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FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO BIOLÓGICO
Sumário
I - Os artigos 46.º, nº 2 do Dec. Lei nº 503/99, de 20-11, e 51.º, nº 4 do Dec. Lei nº 291/2007, de 21-08, referem a existência do direito de regresso “contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras” e “contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar”, sendo que o Fundo de Garantia Automóvel não se enquadra nem numa nem noutra das referências. II - O Fundo de Garantia Automóvel, respondendo enquanto garante, nos casos especificamente referidos na lei, não pode ser entendido como “responsável civil”, que é, em concreto, o causador do sinistro, e também não pode ser considerado civilmente responsável como as seguradoras, já que estas assumem perante o responsável civil a responsabilidade deste pelo ressarcimento dos danos provocados no exercício da condução de determinado veículo, o que não acontece com o FGA, que apenas garante o ressarcimento dos danos perante o lesado. III - Aliás, face ao teor dos preceitos citados, que referem o responsável civil como sendo contra quem pode ser exercido o direito de regresso, até as seguradoras da responsabilidade civil por acidentes de viação, são expressamente mencionadas, não vá surgir a dúvida se, mesmo estas e apesar do contrato de seguro, podem ser consideradas responsáveis civis. IV - Quem não é mencionado, é o Fundo de Garantia Automóvel, desde logo, porque nem é responsável civil, nem celebrou qualquer contrato com o civilmente responsável para assumir a responsabilidade em nome deste. V - Devem considerar-se como integrantes do dano biológico, diversas vertentes ou parâmetros, como o quantum doloris, o dano estético, o prejuízo de afirmação social e o prejuízo da saúde geral e da longevidade.
Texto Integral
Apelação 11004/19.0T8PRT.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa de condenação contra o Fundo de Garantia Automóvel, peticionando a condenação do réu a pagar-lhe uma indemnização no montante global de € 313.382,65, correspondente a danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do acidente de viação que descreve, bem como indemnização por danos futuros, cujo montante pede seja apurado em liquidação de sentença, tudo acrescido de juros calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Invocou para o efeito a ocorrência de um acidente de viação envolvendo um motociclo, por si conduzido e propriedade do Município ..., e um veículo ligeiro de passageiros de matrícula, marca e condutor desconhecidos, que se colocou em fuga, acidente, na sequência do qual sofreu danos, cujo ressarcimento pretende.
Uma vez citado, o réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) apresentou contestação, invocando a exceção da sua ilegitimidade material, face ao disposto no art. 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, por o acidente em causa configurar também um acidente de serviço, e concluindo pela procedência da exceção e julgamento da ação em conformidade com a prova que vier a produzir-se.
O Município ... veio formular pedido de condenação do réu FGA, a proceder ao reembolso de todas as quantias pagas pelo Município ... ao Autor na sequência do acidente de viação em serviço por este sofrido.
Também a Caixa Geral de Aposentações veio formular, contra o FGA, pedido de reembolso da importância necessária para suportar o pagamento das prestações por acidente em serviço atribuídas ao subscritor AA, aqui, autor, em consequência do acidente de viação e de serviço em discussão.
O FGA contestou os pedidos de reembolso.
Prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido do Autor e improcedentes os pedidos de reembolso do Município ... e da Caixa Geral de Aposentações.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram interpor recurso o interveniente principal Município ... e o réu FGA, tendo, ainda, o Autor interposto recurso subordinado.
Os recursos foram admitidos como apelações, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O apelante Município ... formulou as seguintes conclusões das suas alegações:
“A. Vem o presente recurso interposto da sentença datada de 13.07.2023, na qual o Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, e, em consequentemente:
a. Condenou o Recorrido ao pagamento da quantia global de € 128.188,65 (cento e vinte e oito mil, cento e oitenta oito e sessenta e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais ao Autor;
b. Absolveu o Recorrido Município ... dos pedidos formulados pelo aqui Recorrente Município ... e pela Interveniente Caixa Geral de Aposentações.
B. Entende o Recorrente que a sentença recorrida padece de erro de julgamento de Direito, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, e nos artigos 45.º e 46.º, ambos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, devendo, em virtude disso, ser revogada pelo Tribunal ad quem, com as legais consequências daí decorrentes.
C. A vexata quaestio que é necessário elucidar nos presentes autos prende-se em apurar se, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 51.º da Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o aqui Recorrente tem direito a ser reembolsado pelo Recorrido pelos montantes pagos ao Autor em consequência do acidente em serviço causado por responsável desconhecido.
D. Entendeu (erradamente) o Tribunal a quo que, face ao disposto nos artigos 45.º e 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, conjugado com o disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, 21 de agosto, o Recorrido FGA não é responsável pelo reembolso das quantias despendidas pela entidade patronal, in casu, o aqui Recorrente.
E. Ora, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (…) sendo certo que o intérprete não deve postergar o princípio geral da adequação da expressão do pensamento legislativo, contido no citado artigo 9.º nº 3 do CC”.
F. Assim, a letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, “desde logo, uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei”[7 Cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina Coimbra, 1990, pág. 182.]
G. A propósito do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, tem sido entendido pela jurisprudência dos Tribunais superiores que, a mesma, “deve ser interpretada não como excluindo em qualquer caso a responsabilidade do FGA pela indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais, abrangidos pela lei dos acidentes de trabalho, mas antes como delimitando essa responsabilidade do FGA”[8 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.12.2014, proferido no âmbito do processo n.º 3541/10.8TBGDM.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.].
H. O citado normativo legal deverá ser interpretado e aplicado, conjuntamente, com o disposto no artigo 49.º do mesmo diploma legal, o qual prevê que, quando o responsável seja desconhecido, o FGA tem a obrigação de garantir a satisfação das indemnizações por danos corporais e patrimoniais.
I. Compulsado o teor do n.º 1 do artigo 51.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, in fine, é expressamente referido que, caso o acidente seja também de trabalho ou de serviço, o Recorrido responde “por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência de seguro de acidentes de trabalho, caso em que FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente”.
J. Ou seja, é inequívoco que o Recorrido FGA responde, no âmbito de acidentes de serviços ou de trabalho por danos materiais e por danos corporais (que abrangem os danos não patrimoniais e patrimoniais) não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes (…), salvo inexistência de seguro de acidentes de trabalho, caso em que FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
K. Dito de outro modo, o Recorrido FGA só não seria responsável pelo reembolso das quantias pagas pela entidade patronal ao trabalhador sinistrado se, aquela entidade, tivesse transferido a sua responsabilidade pela reparação dos danos dos acidentes em serviço para uma entidade seguradora. O que não sucedeu in casu.
L. Ademais, sempre se refira que a parte final do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, vai ao encontro ao estabelecido no artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, o qual estabelece, no seu n.º 1, que, “os serviços e organismos não devem, em princípio, transferir a responsabilidade pela reparação dos acidentes em serviço prevista neste diploma para entidades seguradoras”.
M. Ainda a corroborar tal entendimento, note-se que o n.º 4 do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, determina que as entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
N. Deste modo, uma vez que, incumbe ao FGA garantir a satisfação de indemnizações por lesões quando o responsável civil não beneficie de seguro válido ou eficaz ou não seja conhecido, e, ainda, ao estabelecido nos n.ºs 1 e 4 do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto,
O. É mister concluir que o Recorrente Município ... tem o direito de o exigir ao Recorrido FGA o reembolso das quantias pagas ao Autor, a título de direito de regresso, em consequência do acidente em serviço causado por responsável desconhecido.
P. Pelas razões melhor densificados, conclui-se que a sentença sub judice, padece de erro de julgamento de Direito, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei 291/2007, e no artigo 45.º e 46.º do Decreto-Lei 503/99, devendo, em virtude disso, ser revogada pelo Tribunal ad quem, com todas as devidas e legais consequências dai decorrentes.
TERMOS EM QUE,
Deverá ser revogada a sentença recorrida nos termos expostos, com as legais consequências daí decorrentes, com o que será feita sã e costumeira, JUSTIÇA!”.
O Recorrido Fundo de Garantia Automóvel apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Por sua vez, o Fundo de Garantia Automóvel apresentou as suas alegações de recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“i. O montante indemnizatório atribuído a título do dano biológico/dano patrimonial futuro e a título de danos não patrimoniais foi excessivamente fixado pelo tribunal recorrido;
ii. O montante atribuído a título de dano biológico deve fixar-se em montante não superior a € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros);
iii. O montante atribuído a título de danos não patrimoniais deve fixar-se em montante não superior a € 20.000,00 (vinte mil euros);
iv. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º e 566.º, todos do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Muito doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente ser a sentença recorrida revogada, sendo substituída por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, tudo com as legais consequências.
Decidindo deste modo, farão V. Exas., aliás como sempre, um ato da mais elementar …JUSTIÇA!”.
A este recurso do FGA, respondeu o Autor, apresentando as suas contra-alegações que concluiu no sentido da improcedência do recurso do FGA.
Apresentou, o Autor, ainda, as suas alegações do recurso subordinado, com as seguintes conclusões:
“1. A sentença em análise é considerada bem fundamentada quanto à matéria de facto. No entanto, questiona-se a adequação, em relação à gravidade e extensão dos danos sofridos pelo Autor/Recorrente dos montantes indemnizatórios fixados pelo Tribunal de Primeira Instância, tanto a título de dano não patrimonial, incluindo o dano biológico, quanto ao dano biológico permanente (dimensão patrimonial - perda da capacidade de ganho).
2. Acautelou-se no presente recurso, também a necessidade de correção da Douta Sentença em relação à idade do Recorrente na data do sinistro.
3. Na douta Sentença recorrida, menciona-se erroneamente que o Autor/Recorrente tinha 47 anos na data do sinistro, quando, na realidade, ele tinha 44 anos na data do acidente.
4. Este equívoco tem implicações diretas na quantificação das indemnizações a fixar, tornando-se por isso essencial a sua correção, o que se requer.
5. O Recorrente concorda integralmente com a decisão da sentença recorrida, na parte que envolve indemnizações por danos patrimoniais, incluindo rendimentos perdidos, reembolso de danos à propriedade, despesas médicas, medicamentosas, protéticas e de deslocação que perfazem a quantia total de €11.530,65 (onze mil quinhentos e trinta euros e sessenta e cinco cêntimos).
6. É aceite que a lei não fornece uma definição de dano, mas estabelece os parâmetros para defini-lo, sendo um dos pressupostos da obrigação de indemnizar.
7. A obrigação de indemnizar visa a reparação integral do dano e evitar o enriquecimento injusto do lesado.
8. Na impossibilidade de se prever o dano futuro o valor da indemnização deve refletir o dano utilizando critérios de probabilidade e da experiência comum.
9. Salienta-se no presente recurso a pertinência de se compensar adequadamente a perda da capacidade de ganho do Recorrente, uma vez que está diretamente relacionada com o trabalho remunerado que realizava regularmente antes do acidente e cujo valor médio mensal se provou ser atualmente de € 600,00.
10. E, não sendo o Recorrente capaz de os realizar no futuro e consequentemente receber a remuneração correspondente, consequência das lesões sofridas no acidente, estamos diante de danos futuros previsíveis que devem ser levados em conta ao determinar o valor da indeminização a ser fixada, no âmbito do nº 2 do art.º 564 do CC.
11. Entende-se que o valor fixado pela sentença é inadequado e insuficiente. A sentença fixou a indemnização em €75.000, que representa menos de 24% do valor calculado €600,00 x 11 meses x 15 anos) = €99.000,00
12. Considerando o mesmo raciocínio, é entende-se aconselhável calcular o valor da indemnização até uma data posterior, pelo menos mais 20 anos. Essa projeção, baseada na experiência comum e resultaria na atribuição do valor de €132.000,00.
13. As limitações profissionais do Autor/Recorrente têm um impacto duradouro e negativo em suas perspetivas de vida e oportunidades profissionais, que não foram devidamente refletidas no cálculo da indemnização.
14. O Recorrente precisará de motivação e incentivo para realizar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento anterior, o que deve ser quantificado na indemnização.
15. O dano biológico visa compensar a privação de oportunidades profissionais futuras e o esforço adicional necessário, este dano deve acrescer ao valor que se provou o Recorrente deixou de auferir devido a estar impedido de realizar trabalho adicional- remunerados.
16. Assim a avaliação do dano biológico deve considerar todas as circunstâncias individuais, incluindo a privação de oportunidades futuras e o esforço adicional necessário aliás de acordo com a jurisprudência do STJ
17. Pelo que para se assegurar que a indemnização seja justa e apropriada, deve ser levado em conta as variáveis pessoais do caso e a idade do Autor 44 anos, idade média de vida para homens (77 anos), o salário anual de €18.668,86, que o Autor/Recorrente auferia à data do acidente e défice funcional genérico permanente de 10%.
18. Portanto, o cálculo seria: €18.668,86 x 0,10 x 33 (77 - 44), resultando em €61.604,24 que reduzido por antecipação perfaz a quantia de €50.000,00.
19. Ao ser somado aos €132.000,00, obtém-se um total de €173.000,00 (€132.000,00 + €50.000,00).
20. Adicionalmente devem ser somadas as quantias fixadas pelo tribunal no valor total de €11.530,65 (onze mil quinhentos e trinta euros e sessenta e cinco cêntimos) que devem ser mantidas.
21. Assim, o valor adequado que o valor total da indemnização, levando em consideração todos os cálculos e premissas apresentados, seria de €184.530,65 (€11.530,65 + €173.000,00).
22. Mesmo se considerarmos hipoteticamente o valor fixado inicialmente de €75.000,00 como justo pelo trabalho remunerado que o Recorrente deixou de poder realizar, o que não se aceita, a indemnização ainda assim seria inadequada.
23. Nesse caso, o valor total seria de €136.530,65 (€75.000,00 + €50.000,00 + €11.530,65).
24. Portanto, com base no raciocínio apresentado acima, uma indemnização de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros) calculada equitativamente seria justa e apropriada para compensar adequadamente o dano biológico na dimensão patrimonial - perda da capacidade de ganho.
25. Concluindo, o raciocínio apresentado acima e os cálculos demonstram de forma clara a inadequação do valor total fixado de €88.188,65 (oitenta e oito mil, centos oitenta e oito euros, sessenta e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais.
26. Entende-se que sua substituição por outro no valor total de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros) é justa e apropriada
27. Ora, no que diz respeito aos danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico), o ora Recorrente, evidencia no presente recurso, que o valor da indemnização fixada € 40.000,00 é manifestamente insuficiente dada a extensão e multiplicidade das lesões físicas e psicológicas e seu impacto negativo nas capacidades pessoais e na qualidade de vida do Recorrente.
28. Com efeito, no valor da indemnização a atribuir o julgador deve considerar a importância do impacto das sequelas físicas e psicológicas nas atividades diárias do Recorrente, nas relações pessoais e nas atividades de lazer.
29. A decisão não pode ser alheia, ao facto de o Recorrente ter passado a enfrentar desafios emocionais e psicológicos consideráveis, incluindo irritabilidade, impaciência, revolta, ansiedade, agressividade, insônia e dificuldades no sono.
30. Nem desvirtuar as circunstâncias de que, em consequência do acidente, o Recorrente enfrenta uma realidade de isolamento, separação do cônjuge, distanciamento de seus filhos e solidão profunda, circunstancialismo que tem um impacto emocional negativo permanente em sua vida.
31. O mesmo raciocínio se impõe relativamente, à quantificação das sequelas físicas de que o Recorrente ficou a padecer, onde se inclui dores persistentes, problemas gastrointestinais com dejeções frequentes de difícil controlo e dificuldades de âmbito sexual, que se demonstraram afetam significativamente e gravemente a sua qualidade de vida, tanto no âmbito pessoal como nas atividades diárias.
32. Importa também salientar, que esta questão de trato gastrointestinal com dejeções frequentes e de difícil controlo, tem um impacto negativo permanente na atividade sexual do Recorrente, uma vez que a limita e restringe consideravelmente, impedindo-o notoriamente de usufruir de uma vida sexual normal e proporcionada com a sua idade.
33. Apesar de se ter verificado prejuízo sexual decorrente das lesões sofridas, pelo Recorrente, este não foi levado em linha de conta na Douta Decisão Recorrida aquando da fixação da indemnização por danos não patrimoniais, o que se impunha.
34. Ora, tal prejuízo deve ser considerado e valorado para efeito de cálculo de indemnização a atribuir por dano não patrimonial, tendo em conta que o ora recorrente tinha à data do acidente apenas 44 anos de idade.
35. Em modo de conclusão, sempre se dirá que, a diversidade, extensão e natureza das lesões físicas e psicológicas, bem como pelo seu impacto fortemente negativo e irreversível nas aptidões pessoais e no futuro padrão de vida do recorrente, que, se evidenciam de uma notável gravidade objetiva, devem ser convenientemente quantificadas e valoradas pelo Tribunal na indemnização a fixar que entendemos não deve ser inferior a €60.000,00 (sessenta mil euros).
36. Entende-se que o Tribunal de Primeira instância ao proferir decisão nos termos constantes da Douta Sentença Recorrida, violou o disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º e 566.º, todos do Código Civil.
37. Por tudo isto, requer-se seja a Douta Sentença Recorrida Revogada, sendo em consequência substituída por outra que atribua ao Recorrente:
a) A título de danos patrimoniais a quantia de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros).
b) A título de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico) a quantia de € 60.000,00. (sessenta mil euros)
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente Suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente ser a sentença recorrida revogada, e substituída por outra que contemple as conclusões supra apresentadas, no mais mantendo-se a mesma, com as legais consequências.”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos Apelantes, as questões a apreciar são as seguintes:
- Se deve ser alterada a análise jurídica que foi feita na sentença recorrida, por errada aplicação das regras de direito aplicáveis ao caso, relativamente ao pedido de reembolso formulado pelo interveniente Município ..., concluindo-se pela total procedência do pedido;
- Se deve ser alterado o valor da indemnização fixada e devida ao autor, quer quanto ao dano biológico (na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho), quer quanto ao dano não patrimonial.
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2. Fundamentos de facto
Os apelantes não impugnaram a matéria de facto dada como provada e não provada, pelo que se consideram assentes os seguintes factos:
1. O sinistro
1 – No dia 26 de maio de 2014, pelas 8 horas e 5 minutos, o autor, circulava na rua..., sentido ... – ... (W-E), conduzindo o motociclo matrícula ..-LC-.., pela hemifaixa direita, atento o suprarreferido sentido de marcha, imprimindo ao motociclo uma velocidade de cerca de 30 Km/hora.
2 – Circulava num troço em que a faixa de rodagem da rua... desenvolve-se numa reta, permitindo o trânsito nos dois sentidos (opostos), estando o piso alcatroado seco e em bom estado de conservação.
3 – No mesmo dia e local, circulava pela rua... um veículo de cor escura, de matrícula, marca e condutor desconhecidos, a uma velocidade de cerca de 70K/h.
4 – O referido veículo desconhecido circulava no sentido (E-W) oposto ao do autor.
5 – O veículo desconhecido invadiu a hemifaixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadindo, assim, a hemifaixa por onde circulava o autor, obstruindo a sua trajetória.
6 – O autor travou, no intuito de evitar o embate, perdeu o controlo do motociclo LC e caiu na faixa de rodagem.
7 – O autor foi projetado cerca de 30 metros, ficando caído no pavimento.
8 – O condutor da viatura causadora do acidente abandonou o local de imediato, não se identificando nem prestando assistência ao autor.
2. Sequelas imediatas e tratamentos, consultas e exames
9 – Em resultado da queda e dos tratamentos, consultas e exames a que foi submetido, o autor revela/sofreu:
a) A data da consolidação médico-legal das lesões a 23/08/2016;
b) Período de Défice Funcional Temporário Total fixável em 15 dias;
c) Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 798 dias;
d) Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável num período total de 813 dias;
e) Quantum Doloris fixável no grau 5/7;
f) Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 10 pontos;
g) As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis do exercício da atividade profissional habitual do autor, mas implicam esforços suplementares;
h) Dano Estético Permanente fixável no grau 2/7;
i) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7;
j) Repercussão Permanente na Atividade Sexual fixável no grau 2/7.
10 – Em resultado da queda, o autor sofreu as seguintes lesões e afetações:
a) Escoriações na região epigástrica em ambos os joelhos;
b) Ferida no antebraço direito;
c) Fratura de arcos costais à direita;
d) Fratura de estiloide cubital sem desvio;
e) Traumatismo do fígado;
f) Lacerações hepáticas no lobo direito;
g) Extenso hematoma à volta do angulo hepático do colon que se prolonga para o colon direito, com sinais de hemorragia ativa na fase arterial (lesão da artéria cólica direita);
h) Traumatismo membro superior direito;
i) Traumatismo da vesicula biliar;
j) Hematoma retroperitoneal;
k) Hemoperitoneu;
l) Traumatismo torácico direito;
m) Traumatismo cranioencefálico;
n) Traumatismo do punho direito;
o) Hematúria;
p) Trauma violento do punho direito, do qual resultou rutura ligamentar;
q) Trauma do joelho esquerdo do qual resultou contusão óssea e distensão ligamentar;
r) Fratura achatamento de D6 e D7;
s) Protusão discal de C5 e C6;
t) Entorse cervical com fratura das vertebras cervicais e parestesiais em C7 /C8, esquerda para radiculospatias;
u) Dorsalgia joelho esquerdo;
v) Depressão;
w) Dores fortes.
11 – Para cura das lesões e afetações sofridas, o autor foi submetido aos seguintes tratamentos, consultas e exames:
a) após a queda, o foi conduzido de ambulância para o Hospital ... no Porto, onde esteve internado entre os dias 26 de maio de 2014, inclusive, e 2 de junho de 2014, inclusive;
b) no Hospital ...:
i) radiografia torácica;
ii) radiografia de grelha costal;
iii) radiografia do membro superior;
iv) ecografia abdominal;
v) TC abdominal;
vi) RM ao abdómen;
vii) cirurgia abdominal, na qual foi operado ao fígado com remoção da vesicula biliar foi submetido a sutura de um ferimento localizado na face posterior do antebraço direito;
viii) colocação de 47 agrafos na parede abdominal;
ix) internamento durante 8 dias;
x) consultas de cirurgia geral;
c) repouso no domicílio durante mais uma semana;
d) limitação na realização de esforços durante um mês;
e) no Hospital 1...:
i) RM do joelho esquerdo, a 17 de junho de 2014;
ii) radiografia do punho direito e do ombro esquerdo, a 17 de junho de 2014;
iii) RM da coluna cervical e dorsal, a 29 de setembro de 2014;
iv) RX da coluna cervical, a 28 de abril de 2015;
v) Eletromiografia dos membros superiores, a 30 de junho de 2015;
vi) Ecografia do ombro esquerdo, a 30 de junho de 2015;
vii) RM à coluna cervical, a 27 de novembro de 2015;
viii) acompanhamento em consulta de Psiquiatria desde setembro de 2014, por quadro depressivo;
ix) tratamento medicamentoso antidepressivo;
x) consulta de Dermatologia, a 01-09-2014;
xi) consultas regulares de Dermatologista, desde novembro de 2015;
xii) consultas de Gastroenterologia, a 10-09-2014, 21-01-2015, 27-05-2015, 22-07-2015 e 25-11-2015;
xiii) estudo radiológico da coluna cervical, a 28-04-2015;
xiv) sessões de fisioterapia;
f) no Hospital 2... (...):
i) Consulta de Neurocirurgia, a 28-01-2016;
ii) Consulta de Neurocirurgia, a 07-03-2016;
iii) RM cranioencefálica, a 02-04-2016;
iv) ecografia abdominal, a 07-07-2016;
v) acompanhamento em consulta de Psiquiatria desde junho de 2016, por quadro depressivo;
vi) consulta de Gastroenterologia, a 25-11-2015.
12 – Os tratamentos de medicina física e de reabilitação foram inicialmente diários, passando a ser efetuados três vezes por semana, tendo terminado em junho de 2016.
13 – Os exames e tratamentos realizados pelo autor foram dolorosos, penosos e desagradáveis, provocando-lhe dores físicas e psicológica.
3. Sequelas físicas e psíquicas permanentes
14 – Em resultado da queda, o autor:
a) apresenta contractura paravertebral marcada, bilateral, a nível cervical e dorsal superior, estendendo-se ao músculo trapézio esquerdo, referindo dor à palpação;
b) experimenta dificuldade em suster movimentos contra resistência no membro superior esquerdo;
c) ostenta cicatriz xifopúbica com 30 por 2,5 cm de maiores dimensões, nacarada, com porções rosadas, bem visível mesmo a 3 m, com pequenas tumefações moles pericentimétricas na porção superior; dor ligeira referida à palpação abdominal, de modo difuso, sem sinais de irritação peritoneal;
d) ostenta cicatriz ténue no dorso do terço inferior do antebraço superior direito, oculta por pelos, pouco visível mesmo a 50 cm, de maior eixo não inferior a 4 cm;
e) experimenta dor no ombro e no braço esquerdos à elevação do ombro;
f) realiza, na flexão ativa do polegar da mão esquerda, esboço de flexão involuntária do indicador;
g) experimenta dor no bordo inferior da rótula do membro inferior esquerdo, vertente medial, e na região perirotuliana inferior medial, à flexão do joelho (no final do arco).
15 – O autor necessitará no futuro de ajuda medicamentosa análgica.
16 – Após o acidente, em resultado deste, e até à data da consolidação médico-legal das lesões, o autor:
a) sentia-se diminuído, designadamente em relação aos colegas, uma vez que foi desarmado desde a queda;
b) revelava irritabilidade fácil;
c) mostrava-se mais impaciente;
d) sentia-se revoltado, infeliz, ansioso, agressivo, desgostoso e triste;
e) experimentava dificuldade em adormecer e manter o sono regular durante toda a noite.
17 – Após o acidente, em resultado deste, o autor:
a) sente receio de conduzir motociclos, o que lhe provoca tristeza;
b) sente dificuldade em conduzir a sua viatura automóvel, devido às dores que sente;
c) sente vergonha da cicatriz do abdómen.
4. Sequelas profissionais
18 – O autor é agente da Polícia Municipal ... com a categoria profissional de “Agente Principal”.
19 – No dia 26 de maio de 2014, o autor encontrava-se escalado para executar a regularização de trânsito, com início na Rua ... no Porto, no período compreendido entre as 8 e as 12 horas.
20 – No momento da queda referida, o autor deslocava-se das instalações da Polícia Municipal para o local onde deveria executar a referida regularização de trânsito.
21 – Por despacho do Comandante da Polícia Municipal ... de 9 de junho de 2015, o acidente de viação sofrido pelo autor foi qualificado por esta entidade como ocorrido em serviço.
22 – O autor não mais poderá voltar a exercer as funções de fiscalização de trânsito, fiscalização estacionamento, deslocação aos locais onde era chamado para atender a reclamações dos munícipes; regularização de trânsito em diversas zonas da cidade quando lhe era ordenado.
23 – Em resultado das lesões sofridas, o autor trabalha numa secretaria no interior das instalações da sua força policial, sentindo-se insatisfeito profissionalmente.
24 – A alteração das funções desempenhadas pelo autor implicou que deixasse de receber os valores correspondentes à prestação de serviços suplementares no exterior, que auferia com regularidade antes do acidente.
25 – Face às lesões de que padece, o autor verá dificultada a futura progressão na carreira.
26 – Face às lesões de que padece, o autor está impossibilitado de realizar trabalho extraordinário no exterior, no que poderia auferir atualmente uma quantia mensal não inferior a € 600,00.
27 – Até à data do sinistro, o autor realizava serviços com a natureza do referido no ponto 26 – factos provados –, auferindo pelos mesmos a remuneração mensal de cerca de € 460,00.
5. Sequelas pessoais e familiares
28 – O autor nasceu em ../../1969.
29 – Antes da queda, o autor:
a) era uma pessoa alegre e calma;
b) gostava de sair, de se divertir e de conviver com familiares e amigos.
30 – O estado do autor referido no ponto 16 – factos provados – contribuiu para a separação do seu cônjuge à data.
31 – O autor saiu do lar conjugal, afastando-se dos seus dois filhos, o que lhe traz sofrimento.
32 – Atualmente, o autor reside sozinho, o que lhe traz tristeza.
33 – O autor deixou de correr e praticar desporto em ginásio.
34 – O autor possuía, na data do acidente, o motociclo matrícula de ..-..-DG, marca SUZUKI, com o qual realizava os seus passeios e se fazia transportar a concentrações de motociclos.
35 – O autor vendeu o motociclo, por não mais o conseguir conduzir, não mais usufruindo do prazer que tinha na sua condução.
6. Danos patrimoniais
36 – Desde o dia 26 de maio de 2014 até ao dia em que se apresentou ao serviço, 25 de agosto de 2016, o autor deixou de poder auferir quantia mensal não inferior a € 400,00, pela prestação de serviço exterior suplementar.
37 – Em resultado da queda, ficaram destruídos os seguintes objetos que tinha consigo:
Luvas proteção com o valor de € 60,00
Telemóvel com o valor de € 250,00
Relógio de pulso SWATCH com o valor de € 120,00
Num total de € 430,00.
38 – O autor realizou cerca de 300 deslocações para efetuar tratamentos, percorrendo em cada uma delas cerca de 18 km, ida e volta.
39 – O autor despendeu a quantia de € 408,00 com a realização de um exame no INMLCF.
7. Pedido do Município ...
40 – No dia do acidente, o autor exercia as funções de agente principal da PSP e prestava serviço ativo na Camara Municipal ...; encontrava-se a trabalhar desempenhando as suas regulares funções por ordem, no interesse e com autorização da sua entidade patronal.
41 – À data da queda referida, o Município ... (no qual se insere a Polícia Municipal ...) não detinha qualquer seguro por acidentes em serviço.
42 – O autor foi considerado curado das lesões sofridas em virtude do acidente em serviço, com uma Incapacidade Permanente Parcial2 (IPP) fixada em 26,49%, no dia 21 de novembro de 2016.
43 – Entre o dia 26 de maio de 2014 (dia do acidente) e o dia 23 de agosto de 2016 (dia anterior ao regresso ao serviço por parte do autor), o Município ... liquidou ao autor, a título de remunerações e abonos respeitantes à relação laboral existente:
a) no ano de 2014:
i) mês de maio, o valor de € 2193,68
ii) mês de junho, o valor de € 3900,18
iii) mês de julho, o valor de € 2355,89
iv) mês de agosto, o valor de € 2229,34
v) mês de setembro, o valor de € 2216,53
vi) mês de outubro, o valor de € 2166,19
vii) mês de novembro, o valor de € 2158,09
viii) mês de dezembro, o valor de € 2145,28
num total de € 19365,18.
b) no ano de 2015:
i) mês de janeiro, o valor de € 2549,85
ii) mês de fevereiro, o valor de € 2221,53
iii) mês de março, o valor de € 2174,46
iv) mês de abril, o valor de € 2174,56
v) mês de maio, o valor de € 2170,29
vi) mês de junho, o valor de € 3705,02
vii) mês de julho, o valor de € 2166,02
viii) mês de agosto, o valor de € 2178,83
ix) mês de setembro, o valor de € 2170,29
x) mês de outubro, o valor de € 2174,56
xi) mês de novembro, o valor de € 2600,81
xii) mês de dezembro, o valor de € 2170,29
num total de € 28456,51
c) no ano de 2016:
i) mês de janeiro, o valor de € 2184,23
ii) mês de fevereiro, o valor de € 2179,96
iii) mês de março, o valor de € 2177,72
iv) mês de abril, o valor de € 2203,11
v) mês de maio, o valor de € 2194,57
vi) mês de junho, o valor de € 3711,96
vii) mês de julho, o valor de € 2209,18
viii) mês de agosto, o valor de € 2712,18
num total de € 19572,91.
44 – Entre o dia 26 de maio de 2014 e o dia 23 de agosto de 2016, o Município ... suportou encargos com prestações à Caixa Geral de Aposentações, respeitantes à relação laboral existente com o autor:
i) ano de 2014, o valor de € 4091,18
ii) ano de 2015, o valor de € 6240,71
iii) ano de 2016, o valor de € 4409,26
num total de € 14741,15.
45 – Entre o dia 26 de maio de 2014 e o dia 23 de agosto de 2016, o Município ... liquidou ao autor, a título de despesas com o tratamento das lesões sofridas em consequência da queda referida:
i) ano de 2015, o valor de € 426,25
ii) ano de 2016, o valor de € 741,01
num total de € 1167,26.
8. Pedido da Caixa Geral de Aposentações
46 – O autor é subscritor da Caixa Geral de Aposentações, correspondendo-lhe o nº ..., estando inscrito como agente da Polícia de Segurança Pública, exercendo funções na Polícia Municipal ....
47 – Por decisão proferida em 9 de agosto de 2018 pela Direção da Caixa Geral de Aposentações, foi fixada ao autor uma pensão anual vitalícia por acidente em serviço no valor de € 3 056,10, conforme documento junto a fls. 284, que aqui se dá por transcrito.
48 – O abono da pensão referida foi suspenso, com fundamento na circunstância de as prestações por incapacidade permanente resultante de acidente ou doença profissional, não são cumuláveis com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente na capacidade geral de ganho do trabalhador, conforme documento junto a fls. 284, que aqui se dá por transcrito.
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E consideram-se como não provados os factos seguintes:
Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados. Resultaram, assim, não provados os seguintes factos:
49 – As sequelas físicas e psíquicas permanentes sofridas pelo autor têm-se agravado.
50 – É provável agravamento futuro das lesões de que o autor padece, consequência do acidente.
51 – Após o acidente, em resultado deste, o autor:
a) tem ataques de pânico sempre que tenta andar de mota;
b) ficou impedido de conduzir motociclos;
c) sem prejuízo do que resultou provado, sente fortes dores na coluna, pescoço zona lombar e abdominal pois frequentemente assolado por analgesias, e que se tem vindo a agravar;
d) sente dores aquando das alterações climatéricas;
e) experimenta dificuldade em adormecer e manter o sono regular durante toda a noite;
f) tem pesadelos;
g) sem prejuízo do que resultou provado, sente permanente nervosismo, irritabilidade, híper vigilância, fadiga e perda de energia, diminuição de capacidade de concentração, humor depressivo e perda de autoconfiança.
52 – Após o acidente, em resultado deste, o autor:
a) tinha diarreia frequentemente, situação que se manteve cerca de 3 anos;
b) tem frequentemente episódios de incontinência fecal líquida;
c) padece de sofrimento físico e psicológico pelo facto de não controlar os esfíncteres e ter regularmente incontinência fecal líquida;
d) sempre que necessita de se deslocar a um evento social abstêm-se de se alimentar no intuito de controlar as crises de analgesias e a incontinência fecal.
53 – O facto de sofrer de dificuldade no controlo de esfíncteres causada pelo acidente, apresentando episódios de incontinência fecal líquida regular, obriga o autor a exercer as suas funções profissionais perto de uma casa de banho.
54 – Pela mesma razão, o autor adotou uma dieta rígida, que lhe á penosa.
55 – A incontinência fecal causada pelo acidente provocou grande inibição sexual junto da sua mulher.
56 – Fruto da incontinência fecal causada pelo acidente sofrida pelo autor, a sua mulher perdeu o interesse sexual e evitava a aproximação íntima ao marido.
57 – A alteração da sua vida íntima, provocada pela incontinência fecal causada pelo acidente, deteriorou a sua vida conjugal, provocando discussões contantes e mau estar entre o casal.
58 – A incontinência fecal causada pelo acidente levou à separação conjugal.
59 – Por causa do acidente, o autor necessitará no futuro de consultas e tratamentos de medicina física e de reabilitação, fisiatria, ortopedia, gastroenterologia e psiquiatria.
60 – Antes da queda, o autor não sofria de qualquer limitação de ordem física.
61 – As lesões sofridas são impeditivas da realização de musculação e de corrida.
62 – O autor pesava 81 kg antes do acidente, pesando atualmente 93 Kg, por causa da falta de atividade física.
63 – O autor deixou de poder viajar com regularidade, o que lhe dava uma enorme satisfação.
64 – O autor evita e recusa convites para convívios sociais, almoços, lanches e jantares, desde a data do acidente, a restaurantes, residências de amigos, tendo, por isso, desde essa altura uma vida isolada e infeliz.
65 – O autor tem uma esperança média de vida 80 anos.
66 – Em resultado da queda, o autor perdeu um fio de ouro no valor de € 450,00.
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3. Decisão de direito
3.1. Posto isto, apreciemos, em primeiro lugar, o recurso interposto pelo interveniente principal Município ....
Entende o Apelante que a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, e nos artigos 45.º e 46.º, ambos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.
Consta da sentença recorrida, a este propósito, o seguinte:
“6. Pedido do Município ...
Por força do disposto no n.º 1 do art. 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro – aprova o novo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública –, os organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no mesmo diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas. Esclarece o n.º 2 do mesmo artigo que o direito de regresso abrange, nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho.
Esta norma concede à entidade patronal o direito de regresso contra os efetivos responsáveis pelo acidente ou pelo ressarcimento dos danos dele emergentes. É esta a sua ratio. Sendo vários os responsáveis pelo pagamento de uma prestação com um efeito ressarcitório – a entidade patronal, o agente causador e, ou, uma seguradora –, imposta por institutos jurídicos distintos, é estabelecida internamente uma hierarquia de assunção do encargo. Isto significa que, antes de se poder afirmar que entidade patronal tem um direito de regresso, ter-se-á de pode afirmar que o putativo obrigado responde pelo acidente.
A responsabilidade do Fundo encontra-se limitada pelas normas enunciadas no art. 51.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto. Reza o n.º 1 deste artigo, no que agora importa, que, “caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde (…), relativamente ao dano corporal, pelos (…) danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes (…), salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente”. Desta norma parece resultar, no que para o pedido do Município ... releva, que o FGA só responde pelos “danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação” dos acidentes de serviço, “incumbindo (…) ao empregador [no caso] (…) as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes (…) de serviço”. E se o FGA não responde pelos danos, contra ele não pode existir direito de regresso – que apenas existe entre os diferentes responsáveis. O mesmo é dizer que FGA não responde pelos abonos prestados pelo empregador, enquanto danos patrimoniais resultantes de lesão corporal, precisamente por força da lei específica de acidentes de serviço.
A entidade patronal pública assume aqui uma obrigação própria, que lhe é deferida por lei. Tendo a vítima trabalhadora sobre ela o correspondente direito a uma prestação, poder-se-ia criar aqui uma aparente colisão de direitos, se se admitisse um direito de regresso do empregador contra o Fundo e se, adquirindo este o referido direito da vítima por sub-rogação (art. 54.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto), o pudesse exercer contra a entidade patronal – que é legalmente responsável pelo pagamento destas quantias com escopo ressarcitório, contrariamente ao FGA, que é um mero garante; sobre a natureza de mero garante do fundo, que só intervém quando mais ninguém intervier no ressarcimento da vítima, cfr. o Ac. do TRC de 09-11-2021 (230/20.9T8PMS.C1).
Não vale aqui dizer que estamos perante a ressalva prevista na parte final do n.º 1 do art. 51.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, pelo que o FGA responde pelas quantias abonadas pelo Município ..., por não serem “prestações devidas a título de invalidez permanente”. A inexistência de seguro, neste caso, é caucionada pela norma vertida no art. 45.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, a qual revela que o legislador pretendeu atribuir à entidade patronal (pública) a mesma função (de proteção da vítima) desempenhada pela seguradora laboral (e, no limite, do próprio Fundo). Ou seja, não estamos materialmente perante um caso de inexistência de uma entidade que intervenha em proteção da vítima (que justifica a intervenção do FGA), mas sim perante um caso em que essa entidade é a entidade patronal pública – não se justificando, pois, o chamamento subsidiário garantístico do Fundo.
No mesmo sentido, resulta da aplicação articulada dos n.ºs 1 e 4 do art. 51.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto – notando-se que este último número se dirige aos “pagamentos previstos nos números anteriores”, a não apenas no número anterior –, que apenas pode a entidade patronal que satisfaça uma prestação que afaste ou limite o dano de perda de rendimentos exercer direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente – aqui se incluindo o Fundo, conforme defendido no Ac. do TRP de 16-12-2015 (proc. 21/14.6TBSTS-A.P1 – ECLI:PT:TRP:2015:21.14.6TBSTS.A.P1.F5). Na economia destas normas, deve entender-se por “responsável civil” o causador do sinistro, apenas se justificando a consagração de tais normas neste capítulo se tiverem o sentido apontado (de efetiva exclusão da responsabilidade do Fundo no ressarcimento de tais quantias), sob pena de serem absolutamente desnecessárias – se apenas “dissessem” que a vítima não pode pedir uma indemnização por um dano que não teve (por ter a remuneração sido compensada com uma prestação da entidade patronal por acidente em serviço).
Importa notar que o n.º 1 do art. 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, faz expressa referência ao “civilmente responsável pelo acidente” – e não, por exemplo, ao obrigado ao ressarcimento dos danos. Ora, se uma seguradora pode ser tida como tal – tomando o legislador, no entanto, o cuidado de a mencionar expressamente nesta norma –, já o Fundo não é, à luz da mesma lei, tido como responsável pelo sinistro – ainda que possa responder pelo ressarcimento de danos. Responsável pelo acidente (causador) é o terceiro cujo “anonimato” justifica, precisamente, a intervenção do Fundo – veja-se a distinção legal entre o Fundo (garante da indemnização) e o responsável evidenciada no art. 49.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto. Repisa-se: a extensão teleológica deste conceito apenas poderá abranger uma seguradora, sendo que o legislador, até porque também quanto a esta se podem levantar dúvidas interpretativas, teve o cuidado de a referir expressamente no n.º 1 do art. 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro. O mesmo já não ocorre com o Fundo.
Em suma, o Fundo de Garantia automóvel não é responsável pelo reembolso ao Município ... das prestações por este efetivamente realizadas, inexistindo aqui direito de regresso do segundo contra o primeiro. (…)”.
Procedemos, aqui, à transcrição da decisão proferida pelo tribunal recorrido, quanto à situação em causa, por entendermos que nada há a apontar-lhe.
Senão, vejamos:
O recurso interposto pelo Município ..., entidade empregadora do autor, está relacionado com a interpretação do art. 51.º do D.L. 291/2007, de 21 de agosto.
No caso, o Fundo de Garantia Automóvel foi chamado a assumir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, pelo facto de não ter sido possível identificar o veículo automóvel que colidiu com o motociclo do autor e, desse modo, lhe causou as lesões que sofreu.
A intervenção do FGA encontra-se prevista nos artigos 47.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Nos termos do nº 1, do art. 47.º, o FGA garante, nos termos definidos nos preceitos seguintes, a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Nos termos do art. 48.º, nº 1, por sua vez, essa responsabilidade compreende as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório, o veículo tenha estacionamento habitual em Portugal, ou seja matriculado em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros.
Assim, tendo o acidente ocorrido em Portugal e sendo desconhecido o veículo automóvel causador do acidente, não existem dúvidas de que cabe ao Fundo de Garantia Automóvel assegurar a indemnização do lesado.
O âmbito material da garantia de responsabilidade a assumir pelo FGA encontra-se definido no artigo 49.º do Dec. Lei 291/2007.
Segundo este preceito, e no que para o caso interessa, quando o responsável pelos danos é desconhecido, o Fundo de Garantia Automóvel garante, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por danos corporais; e por danos materiais, neste caso, quando o Fundo deva satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, considerando-se danos corporais significativos, a lesão corporal que determine, designadamente, internamento hospitalar igual ou superior a sete dias, ou incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias, ou incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15%.
Apesar do que resulta dos preceitos citados, o já referido artigo 51.º do mesmo diploma legal, estabelece limites especiais à responsabilidade do Fundo, que encontram justificação na função de mero garante do Fundo e visam evitar que a garantia proporcionada por este se cumule com outras vias à disposição do lesado para obter o ressarcimento efetivo dos seus danos.
Dispõe o referido artigo 51.º, o seguinte:
1- Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
2- Se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente.
3- Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de proteção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.
4- As entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
5- O lesado pelo acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º não pode cumular as indemnizações a que tenha direito a título de responsabilidade civil automóvel e de beneficiário de prestações indemnizatórias ao abrigo de seguro de pessoas transportadas.
(…)
Ora, o autor pretende ser ressarcido dos danos que sofreu em consequência de um acidente que foi simultaneamente acidente de viação e de serviço.
Por via disso, uma parte dos danos sofridos pelo autor, foi ressarcida pelo Município ..., sua entidade empregadora.
Invoca o recorrente Município ... que nos termos do artigo 46.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 503/99, 20 de novembro (que instituiu o Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública), é previsto que “Os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas”.
Acrescentando o n.º 2 do artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, que o direito de regresso abrange, nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho.
Entende, assim, que é inequívoco que assiste à entidade patronal o direito de regresso contra os efetivos responsáveis pelo acidente ou pelo ressarcimento dos danos dele emergentes, o que resulta também do disposto no nº 4, do art. 51.º, do Dec. Lei nº 291/2007, de 21-08.
Mas, não é bem assim.
Efetivamente, os preceitos citados (art. 46.º, nº 2 do Dec. Lei nº 503/99 e art. 51.º, nº 4 do Dec. Lei nº 291/2007) referem a existência do direito de regresso “contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras” e “contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar”, sendo que o Fundo de Garantia Automóvel não se enquadra nem numa nem noutra das referências.
O Fundo de Garantia Automóvel, respondendo enquanto garante, nos casos especificamente referidos, não pode ser entendido como “responsável civil”, que é, em concreto, o causador do sinistro.
E também não pode ser considerado civilmente responsável como as seguradoras, já que estas assumem perante o responsável civil a responsabilidade deste pelo ressarcimento dos danos provocados no exercício da condução de determinado veículo, o que não acontece com o FGA, que apenas garante o ressarcimento dos danos perante o lesado.
Aliás, face ao teor dos preceitos citados, que referem o responsável civil como sendo contra quem pode ser exercido o direito de regresso, até as seguradoras da responsabilidade civil por acidentes de viação, são expressamente mencionadas, não vá surgir a dúvida se, mesmo estas e apesar do contrato de seguro, podem ser consideradas responsáveis civis.
Quem não é mencionado, é o Fundo de Garantia Automóvel, desde logo, porque nem é responsável civil, nem celebrou qualquer contrato com o civilmente responsável para assumir a responsabilidade em nome deste.
Assim, da conjugação dos arts. 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, 20 de novembro (que instituiu o Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública) e 51.º do Dec. Lei 291/2007, de 21-08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) resulta que o interveniente Município ... não tem direito de regresso contra o Fundo de Garantia Automóvel, conforme corretamente foi decidido pelo Mmo. Juiz a quo.
*
3.2. Recurso do FGA e recurso subordinado do Autor
Tanto o Fundo de Garantia Automóvel, como o Autor, este, no seu recurso subordinado, vieram recorrer dos valores da indemnização atribuída a título do dano biológico (dimensão patrimonial pela perda da capacidade de ganho) e de danos não patrimoniais, entendendo o primeiro que pecam por excesso e o segundo que se mostram baixos, tendo em conta os danos sofridos.
Como resulta da matéria de facto provada, o autor ficou definitivamente afetado na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 10, numa escala até 100.
Só este facto já se afigura suficiente para que se deva concluir pela perda da capacidade de ganho, nem que seja apenas pelo maior esforço que o autor terá que despender para realizar as mesmas tarefas que antes realizava, ainda que não tivesse resultado provada qualquer específica perda definitiva da capacidade de ganho, o que, no caso, contudo, aconteceu.
Como se diz na sentença recorrida, o dano biológico constitui uma capitis deminutio relativamente a toda a dimensão humana do lesado, logo também em relação a uma das dimensões mais relevantes de qualquer pessoa adulta: a atividade laboral.
Assim, decidiu o tribunal recorrido a este respeito que tratando-se, como se trata, de um dano futuro – mais do que uma simples perda de chance –, justifica-se e impõe-se o recurso à equidade (art. 566.º, n.º 3, do Cód. Civil), informada por critérios de verosimilhança e de probabilidade, considerando as balizas dadas por provadas – como as habilitações do lesado, a natureza da atividade laboral em causa (trabalho extraordinário exterior, que tende a decrescer com a idade), a remuneração normal dessa atividade (atualmente não inferior a € 600,00 por mês), a sua idade (e período normal de vida ativa, tendo o autor 44 anos na data do sinistro) e o grau de dano biológico fixado.
E continua referindo que “Podemos aceitar que durante cerca de mais 15 anos o autor poderia realizar o trabalho em discussão, durante 11 meses por ano, sendo a sua intensidade decrescente com o decorrer dos anos.
Na posse destes critérios, é ajustado arbitrar ao(à) autor(a) uma indemnização de € 75 000,00 pelo dano biológico sofrido (dimensão patrimonial).”.
Aceitando os recorrentes que é devida a indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho, vejamos, então, se deve ser alterado o valor fixado pela 1.ª Instância.
Provou-se, com interesse para esta questão, que:
9 – Em resultado da queda e dos tratamentos, consultas e exames a que foi submetido, o autor revela/sofreu:
(…)
f) Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 10 pontos;
g) As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis do exercício da atividade profissional habitual do autor, mas implicam esforços suplementares;
(…)
22 – O autor não mais poderá voltar a exercer as funções de fiscalização de trânsito, fiscalização estacionamento, deslocação aos locais onde era chamado para atender a reclamações dos munícipes; regularização de trânsito em diversas zonas da cidade quando lhe era ordenado.
23 – Em resultado das lesões sofridas, o autor trabalha numa secretaria no interior das instalações da sua força policial, sentindo-se insatisfeito profissionalmente.
24 – A alteração das funções desempenhadas pelo autor implicou que deixasse de receber os valores correspondentes à prestação de serviços suplementares no exterior, que auferia com regularidade antes do acidente.
25 – Face às lesões de que padece, o autor verá dificultada a futura progressão na carreira.
26 – Face às lesões de que padece, o autor está impossibilitado de realizar trabalho extraordinário no exterior, no que poderia auferir atualmente uma quantia mensal não inferior a € 600,00.
27 – Até à data do sinistro, o autor realizava serviços com a natureza do referido no ponto 26 – factos provados –, auferindo pelos mesmos a remuneração mensal de cerca de € 460,00.
Posto isto, vem-se considerando, quer na doutrina quer na jurisprudência, como integrantes do dano biológico, diversas vertentes ou parâmetros, como o “quantum doloris” – que inclui as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que significa o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que se mantiveram após o processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural e cívica) –, o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida. (neste sentido, Ac. STJ, de 18-20-2018, Processo 3643/13.9TBSTB.E1.S1, disponível em dgsi.pt).
Por refletir de forma clara a nossa posição sobre esta questão, passamos a transcrever também o que foi decidido no Acórdão do STJ, de 21-04-2022, processo 96/18.9T8PVZ.P1.S1, onde se diz:
“I. O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.
II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
III. Não sendo possível determinar o valor exacto deste dano, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus.
IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir.
V. Particularmente relevante é a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).”.
Passando ao caso concreto, temos a considerar os factos já mencionados supra, ou seja, que o autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos e que, embora as sequelas de que ficou afetado sejam, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do autor, não só implicam esforços suplementares, como também o impedem de exercer determinadas vertentes da atividade, que exercia antes, incluindo a prestação de serviços suplementares no exterior, que auferia com regularidade antes do acidente, e no que poderia auferir atualmente uma quantia mensal não inferior a € 600,00, para além de ver dificultada a futura progressão na carreira.
Considerando a idade do autor, 44 anos de idade à data do acidente, o vencimento que deixou de poder auferir nos termos referidos, sem deixar de levar em conta, como se refere na sentença recorrida, que o trabalho extraordinário em causa tende a decrescer com a idade, e usando critérios de equidade, conforme referido supra, consideramos que a quantia de € 75 000,00 (setenta e cinco mil euros) fixada pelo tribunal recorrido, a título de dano biológico na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho, se mostra adequada e proporcional em termos equitativos, não se vendo qualquer motivo para a alterar.
Não colhe a alegação do recorrente Fundo de Garantia Automóvel, de que o autor apenas ficou afetado de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos, com sequelas que são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, já que, embora assim sendo, uma vez que o autor continua a exercer a atividade profissional de agente da Polícia Municipal ..., o certo é que as funções que exerce mudaram e o mesmo não mais pode exercer os trabalhos extraordinários referidos e que lhe proporcionavam um rendimento que deixou de poder obter.
Mas também não colhe a posição do autor, nomeadamente quanto ao cálculo da vertente patrimonial do dano biológico.
Como o próprio refere nas suas alegações de recurso, a obrigação de indemnizar tem como diretrizes, por um lado, o princípio da reparação integral do dano e, por outro, a proibição de enriquecimento injusto do lesado à custa da indemnização.
Ora, sendo certo que a indemnização pelo dano futuro deve representar não um aumento do património, mas o ressarcimento da frustração de um ganho que era legitimamente esperado, não deve a indemnização ser fixada por cálculos aritméticos precisos, mas, antes, recorrendo, como já dito, a critérios de equidade, que equilibrem o facto de o lesado ir receber de uma só vez, uma quantia que apenas iria receber ao longo de anos.
Improcede, assim, o recurso do FGA, bem como o recurso subordinado do autor, nesta parte.
Recorrem o FGA e o Autor também do valor fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, valor que o tribunal recorrido fixou em € 40 000,00 (quarenta mil euros) e que, mais uma vez, o FGA considera excessivo e o Autor entende que peca por defeito.
Quanto à indemnização por danos não patrimoniais, importa ter presente as seguintes considerações:
De harmonia com o disposto no art. 496º, nº 1 do Código Civil, a indemnização por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à vida, à integridade física e moral, à liberdade, à segurança, à saúde e à qualidade de vida, entre outros, direitos que são tutelados pela Constituição da República Portuguesa (arts. 24º, 25º, 26º, 27º, 64º e 66º).
Destina-se esta indemnização a que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado.
O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo que esta indemnização se destina a proporcionar ao lesado, na medida do possível, uma compensação que lhe permita satisfazer necessidades consumistas que constituam um lenitivo para o mal, sofrido. Deve, por isso, tal compensação abranger as consequências passadas e futuras resultantes das lesões emergentes do evento danoso. Trata-se, num e noutro caso, de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro.
Nos termos do nº 3 do referido art. 496.º do Código Civil, a sua fixação deve ser feita equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de concorrência do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art. 494.º do Código Civil, para que remete aquele preceito legal).
Sobre o critério de equidade na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais tem-se entendido que deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
A este respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando a ideia de que tais compensações devem ter um alcance significativo, e não meramente simbólico nem miserabilista, acrescentando que, na sua fixação, não podem deixar de ser ponderadas circunstâncias como o quantum doloris, o período de doença, situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, sua idade, esperança de vida e perspetivas para o futuro, incluindo o dano biológico, entre outras, que o caso concreto revele.
Partindo destas matrizes, e aceite que o autor sofreu danos não patrimoniais suscetíveis de indemnização, em face do critério estabelecido no art. 496.º, nº 1 do Código Civil, vejamos se o valor fixado pelo tribunal a quo se mostra equitativamente adequado.
Com relevância para a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, há que tomar em consideração os seguintes aspetos, invocados pelo autor e dados como provados, ou seja, a natureza e a gravidade da ofensa sofrida na sua integridade física, aferida pela gravidade das lesões que sofreu e pelo grau de incapacidade de que ficou afetado em resultado dessas lesões, bem como a intensidade das dores que sofreu em consequência dessas lesões e dos tratamentos clínicos a que foi sujeito, isto é, o quantum doloris, o dano estético e outros que constam da matéria de facto respetiva e dada como provada.
Como se vê dos factos provados, o autor foi ofendido na sua integridade física e na sua saúde, ofensas tuteladas pela Constituição da República Portuguesa (arts. 25.º, 64.º, nº 1 e 66.º, nº 1) e pelo Código Civil (art. 70.º) e, por isso, com relevância jurídica para efeitos de indemnização, nos termos do art. 496.º, nº 1 do Código Civil.
Em termos objetivos, as lesões sofridas pelo autor revelam um grau de gravidade médio, apesar do período de incapacidade total que sofreu, foi submetido a tratamentos, consultas e exames e sofreu evidentemente dores, quer em consequência das lesões quer dos tratamentos a que foi submetido, para além de ter ficado com sequelas que lhe provocam défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos.
Assim, com base nestes pressupostos fácticos e tendo presentes as orientações jurisprudenciais acima referidas, temos de concluir que se mostra adequadamente fixado, também o valor a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Posto isto, improcedem os recursos na totalidade, sendo de manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes os recursos interpostos pelo Município ..., pelo Fundo de Garantia Automóvel e pelo Autor, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo dos apelantes (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).
Porto, 2024-07-04
Manuela Machado
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira