ESCUSA DE JUIZ
Sumário

I - A circunstância de uma das testemunhas do processo ser o médico otorrinolaringologista da Exª Juíza requerente, pessoa com quem tem, desde a juventude, uma relação de grande amizade e estima pessoal, como também sucede com os seus pais, situação que é do conhecimento de terceiros, não coloca em causa, aos olhos da comunidade, a indispensável imparcialidade da Exª Juíza para o julgamento do pleito.
II - A situação descrita, por si só, não constitui motivo sério, grave e adequado a gerar qualquer desconfiança sobre a imparcialidade da Exª Juíza, pois estamos a falar, tão-somente, de uma relação pessoal entre a Exª Juíza e uma das testemunhas do processo, sendo que a importância do seu depoimento no conjunto da valoração probatória, naturalmente, se desconhece em absoluto.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


Inês Lopes Raimundo, Juíza de Direito, a exercer funções no Juízo Local Criminal de Faro, J3, em regime de acumulação de funções junto do Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, Comarca de Faro, veio requerer a esta Relação que a escuse de tramitar o Proc. nº 134/14.4PAVRS, ao abrigo do disposto no Artº 119 do CPC, invocando para tanto e em síntese:
No aludido processo, que se encontra em fase de audiência de julgamento, é nele testemunha do arguido o Drº F, pessoa com quem a requerente desde a juventude tem uma relação de grande amizade e estima pessoal, como também sucede com os seus pais, sendo aquele o seu médico otorrinolaringologista.
Esta situação é do conhecimento de terceiros, sendo que o Drº F é pessoa muito conhecida na cidade de Faro.
Entende por isto a requerente, ser razoável concluir que a sua intervenção nos autos em causa pode ser considerada suspeita, por existir circunstância séria, grave e adequada a gerar desconfiança sobre a sua necessária imparcialidade.

Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pelo deferimento do pedido de escusa.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente incidente fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o Artº 43 nsº1 e 4 do Código de Processo Penal:
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs.1 e 2”.
No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado - Cfr. Artº 32 nº9 da Constituição da República Portuguesa - o do juiz natural, pressupondo tal princípio, que intervém no processo o juiz que o deva, segundo as regras de competência estabelecidas legalmente para o efeito.
Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu munus.
Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se, assim, a premente necessidade de preservar, até ao possível, a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num Estado de Direito Democrático, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.
Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, dois modos distintos de a abordar e compreender.
No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa, no seu foro íntimo, perante um determinado acontecimento da vida real e se internamente tem algum motivo para o favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.
Do ponto de vista subjectivo, impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a sua imparcialidade até prova em contrário.
Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida pelo Artº 6 § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na perspectiva objectiva, são relevantes as aparências que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, o mesmo é dizer, não basta que a Justiça seja séria, mas que, à semelhança da Mulher de César, o pareça, também.
A construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz, conforme se expendeu no acórdão do STJ de 13/04/05, acessível em www.dgsi.pt.
Daí que, o motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar, então, da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e da experiência comuns do homem médio pressuposto pelo direito.
A jurisprudência tem vindo a considerar, de forma consensual, que a seriedade e a gravidade do motivo gerador da desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz só conduzirão à sua recusa, ou à sua escusa, quando objectivamente diagnosticado num caso concreto.
Nessa medida, a impressão ou convencimento subjectivo por parte de um sujeito processual não vale, com suficiência, para fundamentar a suspeição.
Como se disse no Acórdão desta Relação, de 20/12/11, no Proc. 159/10.9TACCH-A.E1, relatado pelo Srº Desembargador, Drº Martinho Cardoso:
«Os motivos que podem gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz podem ser da mais diversa natureza. Têm é que ser sérios e graves, irrefutavelmente denunciadores de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, para perseverar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Edição Verbo, 1996, pág. 199
A lei, visando essa independência, acolheu mecanismos capazes de preservar uma atmosfera de pura objectividade e de juridicidade.
Citando o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in DPP, I, 320, pertence a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar essa atmosfera, não enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu.
… para efeito de deferimento do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixa de ser imparcial e injustamente o prejudique.
A seriedade e gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser apreciadas num plano objectivo, de acordo com o senso e experiência comuns.
…O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão.»
Também o supra referenciado Acórdão do STJ, discorre, com propriedade, sobre esta matéria, ensinando que:
«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».
Será, pois, sempre uma objectiva justificação que poderá fundamentar a escusa do juiz, avaliada segundo a posição do cidadão de formação média.
«Quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo…porque tem qualquer relação com os intervenientes, que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo» diz Germano Marques da Silva, ob. cit, a pág. 157.
No caso em apreço, o fundamento para o pedido de escusa é a circunstância de uma das testemunhas do processo em causa (Drº F), ser o médico otorrinolaringologista da Exmª Juiz requerente, pessoa com quem tem, desse a juventude, uma relação de grande amizade e estima pessoal, como também sucede com os seus pais, situação que é do conhecimento de terceiros, desde logo, por o Drº F ser alguém muito conhecido na cidade de Faro.
Ainda que se compreendam as reservas da Mmª Juiz e a sua preocupação em que tais factos possam colocar em causa, aos olhos da comunidade, a sua indispensável imparcialidade para o julgamento do pleito, a verdade é que a situação descrita, por si só, não constitui motivo sério, grave e adequado a gerar qualquer desconfiança sobre tal imparcialidade, pois estamos a falar tão-somente, de uma relação pessoal entre a Mmª Juiz e uma das testemunhas do processo, sendo que a importância do seu depoimento no conjunto da valoração probatória, naturalmente, se desconhece em absoluto.
Nesta medida, as meras impressões individuais subjectivas, que poderiam fundar o peticionado, não resistem a uma análise objectiva, recordando-se, como atrás se disse, que só em casos excepcionais, analisados objectiva, casuística e parcimoniosamente, é que se justifica a derrogação do princípio do juiz natural.
Nessa medida, não se vê que o motivo invocado pela requerente se possa configurar, com a seriedade ou a gravidade necessárias, para que, de uma forma ponderada, relevante e convincente, se desenhe, irrefutavelmente, uma desconfiança sobre a imparcialidade ou isenção da Mmª Juiz ou, por outras palavras, que, de uma forma consistente, se crie uma eventual suspeita, quer por banda dos intervenientes processuais, quer do cidadão comum, de que a Mmª Juíza não seja imparcial e isenta nas decisões que tenha que proferir no processo em causa.
Inexistindo, deste modo, fundamento para o presente pedido de escusa, terá o mesmo de ser rejeitado.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se julgar improcedente o pedido formulado, negando-se a escusa.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 11 de julho de 2024

Renato Barroso
Maria Gomes Perquilhas
Maria José Cortes