falência em 1997.
J) Em 2019 os AA. procederam a outro destaque de 2000 m2, e venderam essa parcela de terreno em Março de 2020.
K) Após os destaques as confrontações não foram atualizadas na matriz nem no registo.
L) O prédio dos AA. atualmente confronta a norte com a Rua ... e Edifício ..., a sul com caminho público, a nascente com OOO e PPP e a poente com o ribeiro.
M) Após o 1º destaque a sociedade construtora (a mesma que vendeu a propriedade aos AA.), aqui Interveniente, foi obrigada a instalar um Posto de Transformação (P.T.) para conversão da eletricidade de alta em baixa tensão para a utilização dos moradores do Edifício ....
N) Igualmente fez construir um depósito de gás para utilização dos mesmos moradores.
O) Mais tarde o P.T. passou a servir toda a população da freguesia e a instalação do gás não teve utilidade em consequência do fornecimento à população de gás canalizado.
P) Construiu a mesma sociedade um muro, com a altura sensivelmente de um metro em blocos de cimento, com o desenho visível no conjunto de 9 fotografias juntas com a petição inicial e definido no documento nº 7 junto com o mesmo articulado.
Q) O muro de delimitação da área dos equipamentos da ... tem um espaço de 5,36 metros, aberto, a meio da sua extensão, paralela à Rua ....
R) Em 07/03/2020, a Administração do Condomínio ou alguém a seu mando, tapou a abertura existente no muro referidos na alínea Q).
S) Os familiares dos AA. quando se aperceberam do referido na alínea R) chamaram a GNR, que se deslocou ao local e elaborou um auto.
T) O acesso pela Rua ... ao prédio dos AA. era às vezes utilizado por populares para encurtar caminho, atravessando o prédio.
U) O caminho a sul tem a largura máxima de 2,50 metros.
V) A área de alargamento da ponte (de 134 m2), a poente do muro e do PT, foi cedida como contrapartida à C.M. ... aquando da apresentação e aprovação do projeto do Edifício ... em 1998.
W) Tal como foi cedida uma área de 627 m2 para passeios, baias de estacionamento e arruamentos.
X) O prédio dos AA. confina com a Rua ... no ponto em que entronca com a Rua ....
Y) É possível aceder ao terreno dos AA. pela Rua ..., no ponto referido na alínea X), com qualquer tipo de veículo e maquinaria.
Z) O muro foi construído após a instalação da infraestrutura de fornecimento de gás e eletricidade.
AA) Em 16/06/1999, a Sociedade Chamada, registou a aquisição da totalidade do prédio descrito na CRP ... sob o número ...07 com área de 10.754 m2.
BB) Prédio este que, foi objeto de uma operação de destaque de uma parcela com 4.000 m2.
CC) Que deu origem ao prédio urbano descrito na CRP ... sob o número ...03 e com a propriedade horizontal registada pela Ap. ...2 de 2002/09/11.
DD) A instalação do P.T. foi construído pela Sociedade Chamada, construtora do Edifício ..., junto à entrada do prédio, situada nessa mesma Rua ....
EE) Com a construção do muro de delimitação, foi deixado um espaço, com cerca de 500m2, destinada ao acesso aos referidos equipamentos.
FF) Desde a data da separação dos prédios, a referida área de 500m2 deixou de fazer parte integrante prédio mãe.
GG) Passando a estar destinada à instalação dos referidos equipamentos (PT e gás) que servem a população da freguesia.
HH) Encontrando-se o referido espaço aberto para a Rua ....
II) O que vem acontecendo, há mais de 18 anos, de forma pública, pacífica e sem oposição de ninguém”.
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Resultaram ainda não provados os seguintes factos:

1- Em 16 de Março de 1998 deu entrada na C.M. ... um projeto para licenciamento da construção do Edifício ... a edificar na área que seria objeto do destaque referido na alínea F) dos factos provados.
2- O projeto foi aprovado em 27/11/1988.
3- Na aquisição referida na alínea C) dos factos provados está incluída a área a partir da Rua ..., até à extrema sul, onde está instalado um equipamento da ..., Posto de Transformação (P.T.).
4 - Para preservar a entrada e o acesso à propriedade pela Rua ..., a ante proprietária ao separar os prédios garantiu o acesso à área que ficava da sua propriedade.
5- A abertura no muro, onde se deveria colocar um portão, constituía o acesso ao resto da propriedade, passando da Rua ... pelo espaço referido na alínea Q) dos factos provados.
6- A ante proprietária do prédio utilizou este acesso, estando no terreno traços evidentes de passagem.
7- A área de 500 m2 destinava-se ao acesso ao prédio mãe.
8- E, não obstante o prédio ter outras entradas, o acesso ao prédio dos Autores/Reconvindos foi sendo feito pela entrada da Rua ....
9- Sempre foram os Réus, por si ou através de alguém a seu pedido, quem procedeu à limpeza e tratamento do espaço compreendido entre a Rua ... e a entrada para o terreno dos Requerentes, mais concretamente do local onde se encontra instalado o equipamento da ....
10- Sempre foram os RR. quem utilizou a área em apreço nos presentes autos.
11- A entrada para o prédio dos AA. junto à ponte, mesmo com a área cedida à Câmara Municipal, para o projeto de alargamento da ponte ali existente, não deixa de ser utilizável pelos AA.
12- Integra a área do prédio urbano dos RR. a parcela de terreno ora reivindicada pelos AA., de cerca de 500m2, delimitada por um muro de blocos, onde se encontra instalado um posto equipamento (PT - Posto de Transformação), da ....
13- A ante proprietária procedia à limpeza da parcela de terreno sempre que fazia a limpeza do resto da sua propriedade.
14- Fazia-o através de QQQ, sócio da empresa EMP04..., L.da”.

IV - Do objeto do recurso:

1 – Da falta de personalidade judiciária do réu Condomínio, considerando o pedido formulado no pedido reconvencional e que é objeto do seu recurso de apelação.
A apelação do réu Condomínio visa a procedência do pedido reconvencional, na parte relativa ao reconhecimento de que a parcela de terreno que confronta com a Rua ..., devidamente delimitada pelo murete onde está instalado um equipamento da ..., integra o prédio que está constituído em propriedade horizontal e que está identificado nos autos.
Duas notas iniciais:
Por um lado, não está em causa nesta apelação a parte do pedido reconvencional que foi julgada procedente, pois que tal decisão transitou já em julgado, não tendo sido objeto de recurso pelos autores, nem por qualquer dos réus reconvintes.
Por outro lado, foi uma opção dos réus reconvintes que o seu recurso de apelação tivesse apenas sido apresentado pelo réu Condomínio e não, também, como aconteceu com a contestação / reconvenção, pelos demais réus reconvintes.
Certo é que este recurso visa que o Tribunal declare que a parcela de terreno em discussão nestes autos integra o prédio constituído em propriedade horizontal, e que os autores sejam condenados a reconhecê-lo.
Ora, como se referiu no despacho de 31/05/2024, a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte (art.º 11.º, n.º 1, do C. P. Civil).
Quem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária (nº2 da norma citada).
O Condomínio não tem personalidade jurídica.
Pode, porém, ter a personalidade judiciária que lhe está reconhecida no art.º 12º do C. P. Civil, que a estende a quem, não tendo personalidade jurídica, passa a ter a judiciária que lhe é reconhecida.
Ora, nos termos do art.º 12º, alínea e), do C. P. Civil, o Condomínio tem personalidade judiciária apenas relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
Não se inserem nos poderes do administrador a representação dos proprietários em ações de reconhecimento de propriedade.
Não está em causa a falta de poderes de representação de quem quer que seja e muito menos é de aplicar o que dispõe o art.º 48º, nº2, do C. P. Civil.
Veja-se a definição de personalidade judiciária do condomínio nas palavras do Dr. Miguel Mesquita, in Cadernos de Direito Privado, nº35, pág. 41 a 56, em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/06/2009, “a personalidade judiciária do condomínio é limitada e não irrestrita, pois gravita em torno dos poderes do administrador. Se o objeto diz respeito a matérias que extravasam as funções do administrador, o condomínio perde a suscetibilidade de ser parte, transferindo-se esta para os condóminos”.
Apenas aos proprietários das frações – demais réus reconvintes que, porém, não interpuseram recurso – interessa a definição dos concretos limites do imóvel de que são proprietários. Ao administrador caberá administrar tudo o que forem partes comuns e não a definição dos limites dessas partes comuns, no confronto com os proprietários confinantes.
Não tem, pois, o réu reconvinte Condomínio personalidade judiciária para o pedido reconvencional que formulou, na parte em que este foi julgado improcedente (pois que, na parte restante, a decisão proferida transitou já em julgado).
A falta de personalidade jurídica e judiciária deste réu reconvinte é insuprível, sendo certo que estavam na ação os proprietários que podiam deduzi-lo, embora se tenham conformado com a decisão proferida em sede de 1.ª Instância.
A falta de personalidade judiciária é de conhecimento oficioso e conduz à absolvição dos autores da instância reconvencional, no que ao pedido do réu Condomínio se reporta – arts.º 278.º, n.º1, alínea c), 576.º, 577.º, alínea c), e 578.º do C. P. Civil.
Vide, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/05/2021, do Juiz Conselheiro José Rainho, proc. 90/19.2T8LLE.E1.S1, in www.dgsi.pt.
Assim sendo, sem apreciar o mérito do recurso apresentado pelo réu reconvinte Condomínio, verificando-se exceção dilatória de falta de personalidade judiciária do reconvinte Condomínio, cumpre absolver os autores reconvindos da instância reconvencional, no que diz respeito ao pedido formulado pelo réu Condomínio (no sentido de integrar o prédio constituído em propriedade horizontal a parcela de terreno em discussão nestes autos), mantendo-se a condenação dos autores no pedido reconvencional, nos termos proferidos pelo Tribunal de 1.ª Instância (pois que dessa decisão não foi interposto recurso).
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2 – A nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou por ser ininteligível:

Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, alínea c), que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível
A sentença é ainda nula quando o juiz deixe pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não deva tomar conhecimento – alínea d) da norma citada.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (vide, neste exato sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/10/2018, da Juiz Desembargadora Eugénia Cunha, proc. 1716/17.8T8VNF.G1 in www.dgsi.pt).
No que tange à obscuridade conducente à ininteligibilidade da decisão, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 151, ensinava a este propósito que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz”.
No que se refere à omissão de pronúncia, o vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil: “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Recorrendo, mais uma vez, aos ensinamentos de Alberto dos Reis, In Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 143. “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.
Alegam os recorrentes que a sentença é ininteligível por não se compreender a situação jurídica e física que resulta da decisão.
Alegam ainda que o Tribunal não se pronunciou sobre umas das questões suscitadas e que se relaciona com a demolição do muro por si construído.
A Mm.ª Juiz que proferiu a sentença pronunciou-se sobre estas nulidades no despacho que proferiu em 15/12/2023, entendendo que as mesmas não se verificaram.
Assiste-lhe razão.
A decisão é clara.
O Tribunal entendeu que as partes demonstraram ser proprietárias do imóvel que identificaram, mas nenhuma delas demonstrou os factos de onde se poderia retirar que a parcela de terreno em discussão nestes autos integrava qualquer desses imóveis.
É certo que, assim sendo, e mantendo-se a decisão proferida nos termos em que o foi, não fica definido qualquer direito resultante desta ação em relação a tal parcela.
Mas tal é resultado da não prova dos factos alegados por cada uma das partes e não torna ininteligível a sentença. Bem gostariam os aplicadores do direito que, em cada caso concreto, a decisão resolvesse de forma definitiva o conflito existente entre as partes do processo. Infelizmente, nem sempre tal acontece, sem que dessa circunstância se possa concluir ser ininteligível a decisão.
Também quanto à omissão de pronúncia não assiste aos autores recorrentes qualquer razão.
Percebe-se que os autores entendam que, não resultando demonstrada a propriedade pelos réus reconvintes da parcela de terreno em discussão, deveria o Tribunal de 1.ª Instância ter julgado procedente o pedido que formularam no sentido da demolição da parte do muro que foi por si executada.
Tal discordância não significa que não tenha existido decisão.
Com efeito, quanto a esse pedido em concreto, entendeu o Tribunal que, não estando demonstrado qualquer concreto direito dos autores sobre a parcela em questão (“não provaram os AA. ser proprietários da parcela de terreno que reivindicam), tal significava que “improcede também o pedido que pressupõe o direito de propriedade dos AA. sobre a parcela de terreno em questão, a condenação dos RR. a demolirem a tapagem do muro a que procederam, a desocupar a área de objetos e de quaisquer outros bens que aí tenham colocado”.
Saber se pode ou não concluir-se por esta improcedência, é matéria que interessa ao mérito do recurso, mas decorre com clareza da decisão que a questão colocada pelos autores foi apreciada na decisão proferida, não existindo assim qualquer nulidade por omissão de pronúncia.
Não se verificam assim quaisquer das nulidades da sentença proferida que foram arguidas em sede de recurso pelos autores.
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3 - Da impugnação da matéria de facto suscitada pelos autores:

3.1. Em sede de recurso, os apelantes autores impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.
Dispõe o art.º 640.º do C. P. Civil, que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) (…);
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º”.
A jurisprudência tem entendido que desta norma resulta um conjunto de ónus para o recorrente que visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, da Juiz Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1 in www.dgsi.pt, das normas aplicáveis resulta que “recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”.
Estes ónus exigem que a impugnação da matéria de facto seja precisa, visando o regime vigente dois objetivos: “sanar dúvidas que o anterior preceito ainda suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova” (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, pág. 198).
Recai assim sobre o recorrente o ónus de, sob pena de rejeição do recurso, determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretendem questionar (delimitar o objeto do recurso), motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação (fundamentação) que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre cada um dos factos que impugnam e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito (vide, por todos, Abrantes Geraldes, no livro já citado, pág. 199).
Analisadas as alegações apresentadas, os recorrentes autores indicam de forma correta os factos que pretendem sejam decididos de forma diversa, fundamentando a sua alegação em concretos meios probatórios que entendem permitir concluir no sentido por si proposto, fazendo menção aos específicos momentos da gravação, nada obstando assim à reapreciação da matéria de facto da decisão recorrida.
Veja-se, por todos, a jurisprudência citada no Acórdão recente do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, da Juiz Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1, e em particular o Acórdão do mesmo Tribunal de 10/12/2020 (proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1), nele citado, que estabelece que “na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal”.

3.2. Nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, da Juiz Desembargadora Margarida Gomes, proc. 2199/18.3T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, “a reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Estão em causa, apenas, os factos dados como não provados nos pontos 4, 5, 6, 7 e 8 e que os autores recorrentes entendem dever ser julgados como provados:
“4 - Para preservar a entrada e o acesso à propriedade pela Rua ..., a ante proprietária ao separar os prédios garantiu o acesso à área que ficava da sua propriedade.
5 - A abertura no muro, onde se deveria colocar um portão, constituía o acesso ao resto da propriedade, passando da Rua ... pelo espaço referido na alínea Q) dos factos provados.
6 - A ante proprietária do prédio utilizou este acesso, estando no terreno traços evidentes de passagem.
7 - A área de 500 m2 destinava-se ao acesso ao prédio mãe.
8 - E, não obstante o prédio ter outras entradas, o acesso ao prédio dos Autores/Reconvindos foi sendo feito pela entrada da Rua ...”.
Na sentença proferida deram-se como não provados estes factos com a seguinte fundamentação: “a matéria não provada foi assim considerada por não sido feita prova bastante da sua ocorrência, nomeadamente, os traços evidentes de passagem pelo terreno desde a Rua ... até à abertura no muro de blocos em cimento, que não foram confirmados na inspeção judicial ao local, nem pelas testemunhas nem pelas fotografias juntas aos autos”.
Ouvidos todos os depoimentos prestados e analisada toda a prova documental, não concordamos na íntegra com o entendimento expresso pela Mm.ª Juiz que presidiu à realização da audiência de julgamento.
Vejamos.
A planta de fls. 299 revela-nos o que era o prédio inicial, antes de qualquer destaque, estando datada de março de 1998 e estando nela referido o nome de quem adquiriu o prédio em processo de falência (como se retira da descrição predial do imóvel).
A essa data, a área identificada como “área de espaço urbano”, com 4.000 m2, corresponde precisamente à parcela de terreno que foi destacada tendo em vista a construção do edifício dos réus e que é administrado pelo réu Condomínio (ver fls. 75).
Ora, esses 4.000 m2 terminam junto à Rua ... (aí identificada como CM 1073) em forma oblíqua (junto às casas identificadas na planta junto a essa rua).
Esses 4.000 m2 não têm, assim, no local em discussão nestes autos, a configuração que existe desde a construção do muro que aqui se discute nos autos, ficando esse muro claramente fora da área aí identificada como sendo a dos 4.000 m2 de “área de espaço urbano”.
Se bem analisarmos essa planta, facilmente se percebe que apenas junto à Rua ..., (mas não já junto ao local onde hoje existe o muro), a área dos referidos 4.000 m2 se estende, na direção de ..., para além do que é a implantação do edifício construído e respetivas garagens, bastando para tal ler esta planta em conjunto com a de fls. 75, onde esta implantação está já visível.
Ou seja, o local onde foi construído o muro está, claramente, fora da área dos referidos 4.000 m2 destacados para a construção do edifício, com a implantação que resulta de fls. 75.
Veja-se ainda a fotografia aérea de fls. 79, sobre a qual é possível projetar aquela área de 4.000 m2 da planta de fls. 299 e a implantação do imóvel dos réus de fls. 75, percebendo-se que, como se disse, desde sempre, perante o destaque efetuado, o muro que é visível na fotografia (então ainda com a abertura) está construído em área que não integra o destaque efetuado.
Todas as pessoas que depuseram e que conheciam o local quando ele era apenas um único prédio se reportaram à existência, junto às casas velhas em ruínas que aí existiram (as tais que encontramos na planta de fls. 299 junto à CM 1073), de uma das entradas para este prédio então único.
 Daí que não cause qualquer perplexidade que quem, como a interveniente, sendo então dona de tudo, tenha procurado assegurar que aí permanecia uma entrada para aquele que era o prédio mãe e continuava a pertencer-lhe, já que destinava o prédio destacado à construção, que iria ser por si realizada, para posterior venda a terceiros.
A abertura do muro não pode ter outra leitura que não esta, sendo certo que os réus não reclamam para si a realização dessa abertura e, assim, a mesma só poderia ter sido feita pela empresa então proprietária de tudo, e construtora do Edifício, aqui interveniente, sendo esta a única explicação plausível para a sua existência.
Esta natureza é ainda mais reforçada com a análise concreta das características dessa abertura (e que foram referidas pela testemunha BBB) e que são visíveis na 2ª fotografia do documento 8 junto com a petição inicial. Como se retira com clareza dessa fotografia, tal como referido pela testemunha, a abertura no muro tinha dois espaços abertos, contíguos, mas separados por um pilar de tijolos, com a mesma altura do muro, sendo a da esquerda mais larga (para quem está na parcela de terreno em discussão, de costas para a Rua ...), mais parecendo que está em causa uma abertura para carros (a mais larga) e outra apenas para pessoas (a da direita).
A ata de condomínio de fls. 86, datada de 04/05/2019, é suficientemente elucidativa do que pensavam os réus sobre esta parcela de terreno em particular, pois que a sua perceção de propriedade resultou da análise que foi efetuada por solicitador da “planta do edifício”.
Desconhece-se em absoluto que planta do edifício exista que coloque o local onde está construído o muro dentro da área de 4.000 m2 que foi destacada, pois que, nas que estão juntas aos autos, tal afirmação é absolutamente infirmada.
Tal inclusão surge apenas na fotografia de fls. 174 verso (junta como documento 2 da contestação), e datada de 2009, não sendo, por isso, contemporânea da constituição da propriedade horizontal do imóvel ou da inscrição do prédio na matriz, percebendo-se que aí, mas só aí, toda a área em discussão nestes autos está assinalada (e é apenas isso que se se retira da fotografia), como fazendo parte do Edifício construído.
Este assinalar dos limites do imóvel não faz, naturalmente, prova de que são estes os seus limites.
E quanto à prova testemunhal?
É referido que os seus depoimentos foram contraditórios e comprometidos com os interesses das partes que os arrolaram.
Ora, se tal aconteceu quanto a saber por onde mais se podia aceder ao prédio (outras entradas), matéria essa que não está em causa nesta impugnação da matéria de facto, nenhuma contradição existiu quanto à utilização que, antes da separação dos prédios, era efetuada pela entrada que existia junto às casas em ruínas (ou às “alminhas” que ficam do outro lado da rua, no mesmo local, ponto de referência para alguns depoimentos mas que se refere, sempre, ao mesmo local) e, portanto, pela Rua ....
Isso mesmo é referido na motivação da decisão quando se diz que “as testemunhas RRR, SSS e FF
TTT, sem relações com as partes, e conhecedores do local, prestaram depoimentos desinteressados e objetivos, referindo-se, todas, a uma entrada para o terreno por um portão que existiu outrora e que se situava perto do local onde está agora o PT”.
A Mm.ª Juiz a quo desvalorizou o depoimento de UUU porquanto o mesmo se referia sempre ao que havia sido efetuado pelo pai e não à sociedade interveniente (que tem também o nome do pai daquele, UUU), quando resulta claro que os negócios foram feitos pela sociedade, sem que, no entanto, tal desconformidade corresponda a uma qualquer realidade de facto diferente daquela que se retira dos documentos.
Como muitas vezes acontece, os depoimentos referiram-se por vezes às pessoas singulares que negociaram em vez de se referirem às sociedades que aquelas representavam, apesar de os negócios serem celebrados com a sociedade e não com aquela pessoa singular.
Ora, na situação em apreço, a testemunha UUU identificou-se como pai das legais representantes da sociedade interveniente (LL e VVV, como resulta da escritura pública de fls. 20 verso), sendo certo que, no negócio com os autores, os contactos foram estabelecidos consigo, e nem por isso existe qualquer dúvida sobre quem efetuou o negócio.
E resulta claro que a aquisição do imóvel foi efetuada pelo pai da testemunha, de nome UUU (registo de aquisição de 18/11/1997), constando nova aquisição a favor da interveniente datada de 16/06/1999.
Ora, como se viu já por referência a fls. 299, já em março de 1998 existia uma planta que identificava a área do terreno que era urbanizável e onde veio a ser construído o Edifício ..., e que está em nome de UUU, pelo que não surpreende que a testemunha se refira ao seu pai como tendo sido quem fez e realizou todos os atos aqui relevantes, ainda que os possa ter realizado, a partir de certo momento, em representação, mesmo informal, da sociedade interveniente (pois que os representantes desta sociedade eram, pelo menos em 12/09/2002, aqueles que estão identificados na escritura pública de constituição de propriedade horizontal, quase todos com apelido UUU).
Que foi também gerente desta sociedade interveniente resulta inequívoco da escritura pública de doação de parte deste terreno ao Município ..., visando precisamente a construção do edifício e que está datada de 17/11/1999 (fls. 233 verso).
Resulta assim com clareza do depoimento desta testemunha o que se pretendeu com a construção do muro.
Em primeiro lugar, excluir do terreno mãe tudo o que ficava para fora desse muro. Foi muito claro o depoimento prestado. O prédio vendido pela sociedade interveniente aos autores não incluía a propriedade da parcela de terreno que aqui está em causa e que se situa entre o muro e a Rua ..., porque já não lhe pertencia (sendo muito menos assertivo em explicar a quem pertencia, parecendo entender que havia sido cedida ao domínio público, sem que tal cedência, naquela área específica, esteja efetivamente documentada).
Em segundo lugar, pretendia manter-se o acesso a esse prédio mãe pela Rua ... e foi por esse motivo que foi deixada a abertura, havendo intenção de colocar portão que nunca foi colocado. Para além do teor deste depoimento, temos de concordar que nenhuma outra explicação surge como plausível para a existência daquela abertura (com as características acima referidas e a dimensão dada como provada) num muro com aquela configuração.
Ora, este depoimento, que se enquadra em absoluto na lógica do que é visível e existia no local antes da obra realizada no muro pelos réus, juntamente com os documentos referidos, são meios de prova mais do que suficientes para que o Tribunal afirme parte dos factos que o Tribunal de 1.ª Instância entendeu considerar não provados.
Por último, veja-se que esta abertura no muro sempre existiu, desde que existe Edifício ... e, tendo a sociedade EMP03... Ldª vendido o prédio mãe aos autores em 28/12/2018, apenas em março de 2020 entenderam os réus executar obra para a fechar.   
Resulta assim demonstrado que:
JJ - Para preservar a entrada e o acesso à propriedade pela Rua ..., e quando era ainda proprietária de ambos os prédios, a ante proprietária garantiu o acesso por essa Rua ... à área do prédio mãe, pela abertura referida na alínea Q) dos factos provados.
LL - A abertura no muro, onde se deveria colocar um portão, constituía um dos acessos ao resto da propriedade, passando da Rua ... pelo espaço referido na alínea Q) dos factos provados.
MM - A área de 500 m2 destinava-se também a permitir o acesso ao prédio mãe pela Rua ....
A esta alínea MM) foi dada redação que a torne compatível com a redação da alínea EE), que corresponde a matéria de facto não impugnada.
Já no que se reporta aos factos 6 e 8 da matéria de facto não provada, não encontramos qualquer elemento probatório que nos permita reconhecer qualquer concreta utilização da ante proprietária por aquele acesso ou qualquer marca de passagem pela parcela em questão.
Nenhum depoimento testemunhal o referiu, nenhuma imagem do local revela tais “visíveis” sinais de passagem, até porque ninguém referiu qualquer utilização do prédio mãe até ter sido vendido aos autores pela interveniente.
Lidas as alegações dos autores recorrentes, não encontramos qualquer menção a elementos probatórios que permitiriam afirmar tais factos como provados, pelo que se mantêm no elenco dos factos não provados.
De notar que o Tribunal não pode dar como provado que o muro e as aberturas foram construídas no momento em que os prédios foram fisicamente separados.
E não pode fazê-lo por duas ordens de razão.
A primeira é que nenhum elemento probatório existe que corrobore tal afirmação (que o muro e as suas aberturas foram efetuados no momento da separação através de destaque do prédio com a área de 4.000 m2 do restante prédio). Se analisarmos os elementos probatórios indicados pelos recorrentes, nenhuma menção existe que o confirme.
A segunda é que nem a alegação dos autores, constante do seu articulado, suporta tal afirmação.
Se é certo que nos artigos 24 e 25 da petição inicial é alegado que a abertura do muro foi deixada aquando da separação dos prédios, nos artigos anteriores haviam os autores alegado que:
- após o destaque de 4.000 m2 (que marca a separação física dos prédios), a construtora foi obrigada a instalar um Posto de Transformação e depois instalou um depósito de gás;
- para proteção desses equipamentos foi construído o muro que aqui está em causa e, então, para preservar o acesso ao prédio mãe, foi deixada neste a abertura de 5,36 m.
Desta alegação retira-se, como consequência lógica, que, mesmo na alegação dos autores, tudo, quer a colocação desses equipamentos, quer a construção do muro com a abertura, se verificou após a realização do destaque que marca a separação física dos prédios e daí que não possa concluir-se que a abertura no muro construído foi deixada no momento em que se verificou a separação física dos prédios.
Porém, se o destaque marca a separação física dos prédios, não se refere na situação em apreço a qualquer transferência de propriedade (de domínio, na expressão utilizada no art.º 1548.º do C. Civil), pois que, quando esta se verificou não temos dúvidas que o muro e a sua abertura já existiam.
Ou seja, quando a interveniente vendeu as frações construídas e perdeu, assim, o domínio sobre o imóvel destacado, já o muro existia com a abertura demonstrada (com a dimensão referida).
Efetivamente, está dado como provado, sem que as partes tenham impugnado tal facto, que esta situação, do muro com aquela abertura existe desde há mais de 18 anos (alínea II) dos factos provados), sendo que esta alegação reportava-se ao tempo decorrido até que os réus taparam o muro (facto 35.º da petição inicial).
Assim, estava alegado e resultou provado que o muro existia pelo menos desde ../../2002, quando a constituição da propriedade horizontal é apenas de setembro de 2002 (fls. 168 verso) efetuada pela interveniente.
Não releva nesta sede o facto de existirem outras entradas para o prédio mãe.
Os factos considerados provados relativamente a essa matéria não foram impugnados e não estão, por isso, em discussão.
A existência dessas entradas não exclui que a então proprietária dos imóveis tivesse querido preservar este acesso (como o revelou a testemunha já referida), que referiu que o alargamento da ponte (ainda não concretizado, mas projetado há vários anos e para a qual foi já cedido terreno, como resulta da planta de fls. 299 e da escritura pública de doação realizada e junta aos autos a fls. 234) impossibilitaria a utilização futura de uma outra entrada para o prédio mãe pela Rua ..., mais próxima da ponte (e que, não tendo existido aquele alargamento, ainda hoje pode ser utilizada).
Ou seja, o que resulta demonstrado nas alíneas X) e Y) não afasta que a intenção da interveniente tivesse sido aquela que resultou demonstrada, ainda que tal acesso seja possível por outro local.
Daqui decorre que quando houve a separação de domínio já o muro e a sua abertura existiam e é este o sentido da redação dada à alínea JJ) dos factos provados.
Cumpre aqui fazer uma referência ao que foi alegado pelos autores recorrentes quanto à não elaboração de auto de inspeção.
Os autores arguiram nas suas alegações de recurso a nulidade secundária resultante da não elaboração de qualquer auto da diligência de inspeção ao local -  art.ºs 1.º a 11.º do requerimento -, iniciando, só após tal arguição, a motivação do recurso, novamente com o art.º 1.º e segs., invocando o art.º 195.º do C. P. Civil.
Como decorre da estrutura que deram às alegações apresentadas, esta questão não estaria assim a ser submetida a este Tribunal de recurso, mas ao Tribunal de 1.ª Instância, sendo que a não elaboração do auto de inspeção e a sua relevância na decisão proferida, constituía também fundamento do recurso, no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Não obstante, e contrariando a lógica das suas próprias alegações, esta questão relativa à omissão de elaboração de auto de inspeção judicial consta das conclusões do recurso e é, assim, também, por isso, objeto deste.
 Note-se que tal arguição perante o Tribunal de 1.ª Instância foi objeto de apreciação e, tendo sido interposto recurso, da sua não admissão não resulta que tenha havido reclamação por parte dos ora recorrentes.
Não obstante, apreciaremos a questão suscitada.
Assiste integral razão aos autores quando referem que, tendo sido realizada inspeção judicial, só a elaboração de um auto poderia permitir perceber o que foi percecionado e que veio a ser considerado relevante na decisão proferida.
Esta exigência resulta clara do disposto no art.º 493.º do C. P. Civil.
A ata da audiência documenta os atos realizados na audiência de julgamento, o auto o registo de todos os elementos úteis para o exame e decisão a causa, constatados na inspeção judicial realizada e, por isso, realizada a inspeção, no decurso da audiência de julgamento, dela resultando elementos probatórios relevantes, terá de existir uma ata e um auto, nada obstando que este se integre naquela.
Daí que, realizada a inspeção judicial, se nenhum elemento há a registar é porque nada de relevante se entendeu existir para a decisão e, como tal, nenhuma menção pode existir a este meio de prova na motivação da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada.
É esta a contradição que se surpreende nestes autos. Se, por um lado, nada se registou em auto, a inspeção judicial está mencionada em quatro momentos distintos como meio de prova relevante para a decisão proferida sobre a matéria de facto provada e não provada (e não corresponde ao que consta da motivação da decisão a afirmação constante do despacho de 15/12/2023 no sentido de a sentença apenas se ter feito constar que “se observou o prédio dos Autores a partir das várias entradas existentes”, pois que daquela consta, por exemplo, que a mesma foi utilizada para afastar a existência de traços de passagem).
Só com a prolação da sentença ficam as partes a saber que, apesar de nada ter sido registado em auto, se considerou tal meio de prova relevante e, assim, apenas com a notificação daquela toma a parte conhecimento da nulidade cometida (a não redução a auto dos elementos que se vieram a considerar ser úteis para a decisão a proferir).
Estando em causa nulidade secundária, dependente de arguição, o prazo respetivo é de 10 dias, sob pena de se considerar sanada – art.º 195.º do C. P. Civil – vide, neste sentido, António dos Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, pág. 593.
A arguição desta nulidade não se verificou no prazo de 10 dias, devendo, assim, considerar-se sanada. Porém, sem a redução a auto do registo da inspeção judicial não seria possível a este Tribunal perceber em que medida a inspeção judicial foi mal ou bem valorada para a fixação da matéria de facto provada e não provada.
Os autores acima citados entendem que, nesta situação concreta, pode justificar-se a anulação da decisão sobre a matéria de facto, pois que não estão documentados todos os elementos que permitam ao Tribunal de recurso reapreciar a matéria de facto.
Esta situação não tem, porém, reflexo na apreciação da impugnação da matéria de facto nos termos em que esta foi realizada pelos autores, porquanto os factos impugnados seriam eles, todos, inapreensíveis através da diligência de prova de inspeção judicial.
Estão em causa, como vimos, apenas os factos 4 a 8 da matéria de facto não provada.
A prova por inspeção tem por fim a perceção direta de factos pelo Tribunal – art.º 390.º do C. Civil.
Tendo em vista essa perceção, o Tribunal deslocou-se ao local em 24/05/2023.
Os factos 4, 5 e 7 da matéria de facto não provada reportam-se ao passado, ao momento em que foi construído o muro e à intenção com que teria sido construído. Nenhum deles poderia ser objeto de perceção direta pelo Tribunal, através de inspeção judicial.
Já os 6 e 8 se reportam à utilização que seria efetuada de determinada parcela e à existência de traços evidentes dessa passagem.
Ora, na situação em apreço, como os autos documentam, as aberturas existentes no muro foram fechadas pelos réus em março de 2020 (matéria que foi objeto da providência cautelar apensa a estes autos) e, assim, seria sempre insuscetível de perceção direta pelo Tribunal qualquer utilização dessa parcela de terreno como passagem, decorridos que estavam mais de três anos desde que o muro havia sido totalmente tapado.
Concluímos assim que, considerando os termos em que foi efetuada a impugnação da matéria de facto pelos recorrentes, a omissão relativa à realização do auto de inspeção judicial não impede a reapreciação que supra foi realizada e que resultou parcialmente julgada procedente.
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3.3. Com as alterações introduzidas são os seguintes os factos a considerar (estando os factos aditados assinalados a negrito):

“A) Os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio misto composto por: a) Casa do Rés-do-chão, andar e dependência; b) Casa do Rés-do-chão, dois pavimentos e dependência e, c) Lavradio, por o terem adquirido por compra à Sociedade “EMP03..., L.da”.
B) Prédio esse sito no Lugar ..., freguesia ... – ..., inscrito na matriz predial da freguesia ..., sob os artigos ..., ..., os urbanos, e o rústico sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição ...07.
C) À data da aquisição do prédio pelos AA., por escritura pública de compra e venda celebrada em 28 de Dezembro de 2018, a área total do prédio era de 6.754 m2.
D) E confinava a norte com a Rua ... e o Edifício ...; a sul com o caminho público, a nascente com a Rua ... e Edifício ... e a poente com o ribeiro.
E) Os RR. são: O 1º é o Condomínio e respetivos Administradores do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...03 e com a propriedade horizontal registada pela Ap. ...2 de 2002/09/11.
F) O prédio urbano descrito na alínea E), com a área de 4000 m2, foi destacado do prédio identificado nas alíneas A) e B).
G) Os restantes RR. são, cada um, proprietário da fração identificada a propósito da identificação individual e comproprietários das partes comuns do dito edifício.
H) O prédio originário antes do destaque referido na alínea F) tinha a área de 10.754 m2.
I) O prédio dos AA. foi adquirido pelos ante ante proprietários, por compra em processo de falência em 1997.
J) Em 2019 os AA. procederam a outro destaque de 2000 m2, e venderam essa parcela de terreno em Março de 2020.
K) Após os destaques as confrontações não foram atualizadas na matriz nem no registo.
L) O prédio dos AA. atualmente confronta a norte com a Rua ... e Edifício ..., a sul com caminho público, a nascente com OOO e PPP e a poente com o ribeiro.
M) Após o 1º destaque a sociedade construtora (a mesma que vendeu a propriedade aos AA.), aqui Interveniente, foi obrigada a instalar um Posto de Transformação (P.T.) para conversão da eletricidade de alta em baixa tensão para a utilização dos moradores do Edifício ....
N) Igualmente fez construir um depósito de gás para utilização dos mesmos moradores.
O) Mais tarde o P.T. passou a servir toda a população da freguesia e a instalação do gás não teve utilidade em consequência do fornecimento à população de gás canalizado.
P) Construiu a mesma sociedade um muro, com a altura sensivelmente de um metro em blocos de cimento, com o desenho visível no conjunto de 9 fotografias juntas com a petição inicial e definido no documento nº 7 junto com o mesmo articulado.
Q) O muro de delimitação da área dos equipamentos da ... tem um espaço de 5,36 metros, aberto, a meio da sua extensão, paralela à Rua ....
R) Em 07/03/2020, a Administração do Condomínio ou alguém a seu mando, tapou a abertura existente no muro referidos na alínea Q).
S) Os familiares dos AA. quando se aperceberam do referido na alínea R) chamaram a GNR, que se deslocou ao local e elaborou um auto.
T) O acesso pela Rua ... ao prédio dos AA. era às vezes utilizado por populares para encurtar caminho, atravessando o prédio.
U) O caminho a sul tem a largura máxima de 2,50 metros.
V) A área de alargamento da ponte (de 134 m2), a poente do muro e do PT, foi cedida como contrapartida à C.M. ... aquando da apresentação e aprovação do projeto do Edifício ... em 1998.
W) Tal como foi cedida uma área de 627 m2 para passeios, baias de estacionamento e arruamentos.
X) O prédio dos AA. confina com a Rua ... no ponto em que entronca com a Rua ....
Y) É possível aceder ao terreno dos AA. pela Rua ..., no ponto referido na alínea X), com qualquer tipo de veículo e maquinaria.
Z) O muro foi construído após a instalação da infraestrutura de fornecimento de gás e eletricidade.
AA) Em 16/06/1999, a Sociedade Chamada, registou a aquisição da totalidade do prédio descrito na CRP ... sob o número ...07 com área de 10.754 m2.
BB) Prédio este que, foi objeto de uma operação de destaque de uma parcela com 4.000 m2.
CC) Que deu origem ao prédio urbano descrito na CRP ... sob o número ...03 e com a propriedade horizontal registada pela Ap. ...2 de 2002/09/11.
DD) A instalação do P.T. foi construída pela Sociedade Chamada, construtora do Edifício ..., junto à entrada do prédio, situada nessa mesma Rua ....
EE) Com a construção do muro de delimitação, foi deixado um espaço, com cerca de 500m2, destinada ao acesso aos referidos equipamentos.
FF) Desde a data da separação dos prédios, a referida área de 500m2 deixou de fazer parte integrante prédio mãe.
GG) Passando a estar destinada à instalação dos referidos equipamentos (PT e gás) que servem a população da freguesia.
HH) Encontrando-se o referido espaço aberto para a Rua ....
II) O que vem acontecendo, há mais de 18 anos, de forma pública, pacífica e sem oposição de ninguém”.
JJ - Para preservar a entrada e o acesso à propriedade pela Rua ..., e quando era ainda proprietária de ambos os prédios, a ante proprietária garantiu o acesso por essa Rua ... à área do prédio mãe, pela abertura referida na alínea Q) dos factos provados.
LL - A abertura no muro, onde se deveria colocar um portão, constituía um dos acessos ao resto da propriedade, passando da Rua ... pelo espaço referido na alínea Q) dos factos provados.
MM - A área de 500 m2 destinava-se também a permitir o acesso ao prédio mãe pela Rua ....
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4 – Saber se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito:
Nesta apelação os autores recorrentes não procuram já afirmar o seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno em questão, resumindo-se a sua fundamentação jurídica à existência de uma servidão constituída por destinação de pai de família, devendo, em consequência do seu reconhecimento, ser determinada a demolição pelos recorridos da tapagem que efetuaram da abertura existente no muro.
Constitui servidão predial o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia - cfr. art.º 1543.º, do C. Civil.
A servidão é um direito real sobre uma coisa alheia, limitando o gozo efetivo do proprietário dessa coisa, em benefício do titular daquele direito - cfr. Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 3ª Ed., pág. 279.
A servidão, como direito real de gozo sobre coisa alheia, limita o gozo efetivo do proprietário dessa coisa, na medida em que inibe este titular de praticar atos que possam prejudicar o exercício daquele direito, em beneficio do titular do direito de servidão, beneficio que se traduz em utilidades para o dono do prédio dominante, mas que este só pode gozar como tal e por intermédio do seu prédio.   
As servidões podem constituir-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família - cfr. art.º 1547.º, n.º1, do C. Civil.
Começa por dizer-se que perante os termos em que apresentou a sua apelação, os autores recorrentes não fizeram qualquer esforço para demonstrar a quem pertence a parcela de terreno que identificam e sobre a qual pretendem que se reconheça que está onerada com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família.
Os autores alegaram que a mesma lhes pertencia e não o demonstraram.
Todos os réus do prédio constituído em propriedade horizontal, denominado Edifício ..., também alegaram que aquela parcela integrava as partes comuns do prédio, mas também não o demonstraram.
Ainda assim, como resulta claro dos autos, os autores reagem ao ato de tapagem da abertura existente no muro, realizado pelos réus ou por indicação destes, e, assim, é perante estes que pretendem fazer valer o direito de servidão de que se arrogam titulares, para tanto bastando que o prédio serviente seja de um “dono diferente”, na expressão da lei.
Não pertencendo ao prédio dos autores (como resulta da alínea FF dos factos provados), a parcela de terreno em causa é, assim, de um dono diferente, cumprindo averiguar se sobre ela, ou melhor dizendo, sobre o prédio que a integra se constituiu a favor do prédio que os autores identificam e cujo direito de propriedade lhes foi reconhecido, um direito de servidão constituído por destinação de pai de família.
O nº 1 do art.º 1547.º do C. Civil enumera as servidões voluntárias, entre as quais se inclui a servidão predial constituída por destinação do pai de família, a qual se constitui no preciso momento em que os prédios ou as frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes e assenta num facto voluntário.
Ora, para a constituição da referida servidão são fundamentais três pressupostos (vide Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil anotado”, III Vol., 2ª edição, pág. 632 a 635):
- que os prédios, ou as frações do prédio, tenham pertencido ao mesmo dono (não bastando que tenham sido possuídos apenas ou que tenham pertencido a pessoas ligadas por vínculos de parentesco ou de casamento), o que nestes autos é indiscutível;
- a existência de sinais visíveis e permanentes que revelem, inequivocamente, uma relação ou situação estável de serventia de um prédio para com outro, independentemente de quem os produzir (não sendo indispensável que os sinais existam nos prédios nem se exige que dos sinais tenham conhecimento o alienante e o adquirente, no ato jurídico que serve de veículo à separação, revelando a serventia de um prédio para com o outro, o que significa que terão sido postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro);
- e que os prédios, ou as frações do prédio, se separem quanto ao seu domínio e não haja no documento respetivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo, podendo a separação de domínios dar-se por qualquer título negocial (compra e venda, doação, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.)”.
Todo o circunstancialismo que resulta da matéria de facto provada evidencia, sem qualquer dúvida, que a interveniente, quando deixou de ser proprietária do imóvel destacado (e onde construiu e vendeu as diversas frações do Edifício ...) quis, no momento da perda do domínio e, portanto, quando os mesmos passaram a ter proprietários diferentes, que a parcela de terreno identificada na alínea EE, servisse de acesso aos equipamentos aí colocados mas também ao prédio mãe.
Os sinais visíveis e permanentes foram a concreta abertura deixada no muro construído e que permitia tal acesso a partir da Rua ..., com a largura referida na alínea Q) dos factos provados.
Nada na venda dos imóveis aos réus afasta esta vontade da interveniente e, assim, não temos dúvidas que se constituiu uma servidão de passagem por destinação de pai de família.
Note-se que, nesta situação concreta da servidão por destinação de pai de família, o facto de ela não ter sido utilizada – e não se demonstrou que o tivesse sido – não significa que ela não exista, desde que existam os tais sinais visíveis e permanentes que revelem que foi constituída, como na situação em apreço.
A constituição deste direito de servidão, como direito real que é e que apenas cederia perante outros direitos reais com ele incompatíveis, implica que os réus, sejam ou não proprietários daquela parcela de terreno (e não foram reconhecidos como tal), não possam impedir a passagem pela referida parcela para acesso dos autores ao imóvel que lhes pertence, devendo abster-se da prática de atos que sejam lesivos desse direito de servidão, desde a Rua ... até à entrada do prédio dos autores e desta até à Rua ..., com a largura referida na alínea Q) da matéria de facto provada.
 Impõe-se, ainda, porque praticaram um ato lesivo deste direito de servidão, que não tem qualquer cobertura legal já que nenhum direito demonstraram ter incompatível com aquele direito real de servidão, que sejam condenados a demolir a obra que realizaram ao tapar a abertura do muro, permitindo assim o acesso, por aquele local, desde a Rua ... até ao prédio dos autores, e destes para a Rua ..., através da referida abertura.
Conclui-se, pois, pela parcial procedência da apelação dos autores, revogando-se em conformidade a sentença proferida na parte em que havia julgado improcedentes os pedidos formulados pelos autores e relativos à existência de um direito de servidão constituído por destinação de pai de família e à demolição do muro, na parte em que o mesmo foi tapado pelos réus.
Veja-se que o objeto do recurso não é coincidente com todos os pedidos formulados na ação, pois que, como se retira das suas conclusões, apenas é pedido a este Tribunal que declare “a existência de servidão de passagem por destinação do pai de família, ordenando-se consequentemente, a demolição pelos recorridos do muro de tapagem daquela passagem”, sendo, por isso, apenas estas as pretensões a apreciar.
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O réu Condomínio é responsável pelas custas do recurso que interpôs, pois que o mérito deste não foi apreciado por vício formal da instância, de conhecimento oficioso.
Quanto ao recurso interposto pelos autores, apesar do seu parcialmente vencimento, os réus não apresentaram contra-alegações.
Assim, foram os autores quem tiraram proveito desta decisão e, assim, as custas da apelação são da sua responsabilidade, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil – vide, neste sentido, a extensa fundamentação constante o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 01/02/2024, do Juiz Desembargadora Gonçalo Oliveira Magalhães, proc. 1615/17.3T8BGC-A.G1, in www.dgsi.pt.
Em face da parcial procedência da sua apelação, cumpre alterar a condenação em custas no que se reporta à ação, pois que o decaimento dos autores não foi já total e, assim, fixa-se, quanto à ação, o decaimento dos autores em 60% e dos réus em 40%, pois que aqueles decaíram no pedido principal que formularam e na aplicação da sanção acessória.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7, do C. P. Civil):
1 – O Condomínio não tem personalidade judiciária para deduzir pretensão que visa reconhecer que determinada parcela de terreno integra o imóvel construído em propriedade horizontal.
2 – Tal falta de personalidade judiciária é de conhecimento oficioso e deve ser declarada pelo Tribunal da Relação, ouvidas as partes sobre a verificação dessa exceção dilatória, implicando a absolvição da instância dos demandados.
3 – Realizando-se inspeção judicial, deverá ser elaborado auto que contenha todos os elementos recolhidos que sejam úteis à decisão a proferir.
4 – Se o Tribunal fundamenta a sua convicção para a apreciação da matéria de facto provada e não provada na inspeção judicial realizada, comete uma nulidade se, realizada tal diligência, nada tiver sido registada em auto.
5 – Tal nulidade tem de ser arguida no prazo de 10 dias, a contar da notificação da sentença, pois que só então a parte toma conhecimento que, apesar de não ter sido elaborado auto de inspeção, se considerou a diligência de prova realizada como útil para a decisão da matéria de facto controvertida.
6 – Tal nulidade não tem, porém, relevo se, na situação em julgamento, a impugnação da matéria de facto se refere, apenas, a factualidade inapreensível através desse meio probatório.
7 – Verificados os demais pressupostos para a sua constituição, a construção de um muro com uma abertura com determinadas características pode ser suficiente como sinal visível e permanente para a afirmação de uma servidão por destinação de pai de família.
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VI – Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
A) quanto ao recurso interposto pelo réu condomínio:
a) julgar extinta a instância por falta de personalidade judiciária do réu Condomínio, no que se refere ao pedido reconvencional que era objeto do recurso por si interposto, absolvendo da instância reconvencional os autores, quanto a esse pedido;
b) em conformidade, não apreciar o mérito desse mesmo recurso de apelação.
B) quanto ao recurso interposto pelos autores:
a) julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pelos autores;
i) julgando improcedentes as nulidades da sentença que foram arguidas;
ii) revogando a decisão proferida quanto à inexistência de uma servidão constituída por destinação de pai de família e à demolição da construção efetuada no muro e, em conformidade,
iii) condenando os réus a reconhecer que está constituída em benefício do prédio dos autores identificado na alínea A) da matéria de facto provada uma servidão de passagem por destinação de pai de família que permite o acesso daquele prédio à Rua ... e desta para o prédio, através da parcela de terreno identificada em EE e através da abertura anteriormente existente no muro aí referido, com a largura referida na alínea Q);
iv) condenar todos os réus a demolir a construção realizada nesse muro e que impede o exercício desse direito de servidão.
C) No mais, mantém-se o que foi decidido em 1.ª Instância.
Nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil:
a) as custas da ação são fixadas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento, fixando-se este na proporção de 60% para os autores e 40% para os réus;
b) as custas do recurso do réu Condomínio são da sua responsabilidade;
c) as custas do recurso dos autores são também da sua responsabilidade, nos termos referidos nesta decisão.
Guimarães, 11 de julho de 2024
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)