LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Sumário


1. Não existe contradição quando se julga improcedente a exceção de legitimidade ad causam deduzida contra o demandado (pressuposto processual), mas se absolve o mesmo do pedido em sede de sentença, que conheceu de mérito, com fundamento na sua falta de legitimidade substantiva ou ad actum.
2. O dever de gestão processual não derrogou o princípio do dispositivo e do pedido, não cabendo ao tribunal oficiosamente e no âmbito desse dever, conceder à parte prazo para deduzir um articulado superveniente para fazer intervir na ação um terceiro.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 2738/22.2T8FAR.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C... – ... – J...
Apelante: P..., Lda
Apelada: M..., SA

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
P..., LDA. intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra M..., S.A. pedindo a condenação desta a pagar-lhe €14.042,37, sendo €1.050,00 pelo aluguer de um veículo; €8.156,71 pelos custos com a reparação do veículo com a matrícula ..-..-LI e €4.835,66 pelo custo suportado com a reparação da viatura com a matrícula ..-XT-...
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese apertada, que adquiriu à Ré, em datas diferentes, mediante a celebração de dois contratos de locação financeira celebrado com instituição financeira, os veículos com as matrículas supra referidas, tendo-lhe sido dada uma garantia contratual por 2 anos.
Os veículos tiveram avarias no motor, em momentos distintos, tendo a reparação de ambas as viaturas sido suportada pela Autora.
A Ré declinou a responsabilidade pelo pagamento das quantias despendidas invocando que a garantia foi prestada pela P... e que esta também declinou a sua responsabilidade por ter invocado que a Autora não efetuou as revisões obrigatórias aos veículos conforme contratado para efeitos de cobertura da garantia.
Mais alegou que despendeu com o aluguer de um veículo de substituição do veículo com a matrícula ..-..-LI, entre 26-05-2022 e 26-06-2022, a quantia peticionada de €1.050,00.

Contestou a Ré por exceção e por impugnação deduzindo, ainda, reconvenção.
Por exceção invocou a sua ilegitimidade e a caducidade do direito de acionar.
Por impugnação invocou que não concedeu à Autora a garantia contratual invocada e que a ... também declinou a responsabilidade por a Autora não ter realizado as revisões nos termos previstos na garantia.
Em sede reconvencional pediu a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de €1.872,46, mais juros de mora à taxa legal, referente ao custo da reparação que fez na viatura ..-XT-.., bem como o valor de €40.000,00 como indemnização pelos custos suportados com a cobrança do valor em dívida.

Replicou a Autora pedindo a improcedência da reconvenção invocando, ademais, que a reparação estava coberta pela garantia da marca, imputando a responsabilidade pelo custo da reparação à Reconvinte.

Em fase de saneamento dos autos, a reconvenção não foi admitida e a exceção de ilegitimidade foi julgada improcedente.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação apresentando as seguintes CONLUSÕES:
I- Resulta do despacho saneador que (…) “Compulsado o teor da petição inicial, constata-se que a relação material controvertida apresentada pela Autora se estabelece entre esta e a Ré ( adquiriu os veículos à Ré e foi na oficina da Ré que se procedeu à reparação dos mesmos), sendo o alegado pela Ré contraprova dos factos alegados pela Autora e que a esta cumprirá provar (...)”. Mais julgou-se improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da recorrida M..., aos invés na douta sentença recorrida veio a ser julgada a procedente a ilegitimidade passiva da recorrida M..., completamente em contradição com o julgado no despacho saneador.
II- Na audiência de discussão em julgamento, a convite do tribunal a quo, veio a recorrida juntar dois documentos de garantia das duas viaturas, com base no quais foi decidida a ilegitimidade da recorrida, o julgamento prosseguiu não tendo a recorrente prescindido do prazo de vista do documento. Uma vez que os documentos em causa que a recorrente desconhecia, foram absolutamente determinantes na improcedência da ação por ilegitimidade passiva da Ré M.... Impunha-se pois a intervenção provocada da agora responsável ... para contra ela e contra a recorrida prosseguir a ação.
III- Cabe ao Tribunal a quo quem é responsável, até porque a recorrida M... sempre poderá ser responsável por deficiência e más reparações.
IV- Verifica-se na douta sentença manifesta contradição entre os factos provados e não provados, pois simultaneamente dão-se como provadas as intervenções/revisões/reparações e por outro lado como factos não provados as revisões não terem sido feitas.
V- V- As avarias foram reparadas pela recorrida dentro dos períodos da garantia de 2 anos sem limite de quilometragem e dentro dos intervalos de manutenção de 50.000kms.
VI- A recorrente viu-se impossibilitada de utilizar a viatura ..-..-LI em consequência da avaria de 18 de maio de 2022, vendo-se obrigada a recorrer a viatura de aluguer no período em que esteve privada da utilização, o que não foi devidamente apreciado.
VII- A douta sentença recorrida viola por má interpretação o disposto no artigo 607.º n.º 4 do CPC e artigo 5.º n.º 2 do CPC.
Nestes termos e nos demais de direito deve a douta sentença recorrida ser revogada, sendo ordenado que os autos baixem à primeira instância para produção de prova complementar e apuramento das responsabilidades da nova Ré P... S. A. a ser chamada à ação solidariamente com a atual Ré ora recorrida.

Foi apresentada resposta ao recurso pugnando a Ré pela confirmação do decidido.
Foram colhidos os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões a decidir no recurso são as seguintes:
1.ª - Se existe contradição entre o julgamento da improcedência da exceção de ilegitimidade da Ré em sede de despacho saneador e a improcedência da ação;
2.ª- Se competia ao tribunal recorrido conceder prazo à Autora para deduzir articulado superveniente com vista a fazer intervir na ação a fabricante dos veículos;
3.ª - Se existe contradição entre os factos provados e os não provados;
4.ª questão – Da responsabilidade da Ré pela reparação das avarias e pela custo da privação do uso da viatura ..-..-LI.

B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
1. A Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto o comércio de veículos automóveis e a reparação dos mesmos, sendo uma concessionária autorizada da marca ... e outras marcas de automóveis em Portugal.
2. A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a indústria de panificação e pastelaria e comércio e exploração de restaurantes e bar.
3. Por acordo escrito assinado pelo Banco BPI S.A., pessoa colectiva n.º ...34 e a Autora, que intitularam de “Contrato de locação financeira n.º ...00”, datado de 19.08.2020, declarou aquela ceder o gozo a esta do veículo automóvel de marca ..., modelo ..., versão ..., com a matrícula ..-..-LI.
4. A aquisição referida em 3) foi levada ao registo.
5. O veículo ..-..-LI foi entregue à Autora no âmbito do acordo referido em 2), obrigando-se a Autora a liquidar ao Banco BPI, S.A. 60 prestações mensais variáveis, a primeira no valor de € 3.700,00, e as restantes no valor de € 565,01, e valor residual € 800,00.
6. Foi a Ré, M... S.A., quem forneceu o veículo identificado em 3) no estado de novo ao Banco BPI S.A., tendo procedido à entrega do veículo à Autora em 25.08.2020
7. Aquando entrega do veículo ..-..-LI à Autora, foi entregue a esta também o documento intitulado “... certificado da garantia contratual”, onde consta, além do mais, que “(…) Este certificado deve ser preenchido e carimbado pelo concessionário revendedor para poder validar as garantias contratuais da .... A aplicação das garantias referidas depende da execução das revisões periódicas, como indicado em pormenor no plano de manutenções, que estão indicadas nos talões preenchidos neste folheto. Os benefícios desta garantia contratual não estão sujeitos a reparações e assistência que não estejam abrangidas por esta garantia, depois de serem efectuadas por uma oficina de reparação autorizada. As garantias contratuais da ... têm efeito a partir da data efetiva da entrega do veículo (data de início da garantia introduzida nesta página). Os detalhes das garantias contratuais ..., das quais o seu veículo beneficia, bem como as respectivas condições de aplicação, estão indicados formulário de encomenda do seu novo veículo (…)”, e ainda “(…) a realização de revisões periódicas é um requisito obrigatório para o cumprimento das condições das garantias contratuais da ...”.
8. Aquando entrega do veículo ..-..-LI à Autora, foi ainda entregue o documento intitulado “condições gerais de venda e de garantia”, onde consta, entre o mais, o seguinte:
“(…) 6. Garantias contratuais .... As disposições comuns às diferentes garantias comerciais ...: o seu veículo novo está abrangido por cada uma das garantias comerciais ..., garantias contratualmente pela P..., representada em Portugal pela P... S.A. (doravante designada por «fabricante»), a partir da data de início de garantia, inserida no “certificado de garantia” do livro de manutenção, para o período indicado e sem limitação de quilometragem, salvo disposições específicas em contrário que sejam do seu conhecimento. O benefício das garantias comerciais ... não está subordinado à realização das operações de manutenção periódicas em reparadores autorizados ..., devendo, contudo, ser capaz de comprovar, através de factura e/ou outros documentos de suporte (gama de controlo), que, independentemente do operador onde tenha efetuado as operações de manutenção, foram
respeitadas todas as preconizações do fabricante. As situações que configurem má utilização ou utilização negligente da viatura serão excluídas da Garantia. As garantias comerciais não constituem um obstáculo à aplicação da garantia legal resultante da aplicação dos artigos 913.º a 921.º do C.C.m bem à garantia legal de conformidade, resultante da aplicação do DL 67/2003, de 08 de Abril.(…)
6.1.3. O que deve fazer para beneficiar plenamente desta garantia contratual: O cliente deve apresentar o “Livro de manutenção” do respectivo veículo atualizado, incluindo o Certificado de garantia, devidamente preenchido pelo Concessionário que vendeu o veículo. O cliente deve ser capaz de provar (através da factura, fichas de acompanhamento, relatório gama de controlo) que a manutenção e as revisões do veículo foram realizadas em total conformidade com as indicações do fabricante, previstas no “Livro de Manutenções” (…)”.
9. E o documento intitulado “plano de manutenções” onde consta, além do mais que “(…) revisões operações sistemáticas
§ condições de utilização normal ……………todos os 50000 km/2 ano (s)
§ condições de utilização severa …………… todos os 20000 km/ 1 ano(s)(…)”
10. Quando o veículo ..-..-LI registou 30.873 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, porque no “painel de instrumentos” por cima do volante acendeu-se uma “luz” indicadora de “revisão”.
11. Após ter sido efectuada mudança de óleo e filtro do motor, foi entregue o veículo à Autora, e emitida a factura n.º ...34, com data de emissão de 15.02.2021 e vencimento a 15.03.2021, no valor de € 287,99 (duzentos e oitenta e sete euros e noventa e nove cêntimos).
12. Na factura identificada em11) consta, além de mais, o seguinte “(…) deve efectuar a revisão aos 2 anos ou 48 373 kms (…)”.
13. No momento em que o veículo ..-..-LI registou 44.445 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, para se proceder à denominada “revisão dos 50.000 kms”, tendo a Ré procedido a tal revisão.
14. Nesta sequência, foi emitida a factura n.º ...55, com a data de emissão de 09.04.2021 e vencimento de 09.05.2021, no valor de 541,12 (quinhentos e quarenta e um euros e doze cêntimos) e entregue o veículo à Autora.
15. Aquando o veículo ..-..-LI registou 62.217 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, porque no “painel de instrumentos” por cima do volante acendeu-se uma “luz” indicadora de “líquido de travões insuficiente” tendo a Autora comunicado à Ré que a lâmpada da luz dianteira estava fundida.
16. Após, a Ré efectuou trabalhos com vista à reparação do veículo ..-..-LI e em 15.06.2021 procedeu à entrega do veículo à Autora.
17. Tendo emitido a factura n.º ...77, com a data de emissão de 15.06.2021 e vencimento de 15.06.2021, no valor de 540,80 (quinhentos e quarenta euros e oitenta cêntimos).
18. Quando o veículo ..-..-LI registou 88.747 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, para se proceder à denominada “revisão 100.000 kms”, tendo a Ré procedido a tal revisão.
19. E, logo após, sido entregue a viatura à Autora e emitida a factura n.º ...64, com a data de emissão de 06.09.2021 e vencimento de 06.10.2021, no valor de 376,42 (trezentos e setenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos).
20. Quando o veículo ..-..-LI registou 96.239 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, para se proceder à denominada “revisão 100.000 kms”, porque no “painel de instrumentos” por cima do volante acendeu-se uma “luz” indicadora de “adblue”.
21. Após, a Ré efectuou trabalhos com vista à reparação do veículo ..-..-LI e em 01.10.2021 procedeu à entrega do veículo à Autora.
22. Tendo emitido a factura n.º ...71, com a data de emissão de 01.10.2021 e vencimento de 01.11.2021, no valor de 260,47 euros (duzentos e sessenta euros e quarenta e sete cêntimos).
23. Quando o veículo ..-..-LI registou 124.810 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, tendo a Autora comunicado àquela que o veículo arranhava no sistema de travagem.
24. Após a Ré ter efectuado trabalhos com vista à reparação do veículo ..-..-LI, foi o mesmo entregue à Autora em 07.01.2022.
25. E emitida a factura n.º ...32, com a data de emissão de 07.01.2022 e vencimento de 07.02.2022, no valor de 244,75 euros (duzentos e quarenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos).
26. Quando o veículo registava 159.528 kms, a Autora queixou-se de avaria no motor e nível líquido de refrigeração baixo, tendo o veículo ..-..-LI dado entrada na oficina da Ré.
27. A Ré efectuou trabalhos com vista à reparação do veículo, e em 29 de abril de 2022 entregou o veículo ..-..-LI à Autora.
28. Tendo emitido a factura n.º ...92, com a data de emissão de 29.04.2022 e vencimento de 09.06.2022, no valor de 0,00 euros (zero euros).
29. O veículo ..-..-LI voltou a dar entrada na oficina da Ré em 18.05.2022 de reboque, com a queixa “viatura fez ruído e perdeu potência”.
30. Após a Ré efectuar o diagnóstico, foi verificada a necessidade de substituir o motor.
31. Uma vez que o veículo ..-..-LI se encontrava no período de garantia oferecido pela marca ..., a Ré contactou a representante da ... para efeitos de assunção dos custos de reparação do veículo.
32. A representante da ... solicitou o envio dos comprovativos das manutenções previstas no plano de revisões.
33. A Ré enviou para a representante ... os comprovativos da revisão dos 50.000 kms de Abril de 2021 quando a viatura tinha 44.445 kms, da mudança de óleo e filtro de Junho de 2021 quando a viatura tinha 62.217 kms e da revisão dos 100.000 kms de Setembro de 2021 quando a viatura tinha 88.747 kms.
34. A representante da ... recusou assumir a reparação em garantia invocando que a viatura ..-..-LI tinha cerca de 166.000 kms, e a última manutenção havia sido feita aos cerca de 88.000 kms.
35. Em 25 de Maio de 2022 houve uma reunião entre os técnicos da Ré e o representante legal da Autora na qual foi comunicada a recusa da ... em assumir a reparação do veículo e em que foi pedido ao representante legal da Autora que apresentasse factura/comprovativo da revisão em falta, a saber, revisão dos 150.000kms.
36. Não tendo o legal representante da Autora entregue à Ré qualquer comprovativo de ter efectuado a revisão dos 150.000 kms.
37. Aquando reunião identificada em 35), o representante legal da Autora autorizou que a Ré efetuasse a reparação do veículo ..-..-LI, e substituição do respectivo motor.
38. Tendo a Ré encomendado logo de seguida um motor novo.
39. Contudo, em 1 de junho de 2022 o legal representante da Autora procedeu ao levantamento do veículo ..-..-LI das instalações da Ré.
40. Em 13 de junho de 2022, a Autora contactou a Ré solicitando que procedessem à reparação do veículo ..-..-LI, com a colocação do motor que tinha sido encomendado.
41. Em 14 de junho de 2022 a Ré contactou AA comunicando a estimativa do custo da reparação do veículo ..-..-LI e pedindo um adiantamento de 5.000,00 euros para execução dos trabalhos.
42. A Autora efectuou o pagamento do montante identificado em 41).
43. No dia 17 de junho de 2022 o veículo ..-..-LI deu de novo entrada na oficina da Ré que sujeitou o veículo às seguintes intervenções: substituição do motor; desacoplar-acoplar motor CVM Motor caixa velocidades desmontagem; diagnóstico e procura de avaria; mudança de óleo caixa de velocidades mecânica; esvaziamento cheio purga circuito de arrefecimento suplemento; telecarregamento calculador do motor; inicialização 4 injectores suplemento.
44. Tendo o veículo ..-..-LI sido entregue à Autora em 24.06.2022.
45. E a Ré emitido a Factura n.º ...48, datada de 24.06.2022 com vencimento em 24.07.2022, no valor de 8.156,71 euros (oito mil cento e cinquenta e seis euros e setenta e um cêntimos).
46. Tendo a Ré, aquando o ocorrido em 44), procedido ao pagamento do valor remanescente, a saber 3 156,71 euros,
47. Do escrito datado de 01 de Junho de 2022 às 11h54, por P... – centro de contacto cliente para “..........@.....” consta: “(…) Estimado Sr. BB. Relativamente à sua Reclamação com o número ...64. Lamentamos os transtornos que este assunto possa ter ocasionado e agradecemos o facto de nos ter informado. De acordo com a informação que já tinha sido transmitida por via telefónica, embora o veículo se encontra na Garantia Contratual de 24 meses, verificou-se que não houve escrúpulos. Assim, de acordo com o Livro de Manutenção e Garantias que lhe foi entregue aquando da aquisição da viatura, «Para beneficiar de qualquer garantia o cliente deve conseguir provar que, devem ser respeitadas as preconizações do fabricante ». No caso, verificamos que foram ultrapassados os km na manutenção o que gera um incumprimento do Plano de Manutenções do veículo que neste caso é de 50 000 km(ano (s). Acrescenta com 166 673 km. Por esse motivo não foi possível beneficiar do valor da reparação no âmbito da garantia comercia. Desta forma damos por finalizado o expediente, agradecemos a confiança que depositou e estamos à disposição para qualquer informação complementar. (…)”.
48. Do escrito datado de 01 de Junho de 2022 às 11h54, por “..........@.....” para P... – centro de contacto cliente consta: “(…) Bom dia. Junto em anexo comprovativos da revisão: 50.000km; 100.000km; 96 239 kms; 124 810 kms; 150000kms (perda de água com substituição do depósito Adbleu e radiador em garantia 24.04.2022) e 166673 kms (recusa de garantia porque o motor está avariado. Como pode verificar nos documentos em anexo e reparações em garantia, a viatura foi concessionário por avaria alertada no painel de bordo sempre com intervalos inferiores a 50000 km. Assim as nossas obrigações foram cumpridas, contudo a marca procedeu com má fé, só dando garantia quando substituiu o radiador e depósito de Adbleu, quando o motor partiu declinou responsabilidade. Trata-se de defeito de fabrico porque aconteceu mesmo com a nossa viatura ..-XT-.., com o mesmo procedimento doloso por parte da marca. Assim iremos processá-los judicialmente em relação à duas situações. Cumprimentos (…)”.
49. No período de 26 de maio de 2022 a 26 de junho de 2022 a Autora alugou um veículo à empresa V... S.A., tendo despendido a quantia total de 1050,00 euros.
50. Por acordo escrito assinado por Banco BPI S.A., pessoa colectiva n.º ...34 e a Autora, que intitularam de “Contrato de locação financeira n.º ...00”, datado de ../../2019, declarou aquela ceder o gozo a esta do veículo automóvel de marca ..., modelo ..., versão ..., com a matrícula ..-XT-...
51. A aquisição referida em 50) foi levada ao registo.
52. O veículo ..-XT-.. foi entregue à Autora no âmbito do acordo referido em 50), obrigando-se a Autora a liquidar ao Banco BPI, S.A. 60 prestações mensais variáveis, a primeira no valor de € 3.048,00, e as restantes no valor de € 470,98, e valor residual € 610,00.
53. Foi a Ré, M... S.A., quem forneceu o veículo ..-XT-.. no estado de novo ao Banco BPI S.A.., tendo procedido à entrega do referido veículo à Autora em 26.06.2019.
54. Aquando entrega do veículo ..-XT-.. à Autora, foi entregue a esta o documento intitulado “Certificado de garantias comerciais ... ”, onde consta, além do mais, que “(…) Para validar as garantias comerciais ..., este certificado deverá ser preenchido e deverá possuir o carimbo comercial do Ponto de Venda vendedor. A aplicação das referidas garantias está subordinada à realização das manutenções periódicas, tal como estão determinadas no seu plano de manutenção, com os talões completos como prova, bem como relatório de gama de controlo. As garantias comerciais ... entram em vigor a partir do dia da entrega efectiva do veículo ao cliente (data de início de garantia indicada nesta página). Os pormenores das garantias comerciais ... de que o veículo do cliente beneficia, assim como as suas condições de aplicação, são indicadas no presente livro (…) o plano específico de manutenção periódica do seu veículo foi-lhe fornecido aquando da entrega do mesmo. Este documento encontra-se na bolsa do seu veículo (…)”, e ainda “(…) a realização de revisões periódicas é um requisito obrigatório para o cumprimento das condições das garantias contratuais da ...”.
55. Tendo sido ainda entregue à Autora o documento intitulado “condições gerais de venda e de garantia”, onde consta, entre o mais, o seguinte:
“(…) 6.1 Garantia de viaturas novas. Os veículos novos da marca ... são garantidos contratualmente pela P..., representada pela P..., Rua ..., ..., doravante designada por «fabricante», contra qualquer defeito de fabrico, durante 2 (dois) anos, sem limitação de quilometragem, a partir do dia de entrega do veículo novo ao primeiro Cliente ou representante do mesmo. O benefício das garantias ... não está condicionado à realização de operações de manutenção e/ou reparação na Rede oficial .... No caso das operações de manutenção e/ou reparação serem realizadas fora da Rede oficial ..., o Cliente deve comprovar através de factura e/ou outros documentos de suporte (tais como plano de manutenção de serviços e garantia ...) que foram respeitadas todas as preconizações do Fabricante. As situações que configurem má utilização ou utilização negligente da viatura serão excluídas da Garantia. As condições constam do Livro de manutenção” que é entregue ao Cliente juntamente com a sua viatura nova adquirida, podendo desde já ser consultadas no site internet da marca através do endereço electrónico .... (…)”.
56. E o documento intitulado “plano de manutenções” onde consta, além do mais que “(…) revisões operações sistemáticas
§ condições de utilização normal ……………todos os 50000 km/2 ano (s)
§ condições de utilização severa …………… todos os 20000 km/ 1 ano(s)(…)”
57. Quando o veículo ..-XT-.. registou 89.764 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, para se proceder à “revisão 80.000 kms”, tendo a Ré procedido a tal revisão.
58. E, logo após, sido entregue a viatura à Autora e emitida a factura n.º ...76, com a data de emissão de 31.08.2020 e vencimento de 30.09.2020, no valor de 470,63 (quatrocentos e setenta euros e sessenta e três cêntimos).
59. Quando o veículo ..-XT-.. registou 110.753 kms, deu o mesmo entrada na oficina da Ré, por ter sofrido uma avaria no motor.
60. Uma vez que o veículo ..-XT-.. se encontrava no período de garantia dado pela marca ..., a Ré contactou a representante da ... em Portugal para efeitos de assunção dos custos de reparação do veículo.
61. A representante da ... em Portugal recusou assumir a reparação em garantia invocando que a viatura ..-XT-.. só teria feito uma revisão aos 89.000kms quando o plano de manutenções impunha a revisão a cada 50.000kms.
62. Tendo a Ré, logo de seguida, após comunicar a recusa identificada em 61) à Autora, e a pedido desta, efectuado trabalhos com vista à reparação do veículo.
63. E, logo após, entregue o veículo ..-XT-.. à Autora e emitida a factura n.º ...92, com a data de emissão de 05.02.2021 e vencimento de 05.03.2021, no valor de 4.835,66 euros (quatro mil oitocentos e trinta e cinco euros e sessenta e seis cêntimos), cujo pagamento foi efectuado pela Autora.
64. Os veículos ..-..-LI e ..-XT-.. foram usados pela Autora no âmbito da sua actividade profissional.
65. A S... S.A. tem por objecto social a importação, armazenagem, fabrico e montagem, no território português, de veículos novos da marca ..., ..., ... e ..., peças sobressalentes, acessórios e respectivos equipamentos e sua distribuição no referido território através de rede comercial constituída por concessionários independentes e/ou entidades do grupo.
66. A sociedade S... S.A. incorporou por fusão a P... S.A..
67. A marca ... publicita a garantia por si fornecida no site ..., onde consta, além do mais que “(…) o comprar uma viatura nova ou usada na nossa rede, beneficia automaticamente da Garantia ... , uma garantia comercial contra defeitos e avarias, num período de 2 anos sem limitação de quilometragem, para usufruir plenamente da sua viatura desde o dia da entrega (…)”.

FACTOS NÃO PROVADOS
A. Em 15 de fevereiro de 2021 tivesse sido efectuada a revisão dos 30.000 kms ao veículo ..-..-LI na oficina da Ré.
B. Em 15 de junho de 2021 tivesse sido efectuada uma revisão intermédia do veículo ..-..-LI na oficina da Ré.
C. Em 1 de outubro de 2021 tivesse sido efectuada uma revisão complementar do veículo ..-..-LI na oficina da Ré.
D. Em 7 de janeiro de 2022 tivesse sido efectuada uma revisão complementar do veículo ..-..-LI na oficina da Ré.
E. O descrito em 48) tivesse ocorrido devido à impossibilidade da Autora usar o veículo ..-..-LI.

C- De Direito
1.ª questão: Se existe contradição entre o julgamento da improcedência da exceção de ilegitimidade da Ré em sede de despacho saneador e a improcedência da ação
No entender da Apelante, a contradição resulta do facto de, no despacho saneador, ter sido julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva da Ré com o seguinte fundamento: «Compulsado o teor da petição inicial, constata-se que a relação material controvertida apresentada pela Autora se estabelece entre esta e a Ré (adquiriu os veículos à Ré e foi na oficina da Ré que se procedeu à reparação dos mesmos), sendo o alegado pela Ré contraprova dos factos alegados pela Autora e que a esta cumprirá provar (...)», ficando, desse modo, «(…) vedado à recorrente requerer a intervenção provocada da P... , S.A., porquanto à recorrente adquiriu os veículos à recorrida e foi na oficina da recorrida que procedeu à reparação dos mesmos (…).»
Porém, em sede de sentença «(…) veio a ser julgada a procedente a ilegitimidade passiva da recorrida M..., completamente em contradição com o julgado no despacho saneador.».
Cumpre apreciar, adiantando-se, desde já, que não se verifica a alegada contradição, para além de não ser correto afirmar-se que o julgamento da exceção de ilegitimidade impediu a Autora de suscitar o referido incidente de terceiro.
Como decorre do disposto nos artigos 576.º e 577.º, alínea e), do CPC, a ilegitimidade de alguma das partes é uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.
Deve ser conhecida em sede de despacho saneador como previsto no artigo 595.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Por sua vez, e como resulta do artigo 30.º do CPC, o conceito de legitimidade ativa ou passiva – no caso é a passiva que está em causa – afere-se pelo interesse que o Réu tem em contradizer, aferido em função do prejuízo que da procedência da ação lhe possa advir. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados sujeitos do direito relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo Autor.
Como é consabido, a legitimidade a que se reportam estes preceitos é a chamada legitimidade ad causam, que é um pressuposto processual sem o qual a ação não pode prosseguir, determinado, por isso, estando em causa a legitimidade passiva, a absolvição do Réu da instância. Ou seja, a legitimidade ad causam é um pressuposto processual positivo, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida uma decisão de mérito.
Diferente é a chamada legitimidade material, substantiva ou ad actum que, como se refere no Ac. do STJ, de 18-10-2028[1], «(…) consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.».
Assim, e como também refere o Ac. da Relação de Lisboa de 22-10-2009[2]:
«I- Ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e será tão somente pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que se há-de decidir desta excepção dilatória, posto que a legitimidade ad causam, como pressuposto processual, não se prende com o mérito do pedido formulado na acção.»
Ora, no caso dos autos, no despacho saneador foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva da Ré considerando o modo como a Autora formulou a causa de pedir e o pedido, ou seja, por a mesma ter imputado à Ré a responsabilidade pelo pagamento do custos das reparações dos veículos de acordo com a garantia contratual de 2 anos após a compra, tendo a Autora reconduzido juridicamente essa responsabilidade ao disposto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04, com as alterações do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/05.
Todavia, a Ré veio a ser absolvida do pedido por, no caso, a responsabilidade da Ré não decorrer daquelas normas (inaplicáveis por a Autora não ser uma consumidora na aceção daquele diplomas legais), nem se ter provado que à Ré pudesse ser assacada qualquer responsabilidade por inexistir garantia convencional ou contratual que cobrisse as reparações, existindo apenas a garantia dada pelo fabricante, pessoa jurídica diferente da Ré, não demandada no processo.
Ou seja, a absolvição da Ré do pedido resulta do conhecimento do mérito da causa. A ilegitimidade que aqui está em causa é a chamada legitimidade substantiva, ad actum, e não a legitimidade ad causam.
Consequentemente, não se verifica a aludida contradição.
Por outro lado, a decisão quanto à legitimidade singular ad causam em nada impedia que a Autora, mesmo em fase posterior à instauração da ação, pudesse alegar a contitularidade da relação jurídica controvertida entre o Réu e um terceiro (artigo 32.º do CPC), suscitando o incidente de intervenção provocada do lado passivo, suprindo, assim, a não demanda inicial em litisconsórcio voluntário do Réu com o chamado (artigos 311.º, 316.º, n.º 2, e 318.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
Nestes termos, improcede a 1.ª questão suscitada no recurso.

2.ª questão: Se competia ao tribunal recorrido conceder prazo à Autora para deduzir articulado superveniente com vista a fazer intervir na ação a fabricante dos veículos
No seguimento da invocação da 1.ª questão, a Apelante entende que, na sequência da documentação apresentada em audiência de julgamento (a convite do tribunal) referente às «Condições de venda e de garantia», factualidade que veio a constar dos factos provados 7 e 54, deveria o tribunal a quo ter concedido prazo à Ré para esta deduzir articulado superveniente fazendo intervir a ... na ação.
Vejamos.
Efetivamente, a documentação referida, que foi essencial para aferir do mérito da causa, foi junta em sede de audiência de julgamento, mediante despacho que não foi impugnado, tendo transitado em julgado.
Porém, tal não determina que sobre o tribunal recorrido impendesse a obrigação de facultar à parte prazo para deduzir articulado superveniente em ordem a fazer intervier na lide um terceiro.
O processo civil é um processo de partes e nele vigora o princípio do dispositivo e do pedido, ou seja, cabe à parte tomar a iniciativa de instaurar a ação, nos moldes que bem entende, alegar factos, deduzir pedidos, coligir e juntar aos autos provas ou requerer a sua produção, suscitando os incidentes processuais que bem entender, no tempo e no modo que lhe aprouver (artigo 5.º, n.º 1, do CPC).
A intervenção do juiz rege-se pelas regras específicas em relação a cada fase processual, sempre tendo em mente que o dever de gestão processual lhe confere poderes limitados de intervenção oficiosa, pois o ónus de impulso processual é imposto por lei «especialmente» às partes como prescreve o artigo 6.º, n.º 1, do CPC.
O dever de gestão processual que comporta um aspeto substancial (dever de direção/correção/condução do processo justificado pela necessidade do juiz providenciar pelo andamento célere do processo, devendo, para a obtenção desse fim, promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação e recusar o que for impertinente ou meramente dilatório – n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do CPC) e um aspeto instrumental ou adequação formal (adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa, adotando conteúdo e forma de atos processuais com vista a atingir e assegurar a obtenção de um processo equitativo- artigo 547.º do CPC) tem como limites o dever de imparcialidade, as garantias processuais das partes e o respeito pelo processo equitativo, o que implica o escorreito cumprimento do princípio do contraditório e a igualdade das partes (artigos 3.º e 4.º do CPC), para além da salvaguarda dos princípios estruturantes do processo civil como sejam o princípio do dispositivo e o princípio do pedido, que não se encontram postergados pelo referido dever de gestão processual, como tem sido assinalado consistentemente pela doutrina e jurisprudência.
Fora das situações previstas nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 6.º, do CPC (e no caso, nenhuma das situações ali previstas se adequa à situação em apreço), apenas é de imputar à parte a forma como exerceu os seus direitos e deveres processuais, não competindo ao tribunal intervir oficiosamente concedendo-lhe um prazo para apresentar um articulado superveniente, que nem sequer manifestou intenção de requerer.
Nestes termos, também improcede a 2.ª questão suscitada no recurso.

3.ª questão: Se existe contradição entre os factos provados e os não provados.
Diz a Apelante que existe contradição entre:
- Factos provados 10 e 11 e alínea A. dos factos não provados;
- Factos provados 15 e 16 e alínea B. dos factos não provados;
- Factos provados 20 e 21 e alínea C. dos factos não provados;
- Factos provados 23 e 24 e alínea D. dos factos não provados;
- Que a alínea E. contém uma contradição em si mesma, porquanto o veículo ficou retido na oficina da Ré, no período em que foi feita a reparação o que, obviamente, impediu a sua utilização e determinou a necessidade de alugar um veículo de substituição.
Vejamos.
A reapreciação da decisão de facto, para além de se encontrar sujeita aos requisitos específicos previstos no artigo 640.º do CPC, tem como pressuposto que a matéria em causa seja relevante para a decisão da causa.
Trata-se de jurisprudência consensual e tem como pressuposto a proibição de atos inúteis (artigo 130.º do CPC).
Ora, no caso em apreço a matéria supra referida reporta-se a reparações e revisões do veículo ..-..-LI e ao aluguer de um veículo de substituição, mas, na verdade, a mesma é absolutamente irrelevante para o desfecho da causa, porquanto e como foi decidido na sentença, os danos/defeitos existentes apenas estavam cobertos pela garantia do fabricante e este não foi demandado nesta ação.
Por conseguinte, a factualidade em causa é irrelevante para o desfecho da lide e, consequentemente, irrelevante se torna a alegada contradição.
De qualquer modo, sempre se dirá que a mesma não existe, desde logo porque estando em causa a comparação entre factos provados e não provados a contradição só poderia decorrer de, simultaneamente, se tivesse dado como provada e não provada a mesma factualidade.
O que não sucede in casu.
Os pontos provados 10 e 11 reportam-se à reparação da viatura pelas avarias ali referidas e a alínea A. dos factos não provadas à revisão dos 30.000 Km. Ou seja, não decorre dos factos provados 10 e 11 que tenha sido feita, naquele momento, a revisão dos 30.000 Km, mas, antes, como ali consta, apenas a reparação ali referida (mudança de óleo e filtro do motor).
Os factos provados 15 e 16 reportam-se à reparação da viatura por haver indicação de líquido de travões insuficiente, mencionando ainda a Autora avaria da luz dianteira. Na alínea B. dos factos não provados, a factualidade não provada reporta-se a uma revisão intermedia, ou seja, não está provado que a reparação referida implicou a dita revisão.
Os factos provados 20 e 21 reportam-se ao facto do veículo ter entrado na oficina para proceder à revisão dos 100.000 Km porque no painel de instrumentos acendeu uma luz que indicadora de «adblue», tendo sido feita a respetiva reparação. Na alínea C. dos factos não provados, a factualidade reporta-se a uma revisão complementar, ou seja, não está provado que a reparação referida implicou a dita revisão.
Os factos provados 23 e 24 reportam-se à reparação de uma avaria no sistema de travagem (arranhava), tendo sido reparada. Na alínea D. dos factos não provados, a factualidade reporta-se a uma revisão complementar, ou seja, não está provado que a reparação referida implicou a dita revisão.
Quanto à Alínea E, cuja redação é a seguinte: «O descrito em 48) tivesse ocorrido devido à impossibilidade da Autora usar o veículo ..-..-LI.», verifica-se que o facto provado em referência é o 49) e não o 48) como decorre da fundamentação da decisão de facto onde consta:
«Por sua vez, quanto ao aluguer da viatura, não obstante se tenha dado como provado que foi alugado um veículo pela Autora (ponto 49) dos factos provados) atendendo à prova documental junta aos autos, a saber factura-recibo n.º ...47 , datada de 26.05.2022, fls. 13, conjugada com o depoimento da testemunha CC que confirmou tal aluguer, a verdade é que não se produziu prova que permita afirmar que tal aluguer ocorreu devido à impossibilidade da Autora utilizar o veículo ..-..-LI. De facto, a testemunha CC afirmou que se recorda ter ocorrido tal aluguer, contudo não consegue afirmar que tal aluguer ocorreu pelo facto do veículo ..-..-LI se encontrar na oficina da Ré para ser reparado, pelo que deu o tribunal como não provado o facto constante do ponto E) dos factos não provados
Como decorre da fundamentação supra transcrita, é patente que não se verifica a alegada contradição, porquanto faltou provar que o aluguer de outra viatura decorreu da impossibilidade de utilização do veículo ..-..-LI enquanto estava a ser reparado.
Em suma, não se verificam as alegadas contradições na decisão de facto, pelo que também improcede a 3.ª questão do recurso.

4.ª questão: – Da responsabilidade da Ré pela reparação das avarias e pelo custo da privação do uso da viatura ..-..-LI
Como se pode ver da motivação do recurso e da Conclusões V e VI, a Apelante é muito escassa na fundamentação do que invoca, limitando-se a mencionar que as avarias foram reparadas pela Recorrida dentro da garantia de 2 anos sem limite de quilometragem e dentro dos intervalos de manutenção de 50.000 km.
Ora, como abundantemente foi analisado na sentença recorrida – sem que no recurso tal seja posto em causa – no caso, a única garantia aplicável é a garantia do fabricante pelos defeitos de fabrico, não tendo o mesmo sido demandado na ação.
Lê-se na sentença:
«Afastada que está a questão da existência de eventuais garantias legais de que a Autora poderia beneficiar, cumpre questionar “Mas, afinal, que garantia contratual é esta de que a Autora tanto se roga ser detentora?”. Do conteúdo da petição inicial, conjugado com a prova produzida em audiência de julgamento, não têm dúvidas o tribunal em afirmar que a garantia contratual que a Autora invoca é nada mais e nada menos do que a garantia plasmada nos documentos que lhe foram entregues aquando entrega das duas viaturas, e cujos conteúdos resultam vertidos nos documentos juntos aos autos, e para o que aqui importa nos factos provados constantes dos pontos 7), 8), 54) e 55) dos factos provados, sendo nada mais e nada menos do que a garantia dada pela ... - fabricante.
A Autora argumenta, contudo, que quem lhe concedeu a garantia foi a Ré e não o fabricante ou o importador do veículo, com os quais, aliás, não teve qualquer contato. Contudo não tem razão.
Face às declarações que se encontram nos documentos que corporiza a garantia, resulta claro que quem assumiu a responsabilidade por eventuais defeitos do veículo perante o comprador foi o fabricante (factos constantes dos pontos 7), 8), 54) e 55) dos factos provados).
Por conseguinte, tendo a garantia sido atribuída pelo «fabricante», então não foi concedida pela Ré à Autora e esta última aceitou, de facto, a garantia dada pelo fabricante.
Para existir uma garantia dada pela Ré à Autora teria de ter existido uma declaração da Ré nesse sentido e não existe.
(…)
Dos factos dados como provados resulta por um lado, que no momento da entrega dos veículos à Autora lhe foram facultados os documentos intitulados “...”, “condições gerais de venda e de garantia” e “plano de manutenção” quanto ao veículo ..-..-LI (factos constantes dos pontos 7), 8) e 9) dos factos provados), e os documentos intitulados “Certificado de garantias comerciais ..., “condições gerais de venda e de garantia” e “plano de manutenção” quanto a veículo ..-XT-.. (factos constantes dos pontos 54), 55) e 56) dos factos provados). Por outro lado, também resulta dos factos provados que a própria marca ... publicita na sua página web a concessão desta garantia indiferenciadamente aos compradores de veículos de tal marca (factos constantes do ponto 67) dos factos provados).
Assim, é inequívoco que a garantia dada à Autora é a garantia de fábrica prestada pela representante da marca ... em Portugal, na qualidade de representante legal do fabricante, garantia que, como assinalamos, é independente dos dois contratos de locação financeira celebrados entre a Ré e o Banco BPI relativos à aquisição dos veículos.
Não sendo a Ré responsável pela realização das reparações, que apenas as executa ora por conta do fabricante, ora por contra do cliente que lhas solicita, solicitação essa que a Autora reconheceu ter efectuado relativamente aos dois veículos (factos constantes dos pontos 40) e 62) dos factos provados), não tem a Ré qualquer responsabilidade por eventuais prejuízos decorrentes da não assunção pelo fabricante dos custos advindos de tais reparações com fundamento no não cumprimento do plano de manutenção dos veículos. De salientar que a própria Autora interpelou a P... para efeitos de cobertura pela garantia da reparação do veículo ..-..-LI, pelo que bem sabia a Autora que a garantia teria sido dada por tal entidade (factos constantes dos pontos 47) e 48) dos factos dados como provados).
Tal responsabilidade, a se mostrar que teriam sido obedecidas as condições da garantia contratual do fabricante, nomeadamente cumprimento do plano de manutenção das viaturas, seria da empresa a P... S.A., que, no entretanto, por fusão, foi incorporada pela sociedade S... S.A. (factos constantes dos pontos 65) e 66) dos factos provados).
De salientar ainda que, sendo a garantia do fabricante contra defeito de fabrico conferida apenas pelo construtor, ela tem a natureza de uma garantia do fabricante e, não estando aqui demandado, não pode responsabilizar-se a concessionária vendedora (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14.12.2017, proc. n.º 3293/16.8T8MTS.P1, relator Maria Cecília Agante, disponível em www.dgsi.pt).
Pelo que, terá a acção de improceder quanto aos pedidos de pagamento das quantias de 8.156,71 euros relativa aos custos com a reparação do veículo com a matrícula ..-..-LI, e da quantia de € 4.835,66, respeitante ao custo suportado com a reparação da viatura com a matrícula ..-XT-...»

Como já dito, a Recorrente não questiona o assim decidido, continuando a imputar à Ré uma responsabilidade que não lhe pode ser imputada pelas razões explicitadas abundantemente na sentença, que se corroboram, pelo que apenas resta também julgar improcedente este segmento do recurso.
O que também se aplica à questão da indemnização pela privação do uso, exatamente pelas mesmas razões, a que se acrescenta que nem sequer ficou provado o alegado dano.

Em face de todo o exposto, improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-06-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Faro (1.ª Adjunta)
Maria José Cortes (2.ª Adjunta)
_________________________________________________
[1] Proc. n.º 5297/12.0TBMTS.P1.S2 (Bernardo Domingos), em www.dgsi.pt.
[2] Proc. n.º 287/06.5TNLSB.L1-2 (Ondina Alves), em www.dgsi.pt.