COMODATO
USO
COISA
Sumário


I -Sendo a coisa entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma certa finalidade, não a utilização da coisa em si.
II- O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que, não se pode considerar como determinado, o uso de que não se sabe quanto tempo vai durar, sendo assim incompatível com esta figura jurídica um uso genérico e abstracto, que subsista indefinidamente ou não tenha termo certo, por ir contra a própria noção de comodato plasmada no art. 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso.
III- Se não tiver sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, apenas se poderá obstar à restituição caso tenha ocorrido a estipulação de prazo certo ou determinado um uso de duração limitada, temporalmente delimitado.
IV – No comodato a cedência é sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado, genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente.
V- O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável, pois de outro modo, o comodante corria o risco de nunca recuperar a coisa comodatada, que é sua.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral



Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

AA, intentou contra BB, a presente ação de processo comum, pedindo que:
a) Seja declarado resolvido, por justa causa, o contrato de comodato de que a R. é titular relativo ao 1º andar do prédio da A. situado na Av. ..., ... ...;
b) que seja a R, por via de tal resolução, condenada a desocupar, de imediato e de pessoas e bens, aquele ... andar.
Para tanto, alega que é dona do prédio urbano em causa e vive no ..., e que, juntamente co o seu (entretanto falecido) marido, permitiram que o seu único filho, que havia casado com a ora R., utilizassem gratuita e temporariamente, para sua habitação, o ... andar do referido prédio, hoje pertença da A, não tendo sido estipulado qualquer prazo àquela utilização.
Acrescenta que já tentou, por diversas vezes, por termo a tal contrato de comodato, designadamente através da ação n.º 1281/13...., deste juízo, tendo, porém, sido julgado que a R. tem título legítimo para a ocupação do prédio.
Invoca, ainda, que, atualmente existe justa causa de resolução do referido contrato, uma vez que, após a separação e divórcio a Ré faz-lhe ameaças, perturba-a com barulhos e tem o imóvel sujo e degradado, para além de passar temporadas de largos meses sem ali residir.
A ré contestou, invocando a exceção de caso julgado (com referencia ao processo 1281/13....) e impugnou a factualidade alegada na petição, dizendo que tal “permissão” foi dada sem limite temporal, tendo ficado estabelecido por acordo, no divórcio, a atribuição da casa de morada de família á Ré e que não tem outros rendimentos para além da pensão de alimentos que lhe é paga pelo filho da A., não pode sair daquela que é a casa de morada de família, até porque o seu filho CC também reside com ela, encontrando-se desempregada e sem outro local para habitar.
Mais pede a condenação da A como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização de valor não inferior a 10.000,00 euros.
Em reconvenção, peticiona a condenação da A/reconvinda no pagamento da quantia de 15.000,00 euros a titulo de danos não patrimoniais, pelo facto de, desde o ano de 2013, viver na eminência de ficar sem um tecto para morar e devido à actuação da A., se ter tornado uma mulher amargurada, deprimida e revoltada, socialmente diminuída etc. o que levou a que fosse submetida a tratamento médico e medicamentoso.
Em resposta, pugnou a A. pela não verificação da exceção de caso jugado e da invocada litigância de má fé, impugnando os factos subjacentes à reconvenção.
No despacho saneador, julgou-se improcedente a exceção de caso julgado.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e decidiu:
a) julgar a presente ação totalmente procedente, embora com razões jurídicas diversas, e, em consequência, decide-se condenar a ré BB a proceder, de imediato, à restituição, à autora, AA, do ... andar prédio urbano, sito na Av. ..., da União das Freguesias ... (...) e ..., composto de casa destinada a habitação, com 120 m² de área coberta, sendo de .... e ..., com 8 divisões no .... e uma divisão na ... com 6 m² e ... andar com 8 divisões e duas dependências, tendo o prédio um logradouro com 480 m², a confrontar do norte com a Av. ..., sul com DD, nascente com EE e poente com FF, inscrito na matriz predial sob o artº ..., ex artº 1613 (extinto) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... a favor da autora, sob o nº ...;
b) julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-se a autora/reconvinda AA do pedido;
c) julgar totalmente improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé, absolvendo-se a autora AA do pedido de condenação como litigante de má fé.
Inconformada com esta sentença, a Ré recorreu, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«1- A Recorrente considera que sentença recorrida deverá improceder por dois fundamentos: falta de prova e nulidade da sentença.
2- A A/Recorrida invocou factos com os quais pretendia justificar o direito de resolução do contrato de comodato por justa causa.
3- A A/Recorrida invocou que, desde a separação e divórcio da R com o seu filho… aquela cria má convivência e falta de urbanidade” …. que a R cria “ inquietação e até insegurança”, designadamente arremessando durante a noite e madrugada objetos por cima do quarto da A, dizendo-lhe em voz alta e publicamente que a matará e que incendiará a casa”…”que não olha aos consumos de água da rede publica e de eletricidade, na medida em que nunca os pagou”….”estando o ... andar degradado, evidenciando grande desarrumação.”
4- A A prescindiu de toda a prova testemunhal, sendo que a prova documental junta aos autos não é de molde a provar os factos alegados pela A.
5- A A teria que provar os factos que invocou para o seu pedido obter procedência e ser julgada procedente a ação.
6- A A não provou os factos constitutivos do direito que alegou, pelo que a ação deveria ter sido julgada improcedente, por não provada.
7- A sentença recorrida merece censura pelo facto ir além do alegado pela A e estar em clara oposição ao proferido no Acordão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 05 de Junho de 2018 no processo 1281/13.5TBTMR.E1.S1 e que versa sobre uma ação de reivindicação e consequente restituição, intentada pela recorrida e seu filho e que se encontra junta a estes autos.
8- O referido Acordão apresentou as seguintes conclusões:
a) Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.
b) Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar enquanto continuar a ter esse uso.
c) A necessidade de proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um, contrato de comodato, para habitação.
d) Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio.
9- Mantêm-se os fundamentos para a existência e manutenção do contrato de comodato, ou seja: existência de Contrato de comodato sem prazo e o facto do andar continuar a ser usado como habitação familiar da recorrente e do seu filho.
10- A R possui título legítimo que lhe permite reter sem prazo o andar que usa como habitação familiar, uma vez que continua a dar-lhe o mesmo uso.
11- Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo violou o disposto nos art. 342º, 1105º, 1129º, 1137 nº 1, 1311 nº 2 do C Civil e art. 615º b), d) e e) do CPCivil.
Nestes termos e nos de Direito, e com o douto suprimento que se invoca, requer-se seja dado provimento ao recurso e, em consequência, a sentença recorrida deve ser revogada e seja julgada improcedente por não provada a ação, com todas as consequências legais.
Assim decidindo, VExas farão a costumada Justiça!»

Nas contra-alegações a A. defende que, a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto, devendo rejeitar-se o recurso nesta parte; que já antes tinha sido decidido no saneador que não existe caso julgado, decisão essa que não foi objecto de recurso e que a Ré não possui qualquer título de ocupação legitimo, devendo improceder o recurso.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos dados como provados na 1.ª instância:
3.1 Factos provados
1. A A. é dona do prédio urbano, sito na Av. ..., da União das Freguesias ... (...) e ..., composto de casa destinada a habitação, com 120 m² de área coberta, sendo de .... e Cave, com 8 divisões no .... e uma divisão na Cave com 6 m² e ... andar com 8 divisões e duas dependências, tendo o prédio um logradouro com 480 m², a confrontar do norte com a Av. ..., sul com DD, nascente com EE e poente com FF, inscrito na matriz predial sob o artº ..., ex artº 1613 (extinto) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... a favor da aqui A., sob a descrição nº ....
2. Há vários anos, a A. - AA e seu entretanto falecido marido, CC, permitiram que o seu único filho, CC, que havia casado com a ora R., utilizassem gratuita e temporariamente, para sua habitação, o ... andar do prédio hoje da A., identificado no artº 1º.
3. Não foi estipulado qualquer prazo àquela utilização.
4. Em 03.12.2008, na sequência do processo de divórcio entre CC, filho da A, e a ré, foi acordado que a casa de morada de família (prédio descrito em 1) fosse ocupada pela ora ré, pelos filhos e pelo ex-marido; mais tendo acordado que o ex-marido (filho da ora A) não exerceria o seu direito de habitar a referida casa enquanto a ora ré se mantiver a habitá-la desde que ambos nisso acordem, a segunda outorgante (ora ré) passa a residir noutro local, mediante pagamento da renda respetiva pelo primeiro outorgante (ex-marido e filho da ora A).
5. A Ré, a partir da separação do filho da A, em 2008, passou a utilizar aquele ... andar, tendo o divórcio sido decretado em 21-01-2009.
6. A A, representada por mandatário, enviou notificação judicial avulsa, recebida pela R. em 13-09-2010, ali se referindo expressamente “à má convivência e falta de urbanidade”.
7. Em 23-11-2012, a A enviou carta registada com AR à Ré, pedindo, uma vez mais, que deixasse de residir na referida habitação.
8. A e o seu filho CC, na qualidade de herdeiro da herança aberta por óbito de CC, a quem à data o prédio pertencia, interpuseram, neste Tribunal, a Ação de Processo Comum nº 1281/13.... Juízo Local Cível ..., para fazer cessar a utilização da referida habitação por parte da ora R.
9. Ação que começou por merecer procedência em 1ª instância, por decisão de 02-112017; veio a ser revogado pelo Tribunal da Relação de Évora, mediante Acórdão de 23-11-2017, este confirmado pelo Acórdão do STJ proferido a 05-06- 2018.
10. Ficou decidido no referido acórdão do STJ que, tratando-se de um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar, não havia, por parte da R., obrigação de restituir o andar, enquanto continuasse a ter esse uso, face à necessidade de proteção familiar poder estender-se à casa objeto do contrato de comodato para habitação.
11. A A. vive no ... do prédio referido no artº 1º e tem tido a R. como vizinha de cima.
Da contestação
12. A permissão de utilização da habitação, por parte da R, foi dada sem qualquer limite temporal, tendo ficado estabelecido, em sede de divórcio por mútuo consentimento, que a casa de morada de família, sita no ...... do imóvel identificado no artigo 1º, fosse atribuído à R, enquanto dela necessitasse para habitação.
13. A R. não tem outros rendimentos para além da pensão de alimentos que lhe é paga pelo filho da A.
14. É seguida em consulta de psiquiatria, tendo tido história de internamento, por depressão e ansiedade, agravado na sequência do conflito com a A, relativo a habitação em casa nestes autos.
15. Esta situação mantinha-se em 29.08.2019 e 24.10.2019.
Da discussão da causa
16. A R beneficia de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono.
17. A propriedade do prédio descrito em 1. adveio à autora por partilha da herança do marido CC, aquisição esta registada em 11.01.2019.

Factos não provados
I.Várias vezes a A. solicitou á R. que “a deixasse em paz e saísse do que lhe pertencia” ao que a R. nunca acedeu.
II. A R vive temporadas de cerca de seis meses em ... em casa dos pais.
III. Só de tempos em tempos vem ficar no ... andar do prédio da A., e que só ela o utiliza de quando em vez.
IV. É o filho da R., neto da A., que vive em casa da namorada, que vai algumas vezes àquele ... andar do prédio lavar roupa na máquina.
V. A R., quando vem ficar no referido ... andar, arremessa, durante a noite e madrugada, objetos por cima do quarto da A.
VI. A R. ameaça direta e pessoalmente a A., dizendo-lhe em voz alta e publicamente, andar.
VII. A R. implica constantemente com a A. dizendo-lhe da varanda do ... andar que o filho da A. (ex marido da Ré ) é um “chulo”.
VIII.A R. também se tem dirigido a terceiros a quem diz que “incendiará a casa se alguma vez a A. a tirar do ... andar”
IX. Nos últimos tempos, a R., quando fica em ... e a habitar o ... andar do prédio da A., faz consumos de água de rede pública e de eletricidade de valor superior a 100 euros sendo a A. que paga as contas.
X. A R. quando se ausenta pelas referidas temporadas, deixa as janelas abertas, mesmo em dias de chuva; tem um gato em casa, que se encontra bastante degradada, com urina e dejetos de gato, evidenciando grande desarrumação.
XI. Quando ao gato da R. ali fica sozinho durante a ausência desta, passa dia e noite a miar, incomodando a A, perturbando o seu descanso.
XII. O exposto causa angústia e intranquilidade na A.
Da contestação
XIII. Devido ao trauma sentido por se ver, desde o ano de 2013, na eminência de ficar sem um teto para morar, devido à atuação da A., a R tomou-se uma mulher amargurada, deprimida e revoltada.
XIV. Deixou de frequentar os convívios sociais em que, antes da existência destes processos, participava, sentindo-se, também, socialmente diminuída ao ver-se limitada no desempenho das suas tarefas do dia a dia, causando-lhe sentimentos depressivos e ansiosos que levou a que fosse submetida a tratamento médico e medicamentoso.

2 – Objecto do recurso.
Face ao disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são as seguintes:
1ª Questão – Saber se a sentença é nula nos termos do art. 615º b), d) e e) do CPCivil.
2ª Questão – Saber se há caso julgado relativamente à anterior acção.
3ª Questão – Saber se há dever de restituição.
(Note-se que, ao contrário do que parece concluir a recorrida, o recurso não inclui impugnação da matéria de facto, já que não se pode considerar uma impugnação a referência meramente conclusiva de que “a A não provou os factos constitutivos do direito que alegou, pelo que a ação deveria ter sido julgada improcedente, por não provada”).

3 - Análise do recurso.
1ª Questão – Saber se a sentença é nula nos termos do art. 615º b), d) e e) do CPCivil.
Embora a recorrente refira a violação das alíneas b), d) e e) do art. 615º do CPCivil nada explica sobre tal conclusão à excepção do argumento de que, a sentença vai além do alegado pela A. e está em clara oposição ao proferido no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 05 de Junho de 2018 no processo 1281/13.5TBTMR.E1.S1.
Sabemos que nos termos do art.º 615º, n.º 1 do CPC - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.»
Ora, no caso dos autos parece decorrer das alegações que o excesso de conhecimento advém da sentença referir que não foi feita prova da atribuição do imóvel à R por qualquer título legítimo que lhe permita retê-lo sem prazo, podendo a autora exercer o seu direito de denúncia estabelecido no artigo 1137.º, n.º 2 do Código Civil, o que fez com o presente processo e
Concluir que “desnecessário se torna analisar se existe motivo que justifique o direito de resolução do contrato por justa causa, ao abrigo do artigo 1140.º do Código Civil, prejudicado que fica este pedido” bem como contrariar o anterior acórdão.
A questão correspondente á relação com o acórdão anterior, por traduzir a alegação de uma excepção de caso julgado será analisada mais á frente.
Quanto à alegada nulidade, não cremos que se verifique.
A causa de pedir da presente ação tem por base o disposto no artigo 1311.º, n.º 1 e 2, do Código Civil, que nele se confere ao proprietário o direito de “exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
Não há excesso de conhecimento, já que a A. invoca o seu direito de propriedade, pretende a restituição do imóvel, pondo fim ao comodato e a sentença acolhe o pedido de restituição.
Assim sendo, o tema do dever de restituição constitui um dos fundamentos que delimita a divergência entre as partes, pelo que, a sentença respeitou os limites factuais alegados pelas partes e conheceu do objeto do processo.
Saber se o pode fazer, atenta a decisão anterior é uma questão de caso julgado e não de nulidade.
Finalmente, importa referir que não encontramos nada na argumentação do recorrente que integre alguma das nulidades previstas na lei.
Tanto basta para a improcedência das invocadas nulidades.


2ª Questão – Saber se há caso julgado relativamente à anterior acção.
A recorrente defende que a sentença recorrida não podia contrariar o acórdão anteriormente proferido no processo 1281/13.5TBTMR.E1.S1, que considerou que: “Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio; Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar enquanto continuar a ter esse uso; A necessidade de proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um, contrato de comodato, para habitação; Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio” já que se mantêm os fundamentos para a existência e manutenção do contrato de comodato, ou seja: existência de Contrato de comodato sem prazo e o facto do andar continuar a ser usado como habitação familiar da recorrente e do seu filho, pelo que A R possui título legítimo que lhe permite reter sem prazo o andar que usa como habitação familiar, uma vez que continua a dar-lhe o mesmo uso.»
A recorrida veio responder alegando que tal excepção já foi decidida nos autos pelo que não pode ser novamente analisada.
Da análise dos autos, verificamos que, em sede de saneador – em 08.07.2021 -foi proferida decisão sobre tal excepção que julgou improcedente a excepção invocada.
Dessa decisão não foi interposto recurso, pelo que a mesma passou a ter força obrigatória dentro do processo nos termos do disposto no art. 672º do Cód. Proc. Civ.
Por outras palavras, sobre esse despacho formou-se caso julgado formal, não podendo a respectiva matéria ser objecto de reapreciação neste processo.
O caso julgado formal que se constitui e que é vinculativo dentro do processo impede uma nova apreciação, pelo improcede nesta parte o recurso.
Sempre se dirá, no entanto, que o entendimento correspondente à existência de caso julgado material relativo á anterior decisão, traduziria na prática a impossibilidade de nunca mais se admitir um novo pedido de restituição, o que seria um absurdo.


3ª Questão – Saber se há dever de restituição.
Ainda que de forma meramente conclusiva, a recorrente afirma que, a A não provou os factos constitutivos do direito que alegou, pelo que a ação deveria ter sido julgada improcedente, por não provada, discordando assim da conclusão de que os factos provados possam conduzir à procedência da acção.
Quid Juris?
A sentença considerou “inadmissível que o comodante não possa exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel para habitação (sob pena de nunca recuperar a coisa comodatada) a tal não impedindo o acordo estabelecido no âmbito do divórcio da R com o ex-marido (filho da A) – e no qual a ora autora não teve qualquer intervenção - e por isso, independentemente de da verificação de justa causa, prevista no artigo 1140.º do Código Civil (sobre a qual nenhuma prova se fez, por terem sido prescindidas todas as testemunhas), tendo em conta a factualidade provada, concluímos que não foi feita prova da atribuição do imóvel à R por qualquer título legítimo que lhe permita retê-lo sem prazo, podendo a autora exercer o seu direito de denúncia estabelecido no artigo 1137.º, n.º 2 do Código Civil, o que fez com o presente processo”.
Está assente que a Autora é proprietária do imóvel em causa e que está em causa um comodato.
No nosso entender, atenta a natureza temporária do comodato e inexistindo uma delimitação temporal expressa e clara, mas incerta, o comodante poderá exigir em qualquer momento a restituição da coisa por não ser tolerável a sua subsistência indefinida – neste sentido o Ac. RE de 07-11-2023, proferido no proc. 3068/21.2T8STR.E1, com a mesma relatora.
Sendo a coisa entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma certa finalidade, não a utilização da coisa em si.
O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que, não se pode considerar como determinado, o uso de que não se sabe quanto tempo vai durar, sendo assim incompatível com esta figura jurídica um uso genérico e abstracto, que subsista indefinidamente ou não tenha termo certo, por ir contra a própria noção de comodato plasmada no art. 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso- neste sentido vide, Acs do STJ de 15/12/2011 (relator Salazar Casanova) de 21/03/2019 (relatora Maria do Rosário Morgado) e de 14/12/2021 (relatora Maria João Tomé), in www.dgsi.pt.
Desta forma, autorizando o art. 1137.º, n.o 2, do Código Civil a restituição ad nutum, se não tiver sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, apenas se poderá obstar à restituição caso tenha ocorrido a estipulação de prazo certo ou determinado um uso de duração limitada, temporalmente delimitado.
Assim, se não se prova o acordo, sobre um prazo certo de uso da coisa comodada, nem que o comodato foi constituído com afectação da coisa, para uma utilização específica, há dever de restituição.
Como refere Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. IV, 1995, Rei dos Livros, p. 250, a propósito do limite temporal do direito de uso inerente ao contrato de comodato, «ter de se considerar a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação».
Seguimos o entendimento, que, cremos ser maioritário do Supremo Tribunal de Justiça -Cfr. Acs. do STJ de 16/11/2010 (relator Alves Velho), de 21/03/2019 (relatora Maria do Rosário Morgado), de 26/11/2020 (relatora Graça Trigo) e de 9/12/2021 (relatora Rosa Tching), todos acessíveis in www.dgsi.pt- no sentido de que «no empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado. Deste modo, o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável».
(Como se refere no Ac. STJ de 14/12/2021 (relatora Maria João Tomé): « Admitindo que no comodato sem prazo destinado a satisfazer uma necessidade duradoura, o comodante apenas com justa causa possa por termo ao comodato, vide Acórdão de 6 de março de 1986 (Magalhães Baião), proc. n.º 073658; Acórdão de 26 de outubro de 1989 (Jorge Vasconcelos), proc. n.º 076856 e de, não convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodante poder exigir a restituição da coisa ad nutum, vide Acórdão de 19 de março de 1981 (Abel Campos), proc. n.º 069211; Acórdão de 16 de fevereiro de 1983 (Licurgo dos Santos), proc. n.º 070496; Acórdão de 5 de agosto de 1984 (Joaquim Figueiredo), proc. n.º 071531; Acórdão de 23 de janeiro de 1986 (Góis Pinheiro), proc. n.º 073121; Acórdão de 15 de janeiro de 1987 (Tinoco de Almeida), proc. n.º 074062; Acórdão de 31 de maio de 1990 (Joaquim de Carvalho), proc. n.º 077043; Acórdão de 11 de março de 1988 (Eliseu Figueira), proc. n.º 076603; Acórdão de 11 de junho de 1991 (Cura Mariano), proc. n.º 080629; Acórdão de 26 de maio de 1994 (Roger Lopes), proc. n.º 085059; Acórdão de 3 de maio de 1996 (Nascimento Costa), proc. n.º 087829; Acórdão de 14 de outubro de 1999 (Mota Miranda); Acórdão de 8 de março de 2001 (Reis Figueira), proc. n.º 190/01; Acórdão de 6 de maio de 2001 (Silva Paixão), proc. n.º 01A1618; Acórdão de 13 de maio de 2003 (Silva Salazar), proc. n.º 03A1323; Acórdão de 27 de maio de 2008 (Alberto Sobrinho), proc. n.º 1071/08; Acórdão de 31 de março de 2009 (Pereira da Silva), proc. n.º 359/09; Acórdão de 14 de julho de 2009 (Cardoso de Albuquerque), proc. n.º 129/06; Acórdão de 9 de fevereiro de 2010 (Helder Roque); proc. n.º 284/06: Acórdão de 16 de novembro de 2010 (Alves Velho), proc. n.º 7232/04; Acórdão de 16 de dezembro de 2010 (Alves Velho), proc. n.º 6512/05; Acórdão de 14 de março de 2006, proc. n.º 201/06 (Ribeiro de Almeida) – quase todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
Por outro lado, surgiu recentemente no Supremo Tribunal de Justiça a posição que admite que em nome da protecção familiar, não obstante faltar um prazo certo, a cedência do prédio tem um uso determinado e específico, consistente no da habitação efectiva do casal em termos de ser considerada a casa de morada de família, de modo a incorporar a protecção familiar, sobretudo dos filhos, entendendo que a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação 8por exemplo o Ac. STJ de 09/04/2019 (relatora Maria Olinda Garcia) e de 04/02/2021 (relator Manuel Capelo), disponíveis in www.dgsi.pt. E na doutrina Salter Cid, A Proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 1996, p. 229).
Como já referimos seguimos a posição de que o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
Cremos que o direito de uso da coisa – que é um direito pessoal- e o direito real de habitação são coisas distintas que não se podem confundir e que admitir o contrário era neutralizar o direito de propriedade.
Aliás, tratando-se de um contrato intuitus personae e gratuito - como é o comodato – não cremos que se tenha pretendido que o comodante fique na contingência de não poder reaver a coisa dada em cómodo (eventualmente para sempre) - Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2011 (Salazar Casanova), proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1.
E como aí se pode ler: não se vê como considerar “como determinado o uso de certa coisa, se não se ficar a saber quanto tempo ela vai perdurar. Um uso genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no art. 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso”.
Tal equivaleria a uma situação em que, só deixando os comodatários de habitar no imóvel e, assim, deixando de existir o uso é que o proprietário do mesmo poderia exigir aos comodatários a restituição do imóvel pois, enquanto os comodatários continuassem a usar o imóvel para habitação, teriam um título legítimo para o ocupar (eventualmente para sempre).
A este propósito, pode ler-se no já referido Ac. STJ de 14 de dezembro de 2021 Relatora: Maria João Tomé: «De outro modo, o comodante corria o risco de nunca recuperar a coisa comodatada, que é sua. É que o comodatário não se encontra numa situação semelhante à do usuário ou usufrutuário, não podendo beneficiar de um comodato vitalício. Por seu turno, o comodante também não deve converter-se numa espécie de doador. Uma tal descaracterização do comodato não se afigura admissível».
Na linha do entendimento que seguimos, por exemplo, emprestar a casa para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo para habitação.
No caso dos autos, não estando provado que tenha sido acordado um prazo certo e estando provado que a Ré utiliza o imóvel, sem afetação da coisa para uso determinado, a situação não subsumível ao disposto no art. 1137.º, n.º 1 do CC.
A ausência de estipulação de prazo para a restituição ou de determinação do uso da coisa obriga o comodatário à sua restituição logo que lhe seja exigida (art. 1137.º, n.º 2).
Finalmente, importa referir que também não ficou provado que se mantêm a finalidade que presidiu à celebração do contrato de comodato que a necessidade habitacional para fins familiares se mantenha de forma a impedir a imediata restituição do prédio,
Ainda que o imóvel tenha sido emprestado para o seu único filho, CC, então casado com a ora R., foi o mesmo emprestado para habitação do agregado enquanto casal, o que actualmente já não se verifica.
Em suma, nada obsta à restituição ad nutum, por ausência de prazo certo ou temporalmente delimitado, o que determina a improcedência do recurso.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Évora, 27.06.2024
Elisabete Valente
Maria João Sousa e Faro
José António Moita