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PERDA DE CHANCE
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Sumário
1. Na distinção entre matéria de facto e matéria de direito é preciso considerar que um facto conclusivo, juízo conclusivo ou expressão conclusiva é apenas aquele/a que é reconduzível a uma valoração jurídico-substantiva essencial, a extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, sendo ainda de atentar que o veredicto sobre a natureza factual ou jurídica de determinado facto é sempre sujeita a apreciação casuística. 2. De um facto não provado, nada se pode extrair, nem em sentido positivo, nem em sentido negativo, ou seja, tudo se passa como se essa matéria não tivesse sido articulada/alegada. 3. A omissão da identificação de um determinado ponto provado em sede de fundamentação da decisão de facto, corresponde a um erro material suscetível de sanação oficiosa aquando da apreciação da impugnação da decisão de facto, quanto da leitura da fundamentação da decisão e facto é perfeitamente percetível que também abrangeu a factualidade a que se reporta o ponto de facto não mencionado. 4. A Autora ao utilizar um critério mais exigente para o Réu do que aquele que para si mesma adotou, ou seja, ao invocar o incumprimento contratual do Réu, responsabilizando pelos danos que a conduta do mesmo lhe provocou quando ela própria nunca cumpriu as suas obrigações contratuais para com o Réu, configura tal situação um exemplo típico de exercício do direito com ofensa dos parâmetros no artigo 334.º do CC, na modalidade de tu quoque. 5. Não existe abuso de direito na modalidade de desproporcionalidade que resulta do exercício do direito, porquanto a atuação abusiva da Autora ao intentar a presente ação desencadeou, ela mesma, o direito do Réu se defender e invocar o incumprimento contratual da Autora e a condenação da mesma no ressarcimento dos valores que deve ao Réu. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Processo n.º 252/21.2T8FAR.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível - J...
Apelante: O..., Lda
Apelado: AA
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
O..., LDA, com sede em ..., intentou ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra AA, Advogado, com domicílio profissional em ..., peticionando, com fundamento em responsabilidade civil, a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização no valor de €21.520,57, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, computados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em suma, que mandatou o Réu para assumir o patrocínio forense numa ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento intentada contra si por um trabalhador que despediu.
O Réu, apesar de notificado para o devido efeito, não apresentou articulado motivador do despedimento, não juntou o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, não apresentou o rol de testemunhas e não requereu quaisquer outras provas. O despedimento foi declarado ilícito e a Autora condenada a pagar ao trabalhador uma indemnização correspondente, na sua globalidade, a €21.520,57.
O Réu contestou, defendendo-se por exceção, alegando, em suma, a existência do mandato forense alegado pela Autora, mas que esta não lhe pagou a provisão para despesas no valor de €250,00, nem a quantia de €500,00 que acordarem ser devida no caso de as partes litigantes não se conciliarem em sede de audiência de partes, conquanto tivesse sido advertida da cominação decorrente da falta de liquidação da provisão para despesas, nenhum pagamento foi efetuado, nem foi prestada qualquer informação acerca desta omissão, pelo que suspendeu o exercício do mandato.
Alegou ainda que, à luz das circunstâncias, não seria exigível que adotasse um comportamento diverso, para além da Autora nunca ter revogado o mandato e até lhe ter pedido após a decisão proferida em 1.ª instância, a sua intervenção para tentar reverter o conteúdo da aludida sentença.
Razão pela qual, alegou que a Autora agiu com abuso de direito, na modalidade de tu quoque, porquanto a pretensão da Autora, posteriormente a sucessivas promessas de pagamento não cumpridas, afronta o princípio da boa fé.
Ademais, defendeu que, mesmo que a aludida ação tivesse sido contestada, a Autora sempre seria condenada no pedido, por não haver fundamento para o despedimento.
Por último, invocou que a Autora litiga de má fé pugnando pela condenação da mesma em multa com fundamento na omissão intencional do não pagamento dos valores acordados com o Réu e por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.
O Réu também deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de €750,00 (€250,00 a título de provisão inicial e €500,00 de honorários devidos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
A Autora replicou respondendo à reconvenção impugnando os factos alegados pelo Réu e dando uma nova versão do sucedido, defendendo a improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.
Também respondeu à matéria excetiva após ser notificada para esse efeito, defendendo a improcedência da alegada renúncia do direito à indemnização e a falta de pressupostos para a procedência da perda de chance.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu do seguinte modo:
i) Julgar a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolver o Réu AA do pedido; e
ii) Julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenar a Autora/Reconvinda O..., Lda., a pagar ao Réu/ Reconvinte a quantia de €750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto à provisão para despesas contabilizados desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efetivo e integral pagamento, absolvendo a Reconvinda/Autora O..., Lda., do demais peticionado;
iii) Julgar improcedente o incidente de litigância de má fé deduzido pelo Réu AA contra a Autora da O..., Lda.
Inconformada, apelou a Autora, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida no dia 30 de Janeiro de 2023, que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o Recorrido AA do pedido; julgou a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenou a Recorrente O..., Lda., a pagar ao Recorrido a quantia de € 750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto para despesas contabilizadas desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Recorrente O..., Lda., do demais peticionado, doravante designada por «decisão recorrida».
2. Nos termos do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, os factos conclusivos (ou que integram conceitos de direito) não podem integrar a matéria de facto quando estão directamente relacionados com o thema decidendum, por ditarem, por si mesmos, a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor.
3. A resposta como provado de um facto que tenha natureza conclusiva deverá ter-se por não escrita, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, importando ter presente que um facto alegado pelas partes tem natureza conclusiva quando, sendo claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, é, manifestamente, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo.
4. Os factos provados 19), 22), 27), 32), 33), 34), 39) e 40), têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo em si mesmos, nem existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possam assentar as conclusões constantes dos mesmos, pelo que se devem ter por não escritos, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
5. O facto provado 19), na parte em que refere que «todos os contactos estabelecidos por AA com a O..., Lda., até à promoção do recurso, tiveram lugar na pessoa de BB» e «em três ou quatro ocasiões, na pessoa de CC»., tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 19), deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 19) passar a ter a redacção seguinte: «19) No respectivo desenvolvimento processual, AA contactava BB, a quem coube a instrução dos processos disciplinares laborais em que a O..., Lda., foi interveniente, e CC.».
6. O facto provado 22) tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 22), deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
7. O facto provado 27) tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 27), deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
8. O facto provado 32) tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 32), deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
9. O facto provado 33) tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 33), deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
10. O facto provado 34), na parte em que refere «Em face da solução proposta por AA», tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 34) na parte em que refere «Em face da solução proposta por AA», deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 34) passar a ter a redacção seguinte: «34) O..., Lda., liquidou a taxa de justiça referente à contestação da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que corria termos sob o processo n.º 314/20...., no Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ....».
11. O facto provado 39), na parte em que refere «Não obstante não se ter concretizado a promessa referida em 33)», tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 39), deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 39) passar a ter a redacção seguinte:«39) AA emitiu em 10 de Julho de 2020, o recibo de €500 a favor da O..., Lda.».
12. O facto provado 40) tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 40), deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
13. Ao considerar como provados os factos provados 19), na parte em que refere que «todos os contactos estabelecidos por AA com a O..., Lda., até à promoção do recurso, tiveram lugar na pessoa de BB» e «em três ou quatro ocasiões, na pessoa de CC», 22), 27), 32), 33), 34), na parte em que refere «Em face da solução proposta por AA», 39), na parte em que refere «Não obstante concretizado a promessa referida em 33)», e 40), que têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e que são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo factos em si mesmos, nem existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar o conjunto de conclusões constante dos mesmos, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
14. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação pode anular, mesmo oficiosamente, a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1.ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.
15. O facto provado 40) deve ser anulado, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, por se encontrar claramente em contradição com os factos provados 22) e 27) e com o facto não provado E), pois o Tribunal a quo considerou como provado, no facto provado 40), que o Recorrido insistiu para que a Recorrente liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários, e, simultaneamente, nos factos provados 22) e 27), o Tribunal a quo considerou como provado que «22) Após a reunião referida em 21) e antes da data agendada para a realização da audiência de partes, AA comunicou à O..., Lda., que a despesas ainda não lhe tinha sido paga, pelo que solicitou que a mesma diligenciasse nesse sentido» - sublinhado nosso, e que «27) AA deu conhecimento à O..., Lda., do descrito em 26), esclarecendo-a que dispunha do prazo de 15 dias para contestar o pedido formulado contra si e que ele só o efectuaria em sua representação se lhe fosse liquidada antecipadamente a aludida provisão para despesas.» - sublinhado nosso, e ainda, simultaneamente, no facto não provado E), o Tribunal a quo considerou como não provado que o Recorrido tenha esclarecido a Recorrente que subsequentemente à entrega da contestação, teria de ser pago o valor de honorários no montante líquido de €500, de que conferiria a competente quitação.
16. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação pode determinar, mesmo oficiosamente, que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o Tribunal a quo a fundamente.
17. Não constando da decisão recorrida, nomeadamente no ponto 3 «Motivação de Facto», qualquer fundamentação no que respeita ao facto provado 40), isto é, não existindo justificação por parte da Senhora juiz a quo sobre os motivos da sua decisão; não se conhecendo o porquê da Senhora juiz a quo ter dado mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros e se a Senhora juiz a quo achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos, o Tribunal ad quem deve determinar do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, a remessa do processo ao Tribunal a quo, a fim de o mesmo preencher a falta de fundamentação sobre o facto provado 40), com base nas gravações efectuadas ou através da repetição da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
18. Nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto correspondentes aos factos provados 16), 22), 27), 32), 33) e 40).
19. Nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, são os seguintes: depoimento gravado da testemunha BB; depoimento gravado da testemunha DD; depoimento gravado da testemunha EE e depoimento gravado (em sede de declarações de parte) do Recorrido, AA.
20. O Tribunal a quo não podia basear a resposta aos factos agora impugnados exclusivamente por recurso ao depoimento da testemunha BB e declarações de parte prestadas pelo Recorrido AA, pois a aludida testemunha BB conhece o Recorrido enquanto colega de profissão (Advogado), indicou Recorrido para patrocinar acções em que a Recorrente fosse parte, prestou acessória jurídica (instrução de procedimentos disciplinares) nos mesmos processos em que o Recorrido teve intervenção e tem escritório no mesmo edifício onde o Recorrido exerce advocacia, devendo ser considerada pessoa especialmente relacionada com o Recorrido e, como tal, tendo interesse num determinado desfecho do processo (depoimento gravado no sistema "H@bilus Média Studio", entre 00:03:00 a 00:07:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022), tendo acabado por prestar, substancialmente, um «depoimento de parte».
21. A Recorrente considera incorrectamente julgado o ponto de facto correspondente ao facto provado 16), porque o Tribunal a quo o considerou provado com base nos depoimentos da testemunha indicada pelo Recorrido, BB (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:02:26 e 00:02:59, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022) e pelo próprio depoimento de parte do Recorrido (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:04:00 a 00:07:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 31 de Maio de 2022), os quais não têm qualquer credibilidade e sem que dos mesmos resulte aquilo que o Tribunal a quo considerou resultar, sendo os mesmo totalmente vagos e imprecisos a considerar provado que os «lotes de processos» seriam uniformemente e mediante € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de provisão para despesas e € 500,00 (quinhentos euros) a título de honorários, devendo o facto provado 16) ser julgado não provado.
22. A Recorrente considera incorrectamente julgado os pontos de facto correspondentes aos factos provados 22), 27), 32), 33) e 40), porque o Tribunal a quo os considerou provados com base no depoimento da testemunha indicada pelo Recorrido, BB, e pelas próprias declarações de parte do Recorrido, os quais não deveriam ter merecido do Tribunal a quo a mínima credibilidade.
23. Os depoimentos de BB (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:07:00 a 00:08:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022) e do Recorrido AA (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:06:00 e 00:11:00 a 00:12:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 31 de Maio de 2022), são vagos e imprecisos, não concretizando factualmente o Recorrido, em nenhum momento, como, onde e por quem «que fosse paga a provisão»; quando solicitou o pagamento da provisão; a quem solicitou o pagamento da provisão; a explicação para, segundo esta tese, e apesar de não ter sido paga provisão para despesas, o Recorrido ter representado a Recorrente na audiência de partes do dia 03 de Março de 2020; a explicação para, apesar de não ter sido paga provisão para despesas, não existir um único documento comprovativo dessa falta de pagamento, ou do pedido para suprir essa falta de pagamento, não circunstanciando modo, tempo e lugar dessas «conversas telefónicas», não concretizando que emails foram trocados ou, até, fazer chegar os mesmos ao processo, devendo o facto provado 22) ser julgado não provado.
24. As declarações de parte do Recorrido AA (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:07:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 31 de Maio de 2022), e o depoimento da testemunha BB (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:10:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022) não esclarecem como é que o Recorrido suspendeu o mandato e informou «que não iria contestar a ação ao Doutor BB, e ao Doutor CC»; não esclarecem quando é que o Recorrido solicitou o pagamento da provisão; não esclarecem a quem é que o Recorrido solicitou o pagamento da provisão, nem dão explicação para, segundo esta tese e apesar de alegadamente não ter sido paga provisão para despesas, o Recorrido ter representado a Recorrente na audiência de partes do dia 03 de Março de 2020 mas não ter contestado a acção; e não dão explicação para, segundo esta tese, apesar de alegadamente não ter sido paga provisão para despesas, não existir um único documento comprovativo dessa falta de pagamento, ou do pedido para suprir essa falta de pagamento.
25. Os depoimentos do Recorrido AA e da testemunha BB são expressa e impressivamente contraditados pelo depoimento prestado por EE (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:00:01 a 00:05:00 da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022) e pelo depoimento prestado por DD (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:01:00 a 00:07:00 da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 10 de Fevereiro de 2022), uma vez que as aludidas testemunhas referiram, espontânea e unanimemente, nunca ter ouvido ou presenciado algo que indiciasse que a Recorrente não tinha pago provisão ao Recorrente e, por essa via, o Recorrente tinha suspendido o mandato e omitido a apresentação de contestação em tribunal, apesar de exercerem funções na Recorrente (administrativo e assistente de recursos humanos, respectivamente), estarem inteiradas da metodologia seguida durante os processos disciplinares e terem conhecimento dos factos relacionados com o procedimento disciplinar e posterior processo de impugnação da regularidade e licitude do despedimento instaurado pelo antigo trabalhador da Recorrente contra a mesma, razão pela qual o facto provado 27) deve ser considerado como não provado.
26. O Recorrido não apresenta articulado motivador do despedimento, não junta procedimento disciplinar ou documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, não apresenta rol de testemunhas, nem requer quaisquer outras provas aos autos, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da frustração da tentativa de conciliação, na audiência de partes realizada a 03 de Março de 2020, o que leva à condenação da Recorrente, no âmbito do processo n.º 314/20...., a pagar ao trabalhador FF a indemnização em substituição da reintegração correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, sem prejuízo do disposto no artigo 391.º, n.º 2 e n.º 3, do Código do Trabalho, e as retribuições que o mesmo deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, com as deduções resultantes da aplicação do disposto do artigo 390.º, do n.º 2, do Código do Trabalho, o que totalizou um custo total para a Recorrente de €21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), porque, alegadamente a Recorrente lhe deve o montante de (pasme-se) € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de provisão para despesas, mas o Recorrido (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:10:00 a 00:20:00, da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 31 de Maio de 2022), ao mesmo tempo, apresenta articulado invocando justo impedimento, analisa despacho de indeferimento do invocado justo impedimento e recorre para o Tribunal da Relação de Évora desse mesmo despacho de indeferimento tendo por base a palavra e promessa de uma pessoa (CC) com quem tinha estado reunida «três ou quatro vezes» e sem que lhe tenha sido ainda pago o aludido montante de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de provisão para despesas por parte Recorrente, razão pela qual os factos provados 32), 33) e 40) devem ser julgados não provados.
27. É entendimento quase maioritário na jurisprudência, que para prova dos factos alegados pela parte, o Juiz não pode bastar-se com as declarações prestadas pela própria, por serem parciais e interessadas, sendo necessário que as declarações sejam corroboradas por outras provas, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter fundamentado a sua decisão sobre os factos provados 16), 22), 27), 32), 33) e 40) exclusivamente nas declarações de parte do Recorrido e da testemunha BB, que tem interesse no desfecho da causa, quando as mesmas não foram corroboradas por quaisquer outras provas idóneas, pelo que a prova (não) produzida foi manifestamente insuficiente para que o Tribunal a quo pudesse dado como provado os factos provados 16), 22), 27), 32), 33) e 40).
28. No caso de ser julgada totalmente procedente a alteração da matéria de facto, não ficarão provados factos consubstanciadores do alegado abuso de direito, já estando provados factos subsumíveis a incumprimento contratual por parte do Recorrido, nomeadamente subsumíveis ao instituto da perda de chance que aquele dito incumprimento representou para a Recorrente.
29. Não se tendo provado que a Recorrente devia ao Recorrido valores respeitantes à execução do mandato (sejam eles a título de provisão despesas, sejam eles a título de honorários), não se tendo provado nada acerca da eventual relação inter partes de onde pudesse resultar uma situação de prévio acordo quanto ao tempo, modo e lugar de pagamento pela Recorrente ao Recorrido dos serviços prestados, não se tendo provado nada quanto a uma eventual suspensão do mandato em caso de incumprimento ou mora por parte da Recorrente, e não se tendo provado nada quanto à existência de interpelação (escrita ou verbal) por parte do Recorrido à Recorrente para esta satisfazer despesas alegadamente em dívida no âmbito do contrato de mandato celebrado, e para esta satisfazer honorários alegadamente em dívida no âmbito do contrato de mandato celebrado, quer por falta de notificação admonitória para o efeito, quer por falta de comunicação (escrita ou verbal) resolutiva do contrato de mandato, quer, ainda, por falta de comunicação (escrita ou verbal) de renúncia ao contrato de mandato, então resulta por demais evidente que, atento os factos já provados e os factos que não ficarão provados, sendo julgada totalmente procedente a alteração da matéria de facto, a matéria constante dos autos será manifestamente suficiente para concluir pela inexistência de qualquer comportamento consubstanciador de abuso de direito por parte da Recorrente, sendo a mesma suficiente para condenar o Recorrido a pagar à Recorrente uma indemnização no valor de € 21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, computados desde a citação até efectivo e integral pagamento e absolver a Recorrente a pagar ao Recorrido a quantia de € 750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto à provisão para despesas contabilizadas desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efectivo e integral pagamento, razão pela qual a actuação da Recorrente, ao propor a presente acção, não pode ser reconduzida a um comportamento consubstanciador de abuso de direito, mas sim a um exercício legítimo do direito potestativo em invocar responsabilidade civil com finalidade de criar na esfera jurídica do Recorrido uma obrigação de indemnizar, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento na matéria de direito por violação do artigo 334.º, do Código Civil.
30. Nos termos do disposto no artigo 334.º, do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
31. Os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.
32. Os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu, pelo que, se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, haverá abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
33. Existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
34. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras, a figura do tu quoque, princípio cujo conteúdo corresponde ao de que quem actua ilicitamente – em desconformidade com o direito – não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte, atribuindo a ordem jurídica à contraparte um direito subjectivo obstaculizador, sendo, nessas situações, a paralisação do direito justificada pela (deficiente) bitola do titular do direito para julgar e julgar-se.
35. Apesar de o legislador ter adoptado, entre nós, a concepção objectiva do abuso de direito, a verdade é que, segundo ANTUNES VARELA refere, não se pode, em qualquer dos casos (limites impostos pela boa-fé e limites impostos pelos bons costumes), «[…] afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos, nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto esta poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.», sendo necessário saber, previamente a responder à pergunta se a Recorrente ao propor a presente acção contra o Recorrido actuou com abuso de direito, conforme considerou o Tribunal a quo, qual a intenção (factor subjectivo) com que a Recorrente (titular do direito) agiu ao propor a acção, visto esta intenção, na esteira de ANTUNES VARELA, interessar quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.
36. A Recorrente mandatou o Recorrido para assumir o patrocínio forense no processo n.º 314/20...., tendo aquela outorgado, em 26 de Fevereiro de 2020, procuração a favor deste – facto provado 18).
37. No dia 03 de Março de 2020, foi realizada, nos termos do disposto no artigo 98.º-I, do Código de Processo do Trabalho, a audiência de partes do processo n.º 314/20.... – facto provado 23).
38. Na audiência de partes, realizada no dia 03 de Março de 2020, estiveram presentes o trabalhador FF e o Recorrido, na qualidade de Advogado da Recorrente, tendo, nesse seguimento, resultada frustrada tentativa de conciliação entre as partes, e tendo a Recorrente, devidamente representada pelo Recorrido, ficado notificada para, no prazo de 15 (quinze) dias, conforme o disposto no artigo 98.º- I, n.º 4, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, «apresentar articulado para motivar o despedimento, juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas» – factos provados 24), 25) e 26).
39. No âmbito do desempenho do mandato forense, o Recorrido, na qualidade de Advogado da Recorrente, notificado nos termos do disposto do artigo 98.º-I, n.º 4, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, não apresentou o articulado motivador do despedimento, não juntou o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, não apresentou o rol de testemunhas e não requereu quaisquer outras provas – facto provado 30).
40. Na sequência do trânsito em julgado da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ..., no processo n.º 314/20...., e em cumprimento da mesma, a Recorrente pagou ao trabalhador FF o valor ilíquido de € 19.555,98 (dezanove mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e noventa e oito cêntimos), assim discriminado: € 11.284,00 (onze mil e duzentos e oitenta e quatro euros): a título de indemnização, em substituição da reintegração, correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade); O valor ilíquido de € 429,87 (quatrocentos e vinte e nove euros e oitenta e sete cêntimos): retribuição de 16 dias de Janeiro de 2020; O valor ilíquido de € 6.448,00 (seis mil, quatrocentos e quarenta e oito euros): retribuições dos meses de Fevereiro de 2020 a Setembro de 2020; O valor ilíquido de € 214,93 (duzentos e catorze euros e noventa e três cêntimos): retribuição de 8 dias de Outubro de 2020; O valor ilíquido de € 589,59 (quinhentos e oitenta e nove euros e cinquenta e nove cêntimos): subsídio de férias entre 16 de Janeiro de 2020 e 8 de Outubro de 2020; O valor ilíquido de € 589,59 (quinhentos e oitenta e nove euros e cinquenta e nove cêntimos): subsídio de Natal entre 16 de Janeiro de 2020 e 8 de Outubro de 2020 – facto provado 43).
41. Ao valor ilíquido de € 8.271,98 (oito mil, duzentos e setenta e um euros e noventa e oito cêntimos), correspondente às retribuições que o trabalhador FF deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, acrescem €1.964,59 (mil novecentos e sessenta e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos) correspondentes às contribuições para a Segurança Social a cargo da Recorrente (23,75%) – facto provado 44).
42. Os factos provados nos presentes autos permitem afirmar que a Recorrente, ao instaurar a presente acção de indemnização por responsabilidade civil por perda de chance contra o Recorrido, não teve outra motivação que não a de acautelar os seus interesses e exercer, legitimamente, o seu direito, não estando provada nos autos qualquer intenção da Recorrente em, com a proposição da presente acção, prejudicar ou comprometer o gozo de qualquer direito do Recorrido, criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da mesma (enquanto titular desse mesmo direito) e as consequências a suportar pelo Recorrido, pessoa contra quem o direito é invocado, nem estando provados nos autos factos aptos a circunscrever uma concreta intenção da Recorrente considerada, na esteira de ANTUNES VARELA, prejudicial ou comprometedora do gozo do direito do Recorrido, de tal forma que essa intenção só possa ser interpretada como excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim do direito, ou criadora, também na esteira de ANTUNES VARELA, de uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da Recorrente e as consequências a suportar pelo Recorrido, de tal forma que essa intenção só possa ser interpretada como excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim do direito.
43. Nestes termos, a Recorrente, ao propor a presente acção, não actuou com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo de qualquer direito do Recorrido, nem com a intenção de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da mesma (enquanto titular desse mesmo direito) e as consequências a suportar pelo Recorrido, pessoa contra quem o direito é invocado, o que equivale a dizer que não actuou com abuso de direito por não ter excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim sócio económico do direito, razão pela qual a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de direito, violando o artigo 334.º, do Código Civil.
44. O Recorrido, face à inadimplência dos deveres contratuais que recaiam sobre a Recorrente [sem prejuízo da impugnação da matéria de facto a este respeito], no desempenho do mandato forense que lhe foi concedido pela Recorrente, ao não apresentar articulado motivador do despedimento, ao não juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, ao não apresentar o rol de testemunhas, ao não requerer quaisquer outras provas aos autos, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da frustração da tentativa de conciliação, na audiência de partes realizada a 03 de Março de 2020, o que levou à condenação da Recorrente, no processo n.º 314/20...., a pagar ao trabalhador FF a indemnização em substituição da reintegração correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, sem prejuízo do disposto no artigo 391.º, n.º 2 e n.º 3, do Código do Trabalho, e as retribuições que o mesmo deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, com as deduções resultantes da aplicação do disposto do artigo 390.º, do n.º 2, do Código do Trabalho, o que totalizou um custo total para a Recorrente de € 21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), criou uma desproporção grave entre benefício do titular exercente (o Recorrido) e o sacrifício por ele imposto a outrem (à Recorrente).
45. O Recorrido, ao invocar a excepção de não cumprimento do contrato de mandato celebrado com a Recorrente, desencadeou uma abusiva sanção contra a Recorrente que a atingiu patrimonialmente no montante de €21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos) [a Recorrente foi condenada, no processo n.º 314/20...., a pagar ao trabalhador FF a indemnização em substituição da reintegração correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, sem prejuízo do disposto no artigo 391.º, n.º 2 e n.º 3, do Código do Trabalho, e as retribuições que o mesmo deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, com as deduções resultantes da aplicação do disposto do artigo 390.º, do n.º 2, do Código do Trabalho, o que totalizou um custo total para a Recorrente de € 21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos)], porquanto a Recorrente não satisfez ao Recorrido o montante de (pasme-se!) € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), sem que se vislumbre qualquer desrazoabilidade manifesta nesse incumprimento da Recorrente, e sem que se vislumbre qualquer justificação plausível para o facto de o Recorrido não ter recorrido a outros meios de tutela menos gravosos, como por exemplo interpelação admonitória à Recorrente para cumprimento do contrato de mandato, resolução do contrato de mandato e instauração de eventual acção cobrança de honorários, originando uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos e os sacrifícios impostos à Recorrente resultantes desse mesmo exercício, contrariando a confiança desta e aquilo que a Recorrente podia razoavelmente esperar por parte do Recorrido, constatando-se um desequilíbrio grave entre o benefício que da procedência dessa pretensão poderia advir para o Recorrido (forçar a Recorrente ao pagamento ao Recorrido do montante de € 750,00) e o sacrifício que é imposto à Recorrida pelo exercício de tal direito (pagamento do montante de € 21.520,57).
46. O Recorrido actuou, ele sim, com abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, porque sendo embora detentor do direito de invocar essa excepção, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Recorrente contra a qual é invocado, contrariando a confiança desta e aquilo que a Recorrente podia razoavelmente esperar por parte do Recorrido.
47. No caso de o Tribunal ad quem concluir pela existência de incumprimento do contrato de mandato celebrado entre a Recorrente e Recorrido imputável àquela, então deverá ficar impedido o exercício do direito do Recorrido em invocar a excepção de não cumprimento do contrato, existindo obrigação de o Recorrido pagar à Recorrente indemnização no valor de € 21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, computados desde a citação até efectivo e integral pagamento e suficientes e existe a obrigação de absolvição da Recorrente em pagar ao Recorrido a quantia de €750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto à provisão para despesas contabilizadas desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efectivo e integral pagamento, porquanto o Recorrido, ao exercer o seu direito, originou uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos e os sacrifícios impostos à Recorrente resultantes desse mesmo exercício, contrariando a confiança desta e aquilo que a Recorrente podia razoavelmente esperar por parte do Recorrido, constatando-se um desequilíbrio grave entre o benefício que da procedência dessa pretensão poderia advir para o Recorrido (forçar a Recorrente ao pagamento ao Recorrido do montante de € 750,00) e o sacrifício que é imposto à Recorrida pelo exercício de tal direito (pagamento do montante de € 21.520,57).
48. A decisão recorrida, ao não ter considerado que o Recorrido, ao invocar a excepção de não cumprimento do contrato de mandato, actuou com abuso de direito, que é uma excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 579.º, do Código de Processo Civil, e ao ter julgado a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvido o Recorrido AA do pedido; julgado a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenado a Recorrente O..., Lda., a pagar ao Recorrido a quantia de € 750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto à provisão para despesas contabilizadas desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Recorrente O..., Lda., do demais peticionado, violou o disposto no artigo 334.º, do Código Civil, incorrendo em erro de julgamento da matéria de direito.
Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que absolveu o Recorrido AA do pedido, e na parte em que julgou a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenou a Recorrente O..., Lda., a pagar ao Recorrido a quantia de € 750,00, adicionada de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, quanto à provisão para despesas contabilizadas desde 26 de Fevereiro de 2020 e quanto aos honorários desde 08 de Junho de 2020, até efectivo e integral pagamento, ou, subsidiariamente, concluindo-se que o Recorrido, ao invocar a excepção de não cumprimento do contrato de mandato celebrado com a Recorrente, actuou com abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, existindo a obrigação de o Recorrido pagar a quantia reclamada pela Recorrente [quantia de € 21.520,57 (vinte e um mil, quinhentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, computados desde a citação até efectivo e integral pagamento] assim se fazendo inteira JUSTIÇA!»
Na resposta ao recurso, o Recorrido defendeu a improcedência do recurso.
Foram colhidos o vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se, sucessivamente, apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Se na procedência total ou parcial da impugnação da decisão de facto, deve a sentença ser revogada;
- Em caso negativo, e subsidiariamente, se o Réu agiu com abuso de direito ao invocar a exceção de não cumprimento.
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«1) A O..., Lda., é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada que tem por objecto o exercício de gestão e administração de hotéis e apartamentos com restaurante, obrigando-se com a assinatura conjunta de dois gerentes, figurando, em 4.08.2020, como gerentes GG, HH, II, JJ e KK, que renunciou em 9.11.2020, tendo sido nomeado em sua substituição LL, por deliberação de 30.10.2020. 2) AA é advogado, exerce a advocacia como profissão liberal remunerada, e está inscrito na Ordem dos Advogados desde ../../1990. 3) Em 27 de Setembro de 2007, a O..., Lda., admitiu ao seu serviço, mediante contrato de trabalho sem termo, FF, para sob a sua autoridade e direcção desempenhar as funções inerentes à categoria de recepcionista de 2.ª classe no empreendimento turístico “H...”. 4) No dia 24 de Novembro de 2019, cerca das 20 horas, a O..., Lda., efectuou de surpresa uma auditoria à caixa e cofre da recepção da unidade hoteleira referida em 3), onde FF coadjuvava na execução dos trabalhos de recepção, tendo sido encontrado um envelope dentro da gaveta da recepção com algumas facturas e dinheiro não contabilizado. 5) Após análise, verificou-se que essas facturas nunca tinham sido colocadas e registadas no sistema de Front Office (Sistema de Recepção) da empresa e que uma parte do dinheiro faltava, porquanto o total das facturas perfazia a quantia de €300, faltando o montante de €123,36 para completar esse montante total. 6) Confrontado com estes factos, FF assumiu a responsabilidade por essa falta, alegando a necessidade de acudir a uma urgência com uma das suas filhas menores, e para não passar pela vergonha de pedir ajuda ao seu Director, acordou com o Sr. MM, dono de uma empresa de massagens que presta serviços à O..., Lda., só conferir as respectivas facturas no final do mês, comprometendo-se a repor, na altura, o aludido valor em falta. 7) FF repôs de imediato a quantia em falta. 8) Além dos responsáveis da empresa, tinham acesso ao aludido cofre seis pessoas da recepção. 9) No dia 25 de Novembro de 2019, foi efectuada uma nova auditoria ao cofre da empresa e conclui-se que se encontrava em falta a quantia de €1.000 em numerário, montante que era utilizado como “fundo de maneio” da recepção. 10) A O..., Lda., decidiu deduzir queixa-crime contra FF pela falta da quantia de €1.000 relativa ao “fundo de maneio” da recepção. 11) Do escrito intitulado “Auto de Notícia” consta:
“O representante legal, Sr. LL, da empresa O..., Lda. – ... […] a relatar que […] No dia vinte e quatro de Novembro de dois mil e dezanove foi efectuada uma auditoria surpresa à caixa da recepção. Ao qual encontraram um envelope com facturas e dinheiro que não terá sido contabilizado no valor de 300€. E essas facturas estavam em nome do suspeito, ou qual o Sr. FF foi confrontado com a situação e afirmou que tinha sido ele a guardar aquele envelope porque precisava do dinheiro, e com esta situação o dinheiro foi devolvido e ficou resolvida”. 12) Do escrito designado “Resposta à Nota de Culpa” consta:
“7.º Não era sua intenção apropriar-se do dinheiro, tanto é, que assim que foi confrontado, mesmo sabendo que não havia provas de quem poderia ter sido, visto não ser o único a ter acesso ao cofre, havendo mais pessoas que têm acesso ao cofre confessou logo que havia sido ele, explicando os seus motivos, os quais foram aceites pelo Director […]”. 13) O..., Lda., por decisão de 14 de Janeiro de 2020, procedeu ao despedimento, com invocação de justa causa, do trabalhador FF, com fundamento no facto de, no dia 24 de Novembro de 2019, o mesmo se ter apropriado indevida e ilegitimamente, para seu uso e em seu benefício próprio, da quantia de €123,36, propriedade da O..., Lda. 14) O trabalhador FF intentou contra a O..., Lda., uma acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, a qual veio a correr termos sob o processo n.º 314/20...., no Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz .... 15) Em Setembro de 2019, no exercício da sua actividade profissional, AA foi contactado pela O..., Lda., no sentido de patrocinar os seus direitos e interesses em processos judiciais de natureza laboral, designadamente em acções instauradas por seus trabalhadores ou ex-trabalhadores. 16) Tratando-se de um possível “lote de processos”, em que se incluía não só as acções em que a O..., Lda., figurava como ré, mas também outras eventuais e possíveis acções movidas por e contra uma outra empresa do referido Grupo “...”, mais concretamente, a “P..., Lda.”, a O..., Lda., e AA acordaram um valor unitário de retribuição pelo exercício de cada um dos mandatos que lhe fosse confiado, que seria pago do seguinte modo: i) A título de provisão para despesas (despesas com deslocação à sede da autora, ao Tribunal do Trabalho ..., gastos com portagem e combustível, correio, etc.), a entrega imediata da quantia líquida de €250 (duzentos e cinquenta euros), de que o Réu conferiria quitação; ii) No caso de as partes litigantes não se conciliarem em sede de audiência de partes, o pagamento da quantia líquida de honorários no montante de €500 (quinhentos euros), imediatamente após a formulação da respectiva Resposta Processual/Contestação, de que o Réu conferiria a quitação. 17) Para pagamento dos valores (provisão para despesas e honorários) acordados, AA informou a O..., Lda., da referência NIB/IBAN da sua conta bancária. 18) O..., Lda., mandatou AA para assumir o patrocínio forense no processo n.º 314/20...., para o qual a primeira outorgou, em 26 de Fevereiro de 2020, Procuração a seu favor. 19) No respectivo desenvolvimento processual, todos os contactos estabelecidos por AA com a O..., Lda., até à promoção do recurso, tiveram lugar na pessoa de BB, a quem coube a instrução dos processos disciplinares laborais em que a O..., Lda., foi interveniente, e, em três ou quatro ocasiões, na pessoa de CC. 20) No âmbito da acção laboral aludida em 14), a O..., Lda. foi citada em 10 de Fevereiro de 2020 para comparecer ou fazer-se representar por mandatário com poderes especiais para desistir, transigir ou confessar, na audiência de partes designada para o dia 3 de Março de 2020. 21) Algures nos últimos dias de Fevereiro de 2020, a fim de fazer um “ponto de situação” sobre os fundamentos da acção laboral em causa e receber as necessárias instruções para a representar naquela audiência judicial, AA deslocou-se à sede da O..., Lda., sita na Rua ..., ..., em ..., onde se reuniu, por cerca de 1 hora, com BB e CC. 22) Após a reunião referida em 21) e antes da data agendada para a realização da audiência de partes, AA comunicou à O..., Lda., que a provisão para despesas ainda não lhe tinha sido paga, pelo que solicitou que a mesma diligenciasse nesse sentido. 23) No dia 03 de Março de 2020, foi realizada a audiência de partes do processo n.º 314/20..... 24) Na audiência de partes, realizada no ... do ..., estiveram presentes o trabalhador FF e AA, na qualidade de Advogado da O..., Lda. 25) Dessa audiência resultou a frustração da tentativa de conciliação entre as partes. 26) No seguimento da frustração da tentativa de conciliação entre as partes, a O..., Lda., devidamente representada por AA, ficou notificada para, no prazo de 15 (quinze) dias, apresentar articulado para motivar o despedimento, juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas. 27) AA deu conhecimento à O..., Lda., do descrito em 26), esclarecendo-a que dispunha do prazo de 15 dias para contestar o pedido formulado contra si e que ele só o efectuaria em sua representação se lhe fosse liquidada antecipadamente a aludida provisão para despesas. 28) Do despacho proferido em 04/05/2020, no âmbito do processo n.º 314/20...., consta:
“Não tendo sido apresentado articulado a motivar o despedimento […], deve o trabalhador ser notificado para declarar se pretende ser reintegrado no seu posto de trabalho, ou opta pelo recebimento de indemnização em substituição da reintegração […]”. 29) O trabalhador FF optou pela indemnização substitutiva da reintegração. 30) Da sentença proferida em 11 de Maio de 2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ..., consta:
“Nos presentes autos, veio FF impugnar a regularidade e licitude do despedimento promovido por O..., Lda. […] no prazo legalmente previsto para o efeito, a ré não apresentou qualquer articulado a motivar o despedimento, nem juntou documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas para o mesmo. Notificado para o efeito, o trabalhador veio declarar optar pelo recebimento de indemnização em substituição da reintegração. […] Por tudo o exposto, declara-se a ilicitude do despedimento do trabalhador FF por parte da empregadora O..., Lda. e, consequentemente: a) Condena-se a empregadora a pagar ao trabalhador FF a indemnização em substituição da reintegração correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, sem prejuízo do disposto no artigo 391.º, n.º 2 e n.º 3, do Código do Trabalho; b) Condena-se, ainda, a empregadora no pagamento das retribuições que o trabalhador FF deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, com as deduções resultantes da aplicação do disposto no artigo 390.º, n.º 2, do Código do Trabalho. […]”. 31) AA informou O..., Lda., do conteúdo da decisão referida em 30), sendo que esta foi, de igual modo, notificada pelo Tribunal dessa mesma decisão. 32) Alguns dias após aquela sentença, O..., Lda., contactou AA para saber o que se poderia fazer para tentar reverter a situação, ao que este reiterou que da sua parte nada iria fazer enquanto se mantivesse a situação de não cumprimento das obrigações assumidas para com a sua pessoa, mantendo-se plenamente válida a razão invocada em 27). 33) Perante a promessa de pagamento dos valores em causa, garantida pelo próprio CC, AA aceitou estudar a possibilidade de, ainda em tempo, contestar os termos daquela acção, e, após estudo, adiantou a hipótese de estar em condições de alegar “justo impedimento”, porquanto havia sido obrigado a confinamento estrito por força da Pandemia da “COVID-19” e do estado de imunodepressão da sua cônjuge, que, à época, padecia de doença oncológica em estado avançado, o que o impossibilitou em absoluto de exercer a sua actividade profissional. 34)Em face da solução proposta por AA, a O..., Lda., liquidou o atinente valor respeitante à taxa de justiça. 35) AA contestou a acção em questão em 12 de Maio de 2020, tendo, na qualidade de Advogado da O..., Lda., alegado justo impedimento e motivado o despedimento, juntando quer o procedimento disciplinar, quer uma “carta de acompanhamento” emitida por médico da “Região ... – ACES ... – Unidade de Saúde ...”. 36) Do despacho proferido em 28/05/2020 pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ..., consta:
“O Ilustre mandatário da ré veio invocar justo impedimento […]. cabe concluir pela inexistência do invocado justo impedimento, com o que queda o articulado motivador apresentado irremediavelmente fora de prazo, devendo determinar-se o respectivo desentranhamento e mantendo-se a sentença já proferida, que declarou ilícito o despedimento do trabalhador”. 37) Notificado deste despacho, AA, na qualidade de Advogado da O..., Lda., recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, tendo, nesse âmbito, requerido que o despacho que concluiu pela inexistência de justo impedimento e que determinou o desentranhamento do articulado motivador do despedimento fosse substituído por outro que admitisse o articulado motivador do despedimento, revogando-se por arrastamento, também, a sentença proferida a 12 de Maio de 2020. 38) O..., Lda., liquidou a taxa de justiça referente ao recurso indicado em 37). 39) Não obstante não se ter concretizado a promessa referida em 33), AA emitiu em 10 de Julho de 2020, o recibo de €500 a favor de O..., Lda. 40) AA insistiu para que O..., Lda., liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários. 41) Do acórdão proferido em 24/09/2020 pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 314/20...., consta:
“Foi invocado o justo impedimento com fundamento na circunstância do Ilustre Mandatário ter estado sujeito a uma situação de confinamento domiciliário entre 07.03.2020 e 11.05.2020. Com o respectivo requerimento foi apresentada uma declaração médica mencionando que esteve em isolamento domiciliário por força da pandemia COVID-19 e da situação de imuno-depressão de familiar próximo, impossibilitando-o de exercer a sua actividade profissional, estando em condições de a reiniciar a partir de 11.05.2020. Porém, estes factos não permitem o reconhecimento do justo impedimento. Com efeito, não basta a mera alegação e prova de ter estado sujeito a uma situação de confinamento domiciliário, pois o acto em causa podia e devia ser praticado por transmissão electrónica de dados, sem deslocação às instalações do tribunal. Podendo o acto ser praticado remotamente, seria ainda necessário demonstrar que o mandatário da parte não tinha acesso a meios de comunicação à distância no domicílio ou que não podia ali praticar os actos necessários à transmissão electrónica do articulado motivador do despedimento e dos demais elementos necessários, ou ainda que esteve incapacitado por infecção por COVID-19, factos acerca dos quais nenhuma prova foi apresentada. […] Destarte, nega-se provimento ao recurso, com manutenção da decisão recorrida”. 42) AA informou de imediato a O..., Lda. do resultado do recurso mencionado em 41). 43) Na sequência do trânsito em julgado da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ..., no processo n.º 314/20...., e em cumprimento da mesma, a Autora pagou ao trabalhador FF o valor ilíquido de €19.555,98, assim discriminado: a) €11.284,00: a título de indemnização, em substituição da reintegração, correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade; b) O valor ilíquido de €429,87: retribuição de 16 dias de Janeiro de 2020; c) O valor ilíquido de €6.448,00: retribuições dos meses de Fevereiro de 2020 a Setembro de 2020; d) O valor ilíquido de €214,93: retribuição de 8 dias de Outubro de 2020; e) O valor ilíquido de €589,59: subsídio de férias entre 16 de Janeiro de 2020 e 08 de Outubro de 2020; e f) O valor ilíquido de € 589,59: subsídio de Natal entre 16 de Janeiro de 2020 e 08 de Outubro de 2020. 44) Ao valor ilíquido de €8.271,98, correspondente às retribuições que o trabalhador FF deixou de auferir desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, acresceram €1.964,59 correspondentes às contribuições para a Segurança Social a cargo da O..., Lda. 45) AA suportou a suas exclusivas expensas os encargos de despesas de deslocação de ... a ... e de ... a ..., liquidou o valor do IVA, no montante de €117,35, referente à quantia inserta no recibo passado a favor da O..., Lda., e viu esse montante total de €500 integrar a matéria colectável para efeitos de declaração do seu IRS.»
FACTOS NÃO PROVADOS
«Não se provaram quaisquer outros factos para além dos que se acaba de descrever e, nomeadamente, que: A) O Director da O..., Lda., deu uma repreensão verbal ao trabalhador FF, afirmando que “tal não poderia voltar a acontecer e que, caso repusesse de imediato a quantia em falta, a questão ficava resolvida”. B) Para FF e para a O..., Lda., a questão descrita em 4), 5) e 6) ficou resolvida no momento mencionado em A), comprometendo-se aquele a não voltar a prevaricar. C) A O..., Lda., decidiu deduzir queixa-crime contra FF com fundamento na não facturação dos citados €123,36. D) AA comunicou à O..., Lda., o referido em 22) dois dias antes da data prevista para a audiência de partes. E) Quando AA deu conhecimento à O..., Lda., do mencionado em 27), esclareceu-a que subsequentemente à entrega da contestação, teria que ser pago o valor de honorários no montante líquido de €500, de que conferiria a competente quitação. F) No dia 04 de Maio de 2020, tenha sido proferido despacho declarando ilícito o despedimento. G) AA contestou a acção em 08 de Junho de 2020. H) AA, na referida deslocação de ... a ..., suportou os respectivos encargos de combustível e portagem, no valor total de €32,11 [ida e volta (72 km) = €25,92 + portagem no valor de €6.18]. I) Na deslocação de ... ao Tribunal do Trabalho ..., AA suportou os respectivos encargos de combustível e portagem, no valor total de €56,14 [ida e volta (134 km) = €48,24 + portagem no valor de €7,90].»
C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Impugnação da decisão de facto
1.1. Natureza conclusiva dos factos provados 19, 22, 27, 32, 33, 34, 39 e 40
A redação destes pontos de facto provados é a seguinte:
19) No respectivo desenvolvimento processual, todos os contactos estabelecidos por AA com a O..., Lda., até à promoção do recurso, tiveram lugar na pessoa de BB, a quem coube a instrução dos processos disciplinares laborais em que a O..., Lda., foi interveniente, e, em três ou quatro ocasiões, na pessoa de CC.»
22) Após a reunião referida em 21) e antes da data agendada para a realização da audiência de partes, AA comunicou à O..., Lda., que a provisão para despesas ainda não lhe tinha sido paga, pelo que solicitou que a mesma diligenciasse nesse sentido.
27) AA deu conhecimento à O..., Lda., do descrito em 26), esclarecendo-a que dispunha do prazo de 15 dias para contestar o pedido formulado contra si e que ele só o efectuaria em sua representação se lhe fosse liquidada antecipadamente a aludida provisão para despesas.
32) Alguns dias após aquela sentença, O..., Lda., contactou AA para saber o que se poderia fazer para tentar reverter a situação, ao que este reiterou que da sua parte nada iria fazer enquanto se mantivesse a situação de não cumprimento das obrigações assumidas para com a sua pessoa, mantendo-se plenamente válida a razão invocada em 27).
33) Perante a promessa de pagamento dos valores em causa, garantida pelo próprio CC, AA aceitou estudar a possibilidade de, ainda em tempo, contestar os termos daquela acção, e, após estudo, adiantou a hipótese de estar em condições de alegar “justo impedimento”, porquanto havia sido obrigado a confinamento estrito por força da Pandemia da “COVID-19” e do estado de imunodepressão da sua cônjuge, que, à época, padecia de doença oncológica em estado avançado, o que o impossibilitou em absoluto de exercer a sua actividade profissional.
34) Em face da solução proposta por AA, a O..., Lda., liquidou o atinente valor respeitante à taxa de justiça.
39) Não obstante não se ter concretizado a promessa referida em 33), AA emitiu em 10 de Julho de 2020, o recibo de €500 a favor de O..., Lda.
40) AA insistiu para que O..., Lda., liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários.
Alega a Recorrente que os factos supra elencados «têm natureza conclusiva», por serem «claramente opinativos e valorativos», envolvendo um «juízo de valor sobre um conjunto de factos não constituindo em si mesmos, nem existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possam assentar as conclusões constantes dos mesmos, pelo que se devem ter por não escritos, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.»
Em relação ao facto provado 19 imputa tal natureza conclusiva aos seguintes segmentos: «todos os contactos estabelecidos por AA com a O..., Lda., até à promoção do recurso, tiveram lugar na pessoa de BB» e «em três ou quatro ocasiões, na pessoa de CC», propondo que a redação seja alterada e passe a constar a redação seguinte: «19) No respectivo desenvolvimento processual, AA contactava BB, a quem coube a instrução dos processos disciplinares laborais em que a O..., Lda., foi interveniente, e CC.».
Em relação aos factos provados 22, 27, 32, 33 e 40 pretende que os mesmos se tenham como não escritos dado o alegado teor conclusivo.
Em relação ao facto provado 34 imputa tal natureza conclusiva ao seguinte segmento: «Em face da solução proposta por AA», propondo que a redação seja alterada e passe a constar a redação seguinte: «34) O..., Lda., liquidou a taxa de justiça referente à contestação da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que corria termos sob o processo n.º 314/20...., no Tribunal Judicial da Comarca ..., ..., Juiz ....».
Em relação ao ponto 39 dos factos provados imputa tal natureza conclusiva ao seguinte segmento: «Não obstante não se ter concretizado a promessa referida em 33)», propondo que a redação seja alterada e passe a constar a redação seguinte: «39) AA emitiu em 10 de Julho de 2020, o recibo de €500 a favor da O..., Lda.».
Cumpre apreciar.
No CPC anterior, o artigo 644.º,n.º 4, determinava que se desse como não escritas as respostas sobre questões de direito.
Não era pacífico que esta regra também se aplicasse às respostas que encerrassem matéria conclusiva, como bem dá nota o Ac. do STJ, de 28-05-2015[1], embora se propendesse, como também ali é referido, a aceitar que «igual solução mereciam as respostas sobre pontos que encerrassem matéria de natureza conclusiva, por serem idênticas as razões justificativas do regime estabelecido.».
Apesar do atual CPC não inserir norma com igual teor, é consensual na jurisprudência que o artigo 607.º, n.º 4, ao prescrever que «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados (...)» se deve continuar a sancionar como não escrito o que seja matéria de direito e/ou com teor conclusivo.
No tocante ao estabelecimento dos limites de atendibilidade e validade das respostas do tribunal sobre a matéria de facto, existe jurisprudência consolidada sobre esta questão.
Como bem elucida o supra citado acórdão do STJ socorrendo de um outro aresto do STJ proferido em 10-12-2012[2], consta-se ser «praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto do homem, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena da resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger».
Acrescentando, citando novamente a jurisprudência do STJ: “Se, quer os factos vertidos nos pontos controversos, quer as respostas que lhe forem dadas, reflectem realidades concretas, perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa, estando longe de encerrarem um juízo valorativo de uma certa factualidade, não há fundamento para considerar as referidas respostas como não escritas.»[3]; «A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como sendo de direito é irrelevante, se os mesmos forem factualizados e forem usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido comum que é o empregue nas respostas.»[4] É de manter no atual CPC igual orientação jurisprudencial, reiterada sistematicamente em vários arestos dos tribunais superiores e pela doutrina mais conceituada e atualizada.
Verificando-se paulatinamente que, cada vez mais, se questiona, e bem, o excessivo formalismo do CPC anterior, introduzindo-se maior flexibilização na valoração de termos ou expressões que outrora eram tidas como conclusivas.
É preciso ter sempre em mente, como faz notar TEIXEIRA DE SOUSA[5], que «Os factos jurídicos são factos com relevância jurídica, mas não são factos desprovidos de qualquer sentido empírico ou valorativo. A linguagem do direito não é "insípida", "inodora" e "incolor".» Assim, e em suma, um facto conclusivo, juízo conclusivo ou expressão conclusiva é apenas aquele/a que é reconduzível a uma valoração jurídico-substantiva essencial, a extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, sendo ainda de atentar que o veredicto sobre a natureza factual ou jurídica de determinado facto é sempre sujeita a apreciação casuística.
O Acórdão da Relação de Lisboa de 18-04-2021[6], sintetiza no seu sumário as linhas orientadoras seguidas pela jurisprudência nesta matéria, que corroborámos na íntegra, nos seguintes termos: «IV – os denominados juízos ou conclusões de facto situam-se numa zona intermédia ou campo intermédio entre os puros factos e as questões ou matéria de direito, encontrando-se incluídos na legislação como parte integrante ou constituinte da hipótese legal de várias normas jurídicas ; V - tais juízos ou conclusões de facto numas situações aproximam-se mais de uma verdadeira questão de facto, enquanto que noutros a proximidade é com uma questão de direito ; VI – pelo que, aquilo que é matéria de facto ou matéria de direito não é estanque ou fixo, mas antes volátil, dependendo dos termos em que a lide controvertida se apresenta ou modela, donde o mesmo juízo ou conclusão de facto pode ser, numa situação facto ou juízo de facto e, noutra, juízo de direito; VII - devendo apenas terem-se como proibidos os juízos de facto conclusivos que impliquem e apreciem determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica, caso em que tal juízo de facto conclusivo contém em si a resposta a uma questão de direito, ou seja, possui um sentido normativo;».
No caso em apreço, analisado o teor dos pontos 19, 22, 27, 32, 33, 34, 39 e 40, constata-se que os mesmos não são factos jurídico-conclusivos no sentido acima referido, não se podendo acompanhar o que vem defender a Apelante.
É claro que a matéria de facto inserta nos pontos provados invocados pela Apelante correspondem à utilização de uma linguagem corrente, de significado acessível para qualquer homem médio, não correspondendo sequer a conceitos inscritos em normas jurídicas cuja apreensão determine uma resposta às questões de direito submetidas a julgamento.
No caso, nem sequer estamos perante situações de sobreposição entre puros factos e as questões ou matéria de direito.
As afirmações inseridas nos referidos pontos de facto é factual e concreta.
Existem algumas palavras ou expressões que implicam alguma indeterminação quanto ao tempo, modo e lugar onde ocorreram os atos descritos, mas tal não significa que estejamos perante juízos conclusivos ou matéria de direito.
Reitera-se, não estamos perante matéria conclusiva ou de direito. Trata-se de matéria apreensível em termos de linguagem comum, com um significado facilmente apreensível pela generalidade das pessoas e, sobretudo, não estamos perante juízos de facto conclusivos que impliquem e apreciem determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica.
Diz também a Apelante que não existe prova nos autos sobre estes factos.
Todavia, este argumento situa-se num patamar diferente, ou seja coloca-se já em termos de apreciação da impugnação da decisão de facto, que se analisará infra.
Nestes termos, improcede a impugnação da decisão de facto em relação à alegada natureza conclusiva dos factos provados supra referenciados.
1.2. Que se anule o julgamento do facto provado 40 por contradição com os factos provados 22 e 27 e alínea E dos factos não provados
Defende a Apelante que deve ser anulada a decisão de facto em relação a estes pontos provados, por aplicação do artigo 662.º, n.º2, alínea c), do CPC, por existir contradição entre o ponto provado 40 e os pontos provados 22 e 27 e alínea E dos factos não provados.
Os pontos 22, 27 e 40 dos factos provados têm a seguinte redação:
22) Após a reunião referida em 21) e antes da data agendada para a realização da audiência de partes, AA comunicou à O..., Lda., que a provisão para despesas ainda não lhe tinha sido paga, pelo que solicitou que a mesma diligenciasse nesse sentido.
27) AA deu conhecimento à O..., Lda., do descrito em 26), esclarecendo-a que dispunha do prazo de 15 dias para contestar o pedido formulado contra si e que ele só o efectuaria em sua representação se lhe fosse liquidada antecipadamente a aludida provisão para despesas.
40) AA insistiu para que O..., Lda., liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários.
A alínea E dos factos não provados tem a seguinte redação:
E) Quando AA deu conhecimento à O..., Lda., do mencionado em 27), esclareceu-a que subsequentemente à entrega da contestação, teria que ser pago o valor de honorários no montante líquido de €500, de que conferiria a competente quitação.
Analisando.
Como prescreve o artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC compete à Relação em sede de apreciação da impugnação da decisão de facto, anular a decisão proferida em 1.ª , instância quando, e nomeadamente, a quela decisão seja contraditória sobre determinados pontos da decisão de facto.
Como se refere no sumário do Ac. do STJ, de 12-07-2018[7]: «I- O vício de contradição insanável entre factos provados e não provados consiste na afirmação de factos animados de sinal contrário, cuja verificação simultânea é impossível, sendo a sua coexistência inexoravelmente inconciliável.»
No caso, não existe qualquer contradição.
Não existe contradição entre o facto provado 22 e 27, porquanto os dois se reportam ao conhecimento que o Réu deu à Autora da necessidade desta proceder à liquidação da provisão para despesas já efetuadas. O facto provado 22 reporta-se a momento posterior a fevereiro de 2020, mas antes da realização da audiência de partes, e o facto provado 27 a um outro momento, situado depois da tentativa de conciliação realizada em sede de audiência de partes.
Destes factos apenas resulta que a Autora, apesar da solicitação de pagamento da provisão para despesas, nunca efetuou o pagamento. O que veio a ficar a constar no facto provado 40, com o acrescento da insistência do Réu não só em relação ao pagamento da provisão para despesas como também dos honorários. Momento este que, por sua vez, se situa em data posterior aos referidos nos pontos provados 22 e 27 como sai evidenciado dos factos provados 33 a 39.
Por outro lado, não existe qualquer contradição entre o facto provado 40 e a alínea E dos factos não provados, porquanto de um facto não provado, nada se pode extrair, nem em sentido positivo, nem em sentido negativo. Ou seja, tudo se passa como se essa matéria não tivesse sido articulada/alegada.
E sendo assim, logicamente não pode haver qualquer contradição.
De qualquer modo, a factualidade do facto provado 40 e da alínea E dos factos não provados reporta-se a momentos temporais distintos: no primeiro, o momento situa-se após os acontecimentos relatados nos factos 33 a 39, quando o Réu já havia acordado com a Autora prosseguir a exercer o mandato; em relação à alínea E, em momento anterior àquele.
Também por esta razão não se verifica a alegada contradição.
Nestes termos, improcede este segmento da impugnação da decisão de facto.
1.3. Que se remeta à 1.ª instância os autos para fundamentação do facto provado 40
Pretende a Apelante que, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do CPC, se remetam os autos ao tribunal a quo para fundamentar a decisão de facto em relação a este ponto.
Analisando a decisão de facto, é manifesto que o recorrente não tem razão no que alega.
A decisão de facto encontra-se fundamentada por referência a cada um dos factos provados e não provados.
E nessa indicação não foi expressamente mencionado o facto provado 40. Referem-se os factos 38 e 39 e depois o 41.
Porém, não existe falta de fundamentação.
Desde logo, porque o que releva é a fundamentação dos factos em si mesmo (cfr. artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) e não a numeração dos mesmos (que nem sequer é obrigatória).
Assim, o que está em causa é se a decisão de facto fundamentou a sua convicção para dar como provada a factualidade que consta do facto provado 40, ou seja, que «AA insistiu para que O..., Lda., liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários.»
Ora, lida a fundamentação em relação aos factos provados 38 e 39 verifica-se que também nela se inclui o facto provado 40, ao mencionar:
«AA acrescentou, ainda, com sinceridade e de modo sério, que por diversas vezes insistiu com a Autora para que procedesse ao pagamento dos valores devidos. Já a testemunha BB referiu que teve conhecimento de diversos emails trocados entre o Réu e CC referentemente às insistências para pagamento dos montantes em falta.»
Por conseguinte, o que se verifica é um mero erro ou lapso material na indicação da numeração dos factos provados, pois onde consta factos provados 38 e 39, devia constar factos provados, 38, 39 e 40.
Erro material suscetível de sanação oficiosa, nos termos do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, o que agora se determina.
Consequentemente, inexiste fundamento para remeter os autos à 1.º instância nos moldes requeridos, improcedendo este segmento da apelação.
1.4. Impugnação da decisão de facto quantos aos pontos 16, 22, 27, 32, 33 e 40 dos factos provados
Está agora em causa a invocação de erro de julgamento ao nível do facto em relação aos pontos provados supra referidos, o que nos remete para os requisitos do artigo 640.º do CPC.
Compete à Relação no âmbitos dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do mesmo Código quando a prova tenha sido gravada, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, aferindo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pelos impugnantes.
Nada obstando ao conhecimento da impugnação da decisão de facto, passa-se à sua apreciação tendo em conta a finalidade supra referida.
Facto provado 16: 16) Tratando-se de um possível “lote de processos”, em que se incluía não só as acções em que a O..., Lda., figurava como ré, mas também outras eventuais e possíveis acções movidas por e contra uma outra empresa do referido Grupo “...”, mais concretamente, a “P..., Lda.”, a O..., Lda., e AA acordaram um valor unitário de retribuição pelo exercício de cada um dos mandatos que lhe fosse confiado, que seria pago do seguinte modo: i) A título de provisão para despesas (despesas com deslocação à sede da autora, ao Tribunal do Trabalho ..., gastos com portagem e combustível, correio, etc.), a entrega imediata da quantia líquida de €250 (duzentos e cinquenta euros), de que o Réu conferiria quitação; ii) No caso de as partes litigantes não se conciliarem em sede de audiência de partes, o pagamento da quantia líquida de honorários no montante de €500 (quinhentos euros), imediatamente após a formulação da respectiva Resposta Processual/Contestação, de que o Réu conferiria a quitação.
Alega a Recorrente que esta factualidade deveria ter sido dada como não provada, porquanto o tribunal recorrido deu credibilidade ao depoimento da testemunha BB, apesar de ser pessoa especialmente relacionada com o Réu e ter interesse no desfecho do processo por ter indicado o nome do Réu à Autora; por ter prestado acessória jurídica nos processos disciplinares que o Réu patrocinou; por ter escritório no mesmo edifício do Réu; por ter prestado um depoimento que substancialmente é um depoimento de parte; por ter prestado um depoimento vago e impreciso; e, ainda, por ter considerado o depoimento de parte do Réu, apesar de vago e impreciso, e ter dado como provado, sem prova nesse sentido, que «lotes de processos» seriam uniformemente e mediante € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de provisão para despesas e € 500,00 (quinhentos euros) a título de honorários.»
Em relação ao facto provado 16 (fundamentado conjuntamente com os factos provados 15 e 17), consta da fundamentação da decisão de facto:
«A convicção do Tribunal quanto à realidade da matéria de facto vertida nos pontos n.ºs 15, 16 e 17 fundou-se nas declarações do Réu, que de forma séria, isenta, objetiva e credível, explicou o contexto em que foram contratados os seus serviços pela Autora e para que efeito, os termos financeiros estabelecidos e acrescentou que os valores deveriam ser pagos mediante transferência bancária para a conta que foi fornecida à Autora. Esta narrativa foi corroborada pelo depoimento da testemunha BB, que desvendou que foi o próprio a recomendar os serviços do Réu à Autora e asseverou as particularidades financeiras acordadas entre as partes, porquanto, ao servir de intermediário entre o Réu e a Autora, BB tomou conhecimento destas condições negociadas entre as partes.»
Auditado o depoimento testemunhal e as declarações de parte, não vemos razão para censurar o modo como o tribunal a quo formou a sua convicção, cuja valoração secundamos, pelas seguintes razões:
Em relação ao depoimento da testemunha BB (Advogado) não existe qualquer razão para desconsiderar o seu depoimento por falta de credibilidade pelas razões invocadas, mormente, por haver uma relação profissional entre a testemunha e o Réu, porquanto a falta de credibilidade de um depoimento não se afere apenas e exclusivamente em função de relações profissionais, ou outras, que existiam entre as partes e as testemunhas, mas sim do modo como o depoimento é prestado. Aliás, a testemunha também mantém ou manteve um relacionamento profissional com a Autora, como declarou aquando da prestação de depoimento, e não é seguramente por essa razão que o depoimento é menos credível.
Depois, porque a invocação de falta de credibilidade de um testemunho a posteriori, sem que, no momento em que é prestado, sejam suscitados os devidos incidentes (impugnação e/ou contradita – artigos 514.º e 521.º do CPC), fragiliza sobremaneira essa alegação.
De todo o mesmo, o depoimento em causa não nos suscitou reservas de qualquer espécie pela sua clareza, coerência e razão de ciência. De facto, os fundamentos pelos quais a Recorrente invoca a falta de credibilidade da testemunha revelam, antes, um conhecimento profundo da matéria sobre a qual foi inquirida. Não se detetou, pois, a alegada falta de credibilidade e o caráter vago e impreciso invocado pela Apelante.
Acrescentando-se, ademais, que a razão de ciência invocada não lhe adveio apenas da relação profissional com o Réu, mas também da sua relação profissional com a Autora e do contato com o Dr. CC, pessoa que se apresentava como intermediário ou interlocutor principal entre ele e a Ré.
Em relação ao depoimento de parte do Réu, não sendo o mesmo confessório (como não foi) deve ser livremente valorado pelo tribunal, nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do CPC, como foi, e bem, tanto mais que se encontra secundado por outro meio de prova, precisamente o depoimento da testemunha acima referida.
Por outro lado, as declarações de parte foram suficiente claras, explicitas e concretas para se dar a factualidade em causa como provada.
Nestes termos, improcede a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 16 dos factos provados.
Facto provado 22: 22) Após a reunião referida em 21) e antes da data agendada para a realização da audiência de partes, AA comunicou à O..., Lda., que a provisão para despesas ainda não lhe tinha sido paga, pelo que solicitou que a mesma diligenciasse nesse sentido.
Defende a Apelante que esta factualidade deveria ter sido dada como não provada por o testemunho de BB e as declarações de parte do Réu não sustentarem a prova da mesma.
Na decisão de facto sobre esta facto provado 22 (juntamente com o facto provado 21) consta o seguinte:
«O convencimento do Tribunal quanto à factualidade inserida nos pontos n.ºs 21 e 22 teve origem nas declarações prestadas pelo Réu que, de forma circunscrita, clara e sincera, anunciou ter-se deslocado à ..., em ..., que na 3.ª semana de Fevereiro foi contactado para ter uma reunião com CC e BB, a ocorrer algures no final de Fevereiro de 2020, concernente com o processo instaurado por FF, tendo aludido ao tempo de duração daquela e adicionado que, após a reunião, solicitou o pagamento da provisão para despesas. Por seu turno, a testemunha BB confirmou a deslocação do Réu à sede da empresa, sendo que a morada desta foi retirada da certidão permanente de registo comercial.»
Pelas razões sobreditas em relação à valoração que a 1.ª instância fez destes meios de prova, que corroboramos como já dito, não se descortina fundamento válido para a desconsideração dos mesmos e para se inverter a decisão de facto.
A Apelante invoca a falta de documentos que comprovem esta matéria (o que é certo, embora estejamos no domínio da prova não tarifada e, consequentemente, da livre apreciação) extraindo dessa circunstância que «o Recorrido não solicitou qualquer pagamento de pagamento da provisão de despesas porque, ao contrário do que resulta daquele depoimento, o Recorrido simplesmente não praticou, por negligência grosseira, os actos jurídico-processuais a que estava obrigado e mandatado, e não por uma qualquer falta de pagamento de provisão por parte da Recorrente que o tenha obrigado a «suspender» o mandato.»
Resulta de forma clara deste trecho alegatório (pp. 55 e 56 da motivação) que o fundamento para a impugnação reside numa valoração (jurídica) que a mesma faz do comportamento processual do ora Recorrido e não numa análise objetiva dos meios de prova produzidos sobre a factualidade em causa.
Em face do exposto, improcede a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 22 dos factos provados.
Facto provado 27: «27) AA deu conhecimento à O..., Lda., do descrito em 26), esclarecendo-a que dispunha do prazo de 15 dias para contestar o pedido formulado contra si e que ele só o efectuaria em sua representação se lhe fosse liquidada antecipadamente a aludida provisão para despesas.»
Defende a Apelante que esta factualidade deveria ter sido dada como não provada invocando as declarações de parte do Réu e os testemunhos de BB, NN e DD.
Na decisão de facto sobre esta facto provado 27 consta o seguinte:
«O Tribunal ficou convicto da realidade da matéria de facto vertida no ponto n.º 27 valorando as declarações prestadas pelo Réu, que, de modo assertivo coerente, isento e credível, indicou ter informado a Autora, nas pessoas de CC e BB, do que se verificou na audiência de partes e do prazo que a Autora dispunha para contestar, que ainda não havia recebido a provisão para despesas, da cominação caso não a viesse a receber até ao término do prazo para contestar, e que só apresentava a contestação em representação da Autora caso lhe fosse paga a provisão para despesas. Por sua vez, a testemunha BB confirmou que o Réu lhe comunicou, assim como a CC, que apenas apresentava a contestação se lhe fosse paga a provisão para despesas.»
Analisando os fundamentos da impugnação, reitera-se o que já antes se disse quanto à valoração do depoimento de parte e testemunho de BB, bem como em relação à falta de prova documental sobre esta factualidade.
Ademais, acrescenta-se que resulta de forma clara desta prova que não existe contradição entre o facto do Réu ter comparecido na audiência de partes, mesmo sem lhe ter sido paga a provisão para despesas já realizadas, e a não apresentação de contestação posterior a esse ato, precisamente porque se mantinha a situação de não pagamento.
Quanto aos depoimentos das testemunhas NN (administrativo e funcionário da Autora desde 2013) e DD (assistente de recursos humanos da Autora entre ../../2019 e ../../2021) decorre destes depoimentos que, sobre a matéria em causa, nada sabiam.
De facto, a primeira testemunha supra referida disse que não tinha acesso à parte financeira da empresa e, por essa razão, não sabia e não podia responder à questão da falta de pagamento da provisão e que não sabia se isso sequer tinha a ver com a falta de apresentação de contestação.
Por sua vez, a segunda testemunha supra referida declarou que «nunca ouviu» dizer que a falta de contestação se devia a haver uma provisão por pagar, o que elucida muito claramente o desconhecimento direto, e até indireto, da matéria em causa.
Nestes termos, também improcede a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 27 dos factos provados.
Factos provados 32, 33 e 40: 32) Alguns dias após aquela sentença, O..., Lda., contactou AA para saber o que se poderia fazer para tentar reverter a situação, ao que este reiterou que da sua parte nada iria fazer enquanto se mantivesse a situação de não cumprimento das obrigações assumidas para com a sua pessoa, mantendo-se plenamente válida a razão invocada em 27). 33) Perante a promessa de pagamento dos valores em causa, garantida pelo próprio CC, AA aceitou estudar a possibilidade de, ainda em tempo, contestar os termos daquela acção, e, após estudo, adiantou a hipótese de estar em condições de alegar “justo impedimento”, porquanto havia sido obrigado a confinamento estrito por força da Pandemia da “COVID-19” e do estado de imunodepressão da sua cônjuge, que, à época, padecia de doença oncológica em estado avançado, o que o impossibilitou em absoluto de exercer a sua actividade profissional. 40) AA insistiu para que O..., Lda., liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários.
Alega a Recorrente que esta factualidade deveria ter sido dada como não provada com base na falta de credibilidade das declarações de parte sobre a factualidade impugnada, concluindo, após extratar parte das mesmas, do seguinte modo: «Aqui chegados, é por demais evidente, atento o exposto, que o Recorrido nunca foi contactado pela Recorrente para reverter a situação, que nunca houve qualquer promessa de pagamento «pessoalmente garantida por CC», e que o Recorrido nunca «insistiu» com a Recorrente para que a mesma «liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários». E porque é que é por demais evidente, atento o exposto, que o Recorrido nunca foi contactado pela Recorrente para reverter a situação, nunca houve qualquer promessa de pagamento «pessoalmente garantida por CC», e o Recorrido nunca «insistiu» com a Recorrente para que a mesma «liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários»? É muito simples. Na verdade, o Recorrido nunca foi contactado pela Recorrente para reverter a situação, nunca houve qualquer promessa de pagamento «pessoalmente garantida por CC», e o Recorrido nunca «insistiu» com a Recorrente para que a mesma «liquidasse a provisão para despesas e o valor de honorários» porque, ao contrariamente à tese do Recorrido, o Recorrido simplesmente não praticou, por negligência grosseira, os actos jurídico processuais a que estava obrigado e mandatado.»
Na fundamentação da decisão de facto sobre estes pontos (nos quais também se incluem os pontos 34 e 35, não impugnados) consta o seguinte:
«O convencimento do Tribunal quanto à factualidade descrita nos pontos n.ºs 32, 33, 34 e 35 formou-se com base nas declarações do Réu, que, de forma séria, desprendida, escorrida, circunscrita e credível, proclamou que CC o contactou para saber o que poderia ser feito para reverter a decisão e que respondeu que nada iria fazer enquanto não fosse paga a provisão para despesas e os seus honorários, que CC se comprometeu pessoalmente de que seriam liquidados os valores em falta, e que, perante isso e após estudo da situação, detalhou a estratégia jurídica que seria adoptada e os motivos para a mesma, e adicionou que CC acolheu a sua estratégia tendo liquidado a taxa de justiça, cuja guia foi enviada por AA para BB que, por sua vez, a enviou para CC, tendo, então, AA reiniciado o cumprimento do mandato. Por seu turno, BB confirmou a estratégia processual adoptada e as justificações a ela subjacente.
(…)
Já a testemunha BB referiu que teve conhecimento de diversos emails trocados entre o Réu e CC referentemente às insistências para pagamento dos montantes em falta.»
Quanto à valoração das declarações de parte e da sua correção e credibilidade reiteramos o já antes mencionado, nada mais havendo a acrescentar.
Cabe ainda referir, que não é correta afirmação da Recorrente quando refere que a convicção do tribunal a quo, que secundamos como já dito e redito, se ateve apenas às declarações de parte, como sai bem patenteado da fundamentação da decisão de facto supra reproduzida.
Por conseguinte, todas as considerações que faz com recurso à doutrina e jurisprudência para enfatizar que devem ser desconsideradas as declarações de parte por não terem sido corroboradas por outras provas idóneas, não têm aplicação neste caso.
Nestes termos, também improcede a impugnação da decisão de facto quantos aos factos provados 32, 33 e 40.
Mantendo-se incólume a decisão de facto saída do julgamento proferido em 1.ª instância.
2. Da apreciação do mérito da sentença
2.1. Nesta sede, a Apelante defende que sendo totalmente julgada procedente a alteração da decisão de facto, ficaram por provar os factos consubstanciadores do abuso de direito, provando-se, ao invés, o incumprimento contratual imputável ao Recorrido, nomeadamente os subsumíveis à perda de chance, o que determina a condenação do mesmo no pedido.
Naturalmente que naufraga tal entendimento considerando que a decisão de facto não sofreu qualquer alteração.
Ainda assim, a Recorrente questiona o decidido na sentença recorrida por ter sido subsumida a conduta da Autora a uma situação de abuso de direito, escrevendo na Conclusão 33: «(…) a Recorrente ao propor a presente acção, não actuou com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo de qualquer direito do Recorrido, nem com a intenção de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da mesma (enquanto titular desse mesmo direito) e as consequências a suportar pelo Recorrido, pessoa contra quem o direito é invocado, o que equivale a dizer que não actuou com abuso de direito por não ter excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim sócio económico do direito, razão pela qual a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de direito, violando o artigo 334.º, do Código Civil.»
Lida a sentença recorrida verifica-se que a absolvição do Réu do pedido se ancorou na aplicação ao caso da figura do abuso de direito prevista no artigo 334.º do CC, já que se entendeu que, em face dos factos provados e do regime legal convocado pelos mesmos, se encontravam preenchidos os pressupostos legais da perda de chance que determinariam a condenação do Réu a indemnizar a Autora.
Em termos de fundamentação do decidido, lê-se na sentença:
«No caso sub judice, ficou demonstrado que o Réu não apresentou o articulado motivador do despedimento, o que levou à condenação da Autora e, consequentemente, a que esta suportasse um custo total de €21.520,57 (cf. pontos n.ºs 30, 43 e 44 dos factos provados).
Todavia, a Autora não pagou ao Réu nem a provisão para despesas (artigo 1167.º, al. a), do Código Civil), nem os honorários acordados (artigo 1167.º, al. b), do Código Civil) – cf. pontos n.º 16, 22, 27, 32, 33, 40 e 45 dos factos provados.
Quem viole um contrato (cf. artigos 406.º, n.º 1, 1.ª parte, e 1167.º, als. a) e b), do Código Civil) não pode exercer o direito à indemnização por não cumprimento com fundamento em violações contratuais posteriores, desencadeadas pela contraparte, como se não tivesse aquele próprio cometido qualquer violação e como se se tivesse sempre portado de forma leal ao contrato perante a outra parte.
É certo que, como se referiu, a liquidação da prestação para despesas (artigo 1167.º, al. a), do Código Civil) não se encontra em correspectividade com a obrigação do mandatário em executar o mandato (artigo 1161.º, al. a), do Código Civil), mas, sim, a obrigação do mandante em pagar a retribuição devida (artigo 1167.º, al. b), do Código Civil), apenas se levantando a problemática quanto a esta última numa fase mais adiante da vigência do contrato de mandato (cf. ponto n.º 40 dos factos provados).
De qualquer forma, este comportamento de lealdade que o abuso de direito, na modalidade de tu quoque, visa acautelar não se prende unicamente com as obrigações principais primárias, devendo o comportamento da parte ser analisado na globalidade da relação contratual, tomando em linha de conta a (in)observância de todo o tipo de obrigações contratuais, sejam deveres principais (primários e secundários) ou acessórios de conduta (informação, lealdade e protecção).
Assim, mesmo que se entenda que a obrigação do mandante de pagar a prestação para despesas não assume um carácter de destaque entre o elenco de deveres oriundos do contrato de mandato, por não ser correlativa do dever do mandatário executar o mandato, continua aquela a ter densidade suficiente para ajudar a classificar certa conduta como sendo um exercício abusivo de um direito.
Destarte, configura abuso de direito, na modalidade de tu quoque, o exercício do direito potestativo de invocar a responsabilidade civil, com a finalidade de criar uma obrigação de indemnizar, por aquele que se tenha esquivado, desde o início da relação contratual, a cumprir os deveres que sobre si impendem.
A figura do abuso de direito desempenha um papel de controlo relativamente ao direito subjectivo, neutralizando o mesmo ou limitando as suas sanções55 quando o seu titular exceda manifestamente os limites previstos no artigo 334.º do Código Civil.
Pelo exposto, conquanto se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil por perda de chance, face à inadimplência dos deveres contratuais que recaiam sobre a Autora (cf. artigos 406.º, n.º 1, 1.ª parte, e 1167.º, als. a) e b), do Código Civil), deve ser bloqueado o exercício do seu direito de invocar aquele instituto jurídico, e, por conseguinte, vedada a constituição de uma obrigação indemnizatória a favor da Autora por incumprimento contratual por parte do Réu.»
Em face da factualidade provada referenciada na decisão e do disposto no artigo 334.º do CC, nenhuma censura nos merece o decidido.
Efetivamente, como estipula o artigo 334.º do CC: «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
O normativo salvaguarda o exercício abusivo de um direito subjetivo (ou mais amplamente, quaisquer situações jurídicas,incluindo as passivas, como refere MENEZES CORDEIRO[8]) licitamente reconhecido ao seu titular.
No dizer de VAZ SERRA, «Há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante».[9]
O excesso tem, assim, de ser patente, manifesto, clamorosamente ofensivo.
O preceito consagra uma conceção objetiva do abuso do direito. Não é necessária a consciência de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico. Basta que se excedam esses limites. Ainda assim, os fatores subjetivos, como seja, a intenção do exercente, não é de todo descartada, na medida em que pode ser relevante para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes ou se foi exorbitado o fim social ou económico do direito.[10]
Na aferição dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
Na consideração do fim económico e social do direito apela-se de preferência aos juízos de valor positivamente consagrados na própria lei.
A caraterística distintiva da figura do abuso do direito reside no uso ou utilização dos poderes que o direito concede para a prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio do direito ou o contexto em que ele deverá ser exercido.[11]
As normas jurídicas, atenta a sua generalidade e abstração, atendem ao comum dos casos. Consequentemente, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo perante situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. O instituto do abuso de direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Assim ocorrerá abuso de direito quando um determinado direito, em si mesmo válido, seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante da comunidade social.[12]
Como refere MENEZES CORDEIRO, o artigo 334.º do CC positiva um mecanismo geral de correção do exercício disfuncional do direito subjetivo e de todas as outras posições jurídicas ativas e passivas.
Nesse pressuposto, o abuso de direito permite o controlo fundamental do modo como o direito é exercido por via de uma cláusula geral de segundo grau, vocacionada para possibilitar um controlo judicial dos resultados jurídicos que decorrem da aplicação estrita e realizada em primeira linha de outras normas primárias do ordenamento jurídico: a função essencial deste instituto consiste precisamente em temperar, com o apelo a regras e princípios fundamentais (a boa fé, a confiança legítima, a finalidade económica e social dos direitos) os resultados que decorreriam de uma aplicação estrita e imediata de outras figuras ou regimes jurídicos, através de uma ponderação e de um decisivo apelo, nomeadamente, a critérios ético jurídicos suscetíveis, em determinadas circunstâncias, de paralisar os resultados que decorreriam de uma aplicação meramente formal ou estrita do direito.
O exercício abusivo tem sido reconduzido a diferentes tipologias e que se podem sobrepor parcialmente – um mesmo ato pode ser objeto de várias regulações, ou, no limite, não cobrir todos os espaços abusivos possíveis. Todas, porém, são contrárias à boa fé.
São elas as seguintes: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.[13]
Situando-nos na penúltima tipologia por ter sido aquela que o Tribunal a quo chamou à colação na decisão recorrida, o abuso de direito na modalidade de proibição do tu quoque significa que «quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte.»[14]
Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de Relação 06-10-1994[15]: «Há abuso de direito, expresso na fórmula "tu quoque", quando, com ofensa clamorosa do sentido jurídico dominante, alguém desrespeita um contrato e vem depois exigir à outra parte o seu cumprimento; diversamente do que se passa no "venire contra factum proprium", em que a contradição está no comportamento do titular do direito, no "tu quoque" a contradição está nas bitolas valorativas utilizadas pelo titular do direito para julgar e julgar-se.»
Como refere MENEZES CORDEIRO[16], tu quoque (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:
- ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;
- ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio;
- ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.
No caso dos autos, a Autora utilizou um critério mais exigente para o Réu do que aquele que para si mesma adotou, ou seja, veio invocar o incumprimento contratual do Réu, responsabilizando pelos danos que a conduta do mesmo lhe provocou quando ela própria nunca cumpriu as suas obrigações contratuais para com o Réu, configurando-se a situação retratada nos autos como um exemplo típico de exercício do direito com ofensa dos parâmetros no artigo 334.º do CC, na modalidade de tu quoque.
Nestes termos, improcede este segmento da apelação.
2.2. Se o Réu agiu com abuso de direito ao invocar a exceção de não cumprimento
A Apelante veio ex novo invocar em sede de alegações que afinal quem agiu com abuso de direito na modalidade de desproporcionalidade que resulta do exercício do direito, foi o Réu ao invocar a exceção de não cumprimento do contrato de mandato que a atingiu patrimonialmente no montante de €21.520,57, por não ter satisfeito ao Réu o valor de €750,00, sem que tenha sequer desencadeado outros meios de tutela menos gravosos, como por exemplo, interpelação admonitória à Recorrente para cumprimento do mandato, resolução desse contrato e instauração de ação de cobrança de honorários.
Na apreciação desta questão (suscetível de ser apreciada nesta sede de recurso por ser de conhecimento oficioso e estar cumprido o princípio do contraditório como se pode ver na resposta ao recurso), começa-se por referir que a absolvição do Réu do pedido não residiu na invocação, com êxito, da exceptio non adimpleti contractus, pois, como atrás se mencionou, foi com base na operacionalização da figura do abuso de direito que o Réu foi absolvido do pedido. E foi com base na dedução do pedido reconvencional que a Autora veio a ser condenada a pagar ao Réu os valores das despesas (€250,00) e valor dos honorários (€500,00), mais juros de mora vencidos e vincendos.
Ora, não vemos como se pode invocar abuso de direito para impedir que o demandado em sede de reconvenção deduza um pedido contra a demandante quando invoca que a mesma lhe deve determinada quantia conexionada com os factos que enformam a causa de pedir da ação.
De qualquer modo, sempre se dirá que o desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de atuações contrárias à boa fé e comporta diversos subtipos, sendo de relevar para o caso em apreço dada a alegação da Apelante, a desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
A desproporcionalidade traduz uma ideia de desequilíbrio consequente a um ato que, apesar de estar conforme ao direito, resulta num despropósito entre o exercício do direito e os seus efeitos.
Trata-se, no fundo, de um exercício disfuncional de um determinado direito.
Compreende-se, assim, que o abuso de direito e a boa fé subjacentes a esta figura representem uma válvula do sistema, permitindo corrigir soluções que, de outro modo, se apresentariam contrárias a princípios elementares.
Nessa medida, a desproporcionalidade que resulta do exercício do direito, em face das consequências para terceiros, determina que, por razões de ordem pública, se considere ilegítimo o exercício do direito.
No caso dos autos, à luz destes princípios e em face do já acima foi referido, não existe a alegada desproporcionalidade, porquanto a atuação abusiva da Autora ao intentar a presente ação desencadeou, ela mesma, o direito do Réu se defender e vir invocar o incumprimento contratual da Autora e a condenação da mesma no ressarcimento dos valores que deve ao Réu.
Nestes termos, também improcede este segmento da Apelação.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-06-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Faro (1.ª Adjunta)
Ana Pessoa (2.ª Adjunta)
_________________________________________________
[1] Proc. n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1 (Granja da Fonseca), em www.dgsi.pt.
[2] Revista n.º 197/04.OTCGMR.S1 – 6ª Secção (Relator Nuno Cameira).
[3] Revista n.º 5504/09.7TVLSB.L1.S1 – 1ª Secção (Relator Paulo Sá), em www.dgsi.pt
[4] Ac. STJ de 4/12/2014, Revista n.º 282/03.6TBVRM.G1.S1 – 7ª Secção (Relator Pires da Rosa), em www.dgsi.pt
[5] https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html, entrada com data de 12/06/2023, sob o título "Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!
[6] Proc. n.º 1102/09.3TVLSB.L1-2 (Arlindo Crua), em www.dgsi.pt
[7] Proc. n.º 116/15.9JACBR.C1.S1 (Raúl Borges), em www.dgsi.pt
[8] MENEZES CORDEIRO, Tratado do Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, Almedina 2007, p. 242.
[9] Cfr. VAZ SERRA, Abuso de Direito em Matéria de Responsabilidade Civil, BMJ, n.º 85, p. 253.
[10] PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2011 (reimp.), p.298 (2).
[11] Idem, p. 300 (7).
[12] ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7ª ed., Almedina, Coimbra 1998, p. 68-69.
[13] MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 296 e ss.
[14] Ac. STJ, de 14-03-2019, proc. n.º 1189/15.0T8PVZ.P1.S1 (Nuno Pinto de Oliveira), em www.dgsi.pt
[15] Proc. n.º 0077262 (Silva Pereira), em www.dgsi.pt
[16] Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, consultável em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/