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SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO DA SERVIDÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário
1. As servidões de passagem podem ser legais ou convencionais. 2. As servidões de passagem convencionais podem ser constituídas por usucapião, não exigindo a lei que o prédio dominante se encontre encravado. 3. A declaração de extinção da servidão tem de ser requerida pelo proprietário do prédio serviente e desde que se mostre desnecessária ao prédio dominante, requisitos que constituem ónus alegatório e probatório de quem pede a declaração de extinção da servidão por desnecessidade. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Processo n.º 1614/23.6T8TMR.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C..., Juízo Local Cível ...
Requerentes/Apelantes: AA e BB
Requerida/Apelada: CC
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
AAeBBinstauraram procedimento cautelar de restituição provisória da possecontra CC, pedindo a «restituição provisória aos Requerentes da posse da servidão de passagem identificada no artigo 20.º», ou seja, o acesso a uma servidão de passagem com o comprimento de 18 m e a largura de 3,5m que se estende a partir da via pública (Rua ...), atravessa o logradouro do prédio da Requerida junto à estrema a nascente terminando no logradouro dos Requerentes.
Para tanto alegaram, em suma, que o primeiro Requerente e a sua família, desde ../../1999, data em que adquiriram o seu imóvel (melhor identificado no artigo 1.º da p.i.) usam tal servidão de passagem para aceder à casa a pé e de carro, «até porque não existe qualquer outra, já que o identificado no artigo 1.º da p.i. não tem qualquer acesso à via pública, encontrando-se encravado».
Atualmente, tal prédio pertence à herança indivisa aberto por óbito de DD, respetivamente, mulher e mãe dos Requerentes.
A Requerida, em 05-08-2023, usando a força física impediu-os de usarem tal acesso, opondo-se à continuação dessa utilização. No dia seguinte, colocou uma corrente no portão de acesso ao dito acesso e, posteriormente, uma vedação com igual finalidade.
Produzida a prova arrolada pelos Requerentes, foi proferida decisão constando do seu dispositivo:
Pelo exposto, julgo totalmente procedente a presente providência cautelar e, em consequência, determino a restituição provisória aos requerentes da posse do caminho referido em 20 (passagem com o comprimento de cerca 18 metros e largura de cerca de 3,5 metros, que se estende a partir da via pública (Rua ...), atravessa o logradouro do prédio da Requerida junto à estrema a nascente, terminando no logradouro dos Requerentes), ordenando que a requerida CC entregue aos requerentes AA e BB a chave do cadeado do portão de acesso à referida passagem e se abstenha, de qualquer modo, de perturbar a posse dos mesmos.»
A Requerida deduziu oposição concluindo pela revogação da restituição provisória de posse, pedindo ainda a condenação dos Requerentes como litigantes de má fé.
No que ora releva, e em suma, alegou que adquiriu com o seu companheiro a casa onde habitam sem qualquer ónus ou encargos, incluindo a alegada servidão de passagem.
O prédio dos Requerentes não se encontra encravado, pois os mesmos são proprietários de outro prédio rústico com 6.560m2, que confronta com o prédio identificado no artigo 20.º da p.i., tendo aquele três acessos à via pública, confrontando com a via pública ao longo de 246 m.
Assim, se os Requerentes usaram o logradouro da Requerida como passagem para o seu prédio foi com mera tolerância dos anteriores proprietários.
Os Requerentes pronunciaram-se defendendo que não litigam de má fé, pedindo, outrossim, a condenação da Requerida como litigante de má fé, tendo a mesma respondido pugnando pela improcedência.
Produzida a prova arrolada pela Requerida e feita inspeção judicial ao local foi proferida decisão final que julgou «totalmente procedente a presente oposição e, em consequência, decid[iu] revogar a providência decretada.»
Inconformados, apelaram os Requerentes pugnando pela revogação da sentença e pela manutenção do decretamento da providência requerida.
Juntaram com as alegações um documento (caderneta predial) e formularam as seguintes CONCLUSÕES:
«1 - Optando a requerida, na sequência da notificação prevista no artigo 366º, nº6, do Código de Processo Civil, por deduzir oposição à providência, competia-lhe alegar os factos e/ou apresentar meios de prova que visassem colidir com os fundamentos utilizados pelo Tribunal para o decretamento da providência, com vista a conseguir a remoção ou a modificação da decisão cautelar.
2 - No requerimento inicial de interposição da providência, nomeadamente os artigos 18º a 33º, podemos concluir que os requerentes em representação da herança indivisa por óbito de DD articularam factos atinentes à demonstração da aquisição do direito de servidão de passagem por usucapião, nos termos do artigo 1547, nº1 do Código Civil, o que concluíram no artigo 29º do mencionado articulado.
3 - Os requerentes apresentaram prova testemunhal abundante para provarem os factos alegados, que, sublinha-se, foi considerada credível pela Meritíssima Juiz, e daí, a este respeito, na sentença que decretou a providência cautelar, na fundamentação de facto, ter dado como indiciariamente provados os factos elencados nos pontos 17 a 33 da mencionada decisão.
4 - Compulsada a Oposição, concluímos que não foi apresentada uma impugnação especificada, facto a facto, da matéria articulada no requerimento inicial nos artigos 18º a 33º.
5 – A requerida não alegou factos e/ou apresentou meios de prova atinentes a pôr em crise os fundamentos utilizados pelo Tribunal para o decretamento da providência, com vista a conseguir a remoção ou a modificação da decisão cautelar.
6 - Quer a requerida, quer a testemunha EE, demonstraram nada saber sobre a forma como era exercida pelos requerentes a passagem pela servidão em apreço, antes da data da aquisição do imóvel, ou seja, antes de 3 de Agosto de 2023.
7 - A requerida e o companheiro EE (proprietários do prédio serviente) não sabem como era utilizada a passagem antes de adquirirem o prédio em 3/8/2023, desconhecem a forma e a frequência com que sempre tal utilização se fez.
8 - Existe falta de fundamentação sobre a matéria de facto e de direito indiciariamente provada, o que nos leva à nulidade da sentença nos termos do artigo 615, nº1, alínea b) do CPC.
9 - Os documentos juntos pela requerida com a oposição demonstram que BB é dono do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...72 com o número da Freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo ...11, da secção F, que confina a poente com o prédio urbano pertencente à herança indivisa aberta por óbito de DD, e que é contiguo à via pública.
10 – Demonstram também que esse prédio rústico foi doado a BB por AA e pela sua falecida esposa em ../../2020, que o haviam adquirido em 17/04/1997.
11 – Mas são documentos que em nada beliscam a prova indiciariamente provada na sentença que decretou a providência, porque a titularidade de tais prédios é diversa, o urbano pertence a uma herança indivisa e o rústico a um proprietário específico, ou seja, a BB, tratando-se assim de factos juridicamente irrelevantes para a situação dos autos.
12 – Além disso, a Herança Indivisa por óbito de DD adquiriu, nos termos do artigo 1547º, nº1 do Código Civil, o direito de servidão de passagem, conforme foi indiciariamente demonstrado através da prova abundante tida em conta na decisão que decretou a providência, sem que a Requerida tenha conseguido trazer aos autos novas provas atinentes a pôr em causa tal direito de servidão de passagem.
13 - Deve ser dado como indiciariamente provado que “Na matriz, o prédio supra referido consta registado sob o artigo ...42, da secção F, que teve origem no artigo ...11, secção F, da Freguesia e Concelho ..., em nome do Requerente BB.”
14 – Deve ser dado como indiciariamente provado na decisão recorrida, tal como o foi na decisão que decretou a providência, o seguinte:
- “Passagem que sempre foi utilizada, inclusive pelos anteriores proprietários, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, na plena convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam o direito de outrem.”
- “Devido ao procedimento da Requerida, os Requerentes ficaram impedidos de aceder, a pé e de carro, ao prédio pertencente à herança indivisa por óbito de DD”
15 – Conclui-se de forma inequívoca que os Requerentes em representação da Herança indivisa aberta por óbito de DD, atuaram por forma correspondente ao exercício de um direito real – artigo 1251 do CC.
16 – Estão provados os três requisitos necessários à procedência da providência cautelar: a posse, o esbulho e a violência.
17 – Ao não se entender assim na decisão recorrida, mostra-se violado o artigo 377 do CPC.
18 - Toda a matéria de facto considerada indiciariamente provada na sentença que decretou a providência, deve manter-se, porque a requerida não logrou apresentar meios de prova que visassem colidir com os fundamentos utilizados pelo Tribunal para o decretamento da providência, com vista a conseguir a remoção ou a modificação da decisão cautelar.»
Nas suas contra-alegações, a Apelada opôs-se à junção do documento com as alegações e defendeu a manutenção da decisão final.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Atendendo às conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso (sem prejuízo do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), importa apreciar:
- Questão prévia: junção de um documento com as alegações
- Nulidade da decisão recorrida
- Impugnação da decisão de facto
- Se estão indiciariamente demonstrados os requisitos do decretamento da restituição provisória de posse
B- De Facto
A 1.ª instância deu como indiciariamente provada a seguinte matéria de facto:
«1. AA e mulher DD, adquiriram por escritura de compra e venda celebrada em ../../1999, o prédio urbano sito na Rua ..., ..., Freguesia e Concelho ..., composto de casa de habitação de ... e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...11, da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...22.
2. A partir dessa data, embora vivessem em ..., o Requerente AA, conjuntamente com a sua mulher e a respetiva família, passaram a usar a casa durante os fins de semana e durante temporadas de 15 dias, pernoitando, fazendo e tomando refeições no imóvel.
3. O que o Requerente AA e sua família ainda fazem presentemente, e agora com mais frequência, passando, aquele, temporadas maiores na casa, porque já está reformado.
4. Em ../../2022, faleceu DD.
5. Deixando, como herdeiros, o cônjuge sobrevivo AA e o único filho de ambos, BB.
6. Não foram realizadas partilhas por óbito de DD.
7. O Requerente AA e mulher, a partir do momento em que adquiriram a propriedade do prédio identificado no artigo 1º, durante mais de 20 anos, usaram e fruíram do referido prédio urbano já identificado, de boa fé e de forma pacífica.
8. Na verdade, o primeiro Requerente e mulher, e depois do óbito desta, juntamente com o filho BB, há mais de 20 anos que vêm usando e fruindo do referido prédio urbano de boa fé e de forma pacífica.
9. Cuidando, conservando, limpando e zelando de todo o prédio.
10. À vista de toda a gente.
11. Sem oposição de quem quer que seja.
12. No interesse exclusivo dos Requerentes.
13. Na plena convicção que exerciam, e exercem, um direito próprio.
14. De forma reiterada, ininterrupta e continuada no tempo, na convicção de jamais lesarem direitos ou interesses alheios.
15. A requerida CC e EE são donos do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., composto de casa de habitação de ... e anexo e o logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...12, da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...76.
16. Em 13 de Outubro de 1999, data em que AA e mulher adquiriram o prédio referido em 1, o acesso ao mesmo era feito a partir da via pública, a pé e de carro, através do prédio da ora Requerida, sendo usado um portão em madeira que não estava fechado.
17. O que também acontecia com os anteriores proprietários, FF e marido GG, que, há pelo menos 30 anos, utilizavam o mesmo acesso.
18. O referido acesso tem o comprimento de cerca de 18 metros e largura de cerca de 3,5 metros, que se estende a partir da via pública (Rua ...), atravessa o logradouro do prédio da Requerida junto à estrema a nascente, terminando no logradouro dos Requerentes.
19. Desde ../../1999, o primeiro Requerente e sua família usam tal passagem para aceder à casa a pé e de carro.
20. Sendo visíveis as marcas no solo da passagem, relativas à entrada e saída de veículos e pessoas.
21. Há cerca de cinco anos, os proprietários que antecederam a Requerida em conjunto com o Requerente AA e mulher, colocaram um portão de ferro elétrico no acesso à servidão de passagem, ficando ambos os proprietários na posse de um comando.
22. Pelo que AA e mulher, usando tal comando elétrico do portão, continuaram a passar pelo referido local.
23. A caixa de correio que serve a casa dos Requerentes estava instalada no muro da entrada da casa da Requerida, assim como o contador da água.
24. No dia 5 de agosto de 2023, pelas 12h, os Requerentes ao chegar ao prédio identificado no artigo 1º, foram impedidos, pela requerida de ter acesso ao portão, para passagem para a residência daqueles.
25. Perante este facto, o Requerente AA telefonou para a GNR, pedindo a sua intervenção, tendo a Requerida persistido na sua atuação, obrigando os Requerentes a regressar a ... para recolherem os documentos comprovativos da propriedade, solicitados pela GNR.
26. No dia seguinte, já munidos de tais documentos, voltaram a ver-se impedidos de aceder à propriedade porque a requerida já tinha trancado o portão com uma corrente.
27. A Requerida colocou uma vedação no seu logradouro impedindo a passagem para o prédio dos Requerentes.
28. BB é dono do prédio rústico, composto por terra com construção rural, cultura arvense e cultura arvense de regadio – norte, sul e poente, estrada; nascente, herdeiros de HH, com uma área de 6.560 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...72 com o número da Freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o n.º ...11, da secção F.
29. Prédio esse que lhe foi doado pelo Requerente AA e pela sua falecida esposa (doação registada em ../../2020), que o haviam adquirido em 17/04/1997.
30. Na matriz, o prédio supra referido consta registado sob o n.º ...11, da secção F, da Freguesia e Concelho ..., em nome do Requerente AA.
31. Esse prédio rústico é contíguo ao prédio descrito em 1, sendo contíguo à via pública em cerca de 246 metros.
32. Tal terreno tem acesso por três estradas diferentes e dispõe de três portões, um, na Rua ..., a poucos metros do portão da Requerida, outro, na Rua ... e um outro no cruzamento da Rua ... com a Rua ....
33. A nordeste do prédio rústico da Requerida, na mesma rua, confrontando com o prédio urbano da Requerida e do seu companheiro, o prédio pertencente a FF, inscrito na Matriz Predial urbana com o n.º ...22, dá acesso à casa dos Requerentes.
34. Neste caso, existem marcas de passagem visíveis de que os Requerentes acederam através deste terreno várias vezes.»
A 1.ª instância considerou indiciariamente não provada a seguinte factualidade:
«I. Desde ../../1999 que o primeiro Requerente e sua família passam no logradouro do prédio da requerida para aceder a sua casa porque não existe qualquer outra passagem, já que o prédio identificado no artigo 1º não tem qualquer acesso à via pública.
II. Passagem que sempre foi utilizada, inclusive pelos anteriores proprietários, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, na plena convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam o direito de outrem.
III. Isto porque, estando o prédio dos Requerentes encravado, e com a existência do portão, quer o carteiro, quer o funcionário do SMAS, não têm acesso à casa.
IV. Devido ao procedimento da Requerida, os Requerentes ficaram impedidos de aceder, a pé e de carro, ao prédio pertencente à herança indivisa aberta por óbito de DD.
V. Os Requerentes têm ainda planeadas obras de melhoramentos na casa, que vão ficar estagnadas, pois não é possível descarregar materiais devido à passagem bloqueada e à autocaravana da Requerida que se encontra estacionada na passagem.»
C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1- Questão prévia: junção de um documento com as alegações
Os Apelantes juntaram com as alegações um documento (certidão matricial) fundamentado na motivação do recurso a junção ao abrigo do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, invocando que a junção se tornou necessária em virtude do julgamento em 1.ª instância. Alegando, para esse efeito, do seguinte modo:
«A Meritíssima Juiz deu como indiciariamente provado que na matriz o prédio supra referido consta registado sob o n.º ...11, da secção F, da Freguesia e Concelho ..., em nome do Requerente AA, o que não corresponde à realidade.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos em que prova testemunhal ou documental foi sustentada tal conclusão, porque o prédio em apreço tem presentemente o artigo ...42, secção F, estando inscrito em nome de BB, conforme caderneta predial que se junta agora por se ter tornado necessária em virtude do julgamento em 1ª instância, nos termos do artigo 651, nº1 do CPC ( Doc. 1 ).
Assim, deve ser dado como provado que “Na matriz, o prédio supra referido consta registado sob o artigo ...42, da secção F, que teve origem no artigo 111, secção F, da Freguesia e Concelho ..., em nome do Requerente BB.”»
Na Conclusão 13 do recurso pedem que seja dada como provada a factualidade supra referida.
Na resposta às alegações, a Apelada defende que não se encontram preenchidos os pressupostos da junção de documentos em sede de alegações.
Vejamos, então.
A junção de documentos em sede recurso encontra-se balizada pelos requisitos do artigo 651.º do CPC, preceito que estipula do seguinte modo: «1- As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
1- As parte podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.»
O preceito revela que a junção nesta fase processual é excecional e, fora da situação do n.º 2, do preceito (que, no caso, obviamente, não se verifica), a junção apenas é admissível nas situações a que se reporta o artigo 425.º do CPC (superveniência objetiva ou subjetiva que impediu a apresentação até ao momento da discussão/decisão) ou por a junção se ter tornado necessária em virtude da decisão proferida pela 1.ª instância.
O segmento final do n.º 1 do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, como vem sendo defendido de forma consensual, deve ser interpretado no sentido de excluir as situações em que os documentos visam provar factos que já antes da decisão a parte sabia sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa do resultado,[1] entendendo-se, assim, que apenas ocorre aquela previsão normativa quando “… a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado”.[2]
Esta última situação, segundo refere ANTUNES VARELA, «(…) não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia ter apresentado em 1.ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida».[3]
Refere, ainda, este autor: «Se a junção já era necessária (para fundamentar a acção ou a defesa) antes de ser proferida a decisão da 1.ª instância, ela não é permitida. Não cobre nem a letra nem o espírito da lei (…). A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução a defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado».[4]
Na situação em apreço, embora os Apelantes aleguem que a junção da certidão matricial relativa ao prédio rústico de que é proprietário o Requerente BB se tornou necessária em virtude da decisão proferida em 1.ª instância, é inequívoco que tal alegação apenas pretende alterar a redação do facto provado 30 como se colhe linearmente da factualidade que dizem ter ficado provada por comparação com a redação deste ponto. Pretendendo, deste modo, introduzir na factualidade provada a atualização do artigo matricial e, por outro lado, que o prédio se encontra em nome do Requerente BB e não em nome de AA como consta do ponto provado 30.
Ora, a factualidade que ficou vertida no referido ponto 30 foi alegada na oposição (cfr. artigo 27.º dessa peça processual), remetendo, aliás, para um documento (doc. 3) que não corresponde a qualquer certidão matricial, tratando-se, antes, de uma planta cadastral emitida pelo Município ....
Porém, os ora Apelantes notificados da oposição não vieram juntar a certidão matricial do imóvel (aquela que agora juntaram com as alegações) e que teria a virtualidade de provar a atualização do número de matriz e quem consta da mesma como proprietário.
Ou seja, a pretexto do regime excecional previsto no artigo 615.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, os Apelantes pretendem introduzir nos autos um documento sem que estejam preenchidos os requisitos dessa junção, visando, antes, a comprovação de factualidade que altera a matéria dada como provada.
Mas mal. Pois, como é bom de ver, a decisão recorrida ateve-se ao alegado e, bem ou mal, à interpretação da prova documental de suporte a essa alegação. Por conseguinte, não pode a parte, com êxito, alegar que o documento se tornou necessário em virtude do julgamento em 1.ª instância, na aceção acima referida, porquanto a decisão não se baseou em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal, nem em fundamento que não tivesse sido antes alegado no processo passível de ser provado por documento apresentado em 1.ª instância.
Nestes termos, por falta de verificação dos pressupostos do artigo 651.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, não se admite a junção aos autos do documento junto com as alegações.
2- Nulidade da decisão recorrida
Na Conclusão 8 do recurso, os Apelante vêm arguir a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, sequencialmente à alegação de erro de julgamento na apreciação das provas produzidas após a oposição e que determinaram o não decretamento da providência, alterando, assim, a decisão inicialmente proferida.
Vejamos.
As nulidades das decisões (em sentido lato) encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º, do CPC, e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
Nos termos do n.º 1, alínea b), do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando: «b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
A falta de fundamentação aludida no preceito está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CRP, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
No caso em apreciação, a decisão final recorrida elencou os factos provados e não provados em resultado do julgamento, concatenando a prova produzida antes e depois da oposição, fundamentando a convicção formada nos meios de prova produzidos, convocando em sede de mérito o regime legal que julgou aplicável, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto, que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Em suma, em face do modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão de facto e direito, e considerando a fundamentação da arguição da nulidade da sentença, não incorreu na arguida nulidade, pelo que improcede este segmento do recurso.
3- Impugnação da decisão de facto
Decorre das Conclusões do recurso que os Apelantes discordam da redação do ponto 30 dos factos provados, embora não se expressem desta forma, mas trata-se de conclusão inevitável em face do que pretendem que se dê como provado e que plasmaram na Conclusão 13 do recurso.
Em face da não admissão do documento junto com as alegações, importa aferir se a prova documental existente nos autos e junta na 1.ª instância permite alterar a redação do ponto 30 dos factos provados.
Essa prova resulta da certidão do registo predial do prédio rústico em causa junta com a oposição (doc. 2) onde consta que o imóvel tem a matriz n.º ...11, natureza rústica, Secção F, situado em ..., ..., Freguesia ....
Deste documento não é possível extrair se na inscrição matricial consta o nome do Requerente AA ou outro. Como também não é possível concluir que tenha havido qualquer atualização da menção do número da matriz.
Nestes termos, importa alterar a redação do ponto 30 dos factos provados, ainda que não o possa ser nos termos pretendidos pelos Apelantes.
Assim, altera-se a redação do ponto 30 dos factos provados que passa a ter a seguinte redação: «Na matriz, o prédio supra referido consta registado sob o n.º ...11, da secção F, da Freguesia e Concelho ...».
Os Apelantes também impugnam a decisão de facto em relação aos pontos I a IV dos factos não provados pretendendo que os mesmos sejam dados como provados tal como sucedeu na primitiva decisão (cfr. os factos provados ali mencionados sob os números 20, 22 a 23).
Para o efeito, alegam que que a Requerida não alegou factos e/ou meios de prova para pôr em causa os factos primeiramente dados como provados e respetiva fundamentação, sublinhando que a testemunha ouvida EE, para além de ser comproprietário do imóvel juntamente com a Requerida, tendo, por isso, interesse no desfecho da causa, nada sabia sobre o modo como era exercida pelos Requerentes a passagem pela dita servidão antes de 03-08-2023, data de aquisição do imóvel.
Também em relação à Requerida invocam igual desconhecimento.
Cumpre apreciar, considerando que os Apelantes cumpriram minimamente os requisitos da impugnação da decisão de facto previstos no artigo 640.º do CPC.
A 1.ª instância fundamentou a alteração da decisão de facto anteriormente tomada, nos seguintes termos:
«Para formar a sua convicção, o tribunal procedeu à ponderação conjugada e a análise crítica de toda a prova produzida, designadamente as declarações de parte da requerida, o depoimento de parte do requerido AA e o depoimento da testemunha inquirida, assim como o teor dos documentos juntos aos autos.
Concretizando, para além dos factos elencados na decisão que decretou a providência, enumerados de 1 a 14 e 16 a 27 (dados como indiciariamente provados pelos motivos expostos na referida decisão), também se consideraram provados os pontos 15 e 28 a 34 pelas razões que se passam a expor.
Com efeito, analisaram-se as certidões de registo predial, a planta cadastral, as fotografias juntas e a inspeção judicial, que permitiu concluir como exposto.
Os factos não provados de I a V (que haviam sido considerados indiciariamente provados na decisão que decretou a providência) decorrem da prova do contrário nos termos supra referidos.
Também o próprio depoimento de parte de AA acabou por corroborar tal versão, ao confirmar ter adquirido um prédio contíguo (com acesso à via pública) em data anterior à data de aquisição do prédio que reputa encravado, não o usando como passagem porque o pretende utilizar para outra finalidade.
As declarações de parte da requerida CC e o depoimento da testemunha EE, claras e objetivas, focaram-se no facto de, aquando da aquisição do prédio terem diligenciado no sentido de saber se existia algum ónus e as conclusões obtidas e bem assim confirmaram o exposto de 24 a 27, explicando, ainda, que, a partir dessa data, os requerentes têm acedido ao seu prédio através do prédio descrito em 28 ou do prédio descrito em 33, pelo que a
sua privacidade” não é uma necessidade. »
Auditados de forma crítica e global os meios probatórios carreados para os autos, formou-se nesta sede convicção própria conforme à da 1.ª instância no que diz respeito à falta de conhecimento da testemunha EE e da Requerida em relação ao modo como os Requerentes acediam ao prédio urbano referido no ponto 1 dos factos provados antes da Requerida ter adquirido o seu prédio
Por conseguinte, não são estes os meios de prova que permitem a alteração da decisão de facto no tocante à utilização que os Requerentes e anteriores proprietários fizeram ao longo dos anos da passagem pelo prédio da Requerida.
Na avaliação que fazemos da fundamentação da decisão de facto quantos aos pontos não provados supra referidos, afigura-se-nos que a 1.ª instância ao se deparar com documentação que prova que o prédio referido no ponto 1 dos factos provados tem acesso à via pública através do prédio rústico referido no ponto 28 dos factos provados, bem como sobre quem foram e são atualmente os proprietários do mesmo, extraiu a conclusão que o prédio urbano referido no ponto 1 dos factos provados não se encontra encravado e, consequentemente, alterou a decisão de facto com base nessa premissa.
Sucede, todavia, que a questão de facto é diferente da questão de direito.
E a alegação e prova que a Requerida verteu na sua oposição é, essencialmente, matéria de direito, que em nada belisca a prova sobre o modo como ao longo dos anos os Requerentes e antepossuidores do prédio referido em 1 dos factos provados acederam ao mesmo, bem como a convicção com que aturam.
Deste modo, a alegação e prova carreada para os autos em sede de oposição tem apenas a virtualidade de, nesta sede de apuramento perfunctório da factualidade relevante para a decisão, alterar a decisão de facto em relação aos pontos I a IV dos factos não provados nos seguintes termos: Quanto à factualidade do ponto I mantem-se como não provada, porquanto dos documentos juntos aos autos, conjugado com o depoimento de parte do Requerente AA, a prova indicia que a utilização da passagem pelo prédio da Requerida não se deve ao facto deste prédio não ter acesso à via pública. Quanto à factualidade do ponto II encontra-se indiciariamente provada nos termos que constavam da fundamentação da decisão primeiramente proferida e que deram origem aos pontos 21, 22 a 26 dos pontos provados, uma vez que a prova carreada para os autos por via da oposição não logrou inverter aqueloutra prova.
Assim, elimina-se o ponto II dos factos não provados, incluindo-se a respetiva factualidade nos factos provados, com a seguinte redação: «A passagem através do prédio da Requerida sempre foi utilizada pelos Requerentes e sua família, bem como pelos anteriores proprietários, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, na plena convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam o direito de outrem.»
Quanto à factualidade do ponto III mantém-se como não provada, porquanto a referência a prédio «encravado» tem natureza conclusiva no contexto do presente litígio, nada mais tendo ficado provado para além do que ficou a constar do ponto 23 dos factos provados.
Quanto à factualidade do ponto IV, pelas razões que constam em relação ao supra ponto I, procede a impugnação, eliminando-se o mesmo dos factos não provados passando a constar como indiciariamente provada a seguinte factualidade: «Depois dos acontecimentos referidos nos pontos 24 a 27 dos factos provados, os Requerentes ficaram impedidos de aceder a pé e de carro ao prédio referido em 1 dos factos provados através do prédio da Requerida».
Em face do exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto nos termos suprarreferidos.
4- Se estão indiciariamente demonstrados os requisitos do decretamento da restituição provisória de posse
Em termos de apreciação do mérito da decisão recorrida, os Apelantes discordam do decidido, alegando, em suma, que o prédio urbano referido no ponto 1 dos factos provados se encontra encravado, porquanto a titularidade do mesmo e do prédio referido em 28 dos factos provados é diversa. Ou seja, o primeiro (o prédio urbano) pertence à herança indivisa aberta por óbito de DD e o segundo (prédio rústico) pertence apenas ao Requerente BB por lhe ter sido doado pelo pai, ora Requerente, e pela mãe, a falecida DD.
Insurgem-se, pois, contra o decidido pela 1.ª instância por ter fundamentando o decidido, para além do mais e no que ora releva, do seguinte modo:
«(…) o prédio pertença do requerente BB (n.º 28 dos factos provados), contíguo ao prédio indicado como encravado (e agora pertença da herança de que ambos os requerentes são únicos herdeiros e utilizadores do prédio), pertencia ao requerente AA ainda antes de ter adquirido este último, pelo que se não existe passagem efetivamente delineada entre os dois prédios foi porque a mesma não foi construída por AA, tendo este a tolerância dos proprietários do prédio, que agora pertence à requerida, para por aí proceder à passagem.»
Na apreciação do mérito da decisão recorrida importa, antes de mais, levar em conta as alterações introduzidas nesta sede na decisão de facto e que têm extrema relevância em termos de direito no que concerne à verificação dos requisitos da servidão de passagem que onera o prédio da Requerida.
Assim, e tendo em consideração que os únicos requisitos para decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse são a existência da posse, o esbulho e a violência (artigo 377.º do CPC), a questão que verdadeiramente se coloca é a de saber se a existência de um acesso à via pública através do prédio referido nos factos provados sob o nº 28 (atualmente na titularidade do Requerente BB por doação dos seus pais, anteriores proprietários) obsta a que se tenha constituído sobre o prédio da Requerida uma servidão de passagem.
Como emerge da prova indiciariamente provada, os Requerentes alegaram, e lograram provar, que desde ../../1999, e antes dessa data pelos anteriores proprietários do prédio urbano referido no facto provado 1, usaram o prédio que agora pertence à Requerida para acederam ao seu. E fizeram-no a pé e de carro, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, na plena convicção de exercerem um direito próprio, sem lesarem o direito de outrem, sendo visíveis as marcas no solo dessa passagem, utilizando, inclusivamente, um portão de ferro elétrico no acesso àquela passagem, abrindo-o com um comando.
Eisto independentemente, de também serem proprietários do prédio rústico referido no ponto 28 dos factos provados que tem acesso à via pública.
Ora, sendo assim, encontra-se indiciariamente provado que os Requerentes, nos termos sobreditos, se serviram do prédio da ora Requerida para aceder ao seu o que indicia a existência de uma servidão de passagem.
A servidão predial é definida, no artigo 1543º do Código Civil (CC), como um encargo imposto num prédio (prédio serviente) em benefício exclusivo de outro prédio (prédio dominante), pertencente a dono diferente.
Trata-se de um direito real de gozo sobre coisa alheia ou direito real limitado, mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de usufruir ou aproveitar de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efetivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar atos suscetíveis de prejudicar o exercício da servidão.
De acordo com o disposto no artigo 1547.º do CC, as servidões podem ser constituídas voluntariamente (por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família) ou, não sendo por qualquer desses títulos, coativamente (por decisão judicial ou administrativa, conforme os casos), sendo que a lei apelida este tipo de servidões como «servidões legais» (cfr. artigos 1547.º, n.º 2 do CC).
Assim sendo, as servidões de passagem podem ser, ou não, servidões legais. As constituídas por usucapião não têm esta última caraterística e não exigem que o prédio dominante se encontre encravado.
Como se refere no Acórdão do STJ de17-12-2019[5]: «II - Constituída a servidão de passagem com fundamento na usucapião, por se mostrarem verificados os respectivos requisitos, é irrelevante que o prédio dominante esteja ou não encravado, porquanto este requisito é exigido apenas para a constituição da servidão legal de passagem ao abrigo do art. 1550.º do CC, que é diferente daqueloutro título constitutivo;».
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 24-02-2015, constando do seu sumário: «a) Servidão legal é aquela que pode ser coactivamente imposta – mesmo que o não tenha sido. b) A usucapião não origina servidões legais, não lhes sendo, por isso, aplicável o regime próprio das servidões dessa espécie. d) O conteúdo da servidão constituída por usucapião é delimitado pela posse que conduziu a essa constituição.»
No caso em apreço, os factos indiciariamente provados evidenciam que entre ../../1999 (data da aquisição do prédio urbano referido no facto provado 1) pelo Requerente AA e mulher e a doação que fizeram ao filho, segundo Requerente, do prédio rústico referido no facto provado 28, o referido prédio urbano não se encontrava encravado, porquanto o seu acesso à via pública podia fazer-se pelo prédio rústico pertença do primeiro Requerente e da mulher.
Consequentemente, não se verificavam os pressupostos para a constituição de uma servidão legal de passagem.
A situação alterou-se com a mencionada doação por o prédio rústico ter passado para a exclusiva titularidade do segundo Requerente, o que sucedeu, pelo menos, entre a data do registo da doação (../../2020) e a data do falecimento da mãe, DD, em ../../2022.
Todavia, após a morte de DD, o prédio urbano referido no facto provado 1 passou a integrar a herança indivisa aberto pela morte da mesma. Tendo a mesma deixado como herdeiros legítimos apenas o cônjuge e o filho, os ora Requerentes, todos os direitos, bens e relações jurídicas que integram o património hereditário e não partilhado, e até à partilha, recaem sobre a herança como um todo, sendo o direito de cada herdeiro exercido sobre toda a herança (artigos 2024.º, 2030, 2031.º, 2032.º e 2101.º do CC).
O que significa que o prédio urbano referido no ponto 1 dos factos provados deixou de estar encravado uma vez que o acesso à via pública, mais uma vez, passou a poder ser feito novamente através do prédio rústico pertença de um dos herdeiros da herança indivisa supra referida.
Nesta perspetiva, a decisão recorrida é assertiva ao concluir pelo não decretamento da providência requerida por inexistirem os pressuposto de uma servidão legal de passagem e, consequentemente, não se verificarem os pressupostos do artigo 377.º do CPC.
Porém, a questão a resolver ainda tem outra vertente que é necessário ponderar em face dos factos provados.
Efetivamente, os Requerentes e família, por si e por intermédio dos anteriores possuidores, sempre usaram aquela passagem por tempo e nos moldes indiciariamente provados que indiciam a existência de uma servidão de passagem, não legal por o prédio referido no facto provado 1 não se encontrar encravado (pelo menos durante todo esse tempo, como acima mencionado), mas antes por ter sido constituída voluntariamente por força da verificação dos pressupostos da usucapião, pois, como estipula o artigo 1287.º do CC «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião».
Como se refere no Acórdão do STJ de 17-12-2019 supra citado, o que revela para a constituição da servidão de passagem por usucapião, para além dos requisitos de inerentes à posse boa para usucapir, é que a servidão seja revelada por sinais permanentes, pois as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião como decorre do artigo 1548.º do CC.
Mais referindo: «Sabe-se que a exigência de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião visa afastar a aquisição do respectivo direito com base em actos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança. Com aquela norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir para a constituição da servidão sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão). Assim, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente.».
No caso em apreço, a prova indiciariamente produzida indica que se encontram preenchidos os pressupostos legais de uma servidão de passagem constituída por usucapião que onera o prédio da Requerida e beneficia o prédio identificado no ponto 1 dos factos provados (cfr. artigos 12151, 1253.º a contrario, 1255.º, 1258.º a 1262.º, 1287.º, 1291.º, 1294.º a 1297 do CC), pelo que incorreu em erro de julgamento a decisão de não decretamento do procedimento cautelar de restituição de posse considerando o impedimento (esbulho violento) que a Requerida opôs à continuação da utilização de tal servidão de passagem.
Refere a Requerida na oposição que a passagem é desnecessária atenta a possibilidade de acesso à via pública através do prédio rústico que atualmente pertence ao segundo Requerido.
A desnecessidade da servidão constituída por usucapião pode determinar a sua extinção por declaração judicial como prescreve o artigo 1569.º, n.º 2, do CC.
Porém, a declaração de extinção da servidão tem de ser requerida pelo proprietário do prédio serviente e desde que se mostre desnecessária ao prédio dominante, requisitos que constituem ónus alegatório e probatório de quem pede a declaração de extinção da servidão por desnecessidade, para além dos demais requisitos relativos à superveniência da alegada desnecessidade.
Nos presentes autos, a Requerida não formulou na oposição a pretensão de declaração de desnecessidade da servidão de passagem, porquanto a oposição foi gizada na perspetiva da inexistência da servidão de passagem (legal ou convencional).
Em face de todo o exposto, procede o recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida, decretando-se, outrossim, a requerida providência de restituição provisória de posse.
As custas ficam a cargo dos Requerentes/Apelantes (artigo 527.º do CPC).
Igualmente são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça devida pelo incidente de desentranhamento de documento, fixando a taxa de justiça no mínimo (artigo 527.º do CPC).
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a Apelação e, consequentemente, revogam a decisão final proferida em 09-02-2024, decretando a procedimento cautelar de restituição provisória de posse da servidão de passagem com o comprimento de 18 m e a largura de 3,5m que se estende a partir da via pública (Rua ...), atravessa o logradouro do prédio da Requerida junto à estrema a nascente terminando no logradouro do prédio referido no ponto 1 dos factos provados, condenando-se a Requerida a entregar aos Requerentes AA e BB a chave do cadeado do portão de acesso à referida passagem e que se abstenha, de qualquer modo, de perturbar a posse dos mesmos.
Mais decidem não admitir a junção do documento apresentado com as alegações, condenando os Apelantes nas custas devidas pelo recurso e pelo mencionada incidente, nos termos sobreditos.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-06-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Ana Pessoa (1.ª Adjunta)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
__________________________________________________
[1] Cfr. Ac. RL, de 17/03/2016, CJ 2016, Tomo II, p. 81-86.
[2] ANTUNES VARELA, anotação ao acórdão do S.T.J., de 09.12.1980, in RLJ, 115.º, p. 89.
[3] ANTUNES VARELA et. al., Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 533-534.
[4] ANTUNES VARELA, anotação ao acórdão do S.T.J., de 09.12.1980, in RLJ, 115.º, p. 89.
[5] Proc. n.º 797/17.9T8OLH.E1.S1 (Fernando Samões), em www.dgsi.pt