BUSCA DOMICILIÁRIA
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - As normas que admitem a realização de buscas domiciliárias não fazem depender a sua autorização da existência de indícios suficientes ou fortes, à semelhança de outros normativos legais, mencionando-se tão-só a existência de “indícios”, entendidos como a mera possibilidade, embora séria, de que as coisas e os objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova se encontram em local reservado.
II - Da prova já recolhida nos autos verifica-se que existem fortes indícios da prática de um crime de roubo agravado e de um crime de detenção de arma proibida, e, muito embora não se possa afirmar que existam iguais indícios de que o autor do crime seja o arguido, as buscas requeridas são de grande interesse para a descoberta da verdade e para a obtenção de prova, já que são suscetíveis de ligar o arguido à prática dos factos indiciados.
III - A investigação não pode prosseguir de forma eficaz, seja para obter prova da prática dos factos por parte do arguido, seja para se concluir do seu não envolvimento, através da prática de qualquer outro meio de prova de que se possa lançar mão, e, por isso, a realização das buscas requeridas é adequada e proporcional à limitação de direitos que necessariamente implica.

Texto Integral




I – RELATÓRIO

1 - O Ministério Público veio recorrer do despacho proferido no dia 06 de março de 2023 que indeferiu o pedido de concessão de autorização judicial para realização de busca domiciliária:
1. À casa de habitação, anexos, garagens, arrecadações de S (casa da mãe do arguido onde o mesmo se encontrava em OPHVE), sita na Rua (….), Santarém
2. Cela do Estabelecimento do EP de Caldas da Rainha onde se encontra o arguido S.
Terminando as motivações com as seguintes conclusões:
1.ª
Nos presentes autos investiga-se a prática pelo arguido S de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, e de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro).
2.ª
Importando proceder à localização e apreensão da arma de fogo e da roupa utilizada pelo arguido no momento da prática dos factos, assim como dos bens subtraídos aos ofendidos, no dia 01 de março de 2023, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução a realização de buscas domiciliárias à residência e à cela do arguido, nos termos do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, alínea b), 174.º, n.ºs 1 a 3, 176.º, 177.º, n.º 1, 178.º, n.ºs 1 a 3, e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, por se considerar que tal diligência era essencial para a prova dos factos denunciados.
3.ª
Com isso em vista, o Ministério Público alegou que a coincidência espácio temporal entre o roubo e a ausência ilegítima de S, a distância entre a habitação e o local dos factos, a ida a Lisboa, o facto de a carteira ter sido encontrada em Alcântara (local próximo do conhecido Casal Ventoso), a dependência de estupefacientes de S, o local onde foi recuperado o veículo (a 1km da sua residência), o facto de ter regressado a casa pelas 03h10 do dia 12 de junho de 2022, os tempos de viagem, o modus operandi, idêntico ao utilizado no inquérito onde cumpria medida de coação obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (NUIPC n.º 539/21.4GEALR), e a compleição física descrita pelos ofendidos, compatível com a de S, configuravam fundadas suspeitas de que pudesse ter sido este a praticar os factos denunciados, e, assim, de que estaria na posse dos bens referidos.
4.ª
Por despacho proferido a 06 de março de 2023, a Meritíssima Juiz de Instrução indeferiu o requerimento para emissão de mandados de busca domiciliária referindo que não havia indícios que permitissem afirmar que o arguido havia cometido o mencionado crime de roubo, havendo falta de fundamento legal quanto à emissão de mandados de busca à casa da mãe do mesmo, e que não havia fundamento para busca domiciliária na sua cela uma vez que o arguido foi preso preventivamente após os factos.
5.ª
A realização de buscas domiciliárias não depende da prévia existência de elementos probatórios que comprovem, para além de qualquer dúvida razoável, a existência do crime relativamente ao qual esse meio de obtenção de prova é necessário, assim como quem foram os seus agentes, encontrando-se apenas subordinada ao preenchimento dos pressupostos preceituados nos artigos 174.º, n.º 2 e 3, 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
6.ª
As normas que admitem este meio de obtenção de prova não fazem depender a sua autorização da existência de indícios suficientes ou fortes, à semelhança de outros normativos legais, mencionando-se tão-só a existência de «indícios», entendidos como a mera possibilidade, embora séria, de que as coisas e os objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova se encontram em local reservado.
7.ª
O processo encontra-se em fase de inquérito, momento talhado para a recolha de prova apta a sustentar a decisão de dedução ou não de acusação, durante o qual importa reunir indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes, e, por isso, as diligências probatórias a efetuar assentam na existência de fundadas suspeitas, e não em juízos de certeza quanto aos factos, próprios da fase de julgamento.
8.ª
A realização de buscas domiciliárias no presente caso afigura-se-nos adequada, necessária, e proporcional às exigências da investigação, porquanto é apta a alcançar os fins visados de localização e apreensão dos objetos subtraídos, da arma de fogo utilizada no cometimento do crime e de outros elementos de prova; não existe qualquer outra diligência probatória a efetuar e a violação do direito à inviolabilidade do domicílio e do direito de reserva da intimidade da vida privada do arguido não é incomportável, dados os bens jurídicos que aqui se pretendem proteger (eficiência da justiça criminal e, ainda, a segurança da comunidade face aos riscos da detenção ilegal de uma arma de fogo), tudo isto com referência ao critério da gravidade do crime investigado e da consistência da suspeita quanto ao arguido.
9.ª
O despacho recorrido, ao indeferir as buscas domiciliárias solicitadas, quando tal diligência probatória se mostra justificada, face aos indícios de que o arguido guarda na sua residência e/ou na sua cela os objetos subtraídos, a arma de fogo e elementos de prova essenciais à investigação, sendo estas buscas essenciais para a descoberta da verdade e a sua realização proporcional face às exigências de justiça criminal, violou o disposto nos artigos 174.º, n.º 1 e 2, 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, assim como o disposto nos artigos 34.º, n.º 2, e 18.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, por interpretação e aplicação desadequada daquelas normas.
10.ª
Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e, em consequência, ser substituída por outra que autorize a realização das buscas domiciliárias promovidas pelo Ministério Público.
Vossas Excelências, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre, JUSTIÇA!

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Neste Tribunal da Relação quando os autos lhe foram apresentados nos termos do disposto no art.º 416.º o Sr. PGA pronunciou-se nos seguintes termos:
1. Não se verifica qualquer circunstância que obste ao conhecimento do Recurso do Ministério Público, o qual foi tempestivamente interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito que lhe foi atribuído.
2. O recurso foi interposto do despacho que, em sede de inquérito, indeferiu a realização de buscas domiciliárias promovidas pela magistrada recorrente.
3. A magistrada recorrente fixou o objecto do recurso, nas conclusões que tirou da respectiva motivação, impugnando a matéria de direito.
PARECER
Somos do parecer que o recurso interposto pelo Ministério Público se mostra pertinente e acompanhamos a completa e bem elaborada motivação e conclusões tiradas.
Porque o mesmo nos parece fundamentado, qualquer adenda de substância seria despiciente, restando-nos acompanhá-lo, na íntegra.
Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto deve ser julgado procedente.
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Colhidos os vistos foi o processo à Conferência.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
- Se a realização de buscas exige e pressupõe a existência de indícios sobre a autoria dos factos.
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III.
A - É do seguinte teor a decisão recorrida:
Vi o exame pericial, que não afirma que os vestígios biológicos sejam do suspeito S.
A não exclusão não significa o inverso, não significa essa afirmação de que o ADN seja do aqui arguido.
Nesta medida, não consideramos que o exame pericial em causa traga algo inovatório relativamente aos indícios previamente recolhidos, os quais foram já objeto de despacho prévio.
Aliás, também quanto ao item 4, também o ofendido não está excluído (fls. 135 e fls. 225). Mantemos, pois, que não há indícios que permitam afirmar que o suspeito S perpetrou o crime de roubo aqui em mérito, havendo falta de fundamento legal quanto à emissão de mandados de busca à casa da mãe do suspeito (e muito menos, há fundamento para busca domiciliária na sua cela, sendo que o mesmo foi preso preventivo após os factos).
Termos em que, se indefere, o requerido quanto a buscas domiciliárias, por falta de fundamento legal (Artigo 174, nº 2 do CPP).
Notifique e DN, devolvendo-se os autos aos serviços do M.P..
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A promoção do M.P. sobre a qual recaiu o despacho recorrido, supra transcrito, é a seguinte:
Por despacho de fls. 175 a 179, veio o MP promover a realização de buscas à residência e cela de S e a recolha de ADN.
Por despacho de fls. 181 e 182, o JIC indeferiu a realização das buscas promovidas por entender que a ausência do arguido em violação da medida de coação de OPHVE, a proximidade espacial e temporal entre a ausência e o local e ocorrência dos factos correspondiam a meras coincidências, não se mostrando indiciada a prática dos factos pelo suspeito.
Não obstante, foi autorizada a recolha de ADN do suspeito para comparação com os vestígios biológicos recolhidos no interior do veículo.
Realizada a diligência, resulta do exame pericial de fls. 225 que no item 4 do exame pericial n.º 202205386-BBG, obteve-se mistura de perfil de mais de um indivíduo do qual não se pode excluir o arguido S. O item 4 a que se refere a perícia trata-se da garrafa de água recolhida do porta-luvas do veículo subtraído, propriedade do ofendido V – vide fls. 129 a 133 e 189.
Assim, considerando que existem vestígios biológicos do arguido S no interior do veículo do ofendido e que não há qualquer razão válida, para além da prática dos factos, para a presença do arguido no interior do veículo do ofendido, uma vez que os mesmos não se conheciam, entende o Ministério Público que se mostra indiciada a prática dos factos pelo arguido.
Desta forma, e reiterando os fundamentos de factos da nossa promoção de fls. 175 a 179, nos seus exatos termos, e que aqui se dá por reproduzida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 1, al. b), 174.º, n.ºs 1 a 3, 176.º, 177.º, n.º 1, 178.º, n.ºs 1 a 3, e 269.º, n.º 1, al. c), todos do Código de Processo Penal, promovo que se autorize a realização de busca domiciliária:
1. À casa de habitação, anexos, garagens, arrecadações de S (casa da mãe do arguido onde o mesmo se encontrava em OPHVE), sita na Rua (…..), Santarém
2. Cela do Estabelecimento do EP de Caldas da Rainha onde se encontra o arguido S.
Remeta ao JIC.
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B - Analisando e decidindo:
Para a decisão da questão suscitada por via do presente recurso importa ter em conta desde logo em conta os pressupostos legais que a lei exige verificados para que possa realizar-se uma busca e enunciados no art.º 174.º do CPP., que se transcreve:
1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.
3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.
(…)
Daqui resulta desde logo que para que uma busca com vista à apreensão de meios de prova, no caso, possa realizar-se, e consequentemente ser autorizada, é necessário que se verifique em concreto (Ac. TRC de07-07-2021, Proc. 577/20.4JALRA-A.C1):
- indícios da prática de um crime;
- indícios da existência de animais, coisas ou objetos relacionados com esse crime;
- que esses animais, coisas ou objetos se encontrem em lugar reservado ou não acessível ao público.
As buscas consistem em inspecionar minuciosamente um local reservado ou não acessível livremente ao público (v.g., uma residência, uma garagem, um armazém, um automóvel), independentemente da vontade do visado, com a finalidade de verificar se aí se encontram objetos relacionados com um crime e/ou que possam servir como prova ou deter ou outra pessoa, distinguindo-se das revistas pelo facto de, ao passo que estas incidem sobre pessoas, as buscas incidem sobre lugares (Duarte Rodrigues Nunes, Curso de Direito Processual Penal, 1, pág. 736, UCP Ed.).
Visa-se com a realização da busca a apreensão de dos objetos encontrados (e/ou a detenção da pessoa procurada) relacionados com a prática do crime indiciado.
A realização das buscas não pressupõe qualquer exigência especial relativa à sua indispensabilidade para a descoberta da verdade, ao contrário da realização das interceções telefónicas em que o legislador exige para a sua realização que as mesmas sejam indispensáveis para a descoberta da verdade (v. art.º 174.º, 177.º e 187.º, n.º 1, todos do CPP).
Não obstante, seguimos Duarte Rodrigues Nunes, Revistas e Buscas no Código de Processo Penal, p. 120, sendo por isso de exigir que as buscas domiciliárias, dada a restrição de direitos fundamentais que necessariamente implicam, apenas devem ser autorizadas e realizadas se se revelarem de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova. Este grande interesse para a descoberta de verdade afere-se através da necessidade da sua realização, no sentido de que o objetivo que se pretende alcançar não é suscetível de se obter através de outros meios de prova menos invasivos e limitativos dos direitos fundamentais, devendo por isso ser proporcional (Ac. TRE, de 12-09-2017, Proc. 412/16.8GESLV-A.E1).
Finalmente, resta-nos salientar que a lei processual penal não exige quaisquer indícios incidentes sobre a pessoa proprietária ou habitante da residência ou locais a buscar, nem tão pouco que a mesma seja suspeita.
Ora, da análise da prova já recolhida nos autos verifica-se que existem fortes indícios da prática de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, e de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro).
Não obstante não podermos afirmar que existam iguais indícios de que o autor do crime seja efetivamente o arguido S, resulta dos autos que aos ofendidos foram subtraídos bens e valores cujo destino ainda se investiga.
Assim, é óbvio que as buscas requeridas são de grande interesse para a descoberta da verdade e da prova, já que são suscetíveis de ligar o arguido à prática dos factos indiciados, constituindo-se até, na nossa avaliação, essenciais para a descoberta da verdade, considerando o modo como os factos se desenrolaram e as dificuldades inerentes à identificação segura do seu autor – o autor dos factos usava óculos escuros e usava máscara cirúrgica.
Por outro lado, os ofendidos afirmaram que o autor dos factos se encontrava munido de uma pistola de cano curto, de cor escura, permitindo a busca apreender tal arma se a mesma se encontrar nos locais indicados.
Assim, não se verifica dos autos a possibilidade da investigação prosseguir de forma eficaz, seja para obter prova da prática dos factos por parte do arguido seja para se concluir do seu não envolvimento, através da prática de qualquer outro meio de prova de que se possa lançar mão, verificando-se por isso adequada e proporcional à limitação de direitos que necessariamente importa a sua realização.
Face ao exposto, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que ordene as buscas nos exatos termos requeridos pelo MP.
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IV - Decisão:
Pelo exposto, decide-se nesta Relação de Évora, em:
Julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revoga-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que autorize as buscas requeridas.
Sem custas.

Évora, 11 de julho de 2024
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).

Maria Perquilhas
Nuno Garcia
Artur Vargues
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.