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VALOR DA CAUSA
PODERES DO JUIZ
DIREITO DE RETENÇÃO
VALOR ATENDÍVEL
Sumário
I - Embora caiba ao autor indicar o valor da causa, o qual pode ser impugnado ou aceite pelo réu – art. 305.º do CPC, é ao juiz a quem compete fixar o valor da causa, conforme dispõe o art. 306.º, pelo que, ainda que exista concordância ou anuência de uma das partes ao valor indicado pela outra, o tribunal deve fixar o valor da ação pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito. II - O direito de retenção sobre um imóvel surge apenas como mero direito real de garantia das obrigações, cuja função é precisamente a de servir de garantia do pagamento do crédito do retentor. III - Não está em causa fazer valer o direito de propriedade sobre a coisa, o que justificaria que o valor da ação correspondesse ao valor do bem, mas apenas, um direito real de garantia do crédito invocado, pelo que, tratando-se de outro direito real, se deve atender ao seu conteúdo e duração provável, e não ao valor da própria coisa, como dispõe o nº 4 do art. 302.º do CPC, o mesmo se podendo retirar também do disposto no art. 301.º e da 2.ª parte, do nº 1, do art. 297.º, atendendo ao valor do benefício que se pretende obter e que, no caso, é a garantia do crédito invocado pelo recorrente.
Texto Integral
Apelação n.º 18/23.5T8OVR.P1
Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO:
AA, advogado, intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB e outros, identificados nos autos, pedindo que, declarada procedente a ação, seja:
a) O Autor declarado estar, legitimamente, na posse do prédio urbano identificado, supra, em 3º, e sobre, o mesmo, ter o direito de retenção para pagamento de honorários e despesas determinadas e a determinar, que lhe são devidos pelos RR., na ação com o processo n.º 1507/20.9T8AVR, que corre termos no Juízo Central Cível – Juiz 1, da comarca de Aveiro;
b) Os Réus serem condenados a reconhecer, ao Autor, o direito de retenção, pelo crédito que este tem sobre aqueles, do prédio urbano identificado, em 3º, supra, desta petição, sendo, pelo resultado do valor do mesmo, pago tal crédito;
c) Determinado que, o crédito do Autor prevalece, na venda do referido imóvel, sobre todos os outros créditos de que os RR. sejam devedores, e a ser pago, em caso de venda, antes do pagamento, aos RR., pelo possível comprador.
O Autor atribuiu à ação o valor de € 37.936,00 (trinta e sete mil novecentos e trinta e seis euros), valor do crédito de honorários que alega ter sobre os réus.
Os réus apresentaram contestação, aceitando o valor atribuído à ação na petição inicial.
Findos os articulados, foi proferido despacho, datado de 29-05-2023, com o seguinte teor:
“Considerando que o pedido deduzido nos autos é de reconhecimento da validade do ato jurídico que constitui o exercício do direito de retenção, o valor da ação haverá de ser determinado em obediência ao disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 301.º do CPC, correspondendo, em harmonia com as regras gerais, ao valor da coisa sobre a qual é exercido o direito.
Assim, sendo a coisa sobre a qual se pede o reconhecimento da licitude do exercício do direito de retenção um imóvel com valor patrimonial de € 163.884,92, conforme decorre da caderneta predial urbana junta com a petição inicial, notifique-se as partes para que exerçam o contraditório, em 10 dias, relativamente à fixação do valor da causa em € 163.884,92, e consequente remessa dos mesmos ao Juízo Central Cível de Aveiro, por ser o competente em razão do valor.”
Notificadas as partes, tanto o Autor, como os Réus, pronunciaram-se no sentido de dever ser mantido o valor atribuído à ação pelo Autor, na petição inicial, e aceite pelos réus, na contestação.
Nessa sequência, foi proferido, em 15-06-2023, o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Do valor da causa:
AA intentou a presente ação declarativa que segue a forma de processo comum contra BB e outros, identificados nos autos pedindo que, na procedência da mesma, seja declarado legítimo o direito de retenção que exerce sobre o imóvel que descreve no artigo 3.º da petição inicial, o qual tem o valor patrimonial de € 163.884,92.
Os réus contestaram e não impugnaram o valor de € 37.936, atribuído à ação, que corresponde ao crédito de que o autor alega ser titular.
Notificados para exercerem o contraditório quanto à fixação do valor da causa atendendo ao valor do prédio sobre o qual se pretende ver reconhecida a licitude do exercício do direito de retenção, autor e réus pronunciaram-se nos termos dos requerimentos que antecedem, pugnando pela fixação no valor indicado e aceite pelas partes.
Determina o artigo 306.º do CPC que o juiz atribua um valor à causa o qual, estando em causa o reconhecimento da validade do ato jurídico que constitui o exercício do direito de retenção, haverá de ser determinado em obediência ao disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 301.º do CPC, concordando as partes, até aqui, com o entendimento do Tribunal.
A questão que se coloca é então a de saber se face à norma contida no n.º 2 do dito artigo 301.º, o qual dispõe que «Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais», há que atender ao valor do crédito que o autor se arroga ou se há que atender ao valor do bem.
O direito de retenção, previsto nos artigos 754.º e 755.º, do Código Civil, traduz-se no direito conferido ao credor, que tem a posse de uma coisa e está obrigado a entregá-la a outrem, de a reter enquanto não lhe for satisfeito aquilo que, em ligação com ela, lhe é devido.
Tem como pressupostos: a posse e obrigação de entrega duma coisa; a existência, a favor do obrigado à entrega, dum crédito exigível sobre o credor da mesma; e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa.
Sendo pacífico que se trata de um direito real de garantia incidente sobre uma coisa que, pela sua natureza, comprime o direito do respetivo proprietário, é nosso entendimento – salvo o devido respeito pela opinião contrária doutamente expressa pelas partes – que o valor da ação em que se discuta a existência ou licitude do exercício de tal direito haverá de ter sempre o valor correspondente ao da coisa, não já do crédito.
Assim sendo, nos termos do disposto nos artigos 302.º, n.º 1 e 2, e 306.º, n.º 1, ambos do CPC, fixa-se o valor da ação em € 163.884,92 (cento e sessenta e três mil, oitocentos e oitenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos).
Nos termos do artigo 117.º, n.º 1, al. a), da LOSJ, cabe aos Juízos Centrais Cíveis a preparação e julgamento das ações de valor superior a € 50.000.
Há assim que considerar o disposto no n.º 1 do artigo 310.º do CPC, o qual determina que quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente, sem prejuízo do disposto no n.º 3, que dispõe que o tribunal mantém a sua competência quando seja oficiosamente fixado à causa um valor inferior ao indicado pelo autor, oque não sucede no caso.
Assim sendo, pelo exposto, julgando este juízo incompetente para a tramitação da ação, determino a remessa da mesma ao Juízo Central Cível de Aveiro, por ser o competente.
Custas pelo autor.
Notifique e, após trânsito, remeta.”.
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Não se conformando com o decidido, o Autor apresentou recurso que, não admitido pelo tribunal da 1.ª Instância, acabou por ser admitido por este Tribunal da Relação na sequência de reclamação apresentada pelo Recorrente.
Apresentadas as suas alegações, formulou o recorrente, as seguintes conclusões:
“A. A pretensão, do apelante, na presente ação, expressa e que tem interesse em demandar, é a garantia do pagamento que lhe é devido e que será determinado, em ação própria.
B. Mas, nunca, o valor do prédio urbano em causa.
C. Pretende apenas o pagamento do crédito a que tem direito e pretende a retenção do prédio urbano, por via da posse que tem, do mesmo, para garantia do pagamento.
D. Na presente ação, o apelante, não pretende a restituição, reivindicação, partilha, divisão ou qualquer outro direito real de gozo sobre o prédio urbano indicado; muito menos o pagamento do valor, do mesmo.
E. Assim, jamais o valor da ação poderia ser determinado pelo disposto no Art.º 302º, do C.P.C., como o foi pelo tribunal recorrido.
F. Mas, sim, pelas disposições do Art.º 301º, n.º 1, do C.P.C., atendendo ao expresso no processo, na causa de pedir e pedido da petição.
G. Pois, os elementos a considerar, na determinação do valor processual da causa são os constantes do processo (causa de pedir e pedido), ou outros, como valor reconvencional, que não existe no presente processo.
Pelo exposto
Deve ser revogada a decisão/sentença recorrida, de forma a que permaneça o valor da ação, o indicado na petição.”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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FUNDAMENTOS DE FACTO:
Os fundamentos de facto são os que resultam do relatório que antecede.
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MOTIVAÇÃO DE DIREITO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão a decidir é saber qual deve ser o valor a fixar à causa.
O Senhor Juiz a quo entendeu que sendo pacífico que o direito de retenção é um direito real de garantia incidente sobre uma coisa que, pela sua natureza, comprime o direito do respetivo proprietário, o valor da ação em que se discuta a existência ou licitude do exercício de tal direito haverá de ter sempre o valor correspondente ao da coisa, e não já do crédito, pelo que, nos termos do disposto nos artigos 302.º, n.º 1 e 2, e 306.º, n.º 1, ambos do CPC, fixou o valor da ação em € 163 884,92 (cento e sessenta e três mil, oitocentos e oitenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos).
Já o apelante considera que a sua pretensão na ação, é a garantia do pagamento que lhe é devido e que será determinado, em ação própria, pretendendo apenas o pagamento do crédito a que tem direito, sendo a retenção do prédio urbano, por via da posse que tem do mesmo, para garantia do pagamento, pelo que o valor da ação deve corresponder ao valor do crédito que pretende garantir, ou seja, € 37 936,00 (trinta e sete mil, novecentos e trinta e seis euros).
Vejamos.
A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido – art. 296.º do CPC.
O art. 297.º do mesmo diploma legal, estabelece critérios gerais para a fixação do valor, prevendo, no que para o caso interessa, que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Ainda com interesse para a decisão, dispõem os arts. 301.º e 302.º do CPC, o seguinte:
Artigo 301.º
Valor da ação determinado pelo valor do ato jurídico
1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.
(…).
Artigo 302.º (art.º 311.º CPC 1961)
Valor da ação determinado pelo valor da coisa
1 - Se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.
2 - Se a ação tiver por fim a divisão de coisa comum, atende-se ao valor da coisa que se pretende dividir.
3 - Nos processos de inventário, atende-se à soma do valor dos bens a partilhar; quando não seja determinado o valor dos bens, atende-se ao valor constante da relação apresentada no serviço de finanças.
4 - Tratando-se de outro direito real, atende-se ao seu conteúdo e duração provável.
Finalmente, cabe considerar que embora caiba ao autor indicar o valor da causa, o qual pode ser impugnado ou aceite pelo réu – art. 305.º do CPC, é ao juiz a quem compete fixar o valor da causa, conforme dispõe o art. 306.º, pelo que, ainda que exista concordância ou anuência de uma das partes ao valor indicado pela outra, o tribunal deve fixar o valor da ação pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito.
Posto isto, tendo em conta o que resulta dos preceitos legais citados, temos que para definir a utilidade económica que as partes podem obter com a procedência dos pedidos que formulam, critério para determinar o valor da ação, há que verificar o que está em litigio, considerando a causa de pedir, e logo o que efetivamente pedem que seja decidido, afastando-se os pedidos que apenas foram formulados por serem pressupostos da efetiva pretensão das partes, mas que não correspondem a uma utilidade autónoma que pela ação pretendem fazer valer. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09-11-2023, Processo 484/21.3T8CMN-A.G1, disponível em dgsi.pt)
No caso, considerando a pretensão formulada pelo autor/recorrente e a causa de pedir invocada, podemos concluir que a sua pretensão nesta ação, consiste em ver garantido, pelo direito de retenção, o seu alegado crédito sobre os recorridos, correspondente ao valor que atribui à causa.
O direito de retenção sobre o imóvel surge apenas como mero direito real de garantia das obrigações, que é, cuja função é precisamente a de servir de garantia do pagamento do crédito do retentor.
Não está em causa fazer valer o direito de propriedade sobre a coisa, o que justificaria que o valor da ação correspondesse ao valor do bem, mas apenas, como dito, um direito real de garantia do crédito invocado, pelo que, tratando-se de outro direito real, se deve atender ao seu conteúdo e duração provável, e não ao valor da própria coisa, como dispõe o nº 4 do art. 302.º do CPC.
O mesmo se pode retirar também do disposto no art. 301.º e da 2.ª parte, do nº 1, do art. 297.º, atendendo ao valor do benefício que se pretende obter e que, no caso, é a garantia do crédito invocado pelo recorrente, ou seja, o valor de € 37.936,00 (trinta e sete mil novecentos e trinta e seis euros).
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DECISÃO:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, fixando-se à causa o valor de € 37.936,00 (trinta e sete mil novecentos e trinta e seis euros).
Sem custas.
Porto, 2024-07-04
Manuela Machado
Judite Pires
Ana Vieira