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CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE AUQUITECTURA
CLÁUSULA PENAL
JUROS
USURA
Sumário
I. Tendo as partes previsto, em contrato de prestação de serviços celebrado, que qualquer uma delas podia livremente desvincular-se, estabelecendo uma indemnização a pagar à contraparte - sendo a autora prestadora de serviços a exercer o seu direito a libertar-se do contrato, teria que restituir a prestação recebida; sendo o cliente, teria de pagar os serviços efectuados e metade do custo dos trabalhos que se encontrassem à data por executar -, tal cláusula tem a natureza penitencial ou de resgate, tendo uma ratio distinta da cláusula penal a que se reportam os artigos 810.º a 812.º do Código Civil. II. Não obstante, existindo afinidade entre o fim da cláusula penal em sentido estrito e a multa penitencial, não se vê razão para afastar a aplicação analógica do artigo 812.º do CC sempre que se revele um excesso que se imponha corrigir. III. Por força do artigo 559.ºA do CC ficam sujeitas aos limites estabelecidos para o mútuo no n.º 1 do artigo 1146.º do mesmo diploma legal os juros estabelecidos em negócios ou créditos análogos, maneira que, excedendo a taxa de juros os limites referidos, dá-se uma redução a esses máximos, independentemente da vontade dos contraentes (artigo 1146.º, n.º 3). (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 277/21.8T8SSB.E1[1] Comarca de Setúbal Sesimbra – Instância Local
I. Relatório
(…) Arquitectura, Lda., com sede na Rua da (…), n.º 18, R/C, em Vila Nogueira de Azeitão, intentou a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, contra (…), Société Civile, com sede em 127, (…), (…), França, e (…) e mulher, (…) , ambos residentes em (…), 81500 (…), França, pedindo a final a condenação solidária dos Réus no pagamento do montante global de € 22.590,80 (vinte e dois mil e quinhentos e noventa euros e oitenta cêntimos), acrescido de juros contados à taxa legal até integral pagamento, soma das quantias que alega serem-lhe devidas por serviços prestados e indemnização pela desistência, tudo no âmbito do contrato de prestação de serviços da sua especialidade celebrado com os demandados.
Citados os RR, apresentaram contestação conjunta na qual invocaram as excepções dilatórias da ininteligibilidade da petição inicial e ilegitimidade dos 2.ºs RR, bem como a nulidade do negócio celebrado, o qual não se mostra assinado por nenhum dos demandados, excepção de direito material que pretende ver apreciada.
Em sede de impugnação alegaram não ter ocorrido desistência da sua parte, mas antes incumprimento por banda da autora, que nunca conseguiu elaborar um projecto em conformidade com as indicações dos contestantes, designadamente quanto ao preço da construção da moradia a edificar.
Finalmente, alegaram serem as cláusulas penais introduzidas pela autora no acordo alegadamente celebrado manifestamente desproporcionadas, devendo as mesmas ser declaradas nulas por usurárias ou, no mínimo, reduzidas equitativamente.
Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a invocada nulidade de todo o processo, tendo-se considerando que estava antes em causa uma questão atinente ao mérito, e, bem assim, a excepção dilatória da ilegitimidade dos 2.ºs RR.
Prosseguiram os autos com fixação do objecto do litígio – “condenação solidária dos Réus a pagar à Autora a quantia de € 22.590,80 acrescida dos juros de mora legais até integral pagamento” – e enunciação dos temas da prova, peças não reclamadas.
Teve lugar audiência final, vindo a ser proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou solidariamente os RR a pagar à A. a quantia de € 5.770,00, acrescida dos juros de mora legais civis a contar da data da citação até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, apelou a autora e, tendo apresentado as suas alegações, numa prática comum, mas nem por isso menos censurável, veio a reproduzi-las quase integralmente nas conclusões que a final formulou e que se transcrevem:
“1. Em 06.07.2019 a autora e os réus celebraram um contrato de prestação de serviços, através do qual a autora se obrigou a prestar aos réus serviços de arquitectura e outros com estes relacionados com vista à construção de uma moradia sita no lote n.º (…) na Quinta do (…), em Sesimbra.
2. Em contrapartida pelos serviços prestados pela autora, os réus pagavam, a título de honorários, a quantia de € 30.560,00 (trinta mil e quinhentos e sessenta euros).
3. A pedido dos réus, o projecto inicial de arquitectura para construção da moradia foi sucessivamente alterado e revisto, o que obrigou a autora a trabalhar num novo projecto de arquitectura, com um desenho de moradia muito diferente do primeiro.
4. Projecto este, por sua vez várias vezes alterado, até à versão final concluída em 25.12.2020 e aceite pelos réus.
5. Este novo projecto de arquitectura implicou um acréscimo no valor dos honorários inicialmente estabelecidos, no montante global de € 4.270,00 (quatro mil e duzentos e setenta euros).
6. Os réus consideraram o custo da obra desta nova moradia muito cara e desistiram do projecto de arquitectura.
7. Por via da desistência do projecto de arquitectura, os réus não pagaram à autora a factura do novo projecto no montante de € 4.270,00. 8. Perante o incumprimento, a autora socorreu-se do contrato de prestação de serviços celebrado com os réus que previa uma sanção penal compulsória para a mora no pagamento da factura (cfr. cláusula 5.ª do contrato), bem como uma sanção penal indemnizatória para a desistência do contrato (cláusula 7.ª do contrato).
9. O douto Tribunal aquo considerou as referidas cláusulas 5.ª e 7.ª nulas, por usurárias.
Vejamos,
10. O contrato de prestação de serviços é um contrato atípico que se rege pelas disposições legais do mandato, com as necessárias adaptações, por força do disposto no artigo 1156.º do Código Civil (CC).
11. No mandato, qualquer das partes o pode revogar (1170.º, n.º 1, do CC) e, se for o caso, indemnizar a outra parte do prejuízo que esta sofrer, se assim tiver sido convencionado (conferir 1172.º, alínea a), do CC).
12. Incasu, os réus desistiram da construção da moradia por a construção ser cara e, por esse facto, desistiram do contrato de prestação de serviços de arquitectura.
13. Refira-se que os primeiros réus, a sociedade (…), com sede em França, é uma construtora de moradias (conferir a documentação estatutária junta pelos réus como documento n.º 3) e, por isso, perfeitamente conhecedora dos preços de construção civil e de projecto de arquitectura.
14. Pese embora a desistência, os réus ficaram com o trabalho da autora (o projecto de arquitectura) que podem aproveitar como valorização do seu terreno e/ou como base de projecto de moradia (cfr. ponto 18 dos factos provados da douta sentença).
O que prevê o contrato de prestação de serviços, em caso de incumprimento e/ou mora no pagamento?
15. Começando pela cláusula 7.ª que diz o seguinte: «(…) em caso de desistência (…) da parte do cliente, este deverá pagar a fase em desenvolvimento e metade de todo o restante, inicialmente contratado» (conferir cláusula 7.ª do contrato junto aos autos como documento n.º 5).
16. Adaptando as regras do mandato, em caso de revogação do contrato, incasu, operada por desistência dos réus, sem culpa da autora, aqueles devem indemnizar a autora por ver interrompido o seu trabalho, projecto que vinha desenvolvendo desde 2019.
17. A indemnização prevista no contrato é a do pagamento do valor da fase de desenvolvimento [pontos 2.3+3.2+4.2] e metade do restante dos serviços contratados e orçamentados [pontos 2.3+2.4+2.5+3.2+3.3+4.2+4.3+5+6+7], no montante global de € 12.380,00 (doze mil e trezentos e oitenta euros).
18. Valor adequado ao trabalho criativo, intelectual e técnico dos arquitectos.
19. Nos termos do disposto no artigo 810.º, n.º 1 e 811.º, n.º 3, ambos do CC, as partes podem fixar por acordo o montante de indemnização desde que não exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.
20. Ora, a obrigação dos réus é o pagamento dos honorários à autora, inicialmente fixados em 30.560€ a que acresceu a quantia de € 4.270,00 pelo novo projecto, no total de € 34.380,00.
21. E o valor indemnizatório previsto por essa desistência é de € 12.380,00 que, salvo melhor entendimento, situa-se dentro dos parâmetros do citado dispositivo legal.
22. Por tudo isto, não se alcança o entendimento do douto Tribunal aquo ao considerar que a autora que tem um benefício manifestamente excessivo e injustificado com o incumprimento dos réus.
23. Acaso a autora tivesse ganho total da causa, no montante peticionado de € 22.590,80, este valor é muito inferior ao ganho que teria com a facturação do projecto de arquitectura e acompanhamento de obra levado até ao fim, no montante de € 34.380,00.
24. Por outro lado, o douto Tribunal aquo também entendeu, nesta cláusula, ser desproporcionada a cominação indemnizatória, por incumprimento dos réus face à cominação indemnizatória por incumprimento dos autores.
25. Uma prevê o pagamento da fase de desenvolvimento e metade do restante orçamentado e a outra prevê a devolução da anterior prestação paga.
26. Ora, com o devido respeito, que é muito, também aqui andou mal o Tribunal aquo, a comparar o incomparável.
27. O clausulado prevê que na «eventual impossibilidade na continuação da prestação de serviço obriga-nos à devolução da anterior prestação paga» (conferir a supra referida cláusula 7.ª)
28. As partes não especificam se a impossibilidade de realizar a prestação é objectiva ou subjectiva, culposa ou não culposa, pelo que não se pode comparar este comportamento «incumpridor» com a desistência dos réus que, pedem à autora um projecto de moradia e desistem porque a construção é cara, sendo eles empresários da construção!
29. Mesmo que se considerasse, por mero raciocínio, o que não se concede, que a referida cláusula 7.ª era excessiva e desproporcional, o douto Tribunal aquo dispunha de mecanismos para reduzi-la, como decorre dos artigos 812.º e 935.º, ambos do CC, o que não fez. Agora, os juros usurários clausulados em 5 do contrato de prestação de serviços
30. Diz a cláusula 5.ª: «A cobrança será feita a pronto pagamento, em caso de atraso superior a 15 dias após contactado, o valor será acrescido de juros a taxa fixa de 1% sobre todo o período em falta».
31. Esta cláusula pretende penalizar a mora, obrigando o devedor ao pagamento, mas o que é facto, mesmo com juros a 1% ao dia ou 30% ao mês, esta cláusula penal compulsória não teve qualquer efeito.
32. Até hoje os réus não pagaram a factura no montante de € 4.270,00.
33. E pior, com esta decisão, os réus só são «penalizados» nos juros de mora legais (sem agravamento) e contados desde a citação, e não, como deveria, desde a data de vencimento da factura em 06.02.2021!
34. O regime especial dos juros usurários é tratado no artigo 1146.º, ex vi do artigo 559.º-A, ambos do CC.
35. «É havida como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9%, acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real» (conferir artigo 1146.º, n.º 2, do CC).
36. No caso, os juros de 1% ao dia são manifestamente altos, violando o disposto no n.º 2 do artigo 1146.º, ex vi do artigo 559.º-A, ambos do CC, devendo considerar-se a cláusula 5.ª usurária e, por isso,
37. é, nosso modesto entendimento, que, ao invés da nulidade da cláusula, deveria o douto Tribunal aquo aplicar o disposto no n.º 3 do artigo 1146.º do CC, reduzindo a taxa convencionada pelas partes ao máximo de 11% (=4% juros legais acrescido de 7%), o que também não fez.
38. Se assim tivesse decidido, os réus incumpridores seriam justamente penalizados pelo seu incumprimento no pagamento da factura no valor de € 4.270,00.
39. Por fim dizer, ao arrepio da douta decisão, ora recorrida, que o regime a aplicar às cláusulas consideradas usurárias (em nosso modesto entendimento, a 5.ª) é o da anulabilidade e não o da nulidade (conferir artigo 282.º do CC)”.
Requer a final a revogação parcial da sentença recorrida e sua substituição por outra que, no que respeita à cláusula 5.ª do contrato de prestação de serviços, ajuste a taxa de juros a pagar sobre o montante de € 4.270,00 ao máximo legal de 11%, contados desde o dia do vencimento da obrigação, 06.02.2021, até integral pagamento, e considere válida, justa e proporcional a cláusula 7.ª do referido contrato, condenado os réus no montante peticionado de € 12.380,00.
Não foram apresentadas contra alegações.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas perante este Tribunal:
i. determinar se a cláusula 7.ª é usurária, devendo ser julgada nula;
ii. aplicar aos juros usurários o regime do artigo 1146.º do Código Civil.
* II. Fundamentação De facto
Não tendo sido impugnada, nem se vendo fundamento para proceder à sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a considerar:
1. Entre a Autora e a Ré (…), Société Civile, foi celebrado um contrato em 06.07.2019, pelo qual a primeira se obrigou a prestar serviços de Arquitetura, onde se incluíam, além do projeto de arquitetura, os respetivos projetos de engenharia, paisagismo e serviços de apoio à construção de uma moradia no lote (…), na Quinta do (…), em Sesimbra, e os segundos a obrigação do pagamento a título de honorários da quantia de € 30.560,00.
2. Os segundos Réus, (…) e (…)[2] (…), pediram à Autora que a fatura no referido montante fosse emitida à primeira Ré, para ser paga pela primeira Ré.
3. A Autora apresentou os primeiros trabalhos em Outubro de 2019, em conformidade com o projeto inicial da casa e com previsibilidade de um orçamento para a empreitada inferior a € 350.000,00.
4. Ao encontro da satisfação dos Réus e de acordo com o seu pedido e sugestões, a Autora apresentou sucessivas revisões ao projeto inicial e, por acordo, em 8 de junho de 2020, passaram a trabalhar num novo projeto com um desenho de casa muito diferente do primeiro.
5. Também este, alterado várias vezes até à versão final, quando os Réus decidiram pedir o custo previsível para a construção daquele projeto.
6. Quando, a 6 de fevereiro de 2021, os Réus receberam tal custo de construção, no valor de € 574.500,00 (quinhentos e setenta e quatro mil e quinhentos euros), desistiram da colaboração da Autora.
7. Os honorários cobrados pela Autora para desenvolvimento dos projetos (arquitetura, especialidades, plano de arranjos exteriores, projetos de execução e direcção de obra) é de € 30.560,00.
8. Com o novo estudo/projeto da moradia em formato «L» apresentado em 25.12.2020, a este valor acrescem os de € 1.650,00 + € 450,00 + € 120,00 e o montante de € 250,00 relativo ao restante do levantamento topográfico e o montante de € 1.800,00 relativo ao primeiro estudo prévio entregue aos réus em 14.11.2019.
9. Os Réus foram interpelados pela Autora no dia 06.02.2021., para efetuar o pagamento de € 4.270,00.
10. Para a falta de pagamento da fatura, a cláusula 5.ª do contrato estipula uma taxa de juro de 1% /dia em caso de mora no pagamento superior a 15 dias, contados da data do vencimento da fatura;
11. Para a resolução contratual por «desistência do cliente», a cláusula 7 do referido contrato prevê uma cominação: o pagamento da fase de desenvolvimento [2.3 + 3.2 + 4.2] e metade do restante contratado correspondente aos pontos [2.3 + 2.4 + 2.5 + 3.2 + 3.3 + 4.2 + 4.3 + 5 + 6 + 7] do referido orçamento.
12. A cláusula 6.ª do contrato prevê o montante de € 1.500,00 a título de penalização por “má cobrança”.
13. (…) não fala, não lê, nem entende português.
14. O contrato que tem a denominação “Proposta de trabalho” encontra-se redigido única e exclusivamente em língua portuguesa, e foi remetido via e-mail.
15. Era do conhecimento da Autora que a 1.ª Ré é uma sociedade comercial sediada em França e que o seu representante legal, o Réu (…), não fala, não entende, nem lê o português.
16. A “proposta de trabalho” aqui em causa só se encontra assinada pela Autora.
17. Os RR pretendiam contratualizar com a A. a construção de uma moradia, nisso se incluindo todo o trabalho prévio de projectos, pedido de licenciamento, etc., incluindo a própria construção em si.
18. Os RR. ficaram com o trabalho da Autora, que podem aproveitar como valorização do seu terreno e/ou como base de projeto da moradia.
*
Não se provou que:
1. Os serviços aqui em causa destinavam-se somente à 1ª Ré;
2. O legal representante da 1ª Ré não percebeu e não podia perceber o alcance da “Proposta de Trabalho” apresentada pela Autora;
3. E a dita “Proposta de Trabalho” iria definir se a 1.ª Ré avançava ou não com a construção;
4. E tudo isso tinha que ficar dentro do valor que os RR pretendiam despender ou seja, o valor total de € 350.000,00;
5. Desde o início das negociações entre Autora e Réus que estes explicaram à Autora o tipo de construção que pretendiam, ou seja, uma moradia em L;
6. Os Réus foram solicitando modificações ao projeto porque o que lhes era apresentado não correspondia àquilo que tinham solicitado desde o início;
7. A Autora aceitou que os seus honorários fossem incluídos no preço da empreitada;
8. Bem como aceitou gerir a própria contratualização da empreitada, pois que residindo os Réus em França não o podiam fazer.
* De Direito
Da cláusula indemnizatória
Resulta da factualidade assente nos autos que entre a autora e a Ré sociedade – vide ponto 1 dos factos assentes – foi celebrado contrato de prestação de serviços, definido pela lei como aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (cfr. artigo 1154.º do Código Civil)[3], qualificação jurídica da qual, de resto, as partes não dissentem.
Pese embora conste do facto assim provado que o contrato foi apenas celebrado entre a A. e a Ré sociedade, a verdade é que foram condenados solidariamente com aquela também os RR pessoas singulares, porquanto, escreveu-se na sentença, “o terreno pertence à ré, pessoa coletiva, e a moradia projetada destinava-se à habitação dos Réus, casal, pessoas singulares”. E o assim decidido não foi impugnado, tendo por isso transitado em julgado, tal como transitada está a condenação no pagamento do montante facturado relativo ao novo projecto elaborado pela autora e sanção de € 1.500,00 pela “má cobrança”. Remanescem assim como questões a decidir por este Tribunal avaliar da natureza excessiva da cláusula prevista na cláusula 7.ª do contrato celebrado, e determinar o regime aplicável aos juros usurários, conforme se reconheceu serem os previstos na cláusula 5.ª do acordo.
Vejamos, em primeiro lugar, qual a disciplina por que se rege o acordo dos autos.
Modalidades do contrato de prestação de serviços com regulação típica são os enumerados no artigo 1155.º, a saber, o mandato, o depósito e a empreitada, sendo aplicáveis aos demais as disposições sobre o mandato por força da extensão operada pelo artigo 1156.º. Da remissão para o regime do mandato resulta ser aplicável aos contratos de prestação de serviços, como é o celebrado entre as partes no processo, a livre revogabilidade por qualquer um dos contraentes como causa de cessação, conforme prevê o n.º 1 do artigo 1170.º e se verificou no caso vertente, o que resulta do ponto 6. dos factos assentes, na sua parte final.
Não obstante a livre revogabilidade, a lei prevê que a parte que revogar o contrato indemnize a contra parte pelo prejuízo causado, designadamente e para o que aqui releva, sempre que assim tiver sido convencionado (vide alínea a) do artigo 1172.º) e ainda sempre que a revogação proceda do mandante e versar sobre mandato oneroso que tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto (alínea c) do preceito).
No caso dos autos, e como se vê dos factos julgados assentes, não só foi prevista indemnização pela desistência, quer do prestador, quer, para o que aqui releva, do beneficiário dos serviços, como estamos perante contrato oneroso que foi conferido para determinada obra, incluindo o acompanhamento da mesma, com o consequente prolongamento no tempo.
Visando regular o incumprimento contratual, foram incluídas no contrato as cláusulas 5.ª, 6.ª e 7.ª, cujos conteúdos aqui se recordam: 5.ª A cobrança será feita a pronto pagamento, em caso de atraso superior a 15 dias após contactado, o valor será acrescido de juros à taxa fixa de 1%/dia sobre todo o período em falta. 6.ª A má cobrança poderá ser accionada aos 90 dias após recepção da factura. Nesta acção aos juros (à taxa em vigor) e às custas do processo acresce € 1.500,00 de penalização. 7.ª A eventual impossibilidade na continuação da prestação do serviço obriga-nos à devolução da anterior prestação paga; em caso de desistência ou má cobrança da parte do cliente este deverá pagar a fase em desenvolvimento e metade de todo o restante, inicialmente contratado.
Todas as cláusulas transcritas foram qualificadas na sentença recorrida como “cláusulas de penalização” e, com excepção da aplicada penalização por “má cobrança”, no valor de € 1.500,00, as demais foram declaradas nulas nos termos do n.º 2 do artigo 1146.º e 935.º, n.º 1, disposições legais que se consignou serem analogicamente aplicadas, por serem “manifestamente um benefício manifestamente excessivo e injustificado”.
Vejamos se este juízo é de sancionar.
Nos termos do artigo 810.º, n.º 1, “as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal”.
Na definição legal o destaque é dado à função indemnizatória: as partes previram antecipadamente o montante da indemnização devido em caso de inexecução do contrato.
Este modelo unitário da cláusula penal viria a ser abandonado, distinguindo-se hoje entre a cláusula de fixação antecipada do montante indemnizatório, “em que as partes visam, tão só, liquidar antecipadamente, ne varietur, o dano futuro”[4], prevista no artigo 810.º, n.º 1, e a cláusula penal de índole exclusivamente compulsória, cujo escopo não é já estabelecer a indemnização devida ao contraente fiel em consequência do inadimplemento da contraparte, mas antes forçar o cumprimento através da ameaça de uma pena que acresce à execução específica ou à indemnização a que houver lugar[5], caso em que estamos perante uma cláusula / sanção compulsória.
Pode ainda suceder que as partes, ao estipularem a pena, tenham tido em vista constituir uma ameaça sobre o devedor, impelindo-o a cumprir, prevendo todavia que, fracassado esse objectivo prioritário, a pena passe a constituir, ela mesma, uma prestação apta a satisfazer o interesse do credor, que gozaria assim da faculdade de exigir do devedor, em alternativa à prestação originariamente fixada, a prestação acessória (ou seja, a pena)[6]. Neste caso, estaremos perante uma cláusula penal em sentido estrito[7], legitimada pelo princípio da autonomia da vontade e consequente liberdade de auto vinculação das partes.
No caso em apreço, todavia, não estamos perante um ilícito contratual: as partes, em conformidade aliás com o regime do mandato aqui aplicável, previram uma indemnização pela desvinculação, para a qual não se estipulou a necessidade de qualquer motivação; sendo a autora prestadora de serviços a exercer o seu direito a libertar-se do contrato, teria que restituir a prestação recebida; sendo o cliente, teria de pagar os serviços efectuados e metade do custo dos trabalhos que se encontrassem à data por executar.
Face aos termos da estipulação afigura-se estarmos em presença do que se convencionou chamar de cláusula penitencial ou de resgate – embora pressuponha uma obrigação, é o correspectivo (preço) do direito de desistência[8] – tendo, portanto, uma ratio distinta da que justifica a cláusula penal a que se reportam os artigos 810.º a 812.º do CC.
Conforme se destaca no acórdão do STJ de 21/6/2022 (processo 2652/20.9T8LSB.L1-9, acessível em www.dgsi.pt) a propósito de cláusula com semelhanças, “Não há, na verdade, na estipulação plasmada na cláusula 9.ª qualquer conexão com o incumprimento ou com a mora, isto é, com um facto ilícito pela parte onerada com o respectivo pagamento (a Ré): o que dela ressalta com nitidez é o estabelecimento de um valor composto para o preço (penitência) da desvinculação contratual da Ré”, tendo portanto uma natureza distinta da cláusula penal. Assim, sendo, coloca-se desde logo a questão de saber se pode ser reduzida por aplicação do disposto no artigo 812.º.
A este propósito, não havendo unanimidade doutrinária[9], conforme se dá conta no acórdão citado e que aqui se segue de perto, apesar de estar em causa um acto lícito – a cessação do contrato por livre iniciativa de uma das partes, decorrendo da lei, foi livremente prevista e regulada pelos contraentes quanto aos seus efeitos – a verdade é que “participa do mesmo cariz indemnizatório ou ressarcitivo da cláusula penal propriamente dita porquanto a cessação da execução contratual pela parte que se desvincula é para a outra parte (que contava com a manutenção do programa contratual), ao menos de um certo ponto de vista, um dano ou prejuízo, mesmo proveniente de algo legítimo, previsto e consentido”.
Verificada esta afinidade entre o fim da cláusula penal em sentido estrito e a multa penitencial não se vê razão para afastar a aplicação analógica do artigo 812.º sempre que se revele um excesso que se imponha corrigir. Com efeito, ainda que na sua estipulação a penitência não se afigure excessiva, bem poderá acontecer que “a exigência do pagamento da cláusula tendo em conta o modo, o tempo e as circunstâncias do seu exercício, atente contra a boa-fé contratual (artigo 762.º, n.º 2, do CC) ou constituía um exercício abusivo pela parte a favor de quem foi instituída (artigo 334.º do CC), por se revelar ostensivamente excessiva em face do dano por ele [beneficiário da cláusula] efectivamente suportado (…), consubstanciando um acto atentatório da boa-fé ou do fim económico do direito”. Neste caso, entendido o artigo 812.º enquanto “norma que encerra um princípio de alcance geral, destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações”[10], tem-se como aplicável a todas as espécies de penas convencionais, ainda que por analogia, e não apenas às previstas no artigo 810.º.
Todavia, e como resulta do disposto no artigo 812.º, não é qualquer excesso que justifica a intervenção do Tribunal, sendo de exigir a demonstração de que estamos perante um excesso manifesto em face do dano efectivo sofrido pela parte que acciona a cláusula face à desvinculação da contra parte.
De volta aos caso dos autos, não vemos, ao invés do que se afirmou na sentença recorrida, que exista um evidente desequilíbrio entre o que se estabelece para a desvinculação de cada uma das partes, antes se afigurando que a perda da remuneração por banda da prestadora caso fosse esta a revogar o contrato encontra equivalente na sanção aplicada no caso de ser o cliente, que terá de pagar os serviços prestados e 50% do preço dos trabalhos que ficaram por executar. Trata-se de estipulação que, aliás, não se distancia do regime fixado no artigo 935.º convocado na sentença, disposição legal que rege para a venda em prestações, e cuja aplicação é supletiva, podendo as partes convencionar a ressarcibilidade de todo o prejuízo sofrido quando ultrapasse o montante ali previsto.
Por outro lado, quando se considere o valor alcançado em resultado da aplicação da cláusula em referência – o valor correspondente a metade dos trabalhos que ficaram por executar ascende a € 12.380,00 – não se vê que represente em si, no contexto de um contrato cujo valor global superava os € 30.000,00, um excesso intolerável. Acresce, decisivamente, que no caso vertente não foi feita prova de tal manifesto excesso em relação aos prejuízos sofridos, nada se tendo provado – desde logo porque os RR, tendo-se limitado a afirmar ser a cláusula manifestamente excessiva, no que foram seguidos na sentença, nada alegaram a tal propósito – que o montante reclamado se distancie de forma clamorosa e chocante do prejuízo efectivo sofrido pela autora apelante, na modalidade de lucros cessantes.
Deste modo, e em conclusão, tendo-se as partes validamente vinculado, não se afigurando a cláusula penitencial fixada excessiva, nem se tendo provado que da sua aplicação tenha resultado excesso que se imponha corrigir, é de conceder à recorrente a indemnização pedida, no montante de € 12.380,00, a acrescer aos € 1.500,00 arbitrados em 1.ª instância.
* Dos juros usurários
Reconhecendo que os juros convencionados são usurários, por excederem largamente os limites fixados no artigo 1146.º, disposição legal que, por força do estipulado no artigo 559.º-A, é extensiva a toda a estipulação de juros, sustenta no entanto a apelante que a nulidade da cláusula faz operar a sua redução até aos limites máximos ali previstos. E tem razão.
Comentando este último preceito, introduzido que foi pelo DL 262/3, de 16 de Junho, escrevem os Profs. A. Varela e Pires de Lima que “O novo preceito introduzido no Código Civil amplia o campo material de aplicação do princípio proibitivo da usura, sujeitando aos limites estabelecidos para o mútuo, no n.º 1 do artigo 1146.º, toda e qualquer vantagem obtida do devedor em negócios ou créditos análogos” (é nosso o destaque). Ou seja, excedendo a taxa de juros os limites referidos, dá-se uma redução a esses máximos, independentemente da vontade dos contraentes (artigo 1146.º, n.º 3). Trata-se, como explica o Prof. Pestana de Vasconcelos, “de um caso de nulidade parcial em que, ao contrário do regime do artigo 292.º, a lei determina uma redução automática, sem que se possa provar que ele não teria sido concluído sem a parte viciada”[11].
Resulta do exposto que razão por isso assiste à apelante quando reclama juros à taxa de 11% (em bom rigor poderiam ser até 13%, uma vez que, ao que resulta dos autos, o seu crédito não beneficia de garantia real, ficando no entanto a condenação limitada pelo que foi pedido no recurso). Todavia, esta taxa é apenas devida desde a data em que os RR receberam a factura – cfr. o ponto 9 da matéria de facto – tendo-se então constituído em mora e pelo período de 90 dias, vencendo depois disso juros à taxa supletiva legal. Com efeito, atentando no teor das cláusulas 5.ª e 6.ª, e fazendo apelo aos critérios interpretativos plasmados nos artigos 236.º, verifica-se que as mesmas de algum modo se complementam. Assim, se o teor da cláusula 5.ª aponta no sentido de estarmos perante uma cláusula penal compulsória, com ela se visando claramente persuadir o contraente faltoso ao adimplemento da obrigação de pagamento do preço, actuando logo que a mora ultrapasse 15 dias, a cláusula seguinte prevê que a prestadora de serviços possa recorrer a juízo após 90 dias de mora, aí reclamando juros à taxa em vigor -taxa supletiva legal em vigor- acrescendo às custas do processo um montante, € 1.500,00, que é já ressarcitório da mora entretanto sofrida - cláusula penal indemnizatória ou de liquidação prévia do dano. Daqui decorre que feita pela apelante a prova do incumprimento, dispensada está da demonstração da existência dos prejuízos ou do seu montante, sendo certo, porém, que nenhuma outra quantia poderá reclamar para reparação de eventual dano excedente, com a ressalva apenas dos juros à taxa supletiva legal, porque assim foi convencionado (cfr. artigo 811.º/2).
Deste modo, considerando que na sentença impugnada foi atribuída à apelante a indemnização prevista dos € 1.500,00, que visa a reparação dos prejuízos sofridos pela necessidade de recorrer a juízo, o que poderia fazer após aquele período de 90 dias, vencendo a partir de então a dívida juros à taxa supletiva legal, os juros são devidos à taxa agravada de 11% sobre o montante constante da factura apenas durante aquele período, procedendo o recurso nesta parte, nestes precisos termos e com os limites ora fixados.
* III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A. e condenam os RR solidariamente no pagamento da quantia de € 12.380,00 (doze mil, trezentos e oitenta euros), acrescida dos juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, sendo ainda devidos juros à taxa de 11% sobre o montante de € 4.480,00 durante 90 dias, a acrescer aos montantes arbitrados na sentença recorrida, que se mantém quanto ao mais.
Custas a cargo de A e RR nesta e na 1.ª instância na proporção dos seus decaimentos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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* Sumário: (…)
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[1] Srs. Juízes Adjuntos:
1.º Adjunto - Sr. Juiz Desembargador Francisco Matos;
2.ª Adjunta – Sr.ª Juíza Desembargadora Ana Margarida Leite.
[2] Trata-se de(…), conforme rectificação efectuada na petição inicial e que por evidente lapso não foi corrigido na sentença.
[3] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citados sem menção da sua origem.
[4] Prof. Pinto Monteiro, “Cláusula Penal e indemnização”, Colecção Teses, Almedina, Reimpressão, pág. 601.
[5] Idem, ob. e loc. citados.
[6] A cláusula penal assim estipulada configura uma obrigação com faculdade alternativa do credor – Prof. Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 613.
[7] Ob. e autor cit., págs. 18/19 e 609 e seguintes.
[8] Prof. Calvão da Silva, “sinal e Contrato-Promessa”, Coimbra 1988, pág. 20.
[9] Pronunciando-se contra a possibilidade de redução, o Prof. Calvão da Silva Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 309, nota 550, opina no sentido de que, enquanto “preço da desistência do contrato que facultam ao devedor (…), a multa penitencial e o sinal penitencial não devem poder ser reduzidos nos termos da cláusula penal.” Já o Prof. Pinto Monteiro (págs. 209 e 730) entende ser defensável o citado artigo 812.º “por interpretação extensiva ou por analogia – a outras figuras ou cláusulas com idêntica finalidade”.
[10] Ainda o Prof. Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 495 e novamente na pág. 730.
[11] In “Os limites máximos das taxas de juro das instituições de crédito e das sociedades financeiras”, Revista de Direito Comercial, acessível em https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b2b50392b6a28718c4544d3/1529565243280/2018-13.pdf.