EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
AUDIÊNCIA DE PARTE
VIOLAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES IMPOSTAS
Sumário

I - A audição do devedor para efeitos da decisão final da exoneração tem por objecto a contradita sobre a eventual violação de alguma das obrigações que lhe resultam durante o período da cessão e não a contradita sobre âmbito e conteúdo de tais obrigações.
II – Deve ser recusada a exoneração se, mostrando-se o devedor obrigado a entregar à fidúcia, ao longo dos três anos de cessão, a quantia de € 49.495,47, não afectou qualquer rendimento às dívidas pendentes de pagamento, por considerar “injusta” a decisão que lhe fixou o rendimento indisponível em um salário mínimo acrescido de ½.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

368/20.2T8EVR.E1

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Nos autos de insolvência de pessoa singular, em é insolvente (…), decorrido o período de cessão do rendimento disponível do devedor e não tendo havido lugar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante liminarmente admitida, ouvidos o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, foi proferido despacho assim concluído:
Em face do exposto, e ao abrigo das citadas disposições legais, recuso a exoneração do passivo restante do insolvente.”

2. O Insolvente recorre deste despacho, motiva o recurso e conclui:
“a) Recorre-se do Despacho de 24.04.2024, proferido no âmbito do processo de insolvência referido supra, que determinou a recusa do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo apelante.
b) A decisão de que ora se recorre, não pode merecer como não merece a concordância do Insolvente, uma vez que se afasta claramente do cumprimento da Lei e da realização da Justiça, como melhor se demonstrará.
c) A decisão recorrida não fez a correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente dos artigos 239.º, 243.º e 244.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas – CIRE.
d) A decisão em crise fundamenta e conclui pela recusa do pedido de exoneração do passivo restante, considerando entre outros, que “o devedor deveria ter adaptado os seus gastos mensais, de acordo com a situação em que se encontrava, e aos deveres a que obrigou no decorrer do período da fidúcia”.
e) Ora, certo é que o apelante se adequou os seus gastos à sua atual condição de insolvente, no entanto o Douto Tribunal parece continuar a irrelevar e desconsiderar que as despesas suportadas em Portugal não são equivalentes às suportadas na Alemanha.
f) O insolvente ora Apelante, não pretendeu fazer uma vida de luxos desconsiderando as suas obrigações durante o período de cessão, apenas não conseguiu viver uma vida minimamente condigna na Alemanha com os valores que lhe foram atribuídos pelo Tribunal de 1ª instancia.
g) É que em bom rigor, o insolvente tentou sempre manter uma ligação próxima com o Tribunal e com o Sr Fiduciário, cumpriu sempre com os seus deveres, pois informou sempre dos seus rendimentos, da sua nova morada e do respetivo custo de arrendamento, das despesas suportadas com as suas filhas, etc….
h) É manifesto que o despacho de que ora se recorre, no que respeita a este ponto fez uma apreciação deficiente da matéria em causa, pois que o insolvente manteve sempre uma postura presente e disponível para colaborar com o processo, mormente no que tange ao dever de comunicação com o Fiduciário.
i) Enferma ainda o despacho de que ora se recorre, de manifesto erro na apreciação da prova quando conclui que não pode deixar de concluir-se por uma atuação, no mínimo¸ gravemente negligente, violadora das obrigações que lhes foram impostas e, dessa forma, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
j) Não apenas porque só o incumprimento reiterado, injustificado, culposo e grave, é que pode e deve acarretar a recusa da exoneração do passivo restante – cfr. artigo 243.º do CIRE.
k) A recusa de concessão a final da exoneração ocorre quando se verifique uma das seguintes situações: logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – artigo 243.º, n.º 4, do CIRE; sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
l) No entanto, a verificação da violação da condição prevista no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE – entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão – só por si não implica automaticamente o preenchimento do requisito constante do n.º 1, a), do artigo 243.º do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
m) Considerando o apelante que o despacho de que ora se recorre violou as disposições conjugadas dos artigos 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
n) Mesmo existindo violação dos deveres do insolvente, nomeadamente o dever de entregar ao fiduciário o rendimento disponível e que desta violação pudesse resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que a lei não se contenta, com a mera negligência: exige o dolo ou negligência grave.
o) E a situação factual descrita nos autos não demonstra qualquer atuação dolosa por parte do insolvente, que por diversas vezes se dirigiu aos autos demonstrando as suas despesas e solicitando repetidamente a adequação do valor fixado à sua realidade de vida num país estrangeiro, pelo que andou mal o Douto Tribunal ao decidir como decidiu.
p) Acresce ainda que, mais que actuar dolosa ou negligente importa existir um prejuízo para a satisfação dos créditos.
q) Nos autos inexistem elementos que resultem na demonstração directa de qualquer prejuízo para os credores, razão pela qual pugna o Apelante que em relação a este requisito, existiu também erro e insuficiência na apreciação da matéria de facto – requisito fundamental para decidir pela cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
r) Em bom rigor, o prejuízo para a satisfação dos credores deveria ser demonstrado de forma objetiva no despacho de que ora se recorre, e tal não se verifica.
s) A lei não faz depender a cessação antecipada ou a recusa de concessão da exoneração, unicamente da conduta do Insolvente exigindo, cumulativamente, que do incumprimento resulte prejuízo relevante para os credores.
t) Um prejuízo/dano que tem que ser relevante o que não é o caso pois atendendo ao montante da quantia não entregue e o valor global dos créditos sobre a insolvência, e a qualidade dos credores afectados não podemos considerar existir um “prejuízo relevante”.
u) E, não sendo o prejuízo causado pela conduta do Insolvente relevante, não se pode considerar preenchido o normativo legal.
v) Em momento algum a decisão enuncia factos que permitam concluir pela existência de dolo ou negligência grave, o prejuízo dos credores e respectivo nexo causal, tal como é exigido para fundamentar um despacho de cessação antecipada de exoneração do passivo restante.
w) Em suma, o despacho de que se recorre, para além de falta de fundamentação no que tange a uma atuação dolosa ou meramente negligente dos insolvente e consequente prejuízo dos credores, enferma acima de tudo de falta de justiça e adequação ao caso concreto.
x) Ao decidir como decidiu, o despacho em crise violou e fez uma errada interpretação e aplicação do art.º 243.º do CIRE, devendo ser julgado procedente o presente recurso e substituído o despacho recorrido por outro que conceda a exoneração do passivo restante tal como peticionado.
y) Separando devidamente o que são as condutas dolosas e negligentes daquelas que decorrem da vida e dificuldades diárias e que são, em tempo, comunicadas aos intervenientes processuais.
Termos em que, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve ser revogado o despacho.”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões nele incluídas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos, que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se não se verifica motivo de recusa da exoneração.

III- Fundamentação
1- Factos
Os factos que fundamentam a decisão recorrida são os seguintes:
1. Por decisão proferida em 18-05-2020, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante deduzido e determinado, entre o mais, que o devedor deveria ceder, durante o período de 5 anos subsequente ao encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que excedesse o valor de um salário mínimo nacional acrescido de 1/2.
2. Em 18-05-2020 foi determinado o encerramento do processo de insolvência.
3. Em 29-09-2023, o senhor Fiduciário veio apresentar informação relativa ao 3.º ano do período de cessão, nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, informando que o devedor não entregou a totalidade do rendimento disponível, encontrando-se em dívida o valor de 49.495,47 Euros.
4. Mais informou o senhor Fiduciário que no decorrer do período de cessão, o Requerido não cedeu qualquer valor à fidúcia.
5. Por despacho proferido em 31-10-2023, foi determinada a notificação do devedor insolvente para, no prazo de 10 dias, comprovar o cumprimento das obrigações decorrentes do deferimento inicial da exoneração do passivo restante, designadamente a cedência do rendimento disponível aludido pelo senhor Fiduciário, conforme decorre do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE, sob pena de recusa da exoneração (cfr. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), e 244.º, ambos do CIRE).
6. Por requerimento de 16-11-2023, o devedor veio requerer prazo até ao dia 2 Dezembro, para o insolvente depositar o valor em falta na conta da fidúcia.
7. Em face do requerido, por despacho proferido em 20-11-2023, o Tribunal concedeu ao insolvente o prazo impreterível de 10 dias para comprovar o cumprimento das obrigações decorrentes do deferimento inicial da exoneração do passivo restante, designadamente a cedência do rendimento disponível aludido pelo senhor Fiduciário, conforme decorre do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE, sob pena de recusa da exoneração (cfr. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), e 244.º, ambos do CIRE).
8. O insolvente não veio a depositar a quantia em dívida à fidúcia e, por requerimento de 27-12-2023, veio requerer que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, embora não tenha efectuado cessão de rendimentos durante os 3 anos do período de cessão, invocando não o ter feito por não lhe sobrarem mensalmente valores suficientes após suportar as suas despesas mensais.
9. Nessa sequência, por requerimento de 29-12-2023, a credora (…), Advogados, SP, RL, pugnou pela recusa a exoneração do passivo restante do Insolvente.
10. Por despacho de 26-02-2024, foi determinada a notificação do senhor Administrador de Insolvência, do devedor e dos credores (à excepção da credora (…), Advogados, SP, RL, uma vez que, a mesma já se havia pronunciado), para se pronunciarem nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE.
11. Por requerimento de 01-03-2024, a credora (…) Lx, SARL, pugnou pela recusa a exoneração do passivo restante do Insolvente, atento o verificado incumprimento dos respectivos deveres.
12. Por requerimento de 07-03-2024, o senhor Fiduciário pronunciou-se no sentido da recusa da exoneração do passivo restante, uma vez que o devedor não cedeu qualquer valor à fidúcia.
13. Por requerimento de 12-03-2024, a credora (…) Portugal, Unipessoal, Lda., também pugnou pela recusa a exoneração do passivo restante do Insolvente, atento o verificado incumprimento das obrigações do devedor.

2. Direito
2.1. Se não se verifica motivo de recusa da exoneração
A decisão recorrida recusou a exoneração final do passivo restante do Devedor considerando, em essência, o seguinte: - “o devedor não cumpriu com a entrega dos valores [€ 49.495,47] calculados como sendo devidos à fidúcia”; -“instado pelo Tribunal para cumprir as obrigações (…) o devedor não o fez”; - “pelo menos, com grave negligência, violou as obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.
O Devedor, em vista da revogação da decisão recorrida, argumenta, no essencial que: - a decisão desconsidera que as despesas suportadas em Portugal não são equivalentes às suportadas na Alemanha [cls. e) e f)]; - cumpriu sempre com os seus deveres de informação junto da fidúcia [cls. f), g), h)]; - não agiu com dolo, nem com negligência [cls. i), j), l), n) e o)]; - inexistem nos autos elementos que permitam concluir por prejuízo relevante dos credores [cls. p) e q) a u)].
Decidindo.
A exoneração do passivo restante permite ao devedor pessoa singular, com as exceções previstas no n.º 2 do artigo 245.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção deste benefício “supõe (…) que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período (…) – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” [preâmbulo do D.L. n.º 53/2004, de 18/3].
Em harmonia com este desiderato e pondo de parte os casos de prorrogação do prazo da cessão e os casos de cessação antecipada da exoneração, decorrido o período de três anos da cessão, o juiz profere decisão final da exoneração, declarando-a ou recusando-a, conforme a avaliação que lhe mereça a actuação do devedor, ante a observância dos deveres para com os credores a que se encontra adstrito durante o período da cessão.
Por efeito da remissão do n.º 2 do artigo 244.º para o artigo 243.º do CIRE, constituem causa de recusa da exoneração:
- a violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações respeitantes à cessão do rendimento disponível, de resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência [artigo 243.º, n.º 1, alínea a)];
- a verificação de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, apenas conhecida pelo devedor após o despacho inicial ou de verificação superveniente [artigo 243.º, n.º 1, alínea b)];
- a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência [artigo 243.º, n.º 1, alínea c)];
- a omissão, sem motivo razoável, no prazo fixado, de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou a falta injustificada à audiência em que devia prestá-las, quando devidamente convocado, casos em que a exoneração é sempre recusada [artigo 243.º, n.º 3].
Interessa-nos, sobretudo, a primeira das referidas previsões, ou seja, os casos de recusa da exoneração com causa na violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações respeitantes à cessão do rendimento disponível, de que resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência [artigo 243.º, n.º 1, alínea a)], pois é ela que constitui, de direito, o fundamento da decisão recorrida.
Durante o período de cessão o devedor fica sujeito às obrigações previstas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE e, entre elas: a “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” [alínea c)].
A violação dolosa ou com grave negligência desta obrigação de entrega de rendimentos, com prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência constitui causa de recusa da exoneração; a lei basta-se com o prejuízo para a satisfação dos créditos não exigindo, ao invés do afirmado no recurso, um prejuízo relevante. O prejuízo de forma relevante da satisfação dos credores da insolvência é requisito da revogação da exoneração [cfr. artigo 246.º, n.º 1, do CIRE], figura jurídica distinta da recusa de exoneração é esta última, mais apropriadamente o despacho que a decretou que constitui objecto do recurso.
No caso, demonstra-se que o Devedor se mostrava obrigado a ceder à fidúcia o rendimento que excedesse o valor de um salário mínimo nacional acrescido de ½ e que, durante os três anos do período da cessão, o rendimento disponível, para estes efeitos, atingiu a quantia de € 49.495,47 e, apesar disto, o Devedor não entregou qualquer quantia ao Sr. Fiduciário [pontos de facto 1, 3 e 4, supra).
Acresce que antes de proferido o despacho de recusa da exoneração, ora impugnado, foi concedida ao Devedor a possibilidade de entregar à fidúcia o valor em divida, alertando-o expressamente para os efeitos do incumprimento da obrigação – “sob pena de recusa da exoneração” – o Devedor pediu prazo para efectuar o depósito e, apesar de lhe haver sido concedido novo prazo, o incumprimento manteve-se [pontos de facto 5 a 8, supra].
Assim, o prejuízo para os credores está demonstrado, por conjecturável uma diferença entre a situação (hipotética) que lhes resultaria do rateio da quantia de € 49.495,47, ao menos de uma parte dela [cfr. artigo 241.º, n.º 1, alínea d), do CIRE] e a situação (real) que lhes resulta de não haverem recebido nada.
A actuação dolosa mostra-se preenchida; preenchida no seu elemento intelectual, por ciente o Devedor – nem se afirma o contrário – da obrigação de entrega do rendimento, sua amplitude e conteúdo e preenchida no seu elemento volitivo, uma vez que é o próprio quem afirma não haver desconsiderado “as suas obrigações durante o período de cessão, apenas não conseguiu viver uma vida minimamente condigna na Alemanha com os valores que lhe foram atribuídos pelo Tribunal de 1ª instancia” [cls. e) e f)].
Chamando para aqui a lei penal o agente não deixa de actuar com dolo pelo facto de não ter intenção de praticar o facto (dolo directo), actua ainda com dolo se, apesar de não querer directamente o facto, o previu ou representou como consequência necessária da sua conduta [artigo 14.º, n.º 2, do Código Penal].
É o caso; o Devedor apesar de, segundo afirma, não pretender “desconsiderar as suas obrigações”, previu e representou a violação destas como consequência necessária da sua conduta; agiu, portanto, como dolo necessário.
O Devedor violou dolosamente a obrigação de entregar à fidúcia o rendimento mensal que excedesse o valor de um salário mínimo nacional acrescido de ½, durante os três anos do período de cessão, não se justificando, face à lei e aos olhos dos credores, a sua libertação das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
Foi assim que se decidiu em 1ª instância e face aos factos provados e às regras de direito enunciadas, não se vê melhor solução.
Em adverso, sustenta-se no recurso que a obrigação (cedência de rendimentos) fixada desconsiderou as concretas condições de vida do Devedor (não tomou em consideração o custo de vida na Alemanha país em que, alegadamente, se encontra) e que sendo a obrigação “injusta” o incumprimento mostra-se justificado.
A aceitar-se uma tal justificação estava aberta a porta para o incumprimento generalizado da obrigação de entrega de rendimentos com vista à exoneração do passivo restante, bastaria ao devedor reputá-la de desproporcionada ou injusta; conclusão despropositada que desacredita, como sempre, a bondade do raciocínio.
Um dos princípios que vigoram no processo civil é o denominado princípio da eventualidade ou preclusão sem o qual, já se escreveu, o processo seria caótico; significa, tal princípio, que há “ciclos rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques. Por isso os actos (maxime as alegações de factos ou de meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidas” [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 382].
O que vem a propósito para afirmar que não é este o espaço processual próprio para se discutir ou reapreciar o montante da obrigação de entrega de rendimentos do Devedor, isto é, qual o montante do seu rendimento mensal partir do qual a obrigação de cessão de rendimentos se verifica, esta obrigação foi fixada nos autos, por despacho de 18-05-2020 e o despacho mostra-se transitado em julgado; precludido se mostra, pois, o direito do Devedor ver alterada a obrigação de entrega, seja por excessiva no seu montante, seja por outra qualquer razão.
Em resultado, ao longo dos três anos do período de cessão, o Devedor não entregou à fidúcia os rendimentos tidos por disponíveis, os quais ascendem a € 49.495,47, aliás, durante o referido período, o Devedor não afectou qualquer rendimento às dívidas pendentes de pagamento e, nestas circunstâncias, a exoneração deve ser recusada.
Improcede o recurso, restando confirma a decisão recorrida.

3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Devedor/recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficie.

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 11/7/2024
Francisco Matos
Canelas Brás
Ana Margarida Leite