MÁ FÉ
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I. Antes de, oficiosamente, decidir condenar uma das partes como litigante de má-fé, o Tribunal deverá certificar-se que o contraditório se mostra garantido ou se, ao invés, é necessária a audição das partes que evite decisões-surpresa, nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC.
II. Não cumpre tal desiderato o despacho do juiz proferido na última sessão de julgamento que se limita a anunciar que “poderá apreciar oficiosamente a conduta processual das partes à luz do instituto da litigância de má fé”, não sendo exigível que a recorrente pudesse (e devesse) contar com a sua condenação como litigante de má-fé numa multa de 30 Ucs.;
III. A sentença que contém uma condenação (oficiosa) de uma das partes como litigante de má-fé, sem adequado cumprimento do contraditório, enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


I.RELATÓRIO
1. AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando «a condenação da ré a devolver/pagar ao A. a quantia de 55.000,00 euros que este lhe emprestou, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento, e ainda no pagamento das custas e demais encargos legais.»
Para o efeito, alegou o autor, em síntese, que concedeu dois empréstimos à ré, no valor global de 55.000,00€, por intermédio de dois contratos de mútuo.
Contudo, ainda de acordo com a versão do autor, a quantia objecto dos referidos empréstimos não chegou a ser restituída pela ré.
Regularmente citada para o efeito, a ré apresentou contestação, através da qual se defendeu por excepção – invocando a nulidade dos respectivos contratos; e, ainda, por impugnação – alegando a existência de um empréstimo por parte do autor à ré no valor de 12.000,00€, integralmente restituído.

2. Realizou-se audiência final e subsequentemente foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Nos termos acima exposto, o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente e, em consequência decide:
a) Reconhecer a existência de dois contratos de mútuo celebrados entre o autor e a ré, em 10-03-2014 e 20-06-2014;
b) Declarar a nulidade dos dois contratos de mútuo celebrados entre o autor e a ré em 10-03-2014 e 20-06-2014;
c) Condenar a ré a restituir ao autor a quantia global de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros), acrescida do valor correspondente aos juros de mora, contados desde 10-11-2022 até efectivo e integral pagamento e calculados com base na taxa de 4 %;
d) Condenar a ré, como litigante de má-fé, ao pagamento de uma multa que se fixa em 30 (trinta) UC, a que corresponde a quantia de 3.060,00€ (três mil e sessenta euros).”.

3. É desta sentença que recorre a Ré, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
1. Foi dado como provado pelo Tribunal a quo o ponto 6 da matéria de facto provada, entendendo a Apelante que tal facto foi incorreta e indevidamente julgado, em face da prova produzida nos autos.
2. Como concretamente salienta o Tribunal a quo, o depoimento da testemunha CC assentou, no mais, no absolutamente indireto conhecimento dos factos, limitando-se a reproduzir a sua versão da verdade material.
3. Com efeito - acresce - o ponto 6. da matéria provada na sentença a que ora se recorre assumiria, julga-se, facto controvertido manifestamente essencial à solução da causa, porquanto é no mesmo que assenta, no mais, a exceção de nulidade (de conhecimento oficioso).
4. O ponto 6 da matéria provada pelo Tribunal a quo institui que a aqui Apelada, A. nos autos, solicitou à Ré ora Apelante, decorridos os prazos previstos nos contratos nulos o pagamento das quantias nele acordadas.
5. E, se assim sucede, reportando-se o ponto 6. da matéria de facto provada na sentença recorrida – tão só – à prova, ou falta dela, de que a A., Apelada nos presentes autos, interpelou (como aliás refere a A. no articulado de p.i) a Ré, Apelante,
6. Não obstante considerado provado pelo Tribunal a quo o descrito no ponto 6. Da matéria provada da sentença recorrida (que assume como certa a intimação ao pagamento da Apelante quando solicitado pela Apelada), facto é que tal ponto controvertido foi, no mais, descurado in totum nos autos.
7. Olvida o Tribunal de primeira instância em absoluto que a prova da existência de um contrato de mútuo e, em contraponto, da inexistência de um acordo verbal em nada se relacionam com a já referida interpelação ao pagamento, findo o prazo contratualmente acordado.
8. Que assim o é evidencia-o, ainda, a falta de elementos probatórios documentais que sustentariam, esses sim, o incumprimento definitivo da Ré ora Apelante.
9. Deve assim considerar-se que, ao invés do que parece preconizar o Tribunal de primeira instância, era possível à Apelada apresentar o documento que atestasse da solicitação e, ou, intimação ao cumprimento da Apelante pela A., que fosse mais credível do que o depoimento testemunhal, atento o alegado pela A. em sede de articulado de petição inicial, quando intenta alicerçar as suas pretensões no aparente incumprimento definitivo da Ré ora apelante.
10. E, não tendo sido apresentado qualquer documento que corrobore tal versão dos factos, errónea será de considerar a convicção formada no julgador
11. Discorda a Apelante da aplicação do direito aos factos provados, entendendo-se que o Tribunal de primeira instância errou:
a. quer na determinação das consequências advenientes para a Ré, aqui Apelante, por ter incorrido em responsabilidade civil contratual;
b. quer na fixação do montante da indemnização arbitrada na sentença recorrida;
c. quer no que concerne à condenação da Apelante por litigância de má fé, sem atender ao enquadramento jurídico-factual que rege, e pelo qual se rege, tal regime.
12. A restituição decorrente da nulidade só pode vencer juros a partir da interpelação do respectivo obrigado e não da mora pelo incumprimento do contrato se este fosse válido
13. Por sua vez, “(…) a citação não supre a falta de interpelação admonitória, dado que ocorre numa altura em que o credor já optou pela antecipação do vencimento da totalidade do capital em dívida, não sendo dada oportunidade de pagar as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas
14. Ora, tratando-se de uma obrigação que podia ser liquidada em duas ou mais prestações, conforme previsto no artigo 781.º do Código Civil, porquanto, desde logo do Doc.1 junto com a petição inicial, resulta do referido instrumento contratual que
15. “A 2.ª contratante compromete-se com a amortização total deste valor no prazo de um ano a contar da presente data, ou a proceder à amortização mínima de 5% do capital ao que será acrescentado mais 5% de juros de mora”,
16. Facto é que “O desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações a que se alude no art.º 781º do CC é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.”
17. Condena o Tribunal de primeira instância a Ré, ora Apelante, como litigante de má fé.
18. Fá-lo, todavia, sem fundamento que o alicerce.
19. “I -Para a condenação como litigante de má fé, exige-se que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, o que requer grande cautela para evitar condenações injustas, designadamente quando «assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psicosociológico» como judiciosamente se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 1112-2003.
III - É esta dignidade, proclamada legal, constitucional e supranacionalmente, impeditiva de que a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes seja considerada como integrando a «mala fides» sempre que a versão oposta à alegada seja provada, antes se exigindo que ela seja imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira”
20. É, por fim, nula a sentença recorrida, porquanto: a aplicação oficiosa do artigo 542.º do Código do Processo Civil que tipifica e sanciona a chamada 'litigância de má fé' pressupõe sempre a prévia audição dos interessados, sob pena de grave violação dos princípios do contraditório e do acesso ao direito. A verificar-se essa omissão, ela constitui uma nulidade processual, por omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve e que pode influir na decisão da causa nos termos gerais do art. 201.° do CPC, e por isso a arguir perante o tribunal 'a quo', mas ao mesmo tempo pode redundar numa nulidade da sentença ou do acórdão por manifesto excesso de pronúncia
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exªs,
Meritíssimos Senhores Doutores Juízes Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso, por provado, e, por via dele, ser proferido douto acórdão revogatório da sentença recorrida e na parte que constitui o objeto do presente recurso, modificando-a nos termos peticionados pelas Apelantes, bem como deve ser revogado a decisão de condenação em litigância de má fé e, igualmente, determinada a nulidade da sentença recorrida por padecer de um vício de excesso de pronúncia, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”.

4. Contra-alegou o Autor, defendendo a manutenção do decidido.

5. Tendo em consideração que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:
5.1. Da nulidade da sentença na parte em condenou a apelante como litigante de má-fé;
5.2. Impugnação da matéria de facto: se o facto inserto no ponto 6 do elenco dos factos provados deve, ao invés, ser considerado “Não provado”;
5.3. Reapreciação jurídica da causa: se a restituição decorrente da nulidade só pode vencer juros a partir da interpelação do respectivo obrigado e não da mora pelo incumprimento do contrato se este fosse válido.

II. FUNDAMENTAÇÃO
6. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
A) Factos provados:
1. O A. e a R. mantinham, entre si, relações de bastante confiança, desde finais da década de 1980, decorrentes da circunstância de o A. ser cliente da Seguradora Império e a R. ser, então, funcionária desta Seguradora, nomeadamente, após várias fusões da Seguradora Fidelidade.
2. No dia 10 de Março de 2014, o autor, na qualidade de primeiro contratante, e a ré, na qualidade de segundo contratante, subscreveram o acordo denominado «Contrato de mútuo acordo de empréstimo entre particulares».
3. Do referido acordo consta a seguinte redacção:
«O primeiro contratante entrega nesta data ao 2º contratante a quantia de trinta e cinco mil euros a título de empréstimo, quantia que esta recebe e da qual se reconhece e confessa devedora.
A 2ª contratante compromete-se a cumprir com a amortização total deste valor no prazo de um ano a contar da presente data, ou a proceder à amortização mínima de 5% do capital ao que será acrescentado mais 5% de juros em mora.
O empréstimo vence juros à taxa de 4% (quatro por cento) ao ano sobre o capital em dívida, contados e cobrados após a data de assinatura deste contrato. Acresce a esta taxa, em caso de mora, juros de 5% a título de cláusula penal.»
4. No dia 20 de Junho de 2014, o autor, na qualidade de primeiro contratante, e a ré, na qualidade de segundo contratante, subscreveram o acordo denominado «Contrato de mútuo acordo de empréstimo entre particulares».
5. Do referido acordo consta a seguinte redacção:
«O primeiro contratante entrega nesta data ao 2º contratante a quantia de vinte mil euros a título de empréstimo, quantia que esta recebe e da qual se reconhece e confessa devedora.
A 2ª contratante, compromete-se a cumprir com a amortização total deste valor no prazo máximo de três anos, a contar da presente data, ou a proceder à amortização mínima de 5% do capital ao que será acrescentado mais 5% de juros em mora.
Este empréstimo vence juros anuais de 5% (cinco por cento) que acumularão ao capital em dívida, contados e contabilizados após a data de assinatura deste contrato.»
6. Decorridos os prazos de restituição mencionados nos dois acordos supra mencionados, o autor solicitou à ré, sem sucesso, o pagamento a restituição das quantias em causa.

*
B) Factos não provados
a) Em meados de 2014, por vicissitudes da vida pessoal da R., o A. ofereceu- se para emprestar à R a quantia de 12.000,00€.
b) O A. entregou, em dinheiro, essa quantia à R.
c) O montante de 12.000,00€ não tinha qualquer contrapartida de juros ou outros encargos e seria para liquidar no espaço de um ano, nada havendo sido acordado por escrito entre autor e ré.
d) A R. entregava mensalmente quantias de mil euros ao A, sempre em dinheiro, conforme a vontade deste.
e) Desde há mutos anos e até Dezembro de 2021, o A. permanecia longas horas diariamente no escritório de mediadora de seguros da R.
f) O A. sempre continuou a manter a relação de confiança e amizade com a R. durante estes últimos oito anos.

7. Do mérito do recurso
7.1. Da nulidade da sentença na parte em condenou a apelante como litigante de má-fé.
Insurge-se a apelante contra tal condenação porque, conforme refere, a mesma “pressupõe sempre a prévia audição dos interessados, sob pena de grave violação dos princípios do contraditório e do acesso ao direito. A verificar-se essa omissão, ela constitui uma nulidade processual, por omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve e que pode influir na decisão da causa nos termos gerais do art. 201.° do CPC, e por isso a arguir perante o tribunal 'a quo', mas ao mesmo tempo pode redundar numa nulidade da sentença ou do acórdão por manifesto excesso de pronúncia”.
A apelante não o diz mas constata-se que na audiência final que teve lugar em 2.5.2024 o Tribunal proferiu o seguinte despacho, como da respectiva acta consta:
“O Tribunal faz consignar que poderá apreciar oficiosamente a conduta processual das partes à luz do instituto da litigância de má fé, nos termos dos artigos 542º e seguintes do Código de Processo Civil, pelo que se dá agora a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre esta matéria.”.
Não se alcança da mesma acta que as partes se tenham pronunciado nesse momento ou requerido prazo para o efeito, sendo que a sentença foi logo prolatada em 14.5.2024.
Vejamos, então, se ainda assim, assiste razão à apelante.
Não há quaisquer dúvidas[1] que antes de, oficiosamente, decidir condenar uma das partes como litigante de má-fé, o Tribunal deverá certificar-se que o contraditório se mostra garantido ou se, ao invés, é necessária a audição das partes que evite decisões-surpresa, nos termos do art. 3º, nº 3[2] do CPC.
O ponto está em saber se um despacho do jaez do que foi proferido – vago e genérico- cumpre tal desiderato.
Cremos que não.
Através da consagração naquela norma (artigo 3.º, n.º 3, do CPC) por imposição constitucional, de um princípio geral de contraditório, visa-se a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, permitindo‑lhes, em condições de plena igualdade material, influir em todos os seus aspectos (alegação dos factos, proposição e produção da prova e discussão das questões de direito).
Como nos dá conta o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 77/2023[3] é de “realçar a evidente centralidade da garantia de contraditório no quadro das exigências de um processo justo decorrentes do artigo 20.º da Constituição” expressando o seu entendimento de que a actuação do tribunal tem de ser previsível para a parte, num processo equitativo.
A efectividade de tal garantia está, pois, também no nosso entender, conexionada com a previsibilidade para a parte da decisão que irá ser tomada porque só desse modo lhe será permitido “influir em todos os seus aspectos”.
Não é exigível que, perante um despacho como o que foi proferido, a ora recorrente pudesse (e devesse) contar com a sua[4] condenação como litigante de má-fé numa multa de 30 Ucs!
E nessa medida a condenação da recorrente não pode deixar de se revelar uma “decisão -surpresa” que postergou o princípio do contraditório na sua essência que, como vimos, é um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental.[5]
Antes de determinar as suas consequências, justifica-se, a nosso ver, abrir um parêntesis para explicitar que o despacho em causa deveria ter sido proferido logo após a prolação da sentença – pois só então o juiz estaria habilitado a antecipar a sua convicção acerca do que entendia ser a reprovável conduta da ré.
Retomando a questão das consequências da omissão ou cumprimento indevido do contraditório, dá-nos conta Luís Mendonça[6]: “Três são as correntes que podemos identificar na jurisprudência sobre a natureza e regime de arguição da nulidade consistente na falta de actuação do contraditório prévio a uma decisão. Uma primeira corrente entende que se trata de uma nulidade processual, cujo remédio reside, não na reclamação para o juiz, mas na interposição de recurso; uma outra que se trata de uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, igualmente impugnável por via recursiva; uma terceira corrente defende que estamos ao invés perante uma nulidade procedimental, sujeita ao regime geral dos arts. 195.º e 199.º.”.
Sufragamos o entendimento de que a sentença que contém uma condenação (oficiosa) de uma das partes como litigante de má-fé, sem adequado cumprimento do contraditório, enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.
Para o justificar recorremos, com a devida vénia, ao estudo de Miguel Teixeira de Sousa[7], no qual afirma: «(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão- surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão- surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa) e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do
direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º1, al. d), CPC), dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.»
Em conclusão: Na procedência do recurso, declara-se a nulidade da sentença na parte em que condenou a Ré como litigante de má-fé, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

7.2. Impugnação da matéria de facto
Peticiona a apelante que o facto inserto no ponto 6 do elenco dos factos provados (Decorridos os prazos de restituição mencionados nos dois acordos supra mencionados, o autor solicitou à ré, sem sucesso, o pagamento a restituição das quantias em causa) seja considerado “Não provado” pois o Tribunal “ a quo” não devia ter valorado para esse efeito o mero depoimento – que refere indireto – de um terceiro, alheio ao negócio, de nome CC.
Desde já se diga que tal como vem assente, tal facto é inócuo para qualquer solução plausível de direito e, portanto, inútil.
Na verdade, para que se tratasse de uma verdadeira e própria interpelação admonitória, susceptível de trasmudar a mora em incumprimento definitivo ( art.º808º, nº1 do Cód. Civil) teria de conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo[8].
E assim sendo “não há lugar à reapreciação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria a proibição legal da prática no processo de actos inúteis (artigo 130.º do CPC)[9]” .
Por consequência, não se conhece da impugnação deduzida por manifesta inutilidade.

7.3. Reapreciação jurídica da causa
Refere a recorrente que a restituição decorrente da nulidade só pode vencer juros a partir da interpelação do respectivo obrigado e não da mora pelo incumprimento do contrato se este fosse válido.
Olvida-se, no entanto, que os juros foram computados apenas a partir da data da citação da Ré, ou seja, desde 10.11.2022.
Recupera-se o que na sentença a esse propósito foi dito e que merece a nossa inteira concordância: “ (…)resulta dos autos que a ré foi regularmente citada no dia 10-11-2022 (cfr. art. 230.º, n.º 1, do C.P.C. e ref.ª citius ...37, de 17-11-2022). Não obstante, apesar de interpelada para o efeito, a ré não procedeu à restituição da referida quantia, pelo que, a partir daquela data, se tornou possuidora de má fé, constituindo-se, consequentemente, na obrigação de indemnizar o autor pelo valor correspondente aos juros de mora, calculados desde aquela data à taxa legal de 4% (cfr. art. 564.º, al. a), do C.P.C. e Portaria n.º 291/03, de 08-04).
Efectivamente, sobre a importância a restituir são devidos os juros legais, pelo menos a partir da citação, pois seguramente a partir dela não podia a ré ignorar a inexistência de título que justificasse a manutenção das quantias mutuadas em seu poder, ou seja, a partir da citação cessou a sua boa fé como possuidora e, como tal , fica adstrita a restituir também os frutos civis que o capital mutuado poderia produzir, i.e. os juros legais.
Neste conspecto, a sentença não merece a menor censura.

III. DECISÃO
Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declarar a nulidade da condenação ínsita na alínea d) do dispositivo da sentença (“Condenar a ré, como litigante de má-fé, ao pagamento de uma multa que se fixa em 30 (trinta) UC, a que corresponde a quantia de 3.060,00€ (três mil e sessenta euros .” ) ;
b) Manter a sentença recorrida no demais decidido.
Custas por apelante e apelado na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.

Évora, 27 de Junho de 2024
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Ana Pessoa
Francisco Xavier
_________________________________________________
[1] Cfr. ELEMENTOS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL Teoria Geral, Princípios, Pressupostos, Gonçalo Andrade e Castro | Inês Folhadela | Rita Lobo Xavier pag. 81 : No caso da condenação em multa, também não depende da formulação de um pedido, opera oficiosamente, embora a condenação da parte como litigante de má‑fé deva ser precedida de discussão, de acordo com o princípio do contraditório.”.
[2] O art.º 3.º, 3 preceitua: o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
[3] Proferido no processo n.º 574/2022 da 1.ª Secção cujo relator foi o Conselheiro José António Teles Pereira.
[4] É que o despacho nem sequer identifica o sujeito da potencial condenação como litigante de má-fé.
[5] Luís Mendonça in “O Contraditório e a proibição das decisões-surpresa” consultável em https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf.
[6] In estudo cit.
[7] Consultável em https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html.
[8] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 23.6.2022 (Conselheiro Fernando Batista).
[9] Assim, Ac. Rel. Lisboa de 17.4.2018, relatado pelo Des. Torres Vouga e acessível na base de Dados do IGFEJ.