COISA DEFEITUOSA
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário


I - Concorrem para o resultado danoso que se traduziu nos estragos em vários componentes da transmissão do trator da autora, tal como na caixa de velocidades, transmissão traseira, transmissão dianteira e toda a tubagem envolvente, a ré, que forneceu ao autor um veio para aquele trator, que por ser mais curto houve necessidade de proceder ao seu aumento, cortando e soldando uma secção de modo a ficar com mais 20 cm de comprimento, e a própria autora, que não procedeu à colocação da proteção do veio após a sua montagem, vindo este a cair após o trator percorrido cerca de 300 metros.
II – Embora os danos verificados no trator se tenham ficado a dever à quebra do veio e ao facto de a autora não ter colocado a proteção do mesmo, daí que ao partir tivesse perfurado o solo, pois o veículo estava em marcha, pode afirmar-se que é maior o juízo de desvalor que recai sobre a autora, nada repugnando à sensibilidade do julgador no contexto descrito, dizer que houve mais culpa da autora, do que da ré, afigurando-se ajustada à medida da contribuição de autora e ré para a produção do evento danoso, repartir as culpas na proporção 60% para a autora e em 40% para a ré.
III - Na medida em que a autora ficou impedido de poder usar o trator na sua atividade de criação e comercialização de ovinos e caprinos, turismo rural e aluguer de máquinas agrícolas, é devida indemnização, a fixar, em regra, com base na equidade, atendendo, numa análise casuística, ao conjunto dos factos em presença, incluindo as caraterísticas do veículo, ao concreto uso que lhe era dado e até à atuação do lesado.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral



Proc. nº 3052/20.3T8STR.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
S..., Unipessoal, Lda., instaurou a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, contra Agpronto - Manutenção de Máquinas, Lda., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de € 45.845,69, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, sendo € 971,07 o valor do veio do trator, € 19.750,22, a reparação do mesmo e € 25.124,40, pelo período de privação.
Alegou, em síntese, que adquiriu à ré um veio para um seu trator agrícola, o qual depois de instalado rebentou, por o mesmo ser de menores dimensões do que as devidas, tendo-lhe sido aplicado um acrescento.
A ré não procedeu a qualquer reparação, pelo que, o autor teve de adquirir um novo veio para o trator, reparar as peças destruídas por causa do defeito daquele e esteve privado do seu uso.
Contestou a ré, invocando a exceção de caducidade do direito de ação, dizendo que a autora teve conhecimento do rebentamento do veio em 9 de agosto de 2019, pelo que, nos termos dos artigos 916.º, n.º 1 e 921.º, n.º 4, do Código Civil, a ação deveria ter dado entrada em juízo até 9 de agosto de 2020 e não em 29 de dezembro de 2020, como sucedeu.
Concluiu pela procedência da exceção e, sem conceder, pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A autora respondeu à exceção, pugnando pela sua improcedência.
Prosseguiram os autos a sua normal tramitação, vindo a final a ser proferida sentença que julgou procedente a exceção de caducidade.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem.
«1.ª A R. e Recorrida não alegou a existência de exceção perentória da caducidade com base no artigo 917.º - norma com base na qual o Tribunal a quo declarou a caducidade do direito da A. e Recorrente;
2.ª Da contestação da R. e Recorrida resulta, isso sim, que:
Primeiro: a R. e Recorrida alegou (confessou) que a A. e Recorrente havia cumprido o requisito do artigo 916.º, n.º 2 do Código Civil;
Segundo: a R. e Recorrida não alegou que o direito da A. e Recorrente tinha caducado pelo artigo 917.º do Código Civil (norma com base na qual o Tribunal a quo baseou a caducidade), mas sim pelo artigo 921.º do Código Civil (sobre “garantia de bom funcionamento”);
Terceiro: a R. e Recorrida alegou que o direito da A. e Recorrente havia caducado em 09/08/2020 (e não em 09/02/2020, como decidiu o Tribunal a quo);
3.ª Tanto que a A. e Recorrente, em resposta ao convite formulado pelo Tribunal a quo em 28/05/2021, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, respondeu à alegada exceção perentória da caducidade do artigo 921.º do Código Civil (“garantia de bom funcionamento”);
4.ª Nunca a A. e Recorrente se pronunciou sobre outra exceção perentória da caducidade, designadamente, do artigo 917.º do Código Civil – na qual o Tribunal a quo veio a basear a sua decisão ora recorrida;
5.ª Tratou-se, por isso, de uma “sentença-surpresa” para a A. e Recorrente. Uma vez que a R. e Recorrida nunca alegou a exceção perentória da caducidade prevista no artigo 917.º do Código Civil - mas sim a do artigo 921.º do mesmo diploma sobre a “garantia de bom funcionamento” -, a A. e Recorrente nunca respondeu a essa exceção. Respondeu, isso sim, à exceção do artigo 921.º do Código Civil, a que o Tribunal a quo não deu provimento;
6.ª De acordo com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, “É nula a sentença quando: d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”;
Transpondo para o caso concreto:
7.ª Primeiro: na sentença recorrida, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a exceção perentória da caducidade alegada pela R. e Recorrida, prevista no artigo 921.º do Código Civil (“garantia de bom funcionamento”);
8.ª Por isso, a decisão padece de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte do CPC, cujo reconhecimento e declaração se requer;
9.ª Segundo: ao pronunciar-se sobre uma exceção perentória da caducidade não alegada pela R. e Recorrida, do artigo 917.º do CPC, o Tribunal a quo cometeu a nulidade prevista no mesmo artigo 615.º, n.º 1, al. d), CPC, mas agora na sua parte final (“conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”);
10.ª A este propósito, veja-se o acórdão proferido por esta Relação de Évora, em 30/04/2015, no âmbito do proc. 568/10.3BETZ.E1, pela Relatora Cristina Cerdeira;
11.ª A exceção perentória alegada pelo Tribunal a quo não é de conhecimento oficioso, pelo que não podia dela tomar conhecimento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 608.º, n.º 2, parte final do CPC;
12.ª A caducidade decidida pelo Tribunal a quo, do artigo 917.º do Código Civil, naturalmente que está estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, que pode até ser reconhecida pela parte que dela beneficia (R. e Recorrida);
13.ª Assim, dúvidas não existem de que o Tribunal a quo não podia conhecer oficiosamente da exceção perentória da caducidade, como o fez;
14.ª Logo, também por este motivo, a sentença recorrida é nula, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira e segunda partes, CPC, cujo reconhecimento e declaração se requer;
15.ª O Tribunal a quo não podia ter dado como provado o facto 36, e igualmente como provado o facto 28;
16.ª O Tribunal a quo aceitou como verdadeiro o teor da fatura emitida pela oficina que reparou o trator dos autos;
17.ª Pode ler-se nessa mesma fatura que, entre as várias peças colocadas no trator, foi também colocada uma “proteção”, pelo preço de 237,16€;
18.ª Ora, o trator teve que levar uma proteção nova, porque a anterior também sofreu danos com o rebentamento do veio fornecido pela R. e Recorrida;
19.ª Assim, a prova documental carreada para os autos e que o Tribunal a quo aceitou como certa e verdadeira, é apta a provar que a proteção estava colocada no momento do rebentamento do veio. Por essa razão é que a A. teve que adquirir uma nova proteção aquando da reparação do trator!!;
20.ª Isto a somar ao que o próprio Tribunal mencionou na sentença recorrida, quanto ao facto de as testemunhas AA e BB terem presenciado a colocação da proteção, após a substituição do veio e antes do rebentamento do mesmo;
21.ª Assim, a conclusão a retirar pelo Tribunal a quo deste facto é que estava colocada no trator uma proteção, que se partiu no momento em que rebentou o veio e, por isso, houve necessidade de a oficina substituir também esta peça do trator;
22.ª Só uma conclusão deste tipo vai também de encontro às declarações prestadas pelas testemunhas AA e BB, que assim o afirmaram;
23.ª Dar como não provado que a proteção estava colocada no momento em que rebentou o veio, e ao mesmo tempo dar como certo e verdadeiro o conteúdo da fatura emitida pela oficina, da qual consta ter sido colocada uma proteção nova, é uma contradição insanável;
24.ª Assim, dúvidas não existem de que andou mal o Tribunal a quo ao dar como provado o ponto 36 da sentença recorrida. Esse ponto, deve simplesmente, ser eliminado da matéria de facto provada ou ser levado à matéria de facto não provada, o que se requer;
25.ª O Tribunal a quo não podia ter dado como não provado o facto g.;
26.ª Com efeito, o Tribunal a quo aceitou como certo e verdadeiro o teor das mensagens de WhatsApp trocadas entre o representante legal da A. e Recorrente (CC) e o funcionário da R. e Recorrida (DD). Aliás, baseou-se nelas para dar como provada uma série de factualidade, conforme decorre da sentença;
27.ª Ora, é precisamente dessas mensagens que decorre a veracidade daquele facto g.;
28.ª Assim, é notório que a R. e Recorrida estava a tentar arranjar as peças danificadas para o trator, já avariado. Designadamente, quando DD diz: que está a tentar ver soluções; que o CC tem de lhe levar o veio de transmissão; que até ao final do mês não vai conseguir resolver (conforme lhe pedia o CC); que o CC tem que lhe levar o material para poder trabalhar; que estava a ver se arranjava; que estava a tratar o mais rápido possível;
29.ª Isto são tudo afirmações que demonstram, inequivocamente, que a R. e Recorrida estava empenhada, no período que mediou entre 09/08/2019 (data do rebentamento do veio) e 09/09/2019 (data da última mensagem de WhatsApp) em arranjar peças para substituir as danificadas no trator dos autos;
30.ª Pelo que, em face delas, estava o Tribunal a quo obrigado a levar o ponto g. da matéria de facto não provada, à matéria de facto provada, o que ora de requer;
31.ª Em primeiro lugar, é a ação de anulação que está sujeita ao prazo de 6 meses e não a ação destinada a exigir do vendedor a indemnização pelo prejuízo causado pela coisa defeituosa;
32.ª Em segundo lugar, não é admissível o recurso à interpretação extensiva, para estender aquele prazo aos demais pedidos de que o comprador pode lançar mão;
33.ª Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, XI, pág. 275) rejeita a interpretação extensiva do artigo 917.º do Código Civil, atenta a brevidade do prazo, seja ao direito à reparação ou substituição, seja ao direito de indemnização;
34.ª Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 2º ed., pág. 218) sustentam tão somente a interpretação extensiva do artigo 917.º do Código Civil às ações que visam obter a reparação ou a substituição da coisa (artigo 914.º do Código Civil);
35.ª Em termos de jurisprudência, são também diversos os acórdãos a sustentar o entendimento oposto ao vertido na sentença (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/11/2006, proferido no proc. 06B3720, pelo Relator Salvador da Costa; Supremo Tribunal de Justiça, de 22/05/2003, proferido no proc. 03B1433, pelo Relator Araújo Barros; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/02/2014, proferido no proc. 1115/05.4TCGMR.G1.S1, pelo Relator Salazar Casanova; acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/12/2018, proferido no âmbito do proc. 2142/15.9T8CTB.C, pela Relatora Sílvia Pires);
36.ª Este último acórdão dá como seguro que ao direito de indemnização por danos colaterais resultantes de defeito em coisa objeto de prestação em contrato de compra e venda não são aplicáveis os prazos curtos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil. Antes, é de aplicar o prazo previsto para a responsabilidade civil contratual (20 anos), ou o prazo previsto para a responsabilidade civil extracontratual (3 anos);
37.ª E note-se que estamos, no caso dos autos, precisamente perante uma situação de danos colaterais: a coisa defeituosa vendida pela R. e Recorrida causou danos colaterais/indiretos/reflexos noutra coisa da A. e Recorrente (trator);
38.ª Aliás, isso vem admitido na sentença recorrida: “Ora, ainda que se reconheça que os danos do trator e o dano da privação do uso são danos indiretos, não decorrendo diretamente da coisa defeituosa, tendo, antes, sido por esta provocados (…)”;
39.ª Segundo a decisão recorrida, a A. e Recorrente tinha até ao dia 09/02/2020 para instaurar a ação a que respeitam os presentes autos. Só que, nessa data, o trator ainda estava na oficina a ser reparado!!;
40.ª Assim, o Tribunal a quo considerou (erradamente) que a A. e Recorrente deveria ter dado entrada da ação em momento anterior à conclusão da própria reparação do trator, e quando aquela ainda nem sequer sabia em quanto lhe ia ficar o custo da reparação do trator!!;
41.ª É precisamente para se evitar este tipo de situação, que o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu, como deve esta Relação igualmente entender, que um prazo tão curto como o do artigo 917.º do Código Civil não se pode aplicar, por interpretação extensiva, ao direito do comprador a ser indemnizado pelo vendedor, pelos danos indiretamente causados pela coisa defeituosa;
42.ª Normalmente, só muito tardiamente se conhecem os danos emergentes dignos de indemnização. E ainda mais tardiamente são conhecidos os lucros cessantes;
43.ª Pelo que é por demais evidente que o legislador quis estipular um prazo de caducidade de 6 meses apenas para a ação de anulação por simples erro - conforme expressamente resulta do artigo 917.º do Código Civil -, não sendo admissível uma interpretação extensiva que faça incorrer no mesmo prazo o direito do comprador em ser indemnizado, nos termos da responsabilidade civil contratual, pelos danos colaterais/indiretos/reflexos que a coisa defeituosa lhe tenha causado, neles cabendo os danos emergentes e os lucros cessantes;
44.ª Por isso, pelo menos a parte da indemnização reclamada nestes autos pela A. e Recorrente de € 19.750,22, respeitantes à reparação do trator, e € 25.124,40, respeitantes à privação do uso do mesmo, deve considerar-se não caducada, por lhe ser aplicável o prazo de 20 anos, ou, no limite, o prazo de 3 anos. Nunca o prazo de 6 meses!;
45.ª Como vimos acima, na parte relativa ao recurso da matéria de facto, o Tribunal a quo deu erradamente como não provado o facto g. da sentença: “DD prontificou-se a encomendar as peças danificadas no trator, por forma a serem substituídas, sem qualquer custo para a autora”;
46.ª Ora, este facto - que deveria ter sido dado como provado, como acima defendemos - representou o reconhecimento, pela R. e Recorrida, do direito da A. e Recorrente. Havendo esse reconhecimento, a caducidade (sem conceder) já não opera, nos termos do artigo 331.º, n.º 2 do CC;
47.ª Assim, ainda que se considerasse que a ação caducaria no prazo de 6 meses (sem conceder), deveria o Tribunal a quo ter considerado que a caducidade não operou pela circunstância de o funcionário da R. e Recorrida, DD, ter reconhecido o direito da A. e Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 331.º, n.º 2 do Código Civil;
48.ª Pelo que, mesmo que esta Relação entenda que a A. e Recorrente tinha até 09/02/2020 para intentar a ação destinada a ser ressarcida dos prejuízos suportados/a suportar ainda por causa do veio defeituoso (sem conceder) sempre deverá considerar provado que a R. e Recorrida reconheceu o direito daquela (ponto g. da sentença recorrida), logo, o direito não caducou;
49.ª Por todo o supra exposto (II.1, II.2 e II.3), deve esta Relação condenar a R. no pagamento das quantias peticionadas pela A., condenação que decorre tout-court do julgamento da matéria de facto constante da sentença recorrida - com o qual se concorda, com exceção do facto 36 na matéria de facto provada e do facto g. na matéria de facto não provada.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Em 02.03.2023, este Tribunal da Relação proferiu acórdão em cujo dispositivo se consignou:
«Por todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, em consequência, mantemos a sentença recorrida».
Uma vez mais inconformada, interpôs a autora recurso de revista excecional ao abrigo da alínea c) do n.º 1, do art.º 672º do Código de Processo Civil.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a formação prevista no nº 3 do art. 672º do CPC admitiu a revista excecional, ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 deste preceito.
Subsequentemente foi proferido acórdão em cujo dispositivo se consignou:
«Nos termos expostos acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista e, em consequência:
a) Revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que julgou procedente a exceção de caducidade, quanto aos montantes de € 19.750,22 e € 25.124,40, determinando-se a remessa dos autos à Relação para a devida apreciação.
b) No mais se mantendo o acórdão proferido.»

Regressados os autos a este Tribunal da Relação[1] e corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Considerando o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado nos autos, as questões a decidir circunscrevem-se à apreciação dos pedidos de indemnização a título de reparação do trator e da privação do uso do mesmo.

III – OS FACTOS
A decisão de facto proferida pela 1ª instância e mantida intocada por esta Relação no anterior acórdão, é a seguinte:
Factos provados:
1. A autora é uma sociedade que se dedica à criação e comercialização de ovinos e caprinos, turismo rural e aluguer de máquinas agrícolas.
2. A ré é uma sociedade que se dedica à manutenção de máquinas e peças agrícolas.
3. Entre 08.01.2014 e 20.07.2020 o direito de propriedade sobre o trator agrícola de matrícula ..-OE-.. encontrava-se registado a favor da autora.
4. Em 29.07.2019, a autora contactou a ré pedindo orçamento para o fornecimento de um veio para o trator de matrícula ..-OE-.., marca ..., modelo 7722.
5. Em 30.07.2019, a ré apresentou à autora um orçamento de € 971,07, que esta aceitou.
6. Em 30.07.2019, CC, legal representante da autora, e DD, funcionário da ré, trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“DD:
CC
Envio o comprimento total do veio
CC:
Só o veio 1.37m e espessura 8cm
DD:
Total será 1.43m?
CC:
Total com luva e cardan?
DD:
Sim
[imagem]
Assim
CC:
É isso
DD:
7900 Euros + iva + transporte
Completo
Temos de mandar vir
CC:
Está cá quando é qual o valor do transporte?
DD, novidades?”.
7. Em 31.07.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“DD:
Ola CC. Deve demorar 3 ou 4 dias
Queres que mande vir??
CC:
Podes mandar vir
DD:
CC
A luva que esta na ponta do veio não precisas certo????
[imagem]
Esta luva na ponta
[imagem]
So precisas mesmo disto certo??
Ve isto
Para mandarmos vir
Aguardo a tua resposta
CC:
Exactamente
É usado ou novo?
DD:
Usado
Como ficamos??
É só isto da ultima foto
[imagem]
Certo?
Aguardo a confirmacao pois tenho o fornecedor preparar
encomenda.
[imagem]
[imagem]
[imagem]
CC preciso saber se queres o veio. Pois mandei
preparar….
Diz alguma coisa
CC:
Em caso de ter empeno como fazemos?
DD:
O fornecedor diz que esta bom
CC:
Preço mínimo?
DD:
750
Min8mo
Minimo
+ iva
Feito?”
8. Em 05.08.2019, o funcionário da autora BB, deslocou-se ao estabelecimento comercial da ré para proceder ao levantamento do veio encomendado.
9. No mesmo dia, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
DD, o veio é 20 cm mais pequeno
DD:
Medida??
CC:
O do trator 1,37 e o que veio tem menos 20 cm
DD:
Não da mesmo?
CC:
Não, é muito curto
DD:
So enviandos os 2 para nos para te preparmos isso
Ou se tiveres alguém qye te prepare isso abatemos o valor
É como quiseres
Preparar isso para a medida correta
CC:
Preparar como?
DD:
Colocar tubo desse à medida que queres
CC:
Para isso mandava fazer um veio novo.
DD:
Manda então isso que nos preparamos
Tens de mandar os 2
Para afinarmos isso medida
CC:
Para isso mandava arranjar o que lá está!
Prefiro que venha um veio desta medida
DD:
Não é fácil CC
Nos temos pessoa que prepara isso
Que já nos faz isso há alguns anos
CC:
Então se eu mandar o que lá está conseguem arranjá-lo?
DD:
Sim
CC:
É que já tentaram e não conseguiram
DD:
Tem que ser nas pessoas certas
CC:
Foi a BEJA a uns gajos especializados
DD:
Entao envio os 2
Que nos preparamos o que te enviamos pela medida do
teu
Envia isso ou tras isso
Queres enviar ou depois deixas ca?
CC:
Já te ligo
DD:
Ok”
10. Em 06.08.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
DD, tens novidades?
DD:
Ola CC
Estamos a resolver
Logo que esteja informo
CC:
Previsão?
DD:
O mais rapido possível
Logo que esteja informo”.
11. Em 07.08.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
DD, novidades?
DD:
O BB vem aí agora
Buscar
CC:
O que fizeram?”.
12. No mesmo dia, BB procedeu ao levantamento do veio no estabelecimento comercial da ré.
13. A ré havia procedido ao aumento do veio, tendo para tanto cortado e soldado uma secção de modo a ficar com mais 20 cm de comprimento.
14. Em 09.08.2019, o mecânico da autora instalou o veio fornecido no trator.
15. Após a instalação do veio, o trator percorreu cerca de 300 metros, tendo o veio partido logo de seguida.
16. Ao partir, o veio caiu e perfurou o solo, tendo aí ficado preso e recuado, provocando estragos em vários componentes da transmissão do trator, tal como na caixa de velocidades, transmissão traseira, transmissão dianteira e toda a tubagem envolvente.
17. Em 09.08.2019, CC enviou a DD as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
DD, o veio foi montado hoje o trator andou 300m e partiu onde foi soldado;
Como resolvemos esta situação agora
[imagem]
[imagem]”.
18. Em 10.08.2019, DD enviou a CC a seguinte mensagem através da aplicação Whatsapp:
“DD:
Ola CC. Espero que estejas bem. Estou de ferias logo que possa falarei com a casa que fez o serviço para ver soluções. Abraço.”.
19. Em 12.08.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“DD:
Ola CC. Já falamos com a casa que fez o serviço. Tens então de trazer o veio transmissão assim completo como esta na foto para levar 1 tubo completo ao meio sem soldaduras e colocar-se as 2 pontas dd 1 lado e de outro
CC:
Quando puder ligar diz
DD:
Estarei la na empresa dia 20
Mas tens de trazer o veio
CC:
DD o veio quando partiu bateu no chão e partiu o veio que vai à caixa, como vamos resolver isto? Eu preciso disso resolvido antes de dia 20
DD:
CC para essas datas nao conseguimos
Talvez ate ao fim mes
Esta muito pessoal de ferias
Mês complicado
CC:
Vê lá isso que tenho o trator vendido
DD:
Tens de trazer o material
Para podermos trabalhar
E vermos medidas
CC:
Posso levar já hoje
DD:
Dia 19
Leva isso ok?
CC:
Ok”.
20. Em 20.08.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
DD a que horas abres?
DD:
21. Em 21.08.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
Alguma novidade do veio?
DD:
Okz CC
Ola CC
Tou a ver se arranjo”.
22. Em 09.09.2019, CC e DD trocaram as seguintes mensagens através da aplicação Whatsapp:
“CC:
DD, bom dia. Já veio o veio?
DD:
Ola CC
Estamos a aguardar
De e estar esta semana
CC:
Vê lá isso DD, tenho o trator vendido e o homem está
farto de estar á espera
DD:
Compreendo
Estamos a tratar o mais rapido possível”.
23. Em 27.09.2019, CC enviou a DD a seguinte mensagem através da aplicação Whatsapp:
“CC:
[imagem]
[imagem]
[imagem]
DD, aqui está o orçamento da reparação do trator.
Como resolvemos isto?”.
24. Em 24.09.2019, a Agro 121 – Equipamentos Agrícolas e Automóveis, Lda. apresentou à autora um orçamento para reparação do trator no montante de € 16.523,40.
25. Em 28.09.2019, a autora entregou o trator na Agro 121 a fim de ser reparado.
26. O trator ficou reparado em 06.03.2020.
27. Em 30.03.2020, a Agro 121 elaborou o seguinte relatório:
“Vimos por este meio informar-vos que recebemos nas nossas instalações o tractor Deutz k610 com a matrícula ..-OE-.. do Exmo. Sr. CC.
Após um minucioso diagnóstico verificámos que a causa técnica da avaria do Deutz k610 com a matrícula ..-OE-.., foi derivado ao veio de transmissão dianteiro ter sido montado inadequadamente ou não ter uma calibração de fabricada para que possa funcionar corretamente, levando este mesmo a ceder ao embater no chão fez recuar o veio de transmissão partindo assim a caixa de velocidades e transmissão.”.
28. A reparação do trator cifrou-se no montante global de € 19.750,22.
29. No âmbito da sua atividade económica, a autora cedia a utilização do mencionado trator a terceiros, para o desempenho de diversas tarefas agrícolas, designadamente, sementeiras, gradagens, adubações, desmatações, rolagens, ripagens, serviços de transporte e serviços de cisterna, recebendo em contrapartida, uma prestação monetária.
30. Pelos serviços mencionados em 29., a autora fatura € 40/hora.
31. A autora liquidou à Agro 121 o montante referido em 28. através de transferência bancária no montante de € 12.597,97 e, no remanescente, da entrega de um Multicarregador Merlo Panoramic p34.7.
32. O veio mencionado em 4. mede 1.48 m de centro de cruzeta a centro de cruzeta e 1.37 m entre soldaduras.
33. O veio fornecido pela ré à autora em 8. media 1,43 m de falange a falange.
34. O veio fornecido pela ré à autora em 8. era mais curto cerca de 20 cm do que as medidas mencionadas em 32.
35. No circunstancialismo referido em 14. a 16., o veio partiu no local da soldadura.
36. No circunstancialismo referido em 14., a autora não procedeu à colocação da proteção do veio após a sua montagem.
37. A presente ação deu entrada em juízo em 29.12.2020.
Factos não provados:
a) DD exerce funções de gerência na ré.
b) No circunstancialismo referido em 7., o funcionário da autora BB constatou, em conjunto com DD, que o atendeu, que o novo veio era substancialmente mais pequeno do que o veio original (avariado) que existia no trator.
c) De seguida, DD pediu para lhe ser entregue o veio original (avariado), para tirar as suas medidas e transmitiu ao funcionário da autora que iria proceder a nova encomenda de um veio com dimensões iguais para aplicação no trator da autora e que, assim que o recebesse no estabelecimento comercial, entraria em novamente em contacto.
d) No circunstancialismo referido em 11., 12. e 13., BB questionou DD se era seguro aplicar no trator uma peça remendada, ao que este respondeu que o veio poderia ser aplicado, sendo já prática habitual da ré vender peças remendadas a outros clientes.
e) DD respondeu que o veio podia ser aplicado sem receio e que já era prática habitual da ré vender peças remendadas a outros clientes, sem que nunca tivesse ocorrido qualquer problema.
f) Em 12.08.2019, a autora, através do seu gerente, Sr. CC, contactou a ré para lhe relatar o sucedido, tendo o gerente desta, DD, assumido que o veio fornecido não devia ter sido instalado no trator da autora.
g) DD prontificou-se a encomendar as peças danificadas no trator, por forma a serem substituídas, sem qualquer custo para a autora.
h) A ré pediu à autora que lhe entregasse as peças danificadas do trator para ela própria obter um orçamento para a sua reparação.
i) Em 01.10.2019, o funcionário da autora, BB, levou as peças da Agro 121, em Beja, para a sede da ré, na ....
j) Em 04.10.2019, a ré informou a autora de que o custo da reparação seria muito elevado e que teria de ser suportado pela autora, porque a ré não tinha capacidade económica para o assumir.
k) Em data anterior a 29.07.2019, o trator identificado em 4. havia sofrido outra avaria idêntica.

O DIREITO
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferidos nestes autos:
«O comprador, no caso de falta de cumprimento ou de cumprimento defeituoso da obrigação, pode exigir judicialmente o cumprimento e pode reclamar, nos termos gerais, o prejuízo que lhe adveio do incumprimento (artigos 798.º, 799.º e 817.º do Código Civil).
O vendedor está adstrito ao cumprimento contratual, ou seja, tem a obrigação de cumprir o contrato em conformidade com o negociado, sob pena de incorrer em incumprimento, o qual conduzirá ao direito à indemnização.
E quando a violação culposa dos deveres do vendedor não se refira ao vício intrínseco da coisa, a responsabilidade contratual não se encontra abrangida pelo art. 913º do C. Civil.
No mesmo sentido se pronunciaram o Prof. Calvão da Silva e Prof. Pedro Romano Martinez, nas obras respetivamente de Compra e Venda de Coisas Defeituosas e Cumprimento Defeituoso e em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, já supra citadas, defendendo que no direito português, relativamente a factos estranhos à coisa, justifica-se o recurso ao prazo da prescrição do art. 309º do C. Civil.
Com efeito, estamos perante a existência dos chamados danos colaterais ou reflexos, provocados pela existência do defeito, danos que não se circunscrevem ao defeito, mas que lhe acrescem, ou seja, não estamos nestes casos perante a reparação do defeito, mas perante danos sofridos além da existência do defeito.
Estes danos estão ligados ao defeito por nexo de causalidade, mas não têm como finalidade a reparação do defeito em si.
Tais danos poderão ocorrer já após esgotados os prazos curtos para a reparação dos defeitos, pelo que, se assemelham a quaisquer danos que resultem do incumprimento de uma obrigação.
Como se escreveu no Ac. do STJ. de 15-9-2022, in http://www.dgsi, estes danos terão lugar relativamente aos prejuízos que não obtiveram reparação através do exercício do direito à reparação e à qual se aplicariam os prazos curtos de caducidade estabelecidos no art. 917º do C. Civil.
Estes danos não são inerentes ao defeito mas sequenciais a este e provocados pelo defeito, sendo indemnizáveis pelas regras gerais da responsabilidade contratual, apenas sujeitos à prescrição geral.
Compreende-se que estes danos não possam estar sujeitos aos prazos curtos plasmados no art. 917º do C. Civil, desde logo, porque a sua ocorrência poderá não coincidir necessariamente com os eventos que determinaram a contagem daqueles prazos, podendo vir a ter lugar posteriormente, como sucedeu no caso concreto.
Como referiu a este propósito, João Calvão da Silva, na identificada obra de Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 75 «Além do direito de indemnização conexo com o de anulação, por dolo ou erro, do contrato de compra e venda de coisa defeituosa, existe um outro direito de indemnização decorrente das regras gerais do direito da responsabilidade civil e, designadamente, do art. 798º. do Código Civil, baseado no cumprimento defeituoso, e no qual encontra guarida, por exemplo, a reparação do prejuízo resultante da paralisação da coisa vendida durante o tempo da reparação».
Ora, nestas situações, em que está em causa a reparação de outros danos que não os inerentes aos defeitos da coisa em si, ser-lhes-ão aplicáveis as regras gerais do direito de indemnização, ou seja, o prazo de prescrição geral.
Implica tal, que o montante peticionado de € 19.750,22, a título de reparação do trator e o montante de € 25.124,40, a título de privação do uso do mesmo, enquanto se encontrava a ser reparado, ainda estão em prazo para serem reclamados, não lhes sendo aplicável os prazos de caducidade do art. 917º do CPC., mas sim os da prescrição (neste sentido, Acs. R.G. de 23-1-2020 e de 7-3-2024, Ac. R.C. de 20-6-2012, in http://www.dgsi.pt).
Destarte, assiste razão à recorrente, pelo que, se revoga o acórdão nesta parte, determinando-se, nos termos do disposto no art. 679º do CPC., a remessa dos autos à Relação para conhecimento destes pedidos.»
Assente que está configurar a situação dos autos um caso de venda defeituosa, importa dar cumprimento ao decidido no acórdão do Supremo, passando desde já a conhecer-se dos pedidos indemnizatórios em causa, ou seja, o valor da reparação do trator e a privação do respetivo uso.
Não está em causa que em consequência dos estragos sofridos, a autora mandou reparar o trator, no que despendeu a quantia de € 19.750,22 [pontos 28 e 31 dos factos provados].
A questão que se coloca situa-se a montante, ou seja, quem é o responsável pelos danos verificados no trator.
A culpa como pressuposto da obrigação de indemnizar, supõe um juízo de reprovação ética, aferido por um padrão normativo que, na falta de outro critério legal, é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487º, nº 2, do Código Civil).
A este propósito, importa salientar os factos dados como provados e que são relevantes para a apreciação da culpa:
«4. Em 29.07.2019, a autora contactou a ré pedindo orçamento para o fornecimento de um veio para o trator de matrícula ..-OE-.., marca ..., modelo 7722.
(…)
8. Em 05.08.2019, o funcionário da autora BB, deslocou-se ao estabelecimento comercial da ré para proceder ao levantamento do veio encomendado.
(…).
12. No dia 07.08.2019, BB procedeu ao levantamento do veio no estabelecimento comercial da ré.
13. A ré havia procedido ao aumento do veio, tendo para tanto cortado e soldado uma secção de modo a ficar com mais 20 cm de comprimento.
14. Em 09.08.2019, o mecânico da autora instalou o veio fornecido no trator.
15. Após a instalação do veio, o trator percorreu cerca de 300 metros, tendo o veio partido logo de seguida.
16. Ao partir, o veio caiu e perfurou o solo, tendo aí ficado preso e recuado, provocando estragos em vários componentes da transmissão do trator, tal como na caixa de velocidades, transmissão traseira, transmissão dianteira e toda a tubagem envolvente.
(…)
32. O veio mencionado em 4. mede 1.48 m de centro de cruzeta a centro de cruzeta e 1.37 m entre soldaduras.
33. O veio fornecido pela ré à autora em 8. media 1,43 m de falange a falange.
34. O veio fornecido pela ré à autora em 8. era mais curto cerca de 20 cm do que as medidas mencionadas em 32.
35. No circunstancialismo referido em 14. a 16., o veio partiu no local da soldadura.
36. No circunstancialismo referido em 14., a autora não procedeu à colocação da proteção do veio após a sua montagem.»
Não há dúvidas que o veio fornecido pela ré à autora era mais curto do que devia ser, e daí ter a ré procedido ao seu aumento, tendo para tanto cortado e soldado uma secção de modo a ficar com mais 20 cm de comprimento.
Quem procedeu à instalação do veio no trator foi o mecânico da autora, mas após a instalação e após ter percorrido cerca de 300 metros, o veio partiu-se no local da soldadura, vindo a cair no solo e provocando os estragos referidos no ponto 16 supra, que determinaram a sua reparação, pelo que, prima facie, o ocorrido seria de responsabilidade exclusiva da ré.
No entanto, provou-se que no referido circunstancialismo, a autora não procedeu à colocação da proteção do veio após a sua montagem [ponto 36], e que ao partir, o veio caiu e perfurou o solo, tendo aí ficado preso e recuado, provocando estragos em vários componentes da transmissão do trator, tal como na caixa de velocidades, transmissão traseira, transmissão dianteira e toda a tubagem envolvente [pontos 16].
Figurando virtualmente o cenário, parece curial extrair-se uma conclusão normal, segundo as regras comuns da vida: que os danos verificados no trator se deveram, por um lado, à quebra do veio e, por outro lado, ao facto de a autora não ter colocado a proteção do mesmo, daí que ao partir tivesse perfurado o solo, pois o veículo estava em marcha (percorreu 300 metros).
São os "ses" de todas as circunstâncias; há que reconhecê-lo!
Não se sabe em concreto quais os danos causados pela quebra do veio e qual a dimensão do agravamento por essa queda, mas também não se pode ignorar que o facto de o veio ter partido é que iniciou o processo conducente ao dano final.
Isto vale para afirmar que, a nosso ver, houve efetivamente concorrência de culpas na produção do evento, não sendo possível imputá-lo exclusivamente a nenhuma das partes.
O juízo de desvalor que recai sobre cada um dos intervenientes no que respeita à concorrência de ambos para a produção do efeito danoso, não é, porém, qualitativamente igual, nada repugnando à sensibilidade do julgador no contexto descrito, dizer que houve mais culpa da autora do que da ré.
Autora e ré poderiam ter evitado os danos verificados no trator, mas a autora podia tê-lo evitado mais, se tivesse colocado a proteção do veio, impedindo a queda deste no solo, e nessa medida incorre num maior grau de censura ético-jurídica, ou dito de outro modo, a autora foi um “pai de família” menos diligente do que a ré, para utilizar a linguagem própria da lei, sobre esta precisa matéria da culpa em direito civil.
E quanto à repartição de culpas, entendemos que se afigura ajustada à medida da contribuição de cada uma das partes para a produção do evento danoso, na proporção de 60% para a autora e em 40% para a ré.
In casu, a reconstituição do autor na situação que existiria se não fosse a lesão, impunha a reparação do trator e, uma vez que a ré não mandou reparar o veículo, apesar de o autor lhe ter dado a conhecer o orçamento apresentado pela Agro 121 [ponto 23 dos factos provados], a obrigação de indemnizar, nesta parte, terá de consistir no pagamento de 40% da quantia que o autor despendeu com a reparação, ou seja, € 7.900,08 [€ 19.750,22 X 0,4].
Aqui, a obrigação do pagamento do montante necessário à reparação do veículo decorre ainda do princípio da reconstituição, justificando-se a indemnização em dinheiro apenas porque, em conformidade com o pedido, a reparação foi feita por ordem do lesado.

Vejamos agora a indemnização a título de privação do uso do trator.
A problemática da indemnização pela privação do uso do veículo tem merecido a atenção da doutrina e da jurisprudência, sobretudo no âmbito de litígios fundados em acidentes de viação, de modo que, veio a ganhar preponderância na jurisprudência uma corrente (“intermédia”), assente na ideia de que, verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil, a prova dos danos concretos se basta com a demonstração do uso regular da viatura por parte do lesado, a qual até se pode presumir (presunção judicial).
Assim, tem sido considerado que é devida indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo automóvel, sem necessidade de o lesado alegar e provar outros factos, designadamente que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas (por exemplo, com o aluguer de outra viatura) ou lucros cessantes (o que não obsta a que possa fazer essa alegação). Isto porque, a menos que outros factos indiquem não ser esse o caso, o normal é que, quando se adquire um veículo, se pretende utilizá-lo precisamente para transporte de pessoas e bens.
Portanto, na medida em que se ficou impedido de poder usar o veículo que se possuía, é devida indemnização, a fixar, em regra, com base na equidade (pois não é normalmente possível fazê-lo com recurso à teoria da diferença - cf. art. 566º, nº 2, do CC), atendendo, numa análise casuística, ao conjunto dos factos em presença, incluindo as caraterísticas do veículo, ao concreto uso que lhe era dado e até à atuação do lesado, apreciando se configura comportamento “socialmente adequado” e conforme à boa-fé ou, ao invés, se até contribuiu para o agravamento do dano (cf. art. 570º do CC), sendo de rejeitar a fixação de valores indemnizatórios que, globalmente considerados, por via do período temporal (de meses ou até anos) e/ou do valor diário considerados, redundem em verbas desproporcionadas[2].
No caso provou-se que:
- Em 09.08.2019, o mecânico da autora instalou o veio fornecido no trator.
- Após a instalação do veio, o trator percorreu cerca de 300 metros, tendo o veio partido logo de seguida.
- Ao partir, o veio caiu e perfurou o solo, tendo aí ficado preso e recuado, provocando estragos em vários componentes da transmissão do trator, tal como na caixa de velocidades, transmissão traseira, transmissão dianteira e toda a tubagem envolvente.
- Em 28.09.2019, a autora entregou o trator na Agro 121 a fim de ser reparado.
- O trator ficou reparado em 06.03.2020.
- No âmbito da sua atividade económica, a autora cedia a utilização do mencionado trator a terceiros, para o desempenho de diversas tarefas agrícolas, designadamente, sementeiras, gradagens, adubações, desmatações, rolagens, ripagens, serviços de transporte e serviços de cisterna, recebendo em contrapartida, uma prestação monetária.
- Pelos referidos serviços, a autora fatura € 40/hora.
Desta factualidade resulta que o trator da autora esteve parado entre o dia 09.08.2019, quando o veio rebentou, e 06.03.2020, quando ficou reparado, ou seja, um total de 200 dias, cerca de 7 meses.
Afigura-se que o prejuízo diário pela privação do uso sofrido pela autora, decorrente da paragem do seu trator pode, com recurso ao valor/hora faturado pela autora na sua atividade, ser calculado da seguinte forma (tal como sugerido pela autora na petição inicial):
Valor de faturação/hora: € 40,00
Valor faturação/dia: € 40,00 x 8 horas = € 320,00
Valor faturação/mês: € 320,00 x 22dias úteis = € 7.040,00
Salário do operador do trator: € 850,00
Consumo combustível: 12L/h
Preço médio/L (gasóleo agrícola): 0,90€/L
8h x 12L x 0,90€ x 22 dias = € 1.900,80
Desgaste mensal da máquina (embraiagem, pneus, material de desgaste, manutenções): € 700,00
Total privação uso/mensal: € 7.040 - (850+1900,80+700) = € 3.589,20
Total privação uso/global (entre 09.08.2019 e 06.03.2020) = € 3.589,20 x 7 meses = € 25.124,40.
Afigura-se justo e equitativo este valor, que não deixa de ter em consideração as caraterísticas do veículo, o concreto uso que lhe era dado e até a atuação do lesado, que não deixa de configurar um comportamento “socialmente adequado” e conforme à boa-fé, além de que nesse valor estão já efetuadas as deduções referentes aos gastos de pessoal, combustível e desgaste do trator.
Assim, pela privação do uso do trator, cabe à ré indemnizar a autora na exata medida da proporcionalidade da sua culpa, o que importa a sua condenação no pagamento da quantia de € 10.049,76 [€ 25.124,40 x 0,4].
Deve, pois, a ré ser condenada a pagar à a autora as aludidas quantias, no montante global de € 17.949,84, acrescidas de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Por conseguinte, o recurso merece parcial provimento.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença recorrida, na parte em que julgou procedente a exceção de caducidade relativamente às quantias peticionadas pela reparação do trator e de privação do uso, condenando-se a ré a pagar à autora, a esse título, as quantias de € 7.900,08 e € 10.049,76, respetivamente, no montante global de € 17.949,84, a que acrescem juros de mora desde a citação até integral pagamento.
b) Mantém-se no mais a sentença proferida.

*
Custas a cargo da recorrente e da recorrida na proporção do respetivo decaimento.
*
Évora, 27 de junho de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Maria Adelaide Domingos
Francisco Xavier
(documento com assinaturas eletrónicas)
__________________________________________________
[1] Onde se fez nova distribuição para sorteio do relator e do 2º adjunto, em virtude dos anteriores se terem jubilado - cfr. despacho de 03.06.2024 [referências citius 9073463].
[2] Cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 23.05.2024, proc. 2133/21.0T8ACB.L1-2, in www.dgsi.pt.