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ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
CONTRATO DE SEGURO
ANULABILIDADE
LESADO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
EQUIDADE
Sumário
1. É anulável o contrato de seguro celebrado mediante declarações inexatas por parte do segurado/tomador do seguro que declarou que se encontrava legalmente habilitado a conduzir veículos automóveis quando bem sabia que não possuía carta de condução. 2. A anulabilidade não é oponível ao lesado, mantendo-se a responsabilidade da seguradora pela indemnização dos danos causados com culpa do segurado, sem prejuízo do direito de regresso da seguradora. 3. O decretamento da providência de arbitramento de reparação provisória depende da alegação e prova indiciária, a cargo do Requerente, dos seguintes requisitos: a) a existência de um direito de indemnização pela produção de um dano; b) a situação de necessidade económica do lesado; c) o nexo de causalidade entre a situação de necessidade verificada e o dano. 4. A fixação do montante da renda obedece a critérios de equidade, devendo ser fixado um valor que assegure ao lesado, como antes do acidente, as suas necessidades básicas de acordo com o seu padrão de vida, sem descurar as despesas acrescidas que tem de suportar por causa dos danos causados pelo acidente. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Processo n.º 5208/23.8T8STB.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C..., ... – J...
Apelante: Fundo de Garantia Automóvel
Apelados: AA e outros
2Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
AAinstaurou procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória contraSEGUROS LOGO, S.A. e FUNDO DA GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA) pedindo a condenação das Requeridas a suportarem o pagamento de uma pensão provisória no valor de €3.000,00 mensais até ao dia 01 de cada mês, desde a citação até ao pagamento integral e efetivo do montante da condenação que vier a ser proferida na sentença que julgue a ação principal.
Alegou, em síntese, que no dia 08-03-2023, quando conduzia o seu motociclo de matrícula ..-UQ-.., foi embatido pelo veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-QC, conduzido por BB, sem habilitação legal para conduzir, que invadiu a faixa de rodagem onde seguia o Requerente.
Em consequência do acidente sofreu danos corporais que determinaram a amputação de parte da perna esquerda, tendo ficado dependente de cadeira de rodas e impossibilitado de trabalhar (era ...), para além de necessitar de apoio psicológico, bem como de tratamentos necessários à sua recuperação.
Mais alega que carece de apoio em termos económicos, pois o subsídio de doença que recebe da Segurança Social é insuficiente para fazer face às despesas que tem de suportar, acrescidas pela situação de doença em que se encontra, o que justifica o pedido de arbitramento de reparação provisória.
Mais alegou que, à data do acidente, a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo de matrícula ..-..-QC estava transferida para a Requerida SEGUROS LOGO, S.A. que recusou assumir a responsabilidade do sinistro por o condutor do veículo segurado não ser detentor de carta de condução, considerando, por essa razão, não existir seguro válido à data do mesmo.
Também alegou que, assim sendo, a reparação dos danos causado por quem se encontra em incumprimento quanto à obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo FGA, nos termos dos artigos 47.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, alínea a) e 49.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 271/2007, de 21-08, razão pela qual também demandou aquele Fundo.
Juntou documentos para comprovar o alegado.
Por requerimento de 28-08-2023, o Requerente, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 271/2007, de 21-08, requereu a citação do condutor do veículo de matrícula ..-..-QC, BB, na qualidade de responsável civil, o que veio a ser deferido.
BB apresentou contestação aceitando a prova que viesse a ser produzida sobre a dinâmica do acidente e consequente responsabilidade, alegando, no mais, que, à data do acidente, existia seguro válido e eficaz remetendo, ademais, para as notificações que a seguradora lhe fez após o acidente para pagar a anuidade seguinte.
Quanto à situação económica do Requerente, impugnou o alegado, concluindo pela inexistência de estado de necessidade que justifique o decretamento da providência requerida.
Também o FGA apresentou contestação e, no que ora releva, impugnou por não serem factos pessoais, nem estar obrigado a conhecer, o alegado pelo Requerente; impugnou a letra e assinatura dos documentos oferecidos pelo Requerente; questionou o valor peticionado, concluindo, em suma, pela improcedência do procedimento cautelar.
Do mesmo modo, também a seguradora, agora através da GENERALI SEGUROS, S.A., apresentou contestação, defendendo que, em face da nulidade do seguro, não é responsável pela indemnização dos danos resultantes do acidente, remetendo a responsabilidade para o FGA, impugnando, ainda, o valor mensal pedido a título de arbitramento de reparação provisória.
Foi produzida prova arrolada pelas partes, tendo o Requerente apresentado também prova documental em sede de audiência final.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a providência cautelar, nos seguintes termos:
«(…) decido arbitrar a quantia mensal de 1.400,00€ (mil e quatrocentos euros), ao Requerente, AA, a pagar pelo Requerido, Fundo de Garantia Automóvel, até ao dia 01 de cada mês, desde a citação até pagamento integral e efetivo do montante da condenação que vier a ser proferida na sentença que julgue a ação principal; indo improcedente o presente procedimento cautelar quanto à Requerida, Seguros Logo, S.A., atualmente Generali Seguros, S.A.
Quanto ao Requerido, BB, responde civilmente perante o Fundo Garantia Automóvel.»
Inconformado, interpôs recurso de apelação o FGA, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«A. A douta Sentença recorrida condenou o Fundo de Garantia Automóvel solidariamente com o Requerido BB a pagarem ao Requerente a quantia mensal de € 1.400,00, por aquele se encontrar numa situação de carência económica. Julgando improcedente o procedimento cautelar quanto à Requerida Generali Seguros, SA.
B. Quanto ao contrato de seguro celebrado entre o Requerido BB e a Requerida Generali, ficou demonstrado que, efetivamente o requerido não estava habilitado com licença de condução de veículos automóveis.
C. Facto esse que a Generali diz, apenas ter tomado conhecimento após a data do acidente, motivo pelo qual veio anular o contrato de seguro desde o seu início, ou seja, desde 04 de julho de 2022 e que a não existirem as falsas declarações prestadas pelo Requerido no preenchimento da proposta de seguro on line, quanto á habilitação legal de condução de veículos o seguro não teria sido efetuado.
D. Sendo certo que, não fosse a falta de habilitação legal para conduzir, por parte do Requerido, o seguro estava valido até 03 de julho de 2023, sendo que o acidente ocorreu a 08 de março de 2023.
E. Ora, dúvidas não restam que devido à falta de habilitação legal para conduzir, a seguradora pode anular o contrato de seguro, desde o seu início.
F. Questão diferente é saber se tal anulação pode ou não ser oponível aos terceiros lesados, neste caso ao Requerente. Neste sentido, refira-se o Despacho do Tribunal de Justiça, 7ª Secção, datado de 13 de outubro de 2021: No que respeita aos direitos reconhecidos aos terceiros lesados, o art.º 3º primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 opõe-se a que uma companhia de seguros de responsabilidade civil automóvel possa invocar disposições legais ou cláusulas contratuais para recusar indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado por um veículo segurado (v., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Fidelidade- Companhia de Seguros, C-287/16, EU:C:2017:575, n.º 24 e jurisprudência referida).”
G. Pois, ainda que se entenda que, como previsto no Art.º 429º do Código Comercial, as declarações inexatas ou reticentes são pesadamente sancionadas com a nulidade do contrato, com o fundamento de que o segurador tem de confiar nas declarações do tomador para fixar as condições do contrato e o alcance das suas obrigações, não podendo o segurador comprovar a sua exatidão para efeitos da estimação do risco em virtude do volume de declarações que recebe normalmente e pela dispersão geográfica dos riscos.
H. O próprio Tribunal constitucional, também já se pronunciou sobre o alcance do artigo 429º do C. Comercial no Ac. N.º 524/99 de 29-09-99, D.R. II Série, de 17-03-2000, afirmando: “A exacta determinação do risco constitui um aspeto fundamental na disciplina do contrato de seguro, uma vez o montante de prémio a pagar pelo segurado é fixado em relação ao risco e que uma exacta determinação do risco por parte do segurador é suscetível de se repercutir na gestão da empresa e na possibilidade de proporcionar à generalidade dos seguradores a garantia e a segurança pretendidos.”
I. No caso em apreço, ficou demonstrado que o Requerido, efetivamente, não tinha licença para conduzir veículos automóveis.
J. No entanto, estatui o artigo 22.º do DL 291/2007, sob a epigrafe “Oponibilidade de exceções aos lesados”, que: Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro. K. Que, no caso de o veículo seguro estar a ser conduzido por alguém não encartado, a seguradora não pode opor tal anulação ao terceiro lesado, tanto mais que conforme o disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 27º do DL 291/2007 de 21.08, “Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso, contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado.”
L. Ou seja, a seguradora terá que satisfazer as indemnizações devidas aos terceiros lesados, tendo, posteriormente, direito de regresso contra o condutor não habilitado a conduzir.
M. Também neste sentido, Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. 647/11.0TBVPV.L1-2, datado de 20-10-2016:
“Como expressamente se defendeu no Ac. STJ de 08.06.2006 (Pº 06A1435), infere-se que, no âmbito do seguro obrigatório, não pode a seguradora desonerar-se para com o lesado, invocando a mera anulabilidade que não esteja directamente prevista no DL 522/85, nomeadamente não lhe podendo opor qualquer anulabilidade prevenida em outra lei, geral ou especial, designadamente a anulabilidade (não “nulidade”) prevista no citado art. 429º do Cód.Comercial – v. neste mesmo sentido Acs. STJ de 14.11.2006 (Pº 06A3465), de 06.11.2007 (Pº 07A3447), de 16.10.2008 (Pº 08A2362), de 08.04.2008 (Pº 08A356) e de 31.05.2011 (Pº 2693/07.9TBMTS.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Razões de ordem social reclamam que a reparação das vítimas seja rápida e segura, impondo tais exigências um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, salvo em casos excepcionais Com efeito, como se lê no relatório do Decreto-Lei nº 291/2007 “A institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revelou-se uma medida de alcance social inquestionável, que com o decurso do tempo, apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidente de viação (...)”.
Importa, porém, alcançar um equilíbrio justo, por um lado, entre o dever do tomador do seguro de prestar informações verdadeiras e, por outro lado, o dever da seguradora de sindicar minimamente as declarações prestadas pelo tomador do seguro, pelo menos, aquelas que assumem um relevo particular na apreciação do risco.
A seguradora, que é detentora de uma estrutura empresarial profissionalizante, está obrigada a um nível de diligência elevado, incumbindo-lhe estabelecer uma eficaz organização, por forma a que, situações anómalas ou declarações incorrectas do candidato a tomador do seguro, e que sejam susceptíveis de serem facilmente detectadas, lhe permitam assumir, desde logo, antes da aceitação do seguro, uma atitude preventiva, tomando medidas adequadas com vista a esclarecer as dúvidas que possam resultar dessa análise preliminar que à seguradora incumbe efectuar.
O que não pode deixar de ser censurável - e se rejeita - é que a seguradora aceite, sem mais, a celebração de um contrato tão somente com base nas declarações do tomador do seguro, sem proceder a uma diligência mínima para sindicar essas declarações – como terá sucedido no caso em apreciação – eventualmente com o fundamento de que a sanção legal a protegeria das declarações erróneas.
Com efeito, in casu, não alegou e, consequentemente, não logrou a ré fazer prova, de ter efectuado qualquer diligência ou exigido a apresentação de qualquer documento registral donde decorresse a presunção de que o veículo pertenceria ao tomador do seguro.
Entende-se, assim, tal como se alude no Ac. R.L de 18.04.2013, de que foi relator o ora 1º adjunto, citando o Ac. STJ de 03.10.1995 (revista 87.346), não publicado, que “o dever de boa fé, com os seus corolários de lealdade, informação é recíproco. Se o segurado tem o dever de bem esclarecer, o segurador tem o dever de suscitar e concorrer para um correcto esclarecimento, mormente quando ele pode advir, simplesmente, do carácter público dos serviços registrais”.
No fundo, tudo se reconduz à aplicação dos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade «venire contra factum proprium».
A ausência de prova de diligências mínimas, por parte da seguradora, para tentar sindicar as
declarações do tomador do seguro de que seria proprietário do veículo acarreta, como consequência, que o risco de ter celebrado um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por alguém que nenhuma ligação mantinha com o veículo cujo condutor deu causa ao sinistro, corre por conta da seguradora.
Não poderá, pois, a ré seguradora prevalecer-se de uma circunstância para a qual ela própria terá contribuído, uma vez que teve ocasião de evitar a inexactidão constante da proposta de seguro, e tentar obter elementos mais detalhados, num aspecto susceptível de relevar para a apreciação do risco, para mais tarde, após o sinistro, pretender a declaração de nulidade do contrato, escusando-se a pagar as indemnizações decorrentes do sinistro imputável ao condutor do veículo alvo da cobertura que a seguradora aceitou.
A omissão, por parte da ré seguradora, de um especial dever de exigência na sua actividade de análise e confirmação da declaração de risco, inobservando qualquer diligência mínima, com vista ao exacto conhecimento do risco que aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos supra referidos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum próprio, que aquela deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se
desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve ocasião de evitar.
Assim sendo, considera-se que a ré seguradora não poderá prevalecer-se da nulidade do contrato, quando facilmente poderia conhecer a falta de veracidade da declaração prestada pelo tomador do seguro.
N. Posto isto, a proceder a presente Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória, a mesma deverá apenas ser procedente quanto à Requerida Generali, por força do disposto nos artigos 22º e 27º do DL 291/2007 de 21.08.
O. Por outro lado, quanto à reclamação da matéria de facto e consequente estado de carência económica do Requerente, convém salientar que o Autor vive em união de facto com a testemunha CC, advogada de profissão.
P. Autor vive em união de facto com a testemunha CC, advogada de profissão, tendo a mesma declarado que:
- Esta aufere mais € 1.500,00 mensais de rendimento;
- Além da casa de morada de família no ..., ambos também adquiriram mais dois
imóveis, com recurso, parcialmente a empréstimo bancário e outra parte com recurso a empréstimo de familiares.
- Esses dois imóveis encontram-se arrendados, do qual tiram rendimentos superiores a € 2.000,00 mensais.
Q. Perante tal depoimento, conclui-se que as despesas fixas que o Requerente alega serem só dele, devem ser distribuídas pelo casal, em partes iguais, uma vez que adquiriram os imóveis em compropriedade e vivem em união de facto.
R. Pois, embora não referido na douta sentença, resulta das declarações de IRS, juntas pelo Requerente, a pedido do FGA, que existem rendimentos prediais superiores a 2.000,00 € mensais. Aliás rendimentos esses, também corroborados pelo depoimento da testemunha CC, companheira do Requerente.
S. Assim, quanto ao facto 37 dos factos assentes, ou se refere que os 1.900,00 € mensais são despesas do agregado familiar ou se reduz para o valor efetivamente correspondente ao Requerente.
T. Quanto ao facto 45 da matéria assente, além da redação que lhe é dada, ou seja, que atualmente recebe, pego pela Segurança Social, cerca de 1.100,00 euros mensais, também deveria constar que o agregado familiar tem rendimentos prediais de mais de 2.000,00 € mensais, conforme declarações de IRS, juntas pelo requerente.
U. Mas, ainda que considerando os rendimentos do agregado familiar do Requerente por defeito, no mínimo, têm rendimentos superiores € 4.600,00 € (1.100,00 € (S. Social) + 2.000,00 € (rendimentos prediais) + 1.500,00 € (rendimento da companheira do Requerente).
V. Ora, se as despesas fixas do agregado familiar são cerca de 1.900,00 € mensais, restam 2.700,00 €.
Mas, imaginando que carecessem dos 1.400,00 € mensais sentenciados, com despesas médicas e medicamentosas resultantes do acidente, o que não se concebe, por não demonstrado, ainda sobraria agregado familiar do Requerente € 1.300,00 mensais.
W. Assim, não se vislumbra, salvo o devido respeito, como se conclui que o Requerente se encontra numa situação de carência económica. A menos que, o douto tribunal, por lapso, se tenha esquecido de contabilizar os rendimentos prediais do Requerente!
X. Caso contrário, não se mostram preenchidos os requisitos para o deferimento da presente providência, previstos no art.º 388º do C.P.C., que passaremos a citar: “1 – Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o n.º 3 do artigo 495º do Código Cível, requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como recuperação provisoria do dano. 2 – O juiz defere a providência cautelar requerida, desde que se verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido. 4- O disposto nos números anteriores é também aplicável aos casos em que a pretensão indemnizatória se funde em dano suscetível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.
Y.A douta Sentença recorrida ao condenar o FGA no pagamento ao Requerente, violou o disposto nos Artigos 22º e 27º, ambos DL 291/2007 de 21.08 e Art.º 388º do C.P.C.»
Apresentaram resposta ao recurso o responsável civil e a seguradora, defendendo a confirmação da sentença. II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Da anulabilidade/nulidade do contrato de seguro;
- Oponibilidade ao lesado/FGA;
- Insuficiência económica do Requerente e fixação do valor da renda.
B- De Facto
A 1.ª instância deu como indiciariamente provada a seguinte matéria de facto:
«1. No dia 08 de março de 2023, pelas 19 horas e 30 minutos, na Estrada ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., foram intervenientes os veículos com matrícula ..-UQ-.. (doravante ...), ..-..-QC (de agora em diante ...) e ..-NL-.. (doravante ...);
2. O ..., um automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., era propriedade e conduzido por BB;
3. O ..., um motociclo, da marca ..., 125cc, cor preto, modelo ... era propriedade e conduzido pelo Requerente, AA;
4. O ..., um automóvel ligeiro de passageiros, era propriedade e conduzido por DD;
5. O condutor do veículo ... circulava sem título de condução;
6. O tempo era bom;
7. O pavimento estava húmido, sem obstáculos ou obras;
8. O local onde ocorreu o sinistro configura uma reta;
9. A faixa de rodagem é composta por duas vias, em sentidos opostos;
10. O motociclo ..., e o veículo ... circulavam em sentido a ...;
11. O veículo ... circulava em sentido oposto ao do Requerente o ... circulava à frente do ..., no mesmo sentido daquele;
12. Sem que nada o fizesse prever, o veículo ... invadiu a via de trânsito onde circulava o ..., embatendo com a frente esquerda, na lateral esquerda do motociclo;
13. A condutora DD, que circulava ao volante veículo ..., de modo a tentar evitar o embate frontal com o ..., desviou-se para o sentido oposto;
14. Tendo ficado com danos na lateral direita, danificando a jante da roda da frente, risco ao longo do carro e o espelho direito completamente partido;
15. O acidente foi participado à Requerida LOGO poucos dias após o sinistro;
16. A Requerida LOGO não assumiu uma posição relativamente à responsabilidade do sinistro dentro do prazo legal que dispunha para o efeito, ultrapassando largamente o período de 45 dias;
17. Apenas em 17 de julho de 2023, cerca de quatro meses após o sinistro, a Requerida LOGO, recusou a responsabilidade do sinistro, alegadamente por não existir seguro válido à data do mesmo;
18. Em consequência da não assunção de responsabilidade da Requerida LOGO, o Requerente no mesmo dia – 17.07.2023, interpelou o FGA, estando o processo ainda em fase de instrução;
19. Em consequência do sinistro, o Requerente sofreu um traumatismo no membro inferior esquerdo, por esmagamento, tendo sido posteriormente amputado;
20. Após ter sido assistido no Hospital ..., seguidamente foi transferido para o Hospital ..., e posteriormente para o Hospital ..., em Lisboa;
21. No dia 09 de março de 2023 o Requerente foi sujeito, sob anestesia geral, a amputação pelos ossos do tarso, mantendo-se o calcâneo e o talus, a colocação de dreno passivo, e desbridamento cirúrgico;
22. Em 27 de março de 2023, foi submetido a anestesia geral, para amputação osteomioplástica transtibial pelo terço médio da perna com interposição de fragmento de perónio perfundido pelo eixo peroneal entre as extremidades ósseas distais do perónio e da tíbia;
23. O Requerente ficou com dores fantasma de predomínio noturno, e com dores no membro residual quando está mais tempo em ortostatismo;
24. Por causa da amputação do pé esquerdo, o Requerente ficou dependente da utilização de cadeira de rodas e canadianas;
25. Devido à violência do embate, e dos gravíssimos danos que sofreu, o Requerente necessita de acompanhamento psicológico;
26. E ainda de realizar sessões de fisioterapia;
27. À data do acidente o Requerente era trabalhador dependente da G..., SA. com a categoria profissional de ...;
28. As funções do Requerente consistem em efetuar o plano de carregamento e descarregamento de aeronaves, gerir o tráfego de pessoas, cargas e de equipamentos, assistir e coordenar a rotação das aeronaves, e atender passageiros especiais, entre estes idosos, incapacitados e menores não acompanhados;
29. A atividade exercida pelo Requerente exige robustez, agilidade e esforços físicos acrescidos;
30. Em virtude das sequelas do acidente, o Requerente ficou impossibilitado de exercer a sua atividade profissional nos termos que vinha exercendo até ao momento do acidente, encontrando-se ainda de baixa médica pelo Serviço Nacional de Saúde;
31. À data do acidente o Requerente auferia uma retribuição mensal base de 1.285,00€ (mil duzentos e oitenta e cinco euros);
32. O Requerente é pai de uma filha menor;
33. O Requerente é divorciado e vive com a sua companheira, CC;
34. Vive numa casa que não é compatível com a sua condição física, sendo
necessário proceder ao alargamento das portas que permitam a movimentação da
cadeira de rodas;
35. Entre os meses de março, abril e maio o Requerente auferiu da Segurança Social,
uma Concessão Provisória de Subsídio de Doença, com o valor diário entre
32,37€ (trinta e dois euros e trinta e sete cêntimos) e 35,31€ (trinta e cinco euros
e trinta e sete cêntimos);
36. Desde o dia 6 de junho de 2023 que o Requerente recebe uma Concessão
Provisória de Subsídio de Doença, no valor diário de 40,67€ (quarenta euros e
sessenta e sete cêntimos);
37. O Requerente tem despesas mensais fixas na ordem dos 1.900,00€ (mil e novecentos euros), de acordo com o quadro e demais infra,
38. O Requerente despende cerca de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) mensais em alimentação;
39. O Requerente auferia, antes do acidente de viação, um vencimento não inferior a 2.200,00 € (dois mil e duzentos euros), de acordo com a média dos últimos seis meses anteriores ao sinistro em causa;
40. Desde o sinistro que o Requerente tem despesas com deslocações, já tendo percorrido 3290 km;
41. Sendo que, já despendeu um montante de 1.184,40€ (mil cento e oitenta e quatro euros) “0,36 x km/h”;
42. Previsivelmente o requerente vai continuar a precisar de consultas de fisioterapia e tratamentos o que implica mais deslocações e despesas mensais;
43. Atendendo à gravidade das sequelas que o Requerente ficou a padecer, ficou a necessitar de tratamentos, nomeadamente de fisioterapia sendo, que ao momento já despendeu de 540,00€ (quinhentos e quarenta euros);
44. Igualmente será necessário adquirir uma prótese transtibial endosquelética no valor de 6.500,00€ (seis mil e quinhentos euros);
45. Atualmente recebe, pago pela Segurança Social, cerca de 1.100,00 euros mensais;
46. A Generali Seguros, S.A., anterior Seguros Logo, S.A., em 4/7/2022, celebrou com BB um contrato de seguro responsabilidade civil automóvel, através da apólice n. ...00 que garantia responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-..-QC, o qual teve início em 04 de julho de 2022 e teria termo a 04 de julho de 2023;
47. O segurado/tomador de seguro prestou falsas declarações aquando da celebração do contrato de seguro, ao declarar que era titular de carta de condução de veículos automóveis;
48. Quando soube que o condutor/proprietário do veículo, BB, não era portador de carta de condução que o habilitasse a conduzir, a Generali Seguros, S.A., anterior Seguros Logo, S.A., após a ocorrência do acidente de viação em, apreço e averiguação ao sinistro, enviou missivas ao tomador de seguro, nas quais lhe transmitiu a nulidade do contrato de seguro desde o seu início;
49. No dia 28 de junho de 2023 através de correio eletrónico a companhia de seguros LOGO S.A., enviou ao Requerido uma mensagem a recordar que o seguro deveria ser pago até 03 de julho de 2023, enviando os respetivos dados para o Requerido proceder ao pagamento;
50. No dia 09 de julho de 2023, a companhia de Seguros LOGO enviou por correio eletrónico ao Requerido as novas condições para a próxima anuidade e os respetivos dados para pagamento;
51. No dia 12 de julho de 2023 foi enviado ao Requerido através de correio eletrónico pela seguradora LOGO S.A, uma comunicação a informá-lo que o seguro deixaria de estar ativo a partir do dia 04 de julho de 2022;
52. O Requerido ao ver a mensagem eletrónica pensou que se tratava de um lapso de erro de escrita por parte da LOGO, relativamente ao ano indicado (2022);
53. O Requerido não havia renovado o contrato de seguro dentro da data limite (04/07/2023), como havia sido solicitado pela LOGO, pelo que pensou que o estariam a informar relativamente à anuidade seguinte;
54. A 17 de julho de 2023 é o Requerido informado pela Companhia de Seguros LOGO SA., que o contrato titulado pela apólice n. ...00 é considerado nulo e de nenhum efeito desde 04 de julho de 2022;
55. Foi então, nesta data e com esta carta que o Requerido percebeu que a LOGO S.A., estava a recusar a responsabilidade, retroagindo os efeitos da validade do seguro à sua data de início, ou seja, 04 de julho de 2022;
56. O Requerido em meados do mês de março de 2023 iniciou com a companhia de seguros LOGO, S.A. a prestação dos esclarecimentos necessários e complementares relativamente às circunstâncias em que ocorreu o sinistro, bem como a identificação dos intervenientes.»
A 1.ª instância considerou indiciariamente não provada a seguinte factualidade:
«O referido seguro era válido na data da ocorrência do acidente de viação em causa.»
C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Impugnação da decisão de facto
O Apelante impugna a decisão de facto em relação aos pontos 37 e 45 dos factos provados.
Em relação ao ponto 37, alega que as despesas referidas no quadro inserido neste ponto de facto são despesas que, na sua maioria, terão de ser suportadas em partes iguais pelo Requerente e pela sua companheira, alcançando, assim, o valor de €1.079,02, em vez da soma de €1.900,00 considerada pelo tribunal a quo, ao qual adiciona o valor de €250,00 (valor da alimentação referido no ponto 38 dos factos provados, que não impugna), pelo que conclui que o valor das despesas deve ser fixado em €1.329,00 mensais.
Quanto ao ponto 45, alega que resulta da declaração de IRS que o Requerente tem Rendimentos prediais superiores a €2.000,00 mensais (confirmados pela testemunha CC, sua companheira) e que não foram tidos em conta, pelo que neste ponto deve ser adicionado ao valor ali referido (€1.100,00 pagos pela Segurança Social), mais €2.000.00 mensais.
Cumpre apreciar, considerando que se encontram minimamente preenchidos os requisitos da impugnação da decisão de facto previstos no artigo 640.º do CPC, importando, antes de mais, relembrar que estamos em sede cautelar e, por isso, a prova exigida por lei é meramente sumária ou perfunctória (sumario cognitio).
Analisada a prova junta aos autos, vista a fundamentação da decisão de facto e a motivação da impugnação, não nos suscita qualquer dúvida que a decisão de facto impugnada não merece reparo.
Desde logo, porque o impugnante não questiona a existência das despesas inseridas no quadro do ponto 37 dos factos provados, mas apenas que algumas delas devem ser divididas em partes iguais com a companheira.
E a pergunta que se impõe é esta: qual a prova em que se apoia o impugnante para dizer que tais despesas são suportada meias pelo Requerente e pela companheira? Não a menciona, claramente. Pelo que a sua impugnação baseia-se num pressuposto não probatoriamente demonstrado, o que determina a improcedência do pedido de alteração do valor alcançado pelo tribunal recorrido.
Quanto ao ponto 45 dos factos provados, a impugnação também improcede, porquanto o impugnante não demonstra probatoriamente que os rendimentos prediais correspondem a valor líquido disponível para a economia do Requerente (ou do casal constituído com a companheira). O que resulta do quadro inserido no ponto 37 é que existem dois empréstimos em relação aos quais incide uma renda e seguros. Competia ao impugnante provar que os rendimentos prediais, descontados tais custos, correspondiam aos alegados €2.000,00 mensais. O que não logrou demonstrar.
Aliás, o impugnante invoca o testemunho da companheira do Requerente, CC, mas sem concretizar, como lhe é exigido em face do artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, em que momento do depoimento a mesma referiu que os rendimentos prediais correspondem a €2.000,00 líquidos mensais.
Atento o exposto, também improcede a impugnação em relação a este ponto da decisão de facto.
2. Da anulabilidade/nulidade do contrato de seguro
Decorre dos factos indiciariamente provados que o acidente em discussão ocorreu no dia 08-03-2023 e que o condutor do veículo ..-..-QC, BB, não era portador de carta de condução que o habilitasse a conduzir, pelo que, e não obstante o referido condutor ter celebrado, em 04-07-2022, com a Seguros Logo, S.A. (atualmente Generali Seguros, S.A) um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, através da apólice n. ...00, que garantia a responsabilidade civil por acidente decorrente da circulação do referido veículo, com início em 04-07-2022 e termo em 04-07-2023, a seguradora após ter conhecimento das inexatidão das declarações do segurado/tomador do seguro, comunicou-lhe que considerava o contrato de seguro «nulo e de nenhum efeito desde 04 de julho de 2022» (cfr. factos provados 1, 46, 47, 48 e 54).
Atenta a data do sinistro, e no que concerne à legislação reguladora do contrato de seguro e seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, aplica-se ao caso, respetivamente, o Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro- RJCS-, que entrou em vigor em 01-09-2009 e é aplicável aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor deste diploma – cfr. artigo 2.º e 7º- parte preambular do diploma) e o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, em vigor desde 21-10-2007 – artigo 95.º).
Cabendo, ainda, referir que o Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04 revogou, entre outros, o artigo 429.º do Código Comercial (cfr. artigo 6.º, n.º 2, alínea a) da parte preambular do diploma).
E, por sua vez, o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08 revogou, entre outros, o Decreto-lei n.º 522/85, de 31-12 (cfr. artigo 94.º, nº 1, alínea a), deste diploma).
Referindo-se expressamente as revogações acima referidas porquanto nas alegações do recorrente são feitas alusões a este normativo e diploma, inaplicáveis ao caso dos autos, ainda que, em termos de interpretativos, sobretudo no que concerne ao elemento histórico, a legislação anterior possa ter alguma valia em termos argumentativos.
Como prescreve o artigo 24.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04, «O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes de celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora».
A omissão ou inexatidão das declarações por parte do tomador do seguro aquando da celebração do contrato de seguro, de natureza dolosa, encontra-se regulada no artigo 25.º do mesmo diploma estipulando o n.º 1, que em caso de «incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.»
Assim, a consequência prevista na lei para as omissões inexatas dolosas é a anulação do contrato de seguro e não a nulidade, sendo consabido que, apesar de serem vícios enquadráveis sob a figura geral da invalidade[1], têm regimes jurídicos diferentes, como decorre expressamente dos artigos 285.º a 294.º do Código Civil (CC), preceitos aplicáveis subsidiariamente ao contrato de seguro (cfr. na LCS o artigo 4.º).
Ou seja, para além do regime especial previsto no RJCS quanto à anulabilidade e nulidade do contrato de seguro, fora dessas situações não reguladas especificamente, são aplicáveis as regras gerais previstas no CC.
As omissões e inexatidões por parte do tomador do seguro sobre a falta de habilitação legal de conduzir, sabendo o declarante, tomador do seguro, que não possuía essa habilitação, evidenciam intenção e atuação dolosa e determinam a anulação do contrato de seguro nos termos do referido artigo 25.º, n.º 1, do RJCS.
Ora, no caso presente, ficou provado que o tomador do seguro sabia que não estava habilitado a conduzir quando celebrou o contrato de seguro, declarando precisamente o contrário, pelo que não resta dúvida que agiu de forma dolosa, assistindo à seguradora a faculdade de declarar a anulabilidade do contrato de seguro ao abrigo dos normativos supra citados, sendo juridicamente irrelevante em termos de análise do presente caso, que a seguradora, em vez de declarar o contrato de seguro anulável, tenha comunicado ao tomador que o mesmo era nulo.
Por outro lado, e como prescreve o n.º 2 do artigo 25.º do RJCS, «O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido n.º 1 (…) seguindo-se o regime da anulabilidade»
Consequentemente, as comunicações da seguradora ao segurado referentes ao pagamento da anuidade subsequente, em nada interferem com a faculdade da mesma proceder à anulação do contrato de seguro uma vez que apenas teve conhecimento posterior que o segurado tinha prestado declarações inexatas em relação à sua habilitação para conduzir.
Sublinhando-se que os autos não indiciam que a seguradora tenha de alguma forma negligenciado a obtenção de informação sobre esse elemento essencial na aferição dos pressupostos da celebração do contrato de seguro.
Assim, e considerando o efeito retroativo da declaração de anulabilidade do contrato de seguro, impõe-se concluir que no âmbito das relações entre a seguradora e o segurado/tomador do seguro, a seguradora não está obrigada a cobrir o sinistro, sem prejuízo do que infra se dirá sobre a oponibilidade da anulação do seguro ao lesado e ao FGA.
3. Oponibilidade ao lesado/FGA
A questão que agora se coloca é se a anulação do contrato de seguro pode ser oponível ao lesado e, subsequentemente, ao FGA na medida em que este fique sub-rogado nos direitos do lesado, caso se verifiquem os pressupostos legais da sub-rogação (artigos 48.º e ss do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08).
Para dirimir esta questão importa considerar o disposto no artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08 (que corresponde ao artigo 14.º do anterior regime previsto no Decreto-Lei n.º 522/85, de 31-12), que estipula do seguinte modo: «Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente».
No que ora releva para o presente recurso, extrai-se da previsão normativa transcrita que apenas a nulidade do contrato de seguro é oponível ao lesado.
Em caso de anulabilidade, como é a situação que se nos depara no caso sub judice, a mesma não é oponível ao lesado.
Importando referir que a anulabilidade do contrato de seguro por aplicação do artigo 25.º do RJCS se encontra fora do âmbito da previsão normativa supra transcrita. O que se sai reforçado pelo facto do RJCS, sendo posterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, não ter revogado aquele regime, como também é sublinhado em alguns arestos, exemplificando-se com o sumariado no Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 07-04-2016[2], onde se lê no seu ponto III: «O artigo 22º do DL nº 291/2007, de 21.08 não foi revogado (sequer tacitamente) pelo DL nº 72/2008, de 16.04, mantendo-se em vigor enquanto lex specialis relativamente ao regime que presentemente se mostra plasmado no art. 147º do último diploma citado.»
No mesmo sentido, discutindo de forma alargada a questão inclusive com recurso à jurisprudência do TJUE, veja-se o recente acórdão do STJ proferido em 16-01-2024[3], lendo-se no seu sumário: «I- Perante o incumprimento doloso, pelo segurado, do dever de informação previsto no artº 24º/1 e 2 do DL72/2008, de 16.04 (vulgo LCS), a fim de aferir se o artigo 22º do DL 291/2007, de 21.08 (vulgo SORCA - regime exclusivo do seguro automóvel) foi tacitamente revogado pelo artigo 25º/3 da LCS (lei geral), há que ponderar quer a relação de especialidade dos diplomas quer o Direito da UE vigente sobre a matéria (diretrizes de política legislativa) e a jurisprudência do TJUE e atender também à relevante doutrina e jurisprudência constante dos Tribunais superiores. II- Nessa ponderação, não se podendo considerar aquele normativo tacitamente revogado pela LCS, a anulação do contrato de seguro com ela celebrado é inoponível a terceiros lesados.»
Efetivamente, a jurisprudência dos tribunais superiores tem consistentemente decidido que a anulabilidade do contrato de seguro com base na falsidade ou inexatidão das declarações do segurado, prevista no regime do RJCS, não é oponível aos lesados por tal consequência jurídica se encontrar excluída da previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08 (também assim sendo decidido no âmbito da interpretação do artigo 14.º do revogado Decreto-Lei n.º 522/85, de 31-12 e do também revogado artigo 429.º do Cód. Comercial).
Neste sentido, e remetendo para jurisprudência do STJ em sentido idêntico, escreveu-se de forma incisiva no Acórdão do STJ de 31-05-2011 (reportando-se ao artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31-12)[4]:
«A razão de ser do preceito há-de encontrar-se na finalidade essencial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, na sua institucionalização como meio eficaz de protecção dos lesados, na socialização do risco, que cada vez vai assumindo mais relevo.
Tais razões que justificam a consagração do princípio da inoponibilidade das excepções contratuais gerais, restringindo a oponibilidade às situações previstas na própria lei do seguro obrigatório e à resolução ou NULIDADE nos termos legais em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.
Quer dizer, no que aqui interessa ter presente, o que o preceito determina é que, no âmbito dos contratos de seguro que tenham por objecto a cobertura de riscos sujeitos ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel a seguradora só pode invocar perante os lesados (isto é, só pode opor-lhes) as anulabilidades que estejam previstas na lei do seguro obrigatório (à data dos factos, no DL 522/85).
Qualquer outro vício gerador de anulabilidade do contrato, previsto noutro diploma legal ou norma jurídica geral ou especial, não pode ser aposta aos lesados.
Só a nulidade do contrato de seguro pode ser-lhes aposta.»
Em face do que vem sendo dito, alcança-se a conclusão que o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21-8, restringe consideravelmente os casos em que é possível à seguradora opor ao lesado a cessação do contrato, não podendo a seguradora invocar perante terceiros lesados quaisquer exclusões ou anulabilidades não previstas neste diploma legal, ou seja, está vedado opor-lhes qualquer anulabilidade prevenida em qualquer outra lei ou norma jurídica geral ou especial, incluindo a anulabilidade prevista no artigo 25.º, n.º 1, do RJCS.
Mantendo-se, por conseguinte, a vinculação decorrente desse mesmo contrato, respondendo a Requerida seguradora perante o lesado, ora Requerente, pelos danos emergentes do acidente causado pelo veículo seguro, por força do contrato celebrado com o responsável civil, BB, sem prejuízo de, satisfeita a indemnização, exercer o direito de regresso contra o mesmo, como prescreve o artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21-8.
Finalmente, importa acentuar que a demanda do FGA nestes autos em nada altera a conclusão supra alcançada. Independentemente da verificação dos pressupostos da intervenção do FGA nestes autos, que não cabe analisar na economia do objeto do presente recurso, caso o mesmo venha a suportar a indemnização devida ao lesado, fica sub-rogado nos direitos do lesado (cfr. artigos 47.º a 49.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08), pelo que também não pode a seguradora opor ao FGA a anulabilidade do contrato de seguro.
Decorre do exposto, que não se pode corroborar o decidido na decisão recorrida no que concerne à improcedência da requerida providência em relação à seguradora e a sua procedência em relação ao FGA, impondo-se decidir exatamente o inverso, ou seja, imputar à seguradora a responsabilidade pelo pagamento da renda a arbitrar ao sinistrado, julgando-se tal pedido improcedente em relação ao FGA.
4. Insuficiência económica do Requerente e fixação do valor da renda
Dispõe o artigo 388.º, n.º 1, do CPC, que, como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, pode o lesado requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.
O juiz defere a providência requerida desde que verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido (n.º 2), fixando o montante da renda peticionada equitativamente (n.º 3).
O n.º 4 do preceito estende a previsão normativa anterior aos casos em que o dano é suscetível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.
Como resulta do referido preceito, trata-se de uma medida antecipatória de reparação provisória do dano sofrido, mormente quando está em causa o direito à indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, no pressuposto de o dano ter determinado para o lesado uma situação de carência de meios económicos, que deve ser colmata imediatamente pelo requerido em prol dos princípios da justiça distributiva.
Assim, em face da lei, são três os requisitos deste tipo de providência:
a) a existência de um direito de indemnização pela produção de um dano;
b) a situação de necessidade económica do lesado;
c) o nexo de causalidade entre a situação de necessidade verificada e o dano.
Impende sobre o requerente da providência o ónus de alegar e provar os referidos requisitos, descrevendo o circunstancialismo que o faz titular do direito de indemnização em questão, expor a situação de necessidade que justifica a intervenção cautelar antecipatória daquele direito de indemnização, alegar o nexo de causalidade entre o descrito circunstancialismo e a sua situação de necessidade e concluir pelo pedido de pagamento de um indemnização provisória sob a forma de renda mensal.
No caso, atentos os factos provados, encontram-se provados os requisitos da requerida providência.
Os factos provados referentes à ocorrência e dinâmica do acidente evidenciam perfunctoriamente que se encontram preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil extracontratual pela prática de facto ilícito e culposo do responsável civil do qual resultaram danos para o ora Requerente (artigo 483.º do CC), impendendo sobre a seguradora, nos termos supra referidos, a obrigação de suportar o valor dos danos, verificando-se, assim, o preenchimento do primeiro e terceiro requisitos do decretamento da providência.
Quanto ao segundo requisito, a necessidade económica do lesado encontra-se sumariamente indiciada nos factos provados, porquanto o Requerente antes do acidente trabalhava e auferia um vencimento mensal não inferior a €2.200,00 (factos provados 31 e 39); após o acidente e por causa das lesões sofridas e sequelas das mesmas, encontra-se impossibilitado de trabalhar, encontrando-se de baixa médica (facto provado 30); tem despesas mensais na ordem dos €2.150,00 (factos provados 37 e 38) e recebe da Segurança Social €1.100,00 mensais (facto provado 45).
Para além das despesas básicas para a sua sobrevivência, acrescem outras despesas relacionadas com deslocações, consultas, tratamentos, incluindo a necessidade de aquisição de uma prótese (factos provados 40 a 44), que apenas existem por causa do acidente.
Os factos provados evidenciam que está demonstrada perfunctoriamente a situação de necessidade face aos gravíssimos danos sofridos em consequência do acidente e da necessidade de vários tratamentos relacionados com a sua recuperação.
A fixação do montante da renda obedece a critérios de equidade, devendo ser fixado um valor que assegure ao lesado, como antes do acidente, as suas necessidades básicas de acordo com o seu padrão de vida, sem descurar as despesas acrescidas que tem de suportar por causa dos danos causados pelo acidente.[5]
No caso, a sentença recorrida fixou uma renda no valor de €1.400,00 mensais.
Considerando que esse valor corresponde à diferença entre €2.500,00 (valor que o Requerente admitiu em sede de audiência ser o estritamente necessário) e €1.100,00 pagos pela Segurança Social, atento o referido critério de equidade, entende-se ser esse o valor que deve ser arbitrado.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida na parte em que decretou a presente providência em relação ao Fundo de Garantia Automóvel, decretando-a, ao invés, em relação à Requerida Logos, S.A. (atualmente Generali Seguros, S.A), arbitrando a favor do Requerente, a pagar pela seguradora, a renda mensal de €1.400,00 (mil e quatrocentos euros), a título de reparação provisória, até ao dia 01 de cada mês, desde a citação até ao trânsito da sentença que vier a ser proferida na ação principal.
Custas, em partes iguais, pela seguradora e pelo responsável civil (artigo 527.º do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido ao segundo.
Évora, 27-06-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Mário Branco Coelho (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
_________________________________________________
[1] Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Invalidade, inexistência e ineficácia”, in Católica Law Review, Vol. I, n.º 2, 2017, p. 13, em https://revistas.ucp.pt/index.php/catolicalawreview/article/view/1980
[2] Proc. n.º 73/14.9T8BRG.G1 (Miguel Baldaia Morais), em www.dgsi.pt
[3] Proc. n.º 52/19.0T8VCT.G1.S1 (Maria Amélia Ribeiro), em www.dgsi.pt
[4] Proc. n.º 2693/07.9TBMTS.P1.S1(Moreira Alves), em www.dgsi.pt
[5] MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Providências Cautelares”, Almedina, 2015, p. 305 e ss; CÉLIA SOUSA PEREIRA, “Arbitramento de Reparação Provisória”, Almedina, 2003, p. 126.