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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
RECURSO
Sumário
1 – A inobservância dos deveres de transparência, lealdade, informação, protecção e confiança que revele ser de natureza dolosa ou praticados com negligência grosseira pode acarretar, entre outras consequências, sanções processuais de tipo repressivo, como aquelas que estão previstas no artigo 542.º do Código de Processo Civil. 2 – No caso de aplicação diferida de uma sanção indemnizatória, o recurso que se interponha limita os seus efeitos à decisão de condenação como litigante de má fé, não impedindo o trânsito em julgado nem a eventual exequibilidade da sentença de mérito que haja sido proferida, inviabilizando, consequentemente, que, uma vez precludida a hipótese de interposição de recurso relativamente à decisão base, a parte condenada coloque em crise os factos relacionados com a relação material controvertida em ordem a evitar o reembolso de despesas e prejuízos resultantes da má fé. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo n.º 3003/22.0T8PTM.E1 Tribunal Judicial Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Cível de Santarém – J4
* Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por “(…), SA” contra (…), ao ser proferida decisão que condenou o Réu como litigante de má fé, este veio interpor recurso.
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A sociedade Autora pediu que:
a) fosse declarada a única e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao 1.º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado Bloco A-3 e 4, sito em (…), Carvoeiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…), freguesia de Carvoeiro e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da União de Freguesias de Lagoa e Carvoeiro;
b) o Réu fosse condenado a:
i. Reconhecer e respeitar o direito de propriedade da Autora e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;
ii. A cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade da Autora sobre aquele prédio;
iii. A entregar de imediato o prédio à Autora, livre de pessoas e bens;
iv. A pagar à Autora indemnização pelos prejuízos patrimoniais causados pela sua conduta ilícita, em montante a designar pelo Tribunal.
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Por despacho datado de 30/04/2023, a Autora foi convidada a quantificar a pretensão indemnizatória que havia formulado. Por requerimento de 18/05/2023, a parte activa liquidou a quantia indemnizatória no montante de € 11.700,00 (onze mil setecentos euros), considerando o valor mensal médio de arrendamento de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
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Em sede de contestação, o Réu, defendeu-se por impugnação, contando outra versão dos factos, referindo ser titular de um contrato de arrendamento e aceitando que o cumpriu até 2019.
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Realizada a audiência final, o Tribunal a quo decidiu:
i) julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, declarar a Autora “(…), SA” proprietária da fracção autónoma identificada no artigo 1.º dos factos provados, mais se condenando o Réu (…) a reconhecer o direito ora declarado e a abster-se da prática de quaisquer actos ofensivos e violadores daquele direito de propriedade, absolvendo-o do demais peticionado.
ii) julgar procedente o pedido de condenação do Réu (…) como litigante de má-fé, condenando-o em multa processual de 2 UC´s e em indemnização a fixar, após audição das partes para esse efeito.
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A Autora veio então reclamar o valor total de € 42.891,66 (quarenta e dois mil e oitocentos e noventa e um euros e sessenta e seis cêntimos): € 5.950,46 (cinco mil e novecentos e cinquenta euros e quarenta e seis cêntimos), correspondente à totalidade do montante de honorários pagos à sua mandatária; € 541,20 (quinhentos e quarenta e um euros e vinte cêntimos) por si suportados nos últimos quatro anos a título de despesas de transporte dos seus representantes ao imóvel e € 36.400,00 (trinta e seis mil e quatrocentos euros) por se ter visto privada de arrendar o imóvel do qual é proprietária (56 meses ao valor de € 650,00/mês).
Apresentou como meio de prova facturas e um relatório de estimativa de preço do imóvel.
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O Réu pronunciou-se, dizendo que não aceitava a atribuição de qualquer montante indemnizatório à Autora.
Quanto ao primeiro valor reclamado pela Autora, o Réu afirmou que a utilização do processo foi uma decisão daquela que em nada foi influenciada pelo desconhecimento da existência do contrato de arrendamento, na medida em que este apenas seria relevante para definir os termos e a modalidade da acção e que o valor apresentado se revela elevado.
No que concerne ao segundo valor reclamado pela Autora, a parte passiva adiantou que não há qualquer comprovativo de que se tratam de despesas relacionadas com o caso em apreço.
Relativamente ao terceiro valor reclamado pela Autora, o Réu avançou que a sentença decidiu julgar improcedente o pedido indemnizatório formulado na petição inicial baseado na ocupação ilícita e ilegítima pelo Réu da fracção e, bem assim, que se trata do valor locativo actual e que o mesmo não tem em conta a evolução das rendas nos últimos anos.
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Após tecer considerações gerais sobre a litigância de má fé, convocando argumentos jurisprudenciais, a Meritíssima Juíza de Direito optou pela aplicação de uma indemnização simples, em detrimento da agravada, em função do grau de culpa do Réu, referindo que «o facto de o Réu no processo ter faltado à verdade não foi consequência direta ou sequer indireta de a Autora não ter logrado obter rendimentos com o arrendamento do imóvel».
Também afastou o pagamento das despesas de transporte, porquanto o valor alegadamente suportado «não é decorrente da má-fé processual do Réu, não se podem confundir com danos que a conduta deste antes da propositura da ação tenha eventualmente causado àquela».
Na dimensão da satisfação dos honorários forenses reclamados, fazendo uso da regra inscrita no artigo 105.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Tribunal a quo realçou que se estava perante um quadro de falta de discriminação da nota apresentada e formulou posição no sentido que os autos «não se revelam de natureza complexa, e por outro lado, considerando a celeridade que foi impressa aos mesmos», ese afigurava «desproporcional o valor dos honorários peticionados».
Na avaliação concreta do dano causado, a decisão está assim fundamentada «compulsados os autos, os mesmos demonstram que a ilustre mandatária da lesada, no essencial, elaborou a petição inicial, apresentou requerimentos avulsos tendentes à fixação do valor da causa, interveio na audiência prévia e na audiência de julgamento e pronunciou-se, em requerimento, sobre o montante da indemnização por litigância de má-fé. Portanto, é evidente que os honorários não são modestos, e apesar de se desconhecer o tempo despendido (o que não foi alegado), atento o valor peticionado o valor/hora de trabalho seria considerável. A dúvida, porém, se será ou não exagerado o montante dos honorários peticionados poderá ser resolvida com a solicitação de um laudo de honorários à Ordem dos Advogados, o que no caso sempre se afiguraria dilatório (e dispendioso) porque não alegados fatores importantes para a sua emissão. Acresce que a quantia devida a título de honorários pela parte com direito a indemnização de má-fé pode sempre ser reduzida, ao abrigo do prudente arbítrio, pelo juiz. Daí que, ponderando, por um lado, esses fatores (na medida em que a consulta do processo os permite alcançar), considerando, por outro, o montante da indemnização pedida anteriormente pela Autora, e, sopesando, por fim, os valores resultantes da Tabela de Honorários para a Proteção Jurídica devidos em situações idênticas como a dos presentes (que não são vinculativos mas, pelo menos, orientadores) condeno o Réu no pagamento à Autora da quantia de € 1.000,00, a título de indemnização».
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:
«1 – Do confronto entre o teor da contestação e das declarações do R. quanto aos factos que respeitam às als. b), d), e), f), g) e h) além de não resultar qualquer discrepância, tendo o R. afirmado na sua essencialidade o anteriormente alegado na contestação, deveriam os mesmos ter sido dados por provados e ainda o facto constante na al. c) nos seguintes termos “Do contacto estabelecido com (…), o Réu teve a confirmação de que o imóvel referido em 1 teria sido vendido”, uma vez que não foram sequer impugnados pela A. no requerimento de resposta à contestação nem foram infirmados por qualquer outra prova relativamente aos mesmos produzida.
2 – Não existe divergência entre o alegado na contestação e o teor das declarações do R. quanto ao facto de este ter recepcionado uma carta referida em 17º da contestação.
3 – Ao contrário do estatuído na sentença, são plausíveis as declarações do R. e bem assim o alegado na contestação no que respeita ao facto do R. ter ficado a aguardar as indicações do Banco (…) no que se refere ao pagamento da renda, indicações essas que nunca ocorreram na medida em que posteriormente o Banco (…) foi integrado no (…) e o imóvel acabou por ser vendido à A. cabendo a outros que não o Banco (…) tomar as decisões atinentes ao imóvel em causa.
4 – Relativamente ao facto n.º 6, o mesmo deveria ter sido tido por não provado já que tal resulta directamente do teor do depoimento da testemunha (…), sendo que para este facto o depoimento da testemunha (…) se afigura irrelevante na medida em que esta apenas teve conhecimento da situação em data muito posterior à ocorrência desse facto.
5 – Quanto aos factos n.º(s) 7º a 12º e 15º deveriam ter sido dados como não provados na medida em que tratou-se de depoimentos indirectos por parte de ambas as testemunhas (…) e (…), porquanto os mesmos não presenciaram qualquer dos factos que relataram, limitando-se a descrever o procedimento abstracto e geral adoptado pela empresa para a qual trabalham para situações como a dos autos.
6 – Poder-se-á evocar o princípio da livre apreciação da prova, todavia quando confrontados com sucessivas conclusões insertas na sentença, à margem das declarações e depoimentos prestados pelo R. e pelas testemunhas, tendentes a descredibilizar uma das partes do litígio, parece-nos difícil o enquadramento em tal princípio.
7 – Sem prejuízo da incorrecta valoração dos elementos de prova, conforme acima mencionado, é certo que relativamente às questões atinentes ao cumprimento do contrato de arrendamento por parte do Réu até ao ano de 2019 e bem assim à natureza dos contactos estabelecidos com o Réu por parte da A., não resulta da sentença que a posição assumida pelo R. o possa qualificar como litigante de má fé.
8 – Já quanto às questões relativas à apresentação do contrato de arrendamento e saber se a A, diligenciou pela solução extrajudicial da situação, considera o tribunal a quo que a posição assumida pelo R. preenche os pressupostos legais da litigância de má fé, na medida em que não podia ignorar que alguns dos factos que alegou não correspondiam à verdade pelo que terá deduzido consciente e deliberadamente oposição inverídica, em desrespeito pelo Tribunal e ao seu antagonista no processo.
O que não se concede,
9 – Conforme já referido e devidamente comprovado inexistem divergências de fundo entre o alegado pelo R. na contestação e o teor das suas declarações, passíveis de poderem ser consideradas como alterações conscientes da verdade dos factos, uma vez que transversalmente as alegações e as declarações do R. coincidem.
10 – A responsabilidade por litigância de má fé, está sempre associada a verificação de um puro ilícito processual e não a posições jurídicas substantivas a que o litigante possa igualmente dar lugar com o seu comportamento, ilícito que no caso vertente não ocorreu.
11 – O que nos leva à questão de saber se no quadro circunstancial dos autos estaria o R. obrigado a apresentar o contrato de arrendamento a todos os que o contactaram, independentemente das dúvidas que esses contactos terão suscitado, designadamente quanto à identificação de quem os contactou e aos propósitos desse contacto.
12 – Devendo, no entanto, salientar-se que o R. apresentou o contrato de arrendamento a quem se identificou correctamente e com quem discutiu o contrato de arrendamento e os termos do pagamento da renda uma vez que esses não lhe suscitaram qualquer dúvida relativamente às suas pretensões.
13 – O que traduz a colaboração do R. tendente a regularizar e actualizar o arrendamento em curso, devido à venda do imóvel.
14 – A A. e o tribunal, na sentença proferida, fazem recair sobre o R. toda a responsabilidade de acção tendente à descoberta dos sucessivos proprietários do imóvel e perante cada um deles, submeter-se às suas pretensões, incondicionalmente, mesmo que isso possa significar a desprotecção dos seus interesses enquanto arrendatário.
15 – Quando, no entender do recorrente, essas obrigações cabem sobretudo à A., que deveria ter pugnado pela obtenção de uma informação precisa e detalhada relativa ao imóvel que pretendia adquirir e se não o fez, por motivos que ao R são completamente alheios, não poderá querer transferir essa responsabilidade para quem não deu causa a tais omissões.
16 – O R. é claramente a parte a quem a venda do imóvel mais prejudica, na medida em que esta venda potencia a possibilidade de ocorrer a alteração dos termos em que o contrato se firmou e até mesmo a sua cessação.
17 – Pelo que, a acção do R. tendente à protecção dos seus interesses no contrato, na qual se inclui a eventual recusa perante o que lhe foi proposto pela A. ou até mesmo a escolha dos meios judiciais como forma de dirimir o conflito, não podem enquadrar-se no âmbito da litigância de má fé.
18 – A espera de 3 anos por parte da A. para interpor a acção judicial foi uma escolha sua, à qual o R. totalmente alheio.
19 – A sentença afirma que o R. não apresentou o contrato de arrendamento à A. com receio da sua denúncia, o que não corresponde à verdade, na medida em que o contrato de arrendamento foi apresentado na contestação, em 6 de Janeiro de 2023 e a A., ao invés de o ter denunciado de imediato, como se suporia, optou por não reconhecer a sua validade, não o tendo denunciado.
20 – De onde facilmente se depreende que, perante a recusa de reconhecer a validade do contrato de arrendamento, não restaria outra opção às partes, A. e também R., senão a utilização dos meios judiciais, leia-se o processo para resolver o litígio.
21 – O que comprova que, independentemente do momento da apresentação do contrato de arrendamento por parte do R à A. a via judicial seria sempre a opção da A..
22 – Atento o que antecede, não se verificando qualquer ilícito processual, não tendo deduzido oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, não tendo omitido gravemente os deveres de cooperação e de boa-fé processual, nem tendo feito do processo um uso manifestamente reprovável com vista a retardar a ação da justiça, não se encontram preenchidos os requisitos legais da litigância de má fé, pugnando-se pela absolvição do R..
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exªs. doutamente suprirão, deve a sentença ora recorrida ser revogada, no sentido da improcedência dos pedidos de litigância de má fé formulado pela Autora,
Assim se fazendo Justiça».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro na aplicação da disciplina da litigância de má-fé.
* III – Da matéria com interesse para a justa decisão do incidente:
Com relevo para a decisão do incidente de má fé, o Tribunal tomou em consideração os seguintes pontos:
I. De facto, ficou, por um lado, por provar que o Réu cumpriu o contrato de arrendamento até 2019 e, por outro lado, provou-se que a propriedade da fracção já não estava nesta data registada a favor de … (e de outros contitulares). No entanto, aquela não prova deveu-se, conforme se exarou supra, à fragilidade da prova apresentada, por o Réu não ter logrado através das suas declarações convencer da veracidade daqueles factos. Ora, cabia ao Réu escolher a prova que considerava relevante para a prova do cumprimento do contrato até àquela data e juntar a mesma aos autos e sendo a mesma insuficiente, o Réu sofrerá consequência dessa insuficiência (não prova de um facto que lhe era favorável). No entanto, tal não significa que este tenha, de forma dolosa ou com negligência grave, alterado a verdade dos factos ou tenha omitido a existência de prova relevante para o apuramento dessa verdade.
II. Efetivamente, ficou por provar que o Réu foi contactado informalmente por indivíduos que afirmavam trabalhar para empresas que tinham interesses directos no imóvel, e, bem assim, ficou por provar que estes indivíduos se recusaram a apresentar o comprovativo da sua condição laboral. Tal ocorreu, uma vez mais, devido à fragilidade da prova apresentada pelo Réu e por ter merecido maior credibilidade a prova apresentada pela Autora. No entanto, não basta apenas que o Réu não tenha logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento para que se possa concluir que com dolo ou negligência grave, alterou a verdade de factos relevantes para a decisão da causa. Até porque a não prova ou prova destes factos não teria influência no desfecho da presente acção. Acresce que, contrariamente, ao sustentado pela Autora não recaia sobre o Réu a obrigação de solicitar àquelas pessoas comprovativo dos poderes de representação de que eram titulares, assim como também não estava obrigado a indagar quem era o proprietário da fracção.
III. Ficou provado, por um lado, que até à data da propositura da ação, o Réu não apresentou cópia do contrato de arrendamento do qual alegava ser titular, e por outro lado, ficou não provado que o Réu informou as duas pessoas que afirmaram serem funcionários do Banco (…), S.A. que residia na casa na qualidade de arrendatário, tendo-lhes fornecido cópia do contrato de arrendamento.
* IV – Fundamentação:
O processo é, hoje em dia, entendido como um conjunto de regras e de comandos normativos – destinados a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça – que acompanham a vida de uma acção em Tribunal, desde que ela é instaurada até ser proferida a decisão que lhe ponha termo[1].
E a litigância de má-fé configura uma entropia processual indesejada que pode condicionar o regular exercício da actividade jurisdicional.
A decisão condenatória proferida nos autos justifica a condenação de litigância de má-fé com o recurso à seguinte argumentação: «se houvesse o Réu mostrado o contrato de arrendamento a presente ação não teria, previsivelmente, sido proposta pela Autora ou tê-lo-ia sido noutros termos. Ora, neste particular, não se pode apenas afirmar que se tratou de uma debilidade da prova apresentada, pois o que aconteceu foi que o Réu alterou conscientemente a verdade dos factos, baralhando na sua contestação o Tribunal (v. artigos 9.º e 20.º) e afirmando em audiência uma versão (de que mostrou o contrato) que veio a ser infirmada por outra prova. Por outro lado, e diferentemente daquilo que o Réu quis transparecer para o Tribunal, e que veio a mostrar-se não ser verdadeiro, a Autora diligenciou pela resolução extrajudicial da situação. Na verdade, a sua versão não veio também neste particular a merecer acolhimento, sendo também ela infirmada por outra prova (note-se, por exemplo que o Réu assumiu na sua contestação ter recebido uma carta por parte da Autora e depois em audiência negou que tal tivesse sucedido). Com a sua atitude, o Réu obrigou a Autora a socorrer-se do processo e, consequentemente, obrigou ao dispêndio de meios pelo Tribunal. Ora, o Réu não podia ignorar que alguns dos factos que alegou não correspondiam à verdade, pelo que deduziu consciente e deliberadamente oposição inverídica, em desrespeito ao Tribunal e ao seu antagonista no processo».
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A propósito da litigância de má fé pronunciam-se entre outros Vaz Serra[2], Paulo Cunha[3], Hernâni Lencastre[4], José Alberto dos Reis[5][6], João de Castro Mendes[7], António Menezes Cordeiro[8][9], Miguel Teixeira de Sousa[10], José Lebre de Freitas[11] e Isabel Alexandre[12], Paula Costa e Silva[13][14], Fernando Cunha Sá[15], Abrantes Geraldes[16], Pedro de Albuquerque[17], Maria Olinda Garcia[18], Augusto Penha Gonçalves[19], Luso Soares[20], António Júlio Cunha[21], Fernando Pereira Rodrigues[22], Cecília Sousa Ribeiro[23], Marta Frias Borges[24] e Fredie Didier Júnior[25], bem como outros tratadistas como Planiol[26], Francesco Carnelutti[27], Piero Calamandrei[28] ou Michele Taruffo[29][30][31].
Como diz Planiol[32] o direito cessa onde começa o abuso.
Menezes Cordeiro salienta que «o acto abusivo só formalmente pode parecer como praticado no âmbito do direito: uma vez que extravasa o sentido axiologicamente fixado para o direito em causa, é um acto “extradireito”, logo ilegítimo»[33].
Face ao postulado normativo do artigo 542.º do Código de Processo Civil, «diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
No Código de Processo Civil de 1967, era pacífico que só quem agisse com dolo poderia ser condenado como litigante de má fé, não se sancionando a lide temerária, entendida como a litigância violadora com culpa grave ou erro grosseiro das regras de conduta conformes com a boa fé.
Todavia, atentas as alterações introduzidas ao artigo 456.º do Código de Processo Civil, operadas pelos Decreto-Lei n.ºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, deve entender-se que a punição como litigante de má fé abrange quer as condutas dolosas, quer as condutas gravemente negligentes, numa patente tentativa de maior responsabilização das partes. Esta disciplina mantém exactamente os mesmos traços no Novo Código de Processo Civil.
A inobservância desses deveres (transparência, lealdade, informação, protecção e confiança) pode acarretar, entre outras consequências, sanções processuais de tipo repressivo.
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O Réu pretende reverter alguma da factualidade dada como provada na sentença, mas a referida decisão transitou em julgado relativamente à matéria relacionada com os pedidos ali formulados e os autos prosseguiram apenas para a avaliação da questão da indemnização, mostrando-se consolidada a matéria de facto apurada e tornando-se assim inviável reapreciar a sobredita matéria.
Efectivamente, como afiança Lopes do Rego, o recurso que se interponha limita, obviamente, os seus efeitos à decisão de condenação como litigante de má fé, não impedindo o trânsito em julgado nem a eventual exequibilidade da decisão de mérito que haja sido proferida[34][35].
Pelas contingências descritas na acção, a Autora desconhecia a que título o Réu utilizava o imóvel em discussão e este recusou-se a prestar qualquer esclarecimento, motivando assim a propositura do presente procedimento.
Na verdade, tal como ressalta da sentença proferida nos autos, quanto ao uso do locado pelo Réu foi dito que «não existem elementos suficientes nos factos provados que nos permitam pronunciar-nos sobre a legitimidade negocial de (…) para prestar de arrendamento ao Réu a referida fração e nem essa legitimidade foi colocada em causa pela Autora (a Autora apenas referiu desconhecer se aquela era proprietária do imóvel antes da data do registo). E, por outro lado, uma eventual ineficácia do contrato nem se colocaria em relação à Autora, que apenas adquiriu a fração a 01/07/2019. Resta, pois, concluir que o contrato permanece válido na ordem jurídica e é eficaz relativamente à Autora».
Abrantes Geraldes opina que «a lei não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta», mas, outro tanto, «o processo não pode ser visto como um simples meio de eliminar as pretensões da contraparte, onde tudo valha, desde os ataques surpresa, aos comportamentos capciosos, às manobras de contra-informação, ao desgaste psicológico, à instrumentalização de meios postos ao serviço de todos, às condutas leais, às meras tácticas destinadas a vencer pela fadiga»[36].
Também a jurisprudência mais ilustrativa advoga que «não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém a certeza das verdades reveladas»[37].
Na presente hipótese não se está perante uma simples de situação de decaimento do ónus da prova, antes todo o problema resulta de um comportamento ante-processual em que o Réu se recusou a exibir o título da utilização do imóvel.
A situação detalhada nos autos incorpora, assim, no mínimo, uma negligência grosseira, por parte do Réu quando motiva o accionamento do aparelho de justiça quando tal era evitável nos termos em que foi gizada a acção, caso existisse um comportamento de lealdade e de cooperação que era exigível em função da cláusula geral da boa fé.
Existe uma conduta se inscreve no quadro do abuso de direito. Efectivamente, a atitude processual do requerido de não apresentação do contrato de arrendamento foi instrumental à necessidade de propositura da acção, impondo, por isso, que a sociedade Autora tivesse proposto uma acção de reivindicação. Por ter a qualidade de arrendatário, ao não estar a cumprir com a obrigação de pagamento de rendas, caso se apercebesse de tal relação contratual, a parte activa teria optado por uma acção de despejo. E isso evitaria a propositura da acção real e quiçá a duplicação de procedimentos jurisdicionais.
O recorrente alega que o contrato de arrendamento foi apresentado na contestação (em 06/01/2023), dizendo que a Autora, ao invés de o ter denunciado de imediato, como se suporia, optou por não reconhecer a sua validade.
Porém, àquele momento, face à natureza e à estrutura da acção, tendo presente o pedido e a causa de pedir invocadas pela sociedade Autora, tal não se afigurava processualmente admissível. Tal como resulta da interpretação n.º 6 do artigo 265.º[38] do Código de Processo Civil, porquanto não é permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir quando tal implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, o que era o caso.
Como afiança Abrantes Geraldes a possibilidade de modificação simultânea do pedido e da causa de pedir «enfrenta agora graves dificuldades em face do novo regime, que é mais restritivo, de modo que a sua aplicação se circunscreve naturalmente aos casos em que exista acordo das partes, nos termos do artigo 264.º»[39].
A transmutação de uma reivindicação num despejo não se tornava possível, uma vez que o novo pedido não se reportava a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira[40][41]. Num juízo de prognose póstuma não se vislumbra que os factos constitutivos das normas invocadas quando ao pedido inicial fossem comuns ao pedido ampliado ou inovatório[42]. E esse acordo não ocorreu.
Não assiste qualquer outro argumento recursivo com a idoneidade de infirmar a decisão recorrida. Deste modo, assiste razão ao Tribunal recorrido quando condenou o Réu como litigante de má fé e na medida em que o fez, julgando-se assim improcedente o recurso interposto.
* V – Sumário: (…)
* VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão de condenação como litigante de má-fé.
Custas a cargo do recorrente, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 11/07/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Eduarda Branquinho
Maria Domingas Simões
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[1] António Montalvão Machado e Paulo Pimenta, O Novo Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, pág. 11.
[2] Vaz Serra, Em Abuso do Direito (Em matéria de responsabilidade civil), in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85, Abril, 1959.
[3] Paulo Cunha, Simulação Processual e Anulação do Caso Julgado, Minerva, Lisboa, 1935.
[4] Hernâni Lencastre, Indemnização por má fé, in Scientia Ivridica, 1961, 474-476.
[5] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1946.
[6] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volumes. II e V, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2012.
[7] João de Castro Mendes, O Direito de Acção Judicial: Estudo de Processo Civil, in «Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa», Suplemento, 1957.
[8] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 4ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2011.
[9] Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª edição, aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2014.
[10] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2ª edição, Lex, Lisboa, 2000.
[11] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2013.
[12] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017.
[13] Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008.
[14] Paula Costa e Silva, O abuso do direito de acção e o artigo 22.º do CIRE, in «Direito e Justiça», Vol. III, 2011.
[15] Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2005.
[16] António Santos Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1998.
[17] Pedro de Albuquerque, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em virtude de Actos praticados no Processo, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2006, Ano 66, Vol. II, Set. 2006.
[18] Maria Olinda Garcia, A Responsabilidade do Exequente e de Outros Intervenientes Processuais – Breves Considerações, Coimbra Editora, Coimbra, 2004.
[19] Augusto da Penha Gonçalves, O Abuso do Direito, in Revista ad Ordem dos Advogados, Vol. II, 1981.
[20] Fernando Luso Soares, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina, Coimbra, 1987.
[21] António Júlio Cunha, A Propósito da Responsabilidade Processual, in «Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Dr. António Motta Veiga», Almedina, Coimbra, 2007.
[22] Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil – Os Princípios Estruturantes, Almedina, Coimbra, 2013.
[23] Cecília da Silva de Sousa Ribeiro, Do dolo em geral e do dolo instrumental em especial no Processo Civil, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 3 e 4, 1949.
[24] Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Coimbra, 2014.
[25] Fredie Didier Júnior, Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil Português, Coimbra Editora, 2010.
[26] Traité Élémentaire de Droit Civil, 3ª edição, 1903.
[27] Francesco Carnelutti, Contro il processo fraudolento, in RDPC., Parte II, 1926.
[28] Piero Calamandrei, Il Processo come giuoco, in RDProc., Parte I, 1950.
[29] Michele Taruffo, Elementos para una definición de «Abuso del Processo», in «Páginas sobre Justicia Civil», Marcial Pons, 2009.
[30] Michele Taruffo, Abuso dos direitos processuais: padrões comparativos de lealdade processual (relatório geral), in «Revista de Processo», n.º 177, Ano 34, novembro, 2009.
[31] Michele Taruffo, L’abuso del processo: profili generali, in RTDPC, n.º 1, 2012.
[32] Traité Élémentaire de Droit Civil, 3ª Edição, 1903, pág. 284.
[33] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex Edições Jurídicas, Lisboa, 1993, pág. 414.
[34] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2004, em anotação ao então artigo 456.º, IV.
[35] Esta posição é partilhada com José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 461.
[36] Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 305.
[37] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2003, in www.dgsi.pt.
[38] Artigo 265.º (Alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo):
1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.
2 - O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
3 - Se a modificação do pedido for feita na audiência final, fica a constar da ata respetiva.
4 - O pedido de aplicação de sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do n.º 1 do artigo 829.º-A do Código Civil, pode ser deduzido nos termos do n.º 2.
5 - Nas ações de indemnização fundadas em responsabilidade civil, pode o autor requerer, até ao encerramento da audiência final em 1.ª instância, a condenação do réu nos termos previstos no artigo 567.º do Código Civil, mesmo que inicialmente tenha pedido a condenação daquele em quantia certa.
6 - É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.
[39] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 333.
[40] José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra editora, Coimbra, 2013, n.º II.10.2.4.C.
[41] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3,ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 515.
[42] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/01/2021, visitável em www.dgsi.pt.