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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRISÃO EFECTIVA
Sumário
I - Nos crimes de violência doméstica, importa ter presentes as prementes exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que no nosso país são praticados crimes contra as pessoas vulneráveis, nomeadamente as mulheres e os idosos, com consequências trágicas, o que revela, além do mais, falta de educação e de cidadania na proteção e respeito dessa vulnerabilidade e no viver de forma socialmente adequada. II - Por outro lado, têm também de se ponderadas as necessidades de prevenção especial, olhando às anteriores condenações e à total indiferença do arguido (as condenações anteriores não tiveram qualquer efeito dissuasor sobre o arguido, revelando o mesmo uma personalidade desafiante e persistente na prática delitiva). III - Em face de todos esses elementos, tem de ser aplicada ao arguido uma pena de prisão efetiva.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. RELATÓRIO
A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 3790/22.6T9STB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Setúbal - Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido O (…..).
- Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica agravado do artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, nº 4 e nº 5, Código Penal.
O arguido não apresentou contestação, nem requerimento probatório.
Realizado a audiência de julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu:
- Julgar a acusação parcialmente improcedente, e consequentemente:
a) Absolver o arguido O do tipo agravado de violência doméstica, por referência ao artigo 152º, nº 2, do Código Penal, de que vinha acusado;
b) Condenar o arguido O pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
c) Condenar o arguido O pela prática do crime de violência doméstica referido em b), ao abrigo do disposto no artigo 152º, nº 1, 4 e 5 do Código Penal, na pena acessória de proibição de contactos com E, por qualquer meio, incluindo a proibição de se deslocar a menos de 500 (quinhentos) metros da residência e local de trabalho desta, pelo período de 5 (cinco) anos, a contar do trânsito em julgado, sendo – quando o Arguido se encontrar em liberdade (através de licenças de saída precária, de concessão da liberdade condicional ou de concessão de liberdade definitiva) – o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
(…)
Inconformado com esta sentença condenatória, o arguido O interpôs o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. O ora recorrente vem interpor recurso da douta decisão que condenou o arguido O, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Tal condenação decorre da factualidade dada como provada e, no que ao ora recorrente diz espeito, os seguintes factos:
“(…)
10- O arguido O e a ofendida E mantiveram uma relação de namoro, a qual durou cerca de um ano, tendo, contudo, terminado definitivamente em Junho de 2019.
11- Acontece que, o arguido nunca aceitou o fim deste relacionamento, e apenas cessou contactos com a ex-namorada, no decurso do processo 1125/19.4PBSTB, que correu termos no juízo Local Criminal – J2 deste Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no âmbito do qual foi condenado, por sentença transitada em julgado em 03-04-2020, na prática de um crime de violência doméstica agravada previsto e punido pelo artigo 152º nº1 al. B) e nº2 al. a) do Código Penal, sobre a aqui ofendida E, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
12- O arguido foi ainda condenado na pena acessória de proibição de qualquer contacto com a ofendida E, por um período de 2 anos e 6 meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
13- Logo após esta pena acessória alcançar o seu termo, o que ocorreu em 3 de Outubro de 2022, o arguido passou a procurar diária e reiteradamente a ofendida junto à sua residência, sita na Rua (…..), e no seu local de trabalho, um estabelecimento de restauração sito na mesma Rua, mas no nº 150, controlando as suas rotinas diárias e colocando desta forma em causa a sua paz e sossego.
14- Quando contacta com a ofendida, nestes dois locais, o arguido dirigi-lhe expressões humilhantes e atemorizadoras, tais como “Puta”, “Filha da Puta”, “Vou acabar com a tua vida”, “Não ficas aqui muito tempo”, “Fecho-te o café”, “Tu não prestas”, “Não vales nada”, “Vou acabar com a ta vida”, “Não te vou pagar nenhuma indemnização”
15- Estas expressões são proferidas perante todos os presentes nos dois locais mencionados, familiares da ofendida e clientes que frequentam o estabelecimento de restauração no qual esta labora, condutas que humilham a vida e a levam a temer pela sua vida e integridade física.
16- Partes das condutas supra descritas ocorrem junto à residência da ofendida.
17- O Arguido foi reduzindo a periodicidade da sua actuação, embora se tenha mantido com regularidade todos os meses, até à cessação há cerca de dois meses, próximo da data em que o Arguido foi notificado da data designada para a realização da audiência de julgamento, tendo-se dirigido no total de cerca de 30 (trinta) a 50 (cinquenta) vezes ao local de trabalho da ofendida ou à habitação contígua, nos termos referidos.
18- O arguido agiu de forma descrita, bem sabendo que dirigia condutas e expressões atemorizadoras e humilhantes à ofendida E, com quem manteve um relacionamento de namoro, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, debilitando-a psicologicamente, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua honra e dignidade humana e pondo em causa a sua paz e sossego. (…) “
3. Dando como provado que o arguido O quis atemorizar a ofendida, fazendo-a temer pela sua integridade física e psicológica, cerceando a sua liberdade pessoal.
4. Factos que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provados apenas com base nas declarações da ofendida e do seu filho que, como o próprio relatou esteve ausente e apenas assistiu a dois episódios.
5. A que acresce o facto de que o depoimento da ofendida não revelou que esta se sentisse atemorizada, humilhada, receosa pela sua integridade física e/ou vida, bem como limitada na sua liberdade pessoal, cfr. gravação de Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 10-11-2023 e gravada no sistema de gravação áudio em uso nos tribunais, referindo nomeadamente ao minuto 4’ e seguintes que o arguido não entrava no café e que não chamava a PSP.
6. Que o arguido nunca se aproximou fisicamente.
7. No mesmo sentido, o depoimento do filho da ofendida, gravado no sistema em uso no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal e que na Audiência de Discussão e Julgamento no dia 10-11-2023
8. Refere ainda a douta sentença, ora sob censura, nos factos dados como provados que, “(…) O Arguido foi reduzindo a periodicidade da sua actuação, embora se tenha mantido com regularidade todos os meses, até à cessação há cerca de dois meses, próximo da data em que o Arguido foi notificado da data designada para a realização da audiência de julgamento, tendo-se dirigido no total de cerca de 30 (trinta) a 50 (cinquenta) vezes ao local de trabalho da ofendida ou à habitação contígua, nos termos referidos. (…)”
9. Desconhece o recorrente a fórmula ou prova utilizada pelo Tribunal a quo para apuramento do número de vezes que o arguido se terá deslocado junto do café da ofendida e nem tal resulta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento pois, a ofendida nunca, em momento algum precisou ou sequer referiu um provável número de eventos, a testemunha (seu filho) apenas refere no seu depoimento ter assistido a duas vezes, cfr, gravação depoimento, audiência discussão e julgamento 10-11-2023 ao minuto 7.40’
10. De igual modo, P, testemunha arrolada pelo MP, refere ser cliente frequente (diária), há cerca de 12 anos, do café explorado pela ofendida, conhecer o arguido e apenas ter assistido a uma situação em que a ofendida filmou o mesmo, tal como resulta do depoimento registado no sistema de gravação em uso no Tribunal e prestado no dia 10-11-2023 e que refere ter assistido a um único episódio de “bate boca” entre o arguido e a ofendida e que esta terá gravado.
11. Não podendo, o Tribunal a quo em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, dar como provado que se teria dirigido ao local de trabalho e à residência da ofendida entre 30 a 50 vezes.
12. Como também não poderia dar como provado que em resultado da alegada conduta do arguido, a ofendida receou pela sua integridade física e pela sua vida, se sentiu humilhada, atemorizada ou limitada nos seus movimentos pois, em momento algum foi perceptível no seu depoimento, na sua postura corporal e/na sua voz, que a ofendida receasse ou temesse de alguma forma o arguido.
14. O depoimento da ofendida foi desprovido de qualquer emoção, ou sinal corporal que expressasse o alegado temor, num tom absolutamente monocórdico sem qualquer alteração durante o relato dos factos.
15. Por diversas vezes a ofendida referiu que o propósito do arguido se aproximar do estabelecimento era o facto de querer comprar bebidas alcoólicas e que de todas as vezes que isso sucedeu, a mesma dizia para o este sair, não entrar no estabelecimento e o mesmo obedecia.
16. Também referiu a ofendida que teria fechado o café quando o arguido lá teria ido. Porém, também refere que o fazia por estar “cansada” da situação.
17. Salvo melhor opinião em sentido contrário, para além de erro notório na apreciação da prova existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
18. Ao formar a sua convicção da forma como o fez, o Tribunal “a quo”, fez tábua rasa do princípio de que para condenar alguém por um determinado crime, é necessário que se faça prova em concreto de um ou mais factos enquadráveis no tipo de crime que esteja a ser julgado, o que de todo não nos parece ter acontecido no presente caso.
19. Como refere Figueiredo Dias, (Direito Processual Penal, pag.202) “(...) livre apreciação ou convicção não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova (...).”
20. É hoje, porém, geralmente reconhecido que a convicção íntima não é por si critério de verdade (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, pag.108).
21. A livre valoração da prova não deve, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas, mas valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dois conhecimentos cientificos , que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, pag.111).
22. A prova é a garantia de realização de um processo justo, de eliminação do arbítrio, enquanto a demonstração da realidade dos factos não há-de procurar-se a qualquer preço.
23. O douto aresto, ora sob censura, violou na sua essência, todo o espírito enformador do moderno Direito Penal.
24. Os factos apenas resultaram provados baseados na livre apreciação da prova, mas a nosso ver, as dúvidas eram demasiadas e por tal impunha-se o funcionamento do princípio “In dubio pro reo”.
25. O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, encontra no princípio do “in dubio pro reo” o seu limite normativo. O facto de existir uma orientação vinculativa para os casos duvidosos limita a liberdade de apreciação do juiz. Impede-o de decidir com o seu critério pelo menos uma parte do objecto da prova: os factos duvidosos desfavoráveis ao arguido.
26. A pena aplicada ao arguido excessiva tendo em conta aos parâmetros legais que deverão ser considerados aquando da aplicação concreta da sanção.
27. O arguido está integrado social, familiar e profissionalmente, facto que não foi tido em consideração na ponderação da medida da penal e, uma condenação tão pesada poderá acarretar consequências nefastas no que diz respeito à ressocialização e conformação com as regras da vida em sociedade.
28. Para além de que, colocará em causa, a recuperação que o arguido tem em curso do consumo de estupefacientes e bebidas alcoólicas.
29. A teoria do fim das penas, inculcada de forma inultrapassável no Ordenamento Penal Português, exige que se apurem as reais condições do arguido no caso concreto.
No sábio ensinamento de Roxin invocando Liszt, “(...) não se pode castigar – por falta de necessidade – quando outras medidas de política social, ou mesmo as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma protecção suficiente dos bens jurídicos e, inclusivamente, ainda que não disponham de meios mais suaves, há que renunciar – por falta de idoneidade – à pena quando esta seja política e criminalmente inoperante, ou mesmo nociva. A ameaça penal tem um efeito dissuasor, a condenação deverá ser aplicada em função da culpa do agente e a execução da pena terá sempre de ser entendida no sentido da ressocialização.
Ao aplicar ao arguido a pena de prisão efectiva de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva, não tendo em consideração os factores que militam a favor do arguido, violou a douta sentença os artigos 70º, 71º, e 50º do CP.
30. As exigências de prevenção especial são diminutas, uma vez que tudo aconteceu num contexto de consumo de álcool e droga e do relacionamento amoroso que chegou ao fim, apresentando-se o arguido muito alterado no seu comportamento.
31. De acordo com o doutamente decidido no Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-1995 in proc. 4 777/3ª) que “(...) é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não na prática do crime possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
32. Pelo que, no cumprimento do disposto no art. 70º do C.P., ter o tribunal “a quo” decidido por uma pena que sendo punitiva não prive o arguido da liberdade efectiva, ainda que lhe imponha condições para a sua suspensão, permitindo-lhe assim, uma plena ressocialização, e recuperação da toxicodependência e alcoolismo.
A suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos
33. Decidiu assim o Supremo Tribunal Justiça no seu Acórdão de 27 de Junho de 1996, in CJ ACS do ST, IV Volume, Tomo 2, pág. 2 a 4: “(…) Sempre que se verifiquem os pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena, esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico. (…)”
E ainda no seu Acórdão de 11-05-1995 in proc. 4777/3ª “(…) é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não da prática do crime possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. (…)”
34. O que, in casu, se mostra verificado pois o arguido está em recuperação da toxicodependência e alcoolismo, vive com a mãe e o padrasto mas face à sua situação de recuperação irá residir para fora de Setúbal por forma a afastar-se do meio em que efetivava os consumos.
Tem trabalho fixo há já vários anos o que lhe permitirá subsistir e recuperar-se
35. Pelo que salvo melhor opinião em sentido contrário e, com o devido respeito, o douto aresto deveria ter suspendido a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ainda que sujeita à imposição de condições.
Não o tendo feito violou os preceitos legais insertos nos artigos 40º, 50º, 70º, 71º, todos do Código Penal.
Termos em que se requer a V. Exas. a procedência do presente recurso, revogando-se a douta decisão proferida no sentido aduzido nas conclusões.
Venerandos, assim se fará Justiça.
Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno (transcrição):
1. O arguido O foi condenado pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena principal de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Perscrutando as conclusões do recurso formuladas pelo arguido, constata-se que este veio, em primeiro lugar, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, por verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, concluindo pela incorrecta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Cumpre tomar posição.
3. Vigora no nosso sistema jurídico-penal o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
4. O Tribunal a quo goza do privilégio da imediação das provas, e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, parece-nos líquido que o Tribunal a quo efectuou uma correcta análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento e fundamentou de uma forma ampla as suas opções probatórias, não deixando dúvidas quanto à razão pela qual decidiu da forma que decidiu (e não de outra), dentro do quadro legal do princípio da livre apreciação da prova; e fê-lo traduzindo no texto da sentença tais opções valorativas que, em função do exame do conjunto das provas produzidas, entendeu serem justificadas.
5. No que tange à factualidade constante da acusação pública deduzida contra o arguido, frisou o Tribunal a quo que formou a sua convicção com base, no essencial, nas declarações da testemunha E, a ofendida destes autos, que relatou os factos praticados pelo arguido de um modo preciso, emocionado, revoltado, que se reputou sincero e credível, por oposição à versão negatória e menorizante que o arguido apresentou, com pouca espontaneidade e contrariada por outros elementos de prova, inclusivamente audiovisuais.
6. Em abono da credibilidade do depoimento prestado pela testemunha E, foi assinalada pelo Tribunal a quo a circunstância de não ter sido percepcionada, em qualquer ponto do respectivo depoimento, qualquer tentativa de exacerbação dos factos ou de prejudicar o arguido, de tal sorte que recusou receber qualquer indemnização pelos factos imputados àquele, declarando que apenas pretendia que o arguido a deixasse, definitivamente, em paz.
7. A corroborar o depoimento da testemunha E, julgado, por si só sincero e credível, conforme anteriormente aventado, verifica-se que um dos episódios referidos pela ofendida, no decurso do seu depoimento, encontra-se registado em vídeo, que foi junto aos autos e examinado em sede de audiência de discussão e julgamento, episódio que foi, aliás, presenciado pela testemunha P, cliente do estabelecimento e que passava pelo local, a qual relatou, igualmente, os factos praticados pelo arguido, em consonância com o vídeo visionado.
8. A corroborar, também, o depoimento da testemunha E, o depoimento da testemunha L (filho da ofendida), que residia com a mesma, na habitação que fica localizada em zona próxima do estabelecimento, e que assistiu a alguns dos episódios relatados pela ofendida.
9. Por essa razão, não pode merecer acolhimento a argumentação expendida pelo arguido no recurso que interpôs, de acordo com a qual é posta em causa a livre convicção do julgador quanto à apreciação da prova e quanto à matéria de facto considerada como provada, pretendendo o arguido que, em lugar dela, se coloque a sua.
10. Importa precisar, a este respeito, que só estaremos perante erro notório na apreciação da prova quando da leitura da decisão impugnada, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que se deu como provado algo que não podia ter acontecido ou que se deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, ou, ainda, quando se retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, o que não se verifica, de modo algum, no caso dos autos.
11. Destarte, é entendimento do Ministério Público que o Tribunal a quo julgou correctamente, no caso dos autos, todos os factos constantes dos factos provados, em face dos meios de prova produzidos, em sede de audiência de julgamento, impondo-se, por via disso, a condenação do recorrente, nos exactos termos constantes da sentença recorrida, pelo cometimento, em autoria material e sob a forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal.
12. De outra banda, o arguido considerou que a medida concreta da pena que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo foi excessiva.
Apreciemos.
13. Tomando em devida linha de consideração os critérios legais fixados nos artigos 40º, nºs 1 e 2, e 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, não podem merecer acolhimento os argumentos ora invocados pelo arguido, porquanto se considera que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e aplicação dos citados normativos legais, ao decidir pela aplicação ao arguido da pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
14. Com efeito:
- As necessidades de prevenção geral, que são, in casu, extremamente elevadas;
- O grau de ilicitude mediano/elevado da conduta perpetrada pelo arguido, traduzida em injúrias e ameaças verbais, reiteradas, dirigidas à ofendida;
- O dolo directo com que o arguido actuou;
- A circunstância de o arguido ter perpetrado o crime contra a mesma vítima do crime de violência doméstica por cuja prática o arguido fora já anteriormente condenado;
- A circunstância de o arguido revelar ser um indivíduo com dificuldades ao nível do pensamento crítico, com aparente dificuldade de contenção dos impulsos, bem como em reconhecer o impacto das suas acções nos outros;
- A circunstância de o arguido ter apresentado uma versão negatória dos factos que lhe eram imputados, mesmo depois do exame de um vídeo que, indubitavelmente, documentava a respectiva prática por banda do arguido;
- O passado criminal do arguido, que fora já anteriormente condenado pela prática de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a mesma vítima, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, tendo o arguido perpetrado os factos que lhe são imputados nestes autos pouco tempo depois de completado o período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora aplicada, circunstância que revela que a anterior condenação não lhe serviu de suficiente advertência preventiva;
Demandam a aplicação àquele da pena de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva, que consideramos adequada, equilibrada e justa.
15. De igual modo, o Tribunal a quo andou bem ao decidir não suspender a execução de tal pena de prisão, pois que não se vislumbra como poderia o Tribunal, atendendo ao passado criminal do arguido, fazer, no caso sub judice, um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, nem como poderia o Tribunal concluir que a mera censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (vide artigo 50º, nº 1, do Código Penal).
16. Veja-se, a este propósito, que o arguido contava, à data em que foram perpetrados os factos que são objecto do presente processo, e com especial enfoque, com uma condenação averbada ao seu certificado do registo criminal, pelo cometimento de um crime de violência doméstica, que tinha como vítima a mesma vítima dos presentes autos, em cujo âmbito lhe fora aplicada uma pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
17. Tal circunstancialismo evidencia que a condenação anterior não serviu, de modo algum, de suficiente advertência, para arredar o arguido da prática de novos ilícitos criminais da mesma natureza.
18. E nem a ameaça da prisão, por força da pena que lhe foi aplicada, teve essa virtualidade, pois que o arguido cometeu os factos pelos quais veio a ser condenado nestes autos pouco tempo depois de se ter completado o período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada no processo nº 1125/19.4PBSTB, do Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 2.
19. Destarte, andou bem o Tribunal a quo ao graduar como graduou a pena aplicada ao recorrente, pois fez uma correcta apreciação da matéria de facto dada como provada e dos critérios legais para a determinação da medida concreta da pena aplicada àquele, assim se acautelando, in casu, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
20. Não merecendo quaisquer reparos, deverá, pois, a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, sendo o recurso julgado totalmente improcedente.
Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta sentença recorrida, mantendo-se a mesma inalterada, nos seus exactos termos.
V. Exas., porém, com mais elevada prudência, decidirão conforme for de Direito e Justiça.
Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
B -
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
Factos provados:
Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação pública
Efectuado o julgamento, provaram-se os seguintes factos:
1. O arguido O e a ofendida E, mantiveram uma relação de namoro, a qual durou cerca de um ano, tendo, contudo, terminando definitivamente em Junho de 2019.
2. Acontece que, o Arguido nunca aceitou o fim deste relacionamento, e apenas cessou contactos com a ex-namorada, no decurso do processo nº 1125/19.4PBSTB, que correu termos no Juízo Local Criminal – J2 deste Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no âmbito do qual foi condenado, por sentença transitada em julgado em 03-04-2020, na prática de um crime de violência domestica agravado previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do Cód. Penal, sobre a aqui ofendida E, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual perdido de tempo.
3. O Arguido foi ainda condenado na pena acessória de proibição de qualquer contacto com a ofendida E, igualmente por um período de 2 anos e 6 meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
4. Logo após esta pena acessória alcançar o seu termo, o que ocorreu em 3 de Outubro de 2022, o arguido passou a procurar diária e reiteradamente a ofendida junto à sua residência, sita na Rua (…..), e no seu local de trabalho, um estabelecimento de restauração sito na mesma Rua, mas no nº 150, controlando as suas rotinas diárias e colocando desta forma em causa a sua paz e sossego.
5. Quando contacta com a ofendida, nestes dois locais, o arguido dirigi-lhe expressões humilhantes e atemorizadoras, tais como “ Puta”, “Filha da puta“, “Vou acabar com a tua vida”, “Não ficas aqui muito tempo”, “Fecho-te o café”, “Tu não prestas”, “Não vales nada”, “Vou acabar com a tua vida”, “Não te vou pagar nenhuma indemnização”.
6. Estas expressões são proferidas perante todos os presentes nos dois locais mencionados, familiares da ofendida e clientes que frequentam o estabelecimento de restauração no qual esta labora, condutas que humilham a vítima e a levam a temer pela sua vida e integridade física.
7. Parte das condutas supra descritas ocorrem junto à residência da ofendida.
8. O Arguido foi reduzindo a periodicidade da sua actuação, embora se tenha mantido com regularidade todos os meses, até à cessação há cerca de dois meses, próximo da data em que o Arguido foi notificado da data designada para realização da audiência de julgamento, tendo-se dirigido no total cerca de 30 (trinta) a 50 (cinquenta) vezes ao local de trabalho da ofendida ou à habitação contígua, nos termos referidos.
9. O Arguido agiu da forma supra descrita, bem sabendo que dirigia condutas e expressões atemorizadoras e humilhantes à ofendida E, com quem manteve um relacionamento de namoro, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, debilitando-a psicologicamente, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua honra e dignidade humana e pondo em causa a sua paz e sossego.
10. O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas acções, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibindo de agir como agiu.
*
11. O Arguido nasceu a 11 de Abril de 1992, na República da Ucrânia.
12. Encontra-se em Portugal continuamente desde 2018, embora já tivesse residido em território nacional anteriormente.
13. O Arguido exerce a profissão de canalizador, auferindo cerca de 900,00 € (novecentos euros) líquidos, mensalmente.
14. Vive com a sua mãe e o seu padrasto, em casa arrendada por estes.
15. A sua mãe explora um restaurante o seu padrasto encontra-se reformado, tendo sido agente da PSP.
16. O agregado partilha as despesas domésticas, incluindo de rendas.
17. O Arguido não tem filhos ou dependentes a seu cargo.
18. O Arguido tem uma dívida de 2.000,00 € (dois mil euros), para com a ofendida, resultante do arbitramento de indemnização que teve lugar no processo referido em 2., a qual não saldou.
19. O Arguido completou o 7º ano de escolaridade.
20. O Arguido revela nos factos e na sua postura em julgamento fragilidades pessoais ao nível da impulsividade, dificuldade de autocrítica relativamente aos crimes pelos quais já foi condenado, incapacidade de reflexão sobre a sua conduta, ausência de empatia para com a vítima, assim como um sentimento de impunidade e insensibilidade relativamente ao sistema de justiça.
21. O Arguido assume consumos de álcool em excesso, assim como de estupefacientes, que, todavia, refere ter sustado há cerca de cinco meses.
*
22. O Arguido foi condenado:
a) No âmbito do proc. comum singular nº 1125/19.4PBSTB do Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 3, por sentença datada de 04-03-2020, transitada em julgado em 03-04-2020, o arguido foi condenado pela prática, em Junho de 2019, de um crime de violência doméstica agravado, além do mais, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova e, bem assim, na pena acessória de proibição de contactos com a vítima por igual período de 2 anos e 6 meses;
b) No âmbito do proc. abreviado nº 21/20.7PTSTB do Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 3, por sentença datada de 01-09-2020, transitada em julgado em 01-10-2020, o arguido foi condenado pela prática, em 12-04-2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso efectivo com um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena única de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,50 e, bem assim, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses;
c) No âmbito do proc. abreviado nº 564/18.2PBSTB do Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 3, por sentença datada de 07-02-2021, transitada em julgado em 09-03-2022, o arguido foi condenado pela prática, em 28-05-2018, de dois crimes consumo de estupefacientes, respectivamente na pena de trinta e quarenta dias de multa, à taxa diária de € 6,00, sendo que em cúmulo foi aplicada a pena única de cinquenta e cinco dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no montante global de 330,00 €.
Factos não provados:
Não se provou, qualquer outro facto relevante para a decisão, nomeadamente que:
a) O Arguido passou a procurar a ofendida nos termos referidos em 4. na sua residência (no interior);
b) Nos termos referidos em 5. o Arguido disse também: “Vais me pagar”, “Eu não saio daqui da rua”, “Se não és minha não és de mais ninguém”, “Vais pagar pelo que me fizeste”, “se o tribunal me obrigar tu vais pagar muito caro”, referindo-se esta última frase ao pagamento da indemnização a que foi condenado no âmbito do anterior processo de violência doméstica.
Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção com base na ponderação da prova produzida à luz das regras de experiência comum, designadamente:
a) No que respeita à factualidade constante do libelo acusatório o Tribunal formou a sua convicção com base, no essencial, nas declarações de E. A ofendida relatou a relação que manteve com o Arguido e os factos praticados pelo Arguido de um modo preciso, emocionado, revoltado, que se reputou sincero e credível, por oposição à versão negatória e menorizante que o Arguido apresenta, com pouca espontaneidade e contrariada por outros elementos de prova, inclusivamente audiovisuais.
Não foi percepcionado, em qualquer ponto da prestação das declarações, qualquer tentativa de exacerbação dos factos ou de prejudicar o Arguido, apesar da factualidade que àquele é imputada, tendo inclusivamente E recusado receber qualquer indemnização pelos factos imputados àquele, apenas pretendendo que o Arguido a deixe, definitivamente, em paz.
Um dos episódios referidos pela ofendida encontra-se registado em vídeo (cfr ref. citius 7621732), sendo possível ver o Arguido a dirigir palavras obscenas para a ofendida, efectuando gestos provocatórios, em frente ao estabelecimento comercial que esta explora. Com efeito, apesar de se notar que a filmagem apenas se inicia quando o Arguido já se está a afastar do estabelecimento e que a maior parte do confronto provocatório já terá ocorrido, ainda é possível ver as afirmações trocistas que o Arguido faz, nomeadamente sobre a condenação de que foi alvo dizendo para a ofendida “faz mais filmagens para mandar para o Tribunal… manda po juiz…”, referindo-se à filmagem que estava a ocorrer, fazendo ainda poses jocosas e enviando beijos à ofendida de forma provocatória, terminando ainda a dizer “se eu for preso vou bater uma punheta”, fazendo o gesto correspondente, zombando das possíveis consequências da sua conduta e da actuação dos Tribunais, mostrando que estas não o intimidam e que não deixa de fazer o que bem entende em frente ao estabelecimento daquela.
Tal episódio foi presenciado por P, cliente do estabelecimento que passava pelo local, a qual relatou igualmente os factos praticados pelo Arguido, em consonância com o vídeo.
Apesar de ter ouvido o relato da testemunha e depois de o Tribunal comunicar ao Arguido o relato da ofendida (ouvida na ausência do Arguido), o Arguido continuou a negar que tal situação tivesse ocorrido, negando que a sua actuação pudesse estar documentada em vídeo, referindo que as testemunhas mentiam.
Todavia, o vídeo documento de forma clara a actuação do Arguido, em termos consonantes com o relato das testemunhas, impondo-se concluir que o Arguido falta conscientemente à verdade.
No que respeita a elementos corroborantes, prestou ainda depoimento L (filho da ofendida) que residia com a mesma, na habitação que fica localizada em zona próxima do estabelecimento. O seu relato é coincidente com o relato que a ofendida efectuou em Tribunal, embora a testemunha tenha estado durante um longo período ausente do local, em trabalho e, portanto, não tenha presenciado a reiteração das condutas nos termos referidos pela ofendida.
Deste modo, a versão negatória do Arguido, tentando fazer crer que nunca importunou a ofendida não é minimamente credível, atendendo, não só ao relato seguro e circunstanciado da ofendida, e das restantes testemunhas, mas igualmente ao vídeo que demonstra a personalidade implicativa, desafiadora e desrespeitosa do Arguido. Esta negação não é suficiente para infirmar o supra exposto, especialmente quando o Arguido não se coíbe de mentir descaradamente sobre factos estribados em inegável prova documental. A sua versão negatória não merece, deste modo, qualquer credibilidade. Tão pouco a documentação apresentada pelo Arguido em como nos dias 03 de Outubro a 07 de Outubro de 2022 é suficiente para infirmar o supra exposto. Em primeiro lugar porquanto a mesma é imprecisa, o que suscita, desde logo, dúvidas quanto rigor dos factos e datas descritos. Com efeito, no dia 03 de Outubro o Arguido encontrava-se, de acordo com as suas próprias afirmações, no seu local habitual de trabalho, onde foi retirado o aparelho de vigilância electrónica, e não em Aljustrel.
Pelo que mesmo que o Arguido se tenha deslocado no próprio dia para Aljustrel tal não impede que tenha praticado os factos no dia em que foi retirada a pulseira, uma vez que ainda se encontrava, durante grande parte do dia próximo de Setúbal, residindo aliás, na mesma rua da ofendida.
De igual modo, a ofendida afirma que logo que o Arguido retirou a pulseira a começou a importunar, mas daí não retirámos que tenha sido inexoravelmente no dia 03, mas em data próxima, uma vez que a ofendida também não saberá com rigor em que data lhe foi retirada a pulseira, apenas sabendo em que data foi recolhido o aparelho que a própria possuía.
Aqui chegados, merecendo de motu proprio as declarações da E credibilidade, saindo ainda as mesmas reforçadas pela corroboração parcial dos depoimentos de P e L, e demais prova documental, em especial o vídeo junto aos autos, inexistem razões para não julgar provados os factos que apenas tiveram lugar na presença de Arguido e ofendida.
Questão delicada a resolver no âmbito dos presentes autos consiste em saber se este estado de agressão verbal, com uma periodicidade diária e posteriormente, pelo menos mensal, junto ao local de trabalho e à residência da vítima, apesar de ter sido afirmado pelas testemunhas de modo firme, espontâneo e credível, para além de qualquer dúvida razoável, encontrando-se igualmente documentado em vídeo, pode ser julgado provado, dada a sua relativa generalidade.
O Supremo Tribunal de Justiça tem reconhecido que as imputações genéricas são imprestáveis. Ou seja, quando as formulações são de tal modo vagas, imprecisas, genéricas, com indefinição a nível do tempo, espaço, participação do agente, ao ponto de não permitir um efectivo exercício do contraditório, impossibilitando a cabal defesa do arguido, devem considerar-se não escritas – cfr., entre outros acórdãos, Acórdão 28 de Outubro de 2015, relatado por Raúl Borges, proc. nº 10/13.8GAAMT.P1.S1 - 3ª Secção, Acórdão de 15 de Dezembro de 2011, relatado por Raúl Borges, proc. nº 17/09.0TELSB.L1.S1 - 3ª Secção ou e Acórdão de 31 de Janeiro de 2008, relatado por Pereira Madeira, proc. nº 1411/07 - 5ª Secção
Tal afirmação será, aliás, pacífica, o que se afigura controverso é a sua concretização e o grau de exigência na densificação dos factos.
O grau de precisão na narração factual não se pode dissociar da concreta criminalidade que está em causa, dos seus contornos, do tempo que perdurou, do peso dos actos isolados ou do comportamento global.
Aliás, esse equilíbrio que é necessário lograr, harmonizando o interesse do Estado na punição do crime e do criminoso, o interesse da vítima em que seja feita justiça, e o interesse do arguido na sua defesa, princípios que emanam do artigo 283º, nº 3, al. b), ao mencionar que a narração do “lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” será feita “se possível”. O que demonstra que o legislador admite, nestes aspectos, um maior grau de generalização, se a investigação não permitir uma melhor pormenorização fáctica – neste preciso sentido cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2020, relatado por Margarida Blasco, proc. 1416/17.9GAMAI.P1-A.S1, disponível para consulta in dgsi.pt.
Consabidamente, resulta da experiência comum, existirem comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os actos que os integram. Relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer da vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente ou que consiga, através de pormenores suficientes, distinguir uma situação das outras, o que não impede que a mesma tenha a certeza, e a consiga transmitir de modo credível, que esses episódios ocorreram.
Aliás, a jurisprudência trata frequentemente de casos, que redundam em condenações, em que não é possível a individualização das situações, apenas se julgando uma certa reiteração comum.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Setembro de 2013, deixa-o exemplo de um merceeiro acusado de, durante o período de um ano, vender determinado produto alimentar avariado. Não é exigível que cada um dos clientes indique em que dia e hora foi à mercearia (onde eventualmente ia todos os dias) comprar o produto em causa. As regras da experiência indicam-nos que a quase totalidade dos compradores não seria capaz de concretizar esse pormenor, embora possam afirmar que foi durante determinado período que fizeram a aquisição. O ordenamento jurídico é um todo harmonioso, não sendo pensável que o direito penal substantivo puna um comportamento, que, depois, seria indemonstrável face às regras do direito processual – relatado por Fernando Monterroso, proc. 1631/12.1PBBRG.G1, disponível para consulta in dgsi.pt.
Todavia, a questão verifica-se com mais frequência e maior gravidade no caso de ilícitos de natureza sexual praticados contra crianças, em que, nalgumas situações, as vítimas ainda nem sequer desenvolveram uma capacidade de compreensão, designadamente do conceito de tempo, que lhes permita densificar pormenorizadamente os factos e situá-los temporalmente.
É particularmente claro e paradigmático o resumo de Helena Moniz, quando refere que nos crimes de abuso sexual contra menores praticados por pessoas próximas do ofendido, normalmente com uma relação privilegiada com o ofendido a conduta criminosa é, normalmente, exercida de forma reiterada e repetida durante um período de tempo mais ou menos longo. Como grande parte desta criminalidade é praticada entre as paredes do reduto familiar, muitas vezes a única prova existente é a decorrente das declarações do ofendido que nem sempre se consegue lembrar de forma exacta e precisa de quais os momentos, os dias, em que ocorreram aqueles abusos. Não raras vezes nos deparamos com a prova de que os abusos foram realizados, por exemplo, quando o menor regressava da escola e apenas estava o arguido em casa, porque os restantes membros do agregado habitacional estavam a trabalhar; mas, noutras ocasiões, ainda é mais imprecisa a delimitação temporal dos actos praticados/sofridos — os abusos ocorreram diversas vezes por semana, sempre que o menor se encontrava com o arguido no estabelecimento onde o arguido, seu familiar, trabalhava e para onde se deslocava o menor para o ajudar, por exemplo; ou quando o menor visitava a casa dos avós, e perguntado quantas vezes acontecia, o ofendido responde que era sempre à quarta-feira, mas às vezes era à quarta e quinta-feira, e também nas férias, ou ao fim de semana, se os pais estavam ausentes, assim se revelando uma falta de capacidade para delimitar de forma precisa quais foram esses fins de semana, ou quais os dias, em suma, qual o número de actos realizados – “Crime de trato sucessivo” (?), Revista Julgar Online, Abril de 2018, p. 2.
O resultado prático de tal indefinição não é julgar tal factualidade como não provada, por genérica ou por impossibilidade de exercício do contraditório. Pelo contrário, como nos diz a mesma autora, perante isto, o Tribunal sabe que o crime de abuso sexual de menor foi praticado, restringindo-se a problemática à impossibilidade de contabilizar de forma precisa o número de crimes de abuso sexual cometidos, o que leva alguma jurisprudência a superar tal dificuldade com recurso à figura do “crime de trato sucessivo”.
Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá de ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, pelo menos de forma balizada.
A solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório.
Não devemos perder de vista que, nos crimes de violência doméstica, em que existe uma reiteração de condutas, ao longo de um período de tempo relativamente longo, os actos isolados se tornam mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, quanto maior o seu número, e o distanciamento temporal entre a ocorrência dos mesmos e as declarações da vítima.
É o que sucede no caso destes autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado, durante um período de tempo longo, num local determinado, mas que é o habitual (junto ao local de trabalho e casa de habitação contígua), sempre que o Arguido ali se dirige, o que ocorre diariamente e pelo menos a partir de determinado período, mensalmente, terminando apenas quando o Arguido é notificado da data de julgamento.
Apesar de se reconhecer algum grau de generalização, entende-se que a concretização factual constante da acusação e da matéria julgada provada é bastante para permitir ao Arguido contraditar, negar os factos e apresentar eficazmente a sua defesa.
Trata-se de um período de tempo algo longo, é certo, mas não pode falar-se aqui de inexistência de factos concretos, nem minimamente balizados, decorrendo do libelo acusatório uma reiteração que tornaria até praticamente impossível que alguém pudesse memorizar as datas em concreto, tantas foram as situações em que a ofendida terá sido insultada de modo semelhante (entre 30 e 50 segundo a mesma), com recurso às mesmas expressões.
Entendemos assim que matéria de facto julgada provada, que se tentou ainda densificar e balizar de forma mais acentuada do que aquela que constava da acusação, se encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa, em respeito, aliás, do artigo 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal, onde o legislador exige “a narração, ainda que sintética (….) incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática” (negrito nosso) – no sentido do texto, admitindo a suficiência de factos com semelhante grau de densificação, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Março de 2022, relatado por Nuno Pires Salpico, 613/20.4PDVNG.P1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Fevereiro de 2018, relatado por Moreira Ramos, proc. 417/17.1PHGNV.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Setembro de 2013, relatado por Fernando Monterroso, proc. 1631/12.1PBBRG.G1, sendo que tal interpretação não é de modo nenhum censurada pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente na análise que efectua no Acórdão de 10 de Dezembro de 2020, relatado por Margarida Blasco, proc. 1416/17.9GAMAI.P1-A.S1, onde se analisam dois Acórdãos putativamente opostos que tratam da questão em análise.
Ou seja, admitindo-se a aludida formulação, o que passa a estar em causa não é a possibilidade de tais factos integrarem a matéria de facto julgada provada, mas tão só a suficiência da prova produzida para suportar a referida matéria.
Sobre este ponto já nos pronunciámos. O relato da vítima é suficientemente denso, pormenorizado e emocionado, coincidente com a demais prova, para suportar a aludida factualidade.
A versão negatória do Arguido não tem a virtualidade de infirmar o relato daquela. Assim, os factos 1. a 10. resultam desta análise probatória, sendo as precisões à matéria de facto resultante do depoimento da própria ofendida.
No que respeita aos factos do foro interno, como refere Michele Taruffo, embora a propósito de outro ramo do direito, mas perfeitamente transponível para o caso vertente, salvo no caso das declarações provenientes do próprio “autor” do facto psíquico a única forma de determinar factos deste tipo consiste em utilizar técnicas de reconstrução directa. Esses factos, prossegue o mesmo autor, não podem ser conhecidos com os habituais meios de prova; o que se pode conhecer com esses meios de prova são os factos materiais a partir de cuja existência e modalidades pode arguir-se que um determinado sujeito tem uma determinada vontade, o conhecimento de algum facto, uma determinada atitude valorativa – Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil, in Revista do CEJ, 2005, nº 3, p. 139, em sentido semelhante, e no específico âmbito criminal cfr. o Acórdão da Relação de Évora de 08 de Maio de 2012, relatado por António João Latas, proc. 139/09.7GAABF.E1, disponível in dgsi.pt.
Ao actuar da referida forma o Arguido não poderia deixar de saber que dirigia condutas e expressões atemorizadoras e humilhantes à ofendida E, com quem manteve um relacionamento de namoro, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, debilitando-a psicologicamente, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua honra e dignidade humana e pondo em causa a sua paz e sossego.
Inexiste razão para concluir que o arguido não agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente. Com efeito, considerando tudo o exposto, não se descortinando que o Arguido padeça de qualquer incapacidade ou anomalia de compreensão das regras sociais e jurídicas em vigor, deve concluir-se que, agiu de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas acções, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibindo de agir como agiu.
Levou-se ainda em conta toda a demais prova constante dos autos, nomeadamente a certidão de fls. 2 e ss. e de fls. 28 e ss., no que respeita à condenação anterior.
b) No que respeita às condições socioeconómicas teve-se em conta as declarações do próprio Arguido, inexistindo razões para as censurar, nesta matéria, na falta de elementos dissonantes. Da postura que o Arguido apresentou em audiência, cotejado com os factos praticados após a condenação e igualmente documentados em vídeo, resulta, contudo, uma completa incapacidade de reflexão sobre a sua conduta e ausência de empatia para com a vítima, demonstrando igualmente sentimentos de impunidade e insensibilidade ao contacto a a que tem vindo a ser sujeito com o sistema de justiça.
c) Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o certificado de registo criminal constante electronicamente dos autos (ref. 98001649).
d) A factualidade não provada resultou da análise supra exposta e da falta de qualquer elemento de prova suficientemente seguro que permitisse considerá-los como provados (não tendo tais factos sido referidos pelas testemunhas). As alterações à matéria de facto resultam das declarações da ofendida. Não se respondeu a matéria redundante, conclusiva, anódina ou de direito. Uma vez que é relevante para a decisão a proferir, nomeadamente para preenchimento de circunstâncias qualificativas, esclareceu-se que o Arguido procurava a ofendida junto à sua residência, nos termos referidos em 4., como já se intuía do artigo 7º da acusação, evitando-se expressões dúbias, esclarecendo-se que o Arguido não procurava a ofendida no interior da sua residência.
(…)
Da medida da pena
Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do Arguido importa, agora, determinar a natureza e medida das sanções a aplicar.
A moldura abstracta da pena prevista para o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. b) do Código Penal é de pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos.
Nos termos do nº 4 do referido preceito, podem ainda ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
*
Nos termos do artigo 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Com a referência à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade o legislador erigiu as exigências de prevenção a finalidade única do sistema sancionatório português.
Assim, por um lado, com a menção a protecção de bens jurídicos, tem o legislador em vista a prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida – Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, 2ª Reimp. pp. 72 e 73.
Por outro lado, no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” visou o legislador vincar a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar, segundo Figueiredo Dias, a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, e da intimidação a nível individual – As Cons… op. cit. p. 243.
Em suma, as penas, devem ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador e são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 1998, relator Leonardo Dias, proc. 98P194 in dgsi.pt, e Figueiredo Dias, Cons... op. cit. p. 227.
No que diz respeito à determinação concreta da pena principal, o artigo 71º, nº 1, do Código Penal, estatui que, a mesma é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.
As exigências de prevenção que o supra citado preceito menciona são as referidas no artigo 40º, nº 1.
À luz aliás dos princípios emergentes do Direito Penal constituído, as penas devem reflectir essas finalidades de forma harmónica, visando sempre a protecção do bem jurídico que lhes subjaz e a realização dos fins éticos do sistema.
Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, o que significa que não há pena sem culpa, não podendo aquela ultrapassar a medida da culpa, sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
A culpabilidade exige que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sócio-comunitário – Figueiredo Dias, Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, p. 230.
Nestes termos, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico em função de exigências de prevenção especial, regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, ou intimidação ou segurança individuais – Figueiredo Dias, Temas… op. cit. pp. 110 e 111.
Para determinação da pena concreta há que ter em consideração os factores previstos no nº 2 do artigo 71º, do Código Penal.
Não sendo a pena concreta o resultado de simples operações aritméticas – que não teriam nunca razão de ser – ela há-de resultar da ponderação de todo o circunstancialismo provado, aquilatado pela personalidade do agente e sufragando as regras gerais de punição e os princípios delas emergentes – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01 de Outubro de 2008, relator Cravo Roxo, proc. 0842659, disponível in dgsi.pt.
As exigências de prevenção geral são elevadas, deixando desde há muito a sociedade de tolerar a violência de género, assumindo, de igual modo, o legislador, veementes políticas e sucessivas alterações legislativas com vista a acabar com o flagelo que ainda constitui tal realidade social. Nestes termos é legítimo que a sociedade exija a imposição, por parte do Tribunal, de penas adequadas a repor a confiança da sociedade na eficácia do ordenamento penal e na protecção daquela que é uma vítima especialmente vulnerável.
No que respeita ao grau de ilicitude, é de considerar que dentro da ilicitude típica da norma qualificativa o mesmo se situa num patamar inferior. Tendo em conta a miríade de condutas que podem ser subsumidas ao tipo legal, o qual integra, entre outras, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, a conduta em análise apesar de objectivamente grave, reconduz-se no essencial a injúrias e ameaças, verbais. Todavia, a reiteração de condutas e o facto de a acção incidir sobre uma vítima de um crime de violência doméstica pelo qual o Arguido já foi condenado agrava a ilicitude, uma vez que a seriedade das ofensas/ameaças é necessariamente superior, tal como é o medo sentido pela ofendida, não se coibindo o Arguido de a importunar recorrentemente no seu domicílio e local de trabalho. Assim, também as consequências da conduta não são despiciendas, apesar de não excessivamente gravosas, é sabido as nefastas consequências psicológicas associadas e traduzidas no medo e perturbação sentido pela vítima.
Ao nível dos sentimentos manifestados, é de considerar que o Arguido actuou motivado por sentimentos despeito e retaliação em relação àquela que era ex-namorada, continuando a querer importuná-la, manifestando um completo desprezo e indiferença por esta, pelo seu sofrimento e pela sua vontade livre e esclarecida. Deste modo, os sentimentos esténicos manifestados surgem como circunstância agravante.
Surge como circunstância desfavorável a intensidade do dolo, na medida em que o Arguido actuou com dolo directo.
A culpa é de grau superior ao médio, ponderando aqui, por um lado, a ilicitude da conduta nos termos referidos, a insistência delituosa e os sentimentos, motivos e fins manifestados no facto, os quais relevam ao nível da culpa, bem como o dolo directo, mas avultando ainda o desrespeito que o Arguido demonstrou pela anterior condenação de que foi alvo, precisamente pelo mesmo ilícito de violência doméstica, contra a mesma vítima. O Arguido demonstra uma completa insensibilidade à pena aplicada, mesmo que aquela tenha atingido o patamar da prisão (apesar de suspensa), praticando impune e indiferentemente o mesmo ilícito durante contra a mesma vítima.
Relevando ao nível das exigências de prevenção especial é de ponderar aqui que o Arguido nasceu a 11 de Abril de 1992, encontrando-se profissionalmente inserido, residindo com a sua progenitora, na mesma rua onde reside e trabalha a ofendida.
Em termos de características pessoais reveladas nos factos, o Arguido aparenta ser um individuo com dificuldades ao nível do pensamento crítico, com aparente dificuldade de contenção dos impulsos, bem como em reconhecer o impacto das suas acções nos outros.
Importa também considerar que o Arguido demonstra dificuldade em assumir a extensão dos factos pelos quais é condenado e o dano causado à vítima, limitando-se a negar os factos, até ao momento em que existe prova inegável da sua prática.
É associado ao consumo anterior de produtos estupefacientes e de álcool, o que igualmente se assume como factor de risco a ter em conta ao nível da prevenção da sua agressividade e reincidência.
Nesta sede, avulta ainda especialmente a anterior condenação, desta vez relevada para efeitos de prevenção especial. Com efeito, apesar de o Arguido ter sido condenado pela prática de crime de violência doméstica agravado por sentença transitada em julgado em 3 de Abril de 2020, sobre a aqui ofendida E, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual perdido de tempo, imediatamente após o termo da pena, o que ocorreu em 3 de Outubro de 2022, não se inibiu de praticar precisamente o mesmo ilícito, contra a mesma vítima. Este comportamento demonstra uma menor susceptibilidade de o Arguido ser positivamente influenciado pela pena aplicar, o que eleva as exigências de prevenção especial.
Tudo ponderado, considerando as necessidades de prevenção especial situadas num ponto médio, tendo igualmente presente as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, considerando que a pena anterior de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses não surtiu qualquer efeito preventivo, mas não olvidando a ilicitude da conduta face à ilicitude típica e o limite que constituiu o princípio da culpa, é de considerar adequada a aplicação ao Arguido de uma pena situada num ponto próximo do médio e, em concreto, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, limite no qual fixamos a culpa do Arguido (justificando-se a referida medida uma vez que o anterior tipo era agravado e o tipo em análise é simples).
*
Uma vez determinada a concreta medida da pena, importa verificar se a pena principal é de substituir por alguma pena de substituição.
O nosso código respondeu aos propósitos politico-criminais do movimento de luta contra as penas de prisão, consagrando um vasto leque de penas substitutivas, vincando o princípio básico de que a pena de prisão constitui a última forma de actuação do sistema sancionatório penal.
Assim, as penas de substituição devem ser aplicadas sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos de aplicação e se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades preventivas – neste sentido, cfr. Figueiredo Dias, As Cons… op. cit. p. 331.
O critério para aferir a substituição da pena é unicamente preventivo, com maior predomínio da prevenção especial de socialização, por ser sobretudo tal função que fundamenta a luta contra as penas de prisão.
Nestes termos, a prevenção geral funciona apenas como limite, o qual actuará, exigindo a pena de prisão, unicamente quando esta se mostre indispensável para que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias – neste sentido, Figueiredo Dias, As Cons… op. cit. p. 333.
Tendo em conta o quantum da pena de prisão, aquela pode ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50º, nº 1, todos do Código Penal.
Estabelece a referida disposição que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para além do pressuposto formal (pena inferior a 5 anos de prisão), a lei exige um pressuposto de ordem material, ou seja, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro.
Assim, ancorado nos factos, para aplicação da suspensão, deverá o juiz efectuar um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do Arguido, no sentido de que a simples ameaça da prisão será suficiente para pleno cumprimento das finalidades da punição, possibilitando ao Arguido a assimilação da advertência que a condenação implica, a qual será suficiente para que não volte a delinquir.
Neste ponto, ressalta desde logo à vista que o Arguido apresenta já uma condenação pelo mesmo ilícito, para além de duas condenações pela prática de quatro ilícitos (um crime de condução sem habilitação legal, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e dois crimes de consumo de estupefacientes). Sobre esta matéria, como refere Figueiredo Dias, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão; mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação – As Cons… op. cit.. 344; no mesmo sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de Maio de 2020, relatado por António Teixeira, proc. 360/19.0GAPTLG1, disponível para consulta in dgsi.pt.
No caso vertente, as penas de substituição não acautelam de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção especial que se fazem sentir. A ineficácia da pena preteritamente aplicada pela prática do ilícito pelo qual o Arguido é novamente condenado, mesmo quando atingiu o patamar da prisão, ainda que substituída, não permite que se suspenda a execução pena de prisão.
Note-se que como especiais factores de risco o Arguido demonstra, nos factos:
- fragilidades pessoais ao nível da impulsividade;
- uma personalidade conflituosa e violenta;
- historial de consumo de álcool e estupefacientes, o que é susceptível de agravar os factores de risco acima elencados;
- a sua postura menorizante demonstra reduzidos níveis de autocensura/autocontrolo, de descentração e uma atribuição causal externa, demonstrativa de ausência de empatia;
- o seu comportamento indica dificuldades em lidar e aceitar a ruptura conjugal e as suas consequências;
- o seu comportamento demonstra resistência à intervenção da justiça e incapacidade de adequar o seu comportamento apesar dos contactos que foi forçado a manter com o sistema judicial.
Importa ainda sublinhar que o Arguido cometeu o crime em análise sobre a mesma vítima do crime de violência doméstica pelo qual foi anteriormente condenado.
Apesar do aludido investimento judicial de confiança no Arguido, no sentido de que a pena de substituição seria suficiente para o demover da prática de novos ilícitos e que seria igualmente suficiente para protecção da vítima, a verdade é que o juízo de prognose positivo formulado foi gorado, persistindo o Arguido, indiferentemente, na prática do mesmo ilícito, contra a mesma vítima, iniciando a actividade criminosa imediatamente após o termo da pena suspensa e da pena acessória de proibição de contactos anteriormente aplicadas. Quer isto dizer que o Arguido não foi capaz de observar a advertência que a anterior condenação constituiu, nem de aproveitar a oportunidade concedida. Nada permite concluir que a simples censura do facto e ameaça do cumprimento da prisão (ainda que condicionada à adopção de deveres e regras de conduta e sujeita a regime de prova) afastariam, desta vez, o Arguido da continuação da actividade criminosa, quando a condenação anterior não teve tal virtualidade. Torna-se impossível formular um juízo de prognose positiva, o qual constituiria um mero salto de fé, sem correspondência nos factos ou na personalidade do Arguido.
Assim a aludida substituição não se afigura suficiente para demover o Arguido da prática de novos crimes, face à indiferença demonstrada e à vontade criminosa manifestada pelo mesmo na prática do ilícito típico em análise, contra a mesma vítima, fazendo-se já sentir as excepcionais exigências de prevenção especial negativa de segurança ou neutralização.
No sentido do exposto, de que, tendencialmente a pena de prisão aplicada por crime de violência doméstica deve ser de execução efectiva, no caso de resultar provada a reincidência do Arguido (em sentido impróprio), nomeadamente no caso de o Arguido, além do mais, o possuir condenação anterior (e recente) pela prática de igual crime vide – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03 de Fevereiro de 2015, relatado por Filomena Soares, proc. 241/13.0PBSTB.E1 e Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2020, relatado por Liliana de Páris Dias, proc. 829/18.3GBAMT.P1, ambos disponíveis para consulta in dgsi.pt.
Com efeito, se a pena privativa da liberdade surge sempre como a ultima ratio do nosso sistema punitivo tal não significa que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins da punição.
Note-se que é dever do juiz assentar o incontornável “juízo de prognose”, favorável ou desfavorável à suspensão da execução da pena de prisão, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09 de Março de 2004, relatado por Ribeiro Cardoso, proc. 2350/03-1, disponível para consulta in dgsi.pt.
Havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente para não repetir a prática de crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada, sendo descabida, neste âmbito, qualquer invocação do princípio in dubio pro reo – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Março de 2003, relatado por Pereira Madeira, proc. 03P612, disponível para consulta in dgsi.pt e Figueiredo Dias, As Cons… op. cit. p. 344.
Com efeito, nas palavras de Jescheck o principio in dubio pro reo só vale para os factos que estão na base do juízo da probabilidade, mas desta deve o tribunal estar convencido (apud Figueiredo Dias, As Cons… op. cit., p. 344 e 345).
Não há qualquer factor favorável e seguro que permita fundar um juízo de prognose positivo.
Como também se afirma na jurisprudência dos Tribunais Superiores, a pena de prisão efectiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas e, em geral, os que integram a designada “criminalidade violenta” e “criminalidade altamente organizada”, na qual se inclui a violência doméstica, que mais consequências nefastas têm para a paz social. Uma evidência mais: é bem certo que não compete aos tribunais “definir ou participar em estratégias de prevenção e combate à criminalidade”, mas os tribunais não podem abdicar da irrenunciável função de garantir que a pena é adequada às necessidades de tutela dos bens jurídicos e de reafirmação da validade das normas jurídicas violadas, como, de resto, se reconhece na exposição de motivos do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
As fortes exigências preventivas, sobretudo as de prevenção geral, que o crime de violência doméstica suscita não ficam, adequada e suficientemente, satisfeitas com a simples ameaça da pena e isso justifica a imposição de penas de prisão efectivas.
Como refere Anabela Rodrigues, a propósito do critério de decisão nos casos em que a pena de substituição se mostre adequada à satisfação de necessidades de prevenção especial (o que, sublinhe-se, não se verifica no caso vertente), mas a tal se oponha a perspectiva da prevenção geral ou de defesa do ordenamento jurídico, em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral positiva hão de funcionar como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial podia ser aconselhável (…) sendo um ordenamento de prevenção – agora de prevenção geral no seu grau mínimo – o único que pode (deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial.
Que assim é, quanto à prevenção geral [continua a autora], resulta do facto de nenhum ordenamento jurídico suportar pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa «perda» de efeito preventivo geral - isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição; mas quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão” – cfr Critério de escolha das penas de substituição in Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, I, Número especial do BFD, Coimbra, 1984 p. 40 e 41.
A referida substituição da pena de prisão não poderia deixar de colocar em causa as expectativas que a comunidade assenta na vigência das normas concretamente violadas, não sendo compreensível que o Arguido continue a maltratar sucessiva e impunemente as suas companheiras ou ex-companheiras, após ter sido sujeito a um contacto que, à data, se esperava severo com o Direito Penal. Uma nova suspensão da execução da pena de prisão seria interpretada pela comunidade como sinal de indiferença perante o bem jurídico em causa, o que afectaria gravemente a prevenção geral positiva.
Não se verificam os pressupostos de aplicação de qualquer outra pena substitutiva, pelo que a pena de prisão aplicada deve ser cumprida em regime efectivo.
(…) II – FUNDAMENTAÇÃO
1 - Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas com nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:
- Impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de facto, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à medida da pena de prisão e da sua suspensão.
- Da impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de facto, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.
Quanto aos vícios da sentença relativos à matéria de facto, nos termos do preceituado no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Cumpre por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que a sentença recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra, mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, nomeadamente sobre as ameaças de morte do arguido e as agressões verbais do mesmo para com ofendida, da vergonha sentida pela mesma e do medo que tinha, bem como a verbalização do número aproximado de vezes que foi confrontada com tais situações, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
De igual modo, conforme supra, referido, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do “favor rei”, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido, pois o Tribunal “a quo”, face às declarações da ofendida/testemunha que mereceram toda a credibilidade e que foram corroboradas pela demais prova produzida, não restando qualquer dúvida sobre o decurso dos factos, ao contrário das declarações do arguido, que não foram merecedoras de qualquer credibilidade, sendo associado ao consumo de produtos estupefacientes e de álcool.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à medida da pena de prisão e da sua suspensão.
Os critérios, que devem presidir à quantificação da pena concretamente aplicável, são os estabelecidos pelo artigo 71º do Código Penal, que sob a epígrafe “Determinação da medida da pena”, estatui:
“1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
O nº 1 do artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
Por outro lado, há que ter presente que um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Importa considerar as exigências de prevenção deste tipo de infracções, sendo bastante elevadas as de prevenção geral, atentos os inúmeros crimes que se praticam diariamente contra sobretudo as mulheres e as muitas consequências trágicas que se verificam, sobretudo nas situações ligadas ao consumo de álcool e de estupefacientes.
As penas a que o arguido já foi condenado, mostrando-se todas insuficientes para afastar o arguido da prática de novos ilícitos criminais e, garantir a sua reintegração social, conforme melhor resulta da prática pelo mesmo dos mesmos factos e na mesma vítima, nos presentes autos.
A moldura penal abstracta para o crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, é de pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos.
Importa desde logo ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normalidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.
Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, deve aproximar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado “quantum” em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal “a quo”) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena.
Atentos os critérios estabelecidos pelo artigo 71º do Código Penal, para a quantificação da pena a aplicar, tendo presente que a finalidade das mesmas é a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, que em caso algum podem ultrapassar a medida da culpa do agente.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no citado artigo 71º, nº 2, do Código Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 239), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente (condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto).
Na sentença recorrida, o tribunal “a quo” fundamentou a medida da pena aplicada ao arguido nos seguintes termos:
“As exigências de prevenção geral são elevadas, deixando desde há muito a sociedade de tolerar a violência de género, assumindo, de igual modo, o legislador, veementes políticas e sucessivas alterações legislativas com vista a acabar com o flagelo que ainda constitui tal realidade social. Nestes termos é legítimo que a sociedade exija a imposição, por parte do Tribunal, de penas adequadas a repor a confiança da sociedade na eficácia do ordenamento penal e na protecção daquela que é uma vítima especialmente vulnerável.
No que respeita ao grau de ilicitude, é de considerar que dentro da ilicitude típica da norma qualificativa o mesmo se situa num patamar inferior. Tendo em conta a miríade de condutas que podem ser subsumidas ao tipo legal, o qual integra, entre outras, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, a conduta em análise apesar de objectivamente grave, reconduz-se no essencial a injúrias e ameaças, verbais. Todavia, a reiteração de condutas e o facto de a acção incidir sobre uma vítima de um crime de violência doméstica pelo qual o Arguido já foi condenado agrava a ilicitude, uma vez que a seriedade das ofensas/ameaças é necessariamente superior, tal como é o medo sentido pela ofendida, não se coibindo o Arguido de a importunar recorrentemente no seu domicílio e local de trabalho. Assim, também as consequências da conduta não são despiciendas, apesar de não excessivamente gravosas, é sabido as nefastas consequências psicológicas associadas e traduzidas no medo e perturbação sentido pela vítima.
Ao nível dos sentimentos manifestados, é de considerar que o Arguido actuou motivado por sentimentos despeito e retaliação em relação àquela que era ex-namorada, continuando a querer importuná-la, manifestando um completo desprezo e indiferença por esta, pelo seu sofrimento e pela sua vontade livre e esclarecida. Deste modo, os sentimentos esténicos manifestados surgem como circunstância agravante.
Surge como circunstância desfavorável a intensidade do dolo, na medida em que o Arguido actuou com dolo directo.
A culpa é de grau superior ao médio, ponderando aqui, por um lado, a ilicitude da conduta nos termos referidos, a insistência delituosa e os sentimentos, motivos e fins manifestados no facto, os quais relevam ao nível da culpa, bem como o dolo directo, mas avultando ainda o desrespeito que o Arguido demonstrou pela anterior condenação de que foi alvo, precisamente pelo mesmo ilícito de violência doméstica, contra a mesma vítima. O Arguido demonstra uma completa insensibilidade à pena aplicada, mesmo que aquela tenha atingido o patamar da prisão (apesar de suspensa), praticando impune e indiferentemente o mesmo ilícito durante contra a mesma vítima.
Relevando ao nível das exigências de prevenção especial é de ponderar aqui que o Arguido nasceu a 11 de Abril de 1992, encontrando-se profissionalmente inserido, residindo com a sua progenitora, na mesma rua onde reside e trabalha a ofendida.
Em termos de características pessoais reveladas nos factos, o Arguido aparenta ser um individuo com dificuldades ao nível do pensamento crítico, com aparente dificuldade de contenção dos impulsos, bem como em reconhecer o impacto das suas acções nos outros.
Importa também considerar que o Arguido demonstra dificuldade em assumir a extensão dos factos pelos quais é condenado e o dano causado à vítima, limitando-se a negar os factos, até ao momento em que existe prova inegável da sua prática.
É associado ao consumo anterior de produtos estupefacientes e de álcool, o que igualmente se assume como factor de risco a ter em conta ao nível da prevenção da sua agressividade e reincidência.
Nesta sede, avulta ainda especialmente a anterior condenação, desta vez relevada para efeitos de prevenção especial. Com efeito, apesar de o Arguido ter sido condenado pela prática de crime de violência doméstica agravado por sentença transitada em julgado em 3 de Abril de 2020, sobre a aqui ofendida E, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual perdido de tempo, imediatamente após o termo da pena, o que ocorreu em 3 de Outubro de 2022, não se inibiu de praticar precisamente o mesmo ilícito, contra a mesma vítima. Este comportamento demonstra uma menor susceptibilidade de o Arguido ser positivamente influenciado pela pena aplicar, o que eleva as exigências de prevenção especial.
Tudo ponderado, considerando as necessidades de prevenção especial situadas num ponto médio, tendo igualmente presente as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, considerando que a pena anterior de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses não surtiu qualquer efeito preventivo, mas não olvidando a ilicitude da conduta face à ilicitude típica e o limite que constituiu o princípio da culpa, é de considerar adequada a aplicação ao Arguido de uma pena situada num ponto próximo do médio e, em concreto, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, limite no qual fixamos a culpa do Arguido (justificando-se a referida medida uma vez que o anterior tipo era agravado e o tipo em análise é simples).”.
Postas estas considerações, perante os pressupostos já enunciados, ao nível da ilicitude deparamo-nos com um efectivo relevante desvalor da acção traduzido na forma reiterada da prática dos factos.
Também a intensidade do dolo se mostra elevada, desde logo porque se trata de dolo directo e nas circunstâncias referidas.
A circunstância de ter antecedentes criminais, pelo mesmo tipo de crime e com a mesma vítima, igualmente avaliados na decisão recorrida, tem, manifestamente, um valor agravante da já afirmada gravidade do ilícito e intensidade e persistência do dolo.
Logo, evidente se torna que o circunstancialismo em causa aponta para um limite mínimo ditado pela prevenção geral de integração acima do limite mínimo previsto na norma incriminadora, sob pena de insuficiente defesa do ordenamento jurídico.
E, à luz da prevenção especial que no caso não pode deixar de ter conteúdo negativo de intimidação individual, temos também um quadro que aponta para a necessidade de uma pena de prisão que permita a reintegração social do arguido e não ultrapasse o limite da sua culpa.
No caso, seja em vista do altíssimo grau de ilicitude dos factos, seja em vista das elevadas necessidades de prevenção geral (que reclamam severidade na punição de crimes de violência doméstica), mesmo de prevenção especial, não se vê que M. Juiz do Tribunal “a quo” haja valorado as circunstâncias apuradas com inadequado peso prudencial, por isso que a sentença revidenda não merece nem suscita, também neste particular, qualquer intervenção ou suprimento reparatório.
Pelo exposto e considerando que no caso concreto, o tribunal “a quo” ao fixar a pena em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, ponderou devidamente as circunstâncias apuradas e as aludidas finalidades das penas.
Nestes termos, cremos que é de manter medida da pena aplicada, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, antes se mostra adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassa a medida da culpa do arguido.
Improcede o alegado pelo recorrente, confirmando-se consequentemente também neste segmento, a sentença recorrida.
- Da suspensão desta pena de prisão:
“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que da simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” - artigo 50º, Código Penal.
Como resulta deste preceito legal, a suspensão da execução da pena de prisão depende da verificação de dois pressupostos: um formal, que exige que a pena aplicada não seja superior a 5 anos de prisão; e um pressuposto material, relativo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
A este propósito, ensina Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 341 e sgs.: “pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente. (...). Para formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto – o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto”.
“A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
Por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluído - embora se devam colocar-lhe exigências acrescidas - mesmo relativamente a agentes por convicção ou por decisão de consciência (...).
Mas já o está decerto naqueles outros casos em que o comportamento posterior ao crime, mas anterior à condenação, conduziria obrigatoriamente, se ocorresse durante o período de suspensão, à revogação desta (...). Por outro lado, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão; mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação (...).”
“Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (...). Já determinámos (...) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”.
Neste circunstancialismo, embora se verifique o pressuposto formal de pena de prisão não superior a cinco anos, para aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, não se verificam os pressupostos materiais para tal aplicação.
Desde logo, porque resultou provado nos autos, que o arguido revela apetência para o crime, mostrando-se desenquadrado das regras de vivência em sociedade.
Tem condenações anteriores, mostra um total desrespeito pelo sistema judicial, mostrando socialmente desinserido.
Efectivamente, desde logo revelam-nos os autos uma relevante ilicitude dos factos, atento que já havia sido condenado pela prática do mesmo tipo de factos, na pessoa da mesma vítima, em pena de prisão suspensa na sua execução que mal terminou fez com que o arguido retomasse a continuação da mesma actividade criminosa, evidenciando o arguido total indiferença face às consequências das suas actuações, bem como às condenações anteriores, interiorizando um sentimento de impunidade e de indiferença às regras estabelecidas e às suas necessidades de reinserção.
Depois, importa ter presente as prementes exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que no nosso País são praticados crimes contra as pessoas vulneráveis, nomeadamente as mulheres e os idosos, com consequências trágicas, o que revela falta de educação e de cidadania, na protecção e respeito dessa vulnerabilidade e no viver de forma socialmente adequada.
Por outro lado, terá de se ponderar as necessidades de prevenção especial, atentas as anteriores condenações e a total indiferença do arguido.
Constata-se, pois, que estas condenações anteriores não tiveram qualquer efeito dissuasor sobre o arguido, revelando o mesmo uma personalidade desafiante e persistente.
Tudo isto e sem necessidade de outros considerandos, porque apesar das advertências resultantes das anteriores condenações, o mesmo continua a reincidir na prática de factos penalmente relevantes, demonstrando uma personalidade que não acata as regras do bem viver em sociedade, revelando que falharam os prognósticos de que não voltaria a delinquir.
Tudo a evidenciar, pois, as exigências de prevenção especial e que a sua socialização em liberdade não pode ser atingida.
O juízo contrário teria de se fundamentar em factos concretos que apontassem de forma clara na probabilidade forte de uma inflexão em termos de vida por banda do arguido, designadamente renegando a prática de actos ilícitos e essa factualidade, não resultou provada nos autos.
Em conclusão, em face da personalidade revelada pelo arguido expressa nos factos, o grau de ilicitude dos mesmos e os antecedentes criminais, não vemos como a suspensão da execução da pena possa no futuro evitar a repetição de tais comportamentos delituosos.
Neste quadro circunstancial, mesmo considerando a situação pessoal do arguido, entendemos que só a pena de prisão efectiva poderá assegurar o efeito essencial de prevenção geral e satisfazer a necessidade de socialização do arguido.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, o recurso terá de improceder.
Nestes termos improcedem, portanto, todas as pretensões constantes da motivação do recurso interposto pelo arguido O, confirmando-se consequentemente a sentença recorrida.
Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido O, ao abrigo do disposto nos artigos 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido O, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 11-07-2024
Fernando Pina
Maria José Cortes
Beatriz Marques Borges