1 - Os dados relativos à saúde de pessoa falecida são protegidos nos termos do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD) e da Lei de execução nacional (Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto) porque se integram nas categorias especiais de dados pessoais;
2 – Deverão ser considerados dados pessoais todos os dados relativos ao estado de saúde de um titular de dados que revelem informações sobre a sua saúde física ou mental, o que inclui informações sobre a pessoa singular recolhidas em vida durante a prestação de serviços de saúde pelos centros de saúde ou instituições hospitalares – cfr. Considerando 35 do RGPD (fonte interpretativa);
3 - Estes dados intrinsecamente pessoais, são no Considerando 51 do RGPD classificados de «dados sensíveis»;
4 – Como tal o seu tratamento é proibido nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do RGPD;
5- Assim não será se, o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, ou se, o tratamento for necessário (princípio da necessidade) à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou, sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do RGPD;
6 – Porque a lei não distingue, a finalidade “defesa de um direito em processo judicial” tanto pode abranger um direito do titular dos dados, como um direito contra o titular dos dados.
7 - O que importa atender é à efetiva necessidade de tratamento dos dados, devendo esta fazer-se de forma proporcional, restrita à finalidade que o justifica.
(Sumário da Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
Na presente ação de processo comum são Autores:
- (…),
- (…),
- (…), e
- (…),
- na qualidade respetivamente de cabeça de casal e herdeiros da herança ilíquida e indivisa de (…)
E, são Rés:
- (…) EUROPE – Sucursal em Portugal, e
- (…) BANQUE – Sucursal em Portugal.
Tendo sido formulados pelos Autores os seguintes pedidos:
a) A presente ação ser julgada procedente por provada, declarando-se o incumprimento do contrato de Seguro do crédito, celebrado entre o falecido segurado e a R. (…) EUROPE – Sucursal em Portugal, e consequentemente ser esta condenada a pagar à herança, representada pelos AA., sub-rogada no direito do Segurado falecido, no pagamento do montante do crédito em dívida à data da morte do segurado, e até ao final do pagamento do crédito que ocorreu no ano de 2022, que se calcula no montante de € 13.355,13 (treze mil e trezentos e cinquenta e cinco euros e treze cêntimos);
b) Ser 2ª RE (… Banque…), condenada, na qualidade de tomadora do Seguro junto da (…) EUROPE – Sucursal em Portugal, a devolução do pagamento de todos os prémios de seguro, liquidados / pagos pela herança desde 14/01/2021 até 2022, e solidariamente condenadas no pagamento de juros de mora à taxa legal de 4%/ano, desde o falecimento até final, e demais despesas a calcular em execução de sentença.
Ou, se assim não se entender:
c) Ser a 2ª R., … Banque (…), condenada a reembolsar o pagamento de todas as prestações recebidas desde o óbito do falecido, até final do contrato pagos pela herança, que se calcula ser de € 13.355,13 (treze mil e trezentos e cinquenta e cinco euros e treze cêntimos); e ainda na devolução dos prémios de seguro pagos nos mesmos termos e condições das prestações e ainda nos juros de mora à taxa legal desde o falecimento até final, e demais despesas a calcular em execução de sentença.
Como causa de pedir alegam os AA. que em 14/01/2021 ocorreu o óbito de (…).
Este havia subscrito com a 1ª Ré um seguro de vida e proteção de financiamento concedido pela 2ª Ré para aquisição de veículo automóvel, aquisição que se concretizou.
No decurso de vigência do contrato decorreu o óbito do segurado. A herança acionou o seguro mas a 2ª Ré recusou-se a indemnizar a herança com fundamento em doença pré-existente à data da contratação, tendo a herança continuado a fazer o pagamento das prestações de crédito apesar de contestar o preenchimento da cláusula de exclusão. A única doença determinada no momento da morte do segurado foi o COVID-19 que não preenche tal cláusula.
A Ré (…) EUROPE – Sucursal em Portugal contestou invocando, entre o mais, a cláusula de exclusão da indemnização que se consubstancia na preexistência de determinadas patologias à data do contrato, que foram omitidas e são geradoras de anulabilidade deste e, para o comprovar, requereu a seguinte prova por Documentos:
“Por se tratarem de documentos com evidente relevo para a boa decisão da causa e por serem documentos que não foram disponibilizados à 1ª ré, requer-se a V. Exa., nos termos do disposto no artigo 432.º do CPC, se digne oficiar:
a) A (…) – Setúbal, sita na Rua (…), 2900-246 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
b) O Centro Hospitalar de (…), EPE, serviço de cardiologia, sito na Rua (…), Aptd. 140, 2910-446 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
c) O Hospital de (…), sito na R. de (…), 1169-024 Lisboa, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura.”
Em 21/02/2024 foi realizada audiência prévia tendo na mesma sido definidos os seguintes temas da prova, registados em Ata:
“Nos termos do presente processo importa aquilatar:
i. Aquilatar os contornos contratuais que ligaram as Rés e (…).
ii. (…) omitiu da 1.ª Ré, de forma intencional ou não, patologias pré-existentes à contratação do seguro.
iii. A existirem patologias pré-existentes eram as mesmas relevantes para a concretização do contrato celebrado com a Seguradora.
iv. Determinar o montante em dívida à data do óbito de (…).
Na mesma Ata ficou consignado que:
“V – Dos requerimentos probatórios
(…)
Prova documental requerida – exames clínicos
A 1.ª Ré (…) EUROPE – Sucursal em Portugal, requereu a junção aos autos de diversos processos clínicos a respeito de (…).
Os dados médicos de uma pessoa fazem parte do conjunto de dados relativos à intimidade da sua vida privada, merecendo, dessa forma, tutela do Direito, e, desde logo, com previsão constitucional: artigos 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 35.º, n.º 4, todos da Constituição da República Portuguesa, e, ainda, a nível infraconstitucional com previsão nos artigos 70.º e 80.º, ambos do Código Civil.
Ainda com relevo, ter-se-á que atender ao disposto na Lei de Bases da Saúde, Lei 95/2019 de 04/09, que na sua Base 15.1 indica que “informação de saúde é propriedade da pessoa”.
Tal normativo deve ser interpretado em conjunto com o disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 12/2005, de 26 de janeiro, que prescreve que “a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei”.
Dever-se-á ainda atender ao disposto no artigo 31.º, n.º 1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, Regulamento n.º 707/2016, de 21/07, que indica que “os médicos que trabalhem em unidades de saúde estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente”, encontrando-se as exceções previstas no art.º 32.º, que são: “a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo médico; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória”.
Uma das exceções consagradas é, precisamente, o consentimento do doente.
Pese embora o vertido no artigo 23.º, alínea b), das condições gerais do contrato de seguro junto, e que se refere à autópsia e causa de morte, a Ré requerente não juntou subscrito do falecido donde conste de forma clara e expressa que deu consentimento para aceder aos seus registos de saúde e a documento médicos com informações a seu respeito, e que não digam diretamente respeito à causa da morte, mas que contenham, nomeadamente histórico de patologias, intervenções e tratamentos realizados.
O Tribunal não pode notificar a entidade de saúde para juntar informação clínica atinente a uma pessoa sem que previamente exista uma evidência clara e inequívoca do consentimento para aceder a tais dados, e que dessa forma permita ultrapassar a imposição legal de não aceder a dados clínicos.
Do que fica exposto não resulta que fica o processo com uma impossibilidade de acesso aos dados clínicos, porquanto, pode a Ré juntar a referida evidência de consentimento dada pelo falecido, ou junto dos herdeiros obter tal autorização, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei 58/2019, de agosto, ou, ainda, poderá intentar o competente incidente de levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Médicos, nos termos previstos no artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Destarte, indefere-se o requerido pela 1.ª Ré.»
Inconformada com tal decisão, veio a Ré (…) EUROPE – Sucursal em Portugal, recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 21.02.2024, o qual indeferiu o requerimento probatório da apelante, na parte em que esta requereu que fossem oficiados a (…) – Setúbal, o Centro Hospitalar de (…), EPE, serviço de cardiologia e o Hospital de (…) para juntarem aos autos o processo clínico completo da pessoa segura.
2. A apelante não se conforma com tal entendimento uma vez que o Tribunal a quo não podia indeferir o requerimento de prova da ré com fundamento numa “recusa” que não foi invocada pelos titulares do dever de segredo médico, ou seja, os médicos e as instituições hospitalares.
3. Acresce que, a pessoa segura prestou o seu consentimento expresso para que as entidades e profissionais de saúde facultassem à seguradora todos os elementos por esta tidos como convenientes, o qual nunca foi retirado.
4. Assim, o proprietário da informação de saúde prestou, em vida, de forma expressa e inequívoca, o seu consentimento para que a apelante tivesse acesso à sua informação de saúde, o que é suficiente para o cumprimento do exigido nos artigos 7.º e 9.º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de abril, e necessário ao exercício de defesa da apelante, previsto na alínea f) do n.º 2 do mesmo Regulamento.
5. Por outro lado, os apelados nunca sindicaram tal consentimento, nem tão pouco se opuseram ao requerimento probatório da apelante, a qual é titular de um interesse direito, pessoal e legítimo, no acesso à documentação requerida.
6. O Tribunal a quo “criar” um novo momento processual – em plena audiência prévia – para lhes dar nova oportunidade de o fazerem. Ao fazê-lo, violou o princípio da igualdade, beneficiando os apelados em detrimento da apelante.
7. Pelo que, o Tribunal a quo praticou um ato que a lei não admite, que, sendo suscetível de influir na decisão da causa, é nulo, o que aqui expressamente se invoca.
8. Considerando que a pessoa segura não foi autopsiada e que a causa da morte foi determinada com base em elementos clínicos, é essencial à descoberta da verdade material apurar que elementos clínicos são esses.
9. Na verdade, a causa da morte é uma das questões controvertidas nos presentes autos, pelo que o acesso à informação clínica da pessoa segura assume especial relevância.
10. Acresce que, a ré defendeu-se por exceção ao invocar a anulabilidade do contrato de seguro por prestação de falsas declarações da pessoa segura.
11. Do documento nº 4 da contestação resulta que pelo menos uma das patologias de que a pessoa segura sofria era anterior à adesão ao contrato de seguro, mas continua por apurar se as demais patologias descritas pela médica de família também o são,
12. Sendo irrelevante se as declarações omitidas estão ou não relacionadas com a causa da morte.
13. Ao invés, o que importa apurar é se a vontade da seguradora aquando da aceitação da adesão estava inquinada.
14. E, nessa circunstância – entende-se – quanto maior o número de patologias omitidas pela pessoa segura, maior o grau de dolo da omissão.
15. Assim, todo e qualquer elemento clínico do qual resulte informação que possa ter sido omitida pela pessoa segura é suscetível de integrar o conceito de falsas declarações.
16. O processo clínico completo da pessoa segura é o único meio de prova suscetível de provar os factos que sustentam a defesa da ré.
17. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo impediu que a apelante exercesse o seu direito à justiça, limitando a defesa dos seus legítimos interesses, o que não se pode admitir,
18. Bem como beneficiou, exponencialmente, os apelados, criando, não só uma desigualdade entre as partes, como, ainda, uma situação de abuso de direito dos apelados, aos quais é permitido acionar o contrato de seguro, sem mais.
19. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, 411.º, 429.º, 588.º, 611.º e 663.º, n.º 1, todos do CPC, bem como o artigo 100.º, n.º 3, do DL n.º 72/2008, de 16 de abril, os artigos 7.º, n.º 1 e 9.º, n.º 2, alíneas a) e f), do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de abril, e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
20. Por tudo, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que defira o requerimento de produção de prova da apelante.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido e substituído por outro que deferida o requerimento de prova da apelante, pois só assim se fará JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
II
Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar:
- Da falta de fundamento legal do despacho recorrido ao indeferir o requerimento probatório da apelante que pediu se oficiasse a determinadas instituições hospitalares o processo clínico do segurado, entretanto falecido.
Bem como na LEI DE BASES DA SAÚDE, Lei 95/2019, de 04/09, que na sua Base 15.1, indica que “informação de saúde é propriedade da pessoa” e cujo normativo deve ser conjugado com o disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 12/2005, de 26 de janeiro (INFORMAÇÃO GENÉTICA PESSOAL E INFORMAÇÃO DE SAÚDE), que prescreve que “a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei”.
Mais invocou o artigo 31.º, n.º 1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, Regulamento n.º 707/2016, de 21/07, que indica que “os médicos que trabalhem em unidades de saúde estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente”, encontrando-se as exceções previstas no artigo 32.º, e que são: “a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo médico; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória”.
Assim, sustenta a decisão recorrida, não tendo a Ré demonstrado o consentimento do doente, o Tribunal não pode notificar a entidade de saúde para juntar informação clínica atinente a uma pessoa sem que previamente exista uma evidência clara e inequívoca do consentimento para aceder a tais dados, e que dessa forma permita ultrapassar a imposição legal de não aceder a dados clínicos. Cabendo à Ré demonstrar esse consentimento ou obter tal autorização junto dos herdeiros, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei 58/2019, de 08 de agosto (LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS), ou, ainda, intentar o competente incidente de levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Médicos, nos termos previstos no artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Quid iuris ?
Ainda que todo o normativo constitucional e legal invocado no despacho recorrido seja tutelador da informação alusiva à saúde do respetivo titular, é-o de forma genérica, sendo de o integrar com o direito específico da proteção de dados pessoais, em particular o que se reporta à proteção de dados pessoais de pessoa falecida.
Assim, o artigo 17.º da Lei 58/2019, de 08 de agosto (LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS que estabelece:
«Proteção de dados pessoais de pessoas falecidas
1 - Os dados pessoais de pessoas falecidas são protegidos nos termos do RGPD e da presente lei quando se integrem nas categorias especiais de dados pessoais a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º do RGPD, ou quando se reportem à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações, ressalvados os casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo.
(…)»
O artigo 4.º, 15) do RGPD – REGULAMENTO GERAL SOBRE A PROTEÇÃO DE DADOS (RGPD) DA UNIÃO EUROPEIA (UE) – (Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27/04), estabelece serem «Dados relativos à saúde», dados pessoais relacionados com a saúde física ou mental de uma pessoa singular, incluindo a prestação de serviços de saúde, que revelem informações sobre o seu estado de saúde».
Norma esta complementada pelo Considerando 35 do mesmo RGPD (fonte interpretativa), que prevê:
«Deverão ser considerados dados pessoais relativos à saúde todos os dados relativos ao estado de saúde de um titular de dados que revelem informações sobre a sua saúde física ou mental no passado, no presente ou no futuro. O que precede inclui informações sobre a pessoa singular recolhidas durante a inscrição para a prestação de serviços de saúde, ou durante essa prestação, conforme referido na Diretiva 2011/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (9), a essa pessoa singular; qualquer número, símbolo ou sinal particular atribuído a uma pessoa singular para a identificar de forma inequívoca para fins de cuidados de saúde; as informações obtidas a partir de análises ou exames de uma parte do corpo ou de uma substância corporal, incluindo a partir de dados genéticos e amostras biológicas; e quaisquer informações sobre, por exemplo, uma doença, deficiência, um risco de doença, historial clínico, tratamento clínico ou estado fisiológico ou biomédico do titular de dados, independentemente da sua fonte, por exemplo, um médico ou outro profissional de saúde, um hospital, um dispositivo médico ou um teste de diagnóstico in vitro.»
Estes são dados intrinsecamente pessoais, na aceção mais pura do termo, e que o Considerando 51 do RGPD classifica de «dados sensíveis».
Em consonância com essa sensibilidade, o artigo 9.º do RGPD dispõe que:
1. É proibido o tratamento de (…) dados relativos à saúde (…) de uma pessoa.
(…)
2. O disposto no n.º 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos:
a) Se o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, (…)
(…)
f) Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional; » (sublinhados nossos).
Daqui resulta que o consentimento relativo ao tratamento de dados sensíveis tem de ser prestado explicitamente, ao contrario do que se verifica para o regime comum (artigo 6.º do RGPD).
O regime previsto neste artigo 9.º do RGPD conjuga-se, por sua vez, com o artigo 29.º da Lei n.º 58/2019, de 08/08 (LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS) que versa sobre o tratamento de dados de saúde e de dados genéticos e sobre o tratamento de dados sensíveis no âmbito das alíneas h) e i), que assim dispõem:
«Tratamento de dados de saúde e dados genéticos
1 - Nos tratamentos de dados de saúde e de dados genéticos, o acesso a dados pessoais rege-se pelo princípio da necessidade de conhecer a informação. (…)
4 - Os titulares de órgãos, trabalhadores e prestadores de serviços do responsável pelo tratamento de dados de saúde e de dados genéticos, o encarregado de proteção de dados, os estudantes e investigadores na área da saúde e da genética e todos os profissionais de saúde que tenham acesso a dados relativos à saúde estão obrigados a um dever de sigilo.
5 - O dever de sigilo referido no número anterior é também aplicável a todos os titulares de órgãos e trabalhadores que, no contexto do acompanhamento, financiamento ou fiscalização da atividade de prestação de cuidados de saúde, tenham acesso a dados relativos à saúde. (…)» (sublinhados nossos).
Ou seja, numa perspetiva geral, esta norma impõe para os tratamentos de dados de saúde e para o tratamento de dados genéticos, estritos deveres de sigilo a todos os trabalhadores, funcionários e demais sujeitos que auxiliam o responsável pelo tratamento e o subcontratante.
Referimos já a necessidade de consentimento explícito (expresso) para a divulgação (tratamento) destes dados pessoais, que, no presente litígio, não resulta, por ora, demonstrado.
Tal consentimento explícito (expresso) haveria de ter sido prestado pelo titular dos dados, inequivocamente sobre as informações de saúde que a apelante requer.
Mas o consentimento explícito não constitui a única situação legitimadora do tratamento (divulgação).
A alínea f) do artigo 9.º, n.º 2, do RGPD, anteriormente transcrita, permite o tratamento de dados pessoais sensíveis quando necessário (princípio da necessidade) para: (i) a declaração, o exercício ou a defesa de um direito num processo judicial; ou (ii) sempre que os tribunais atuem no exercício das suas funções jurisdicionais.
Refere, a propósito, A. Barreto Menezes Cordeiro in Direito da Proteção de Dados, à luz do RGPD e da Lei n.º 58/2019, pág. 246 que: “A exceção contida neste preceito justifica-se em face da ratio prosseguida: a administração da Justiça”.
Acrescentando o mesmo Professor que: “A primeira situação prevista na alínea f) deve ser interpretada de forma extensiva em relação a todos os seus três elementos: (i) necessidade; (ii) processo judicial; (iii) direitos.
O tratamento será necessário sempre que exista uma qualquer correlação entre o litígio em disputa e os dados sensíveis objeto de tratamento. O sistema não exige que o tribunal avalie os méritos da ação, mas somente se o tratamento desses dados pessoais se justifica em face do mérito da ação. De fora ficam invocações notoriamente descabidas ou arbitrárias.
(…)
O terceiro elemento – declaração, exercício ou defesa de um direito – reporta-se à realidade judicial: não releva, também aqui, a natureza do direito, mas somente se se insere num litígio, independentemente da fase processual em que a necessidade do tratamento de dados sensíveis é invocada.
III. O tratamento de dados sensíveis é igualmente permitido sempre que seja necessário para o exercício de atividades jurisdicionais. Nesta segunda parte da alínea f) já se justifica preencher o conceito de necessidade por recurso ao princípio da proporcionalidade, pelo que os tribunais devem optar sempre pela solução menos intrusiva da esfera do titular.
O preceito apenas abrange a atividade jurisdicional dos tribunais – p. ex: o tratamento de dados de saúde para o cálculo de indemnizações”.
Cremos ser de clarificar que a finalidade “defesa de um direito em processo judicial” tanto pode abranger um direito do titular dos dados, como um direito contra o titular dos dados. A lei não distingue, pelo que, o que importa atender é à efetiva necessidade de tratamento (na modalidade divulgação) dos dados e que esta se faça de forma proporcional, parcimoniosamente.
Aqui chegados importa objetivar a pretensão do apelante no sentido de o tribunal oficiar a determinadas instituições hospitalares o processo clínico do segurado, entretanto falecido.
Com tal requerimento pretende a apelante seguradora demonstrar a preexistência de patologias conhecidas pelo segurado e não declaradas à data do contrato, que poderão excluir a obrigação de indemnização por parte da apelante.
Colhe-se da contestação “decorre da história clínica da pessoa segura, mais concretamente do relatório médico da Dra. (…), datado de 16.04.2021, que aquela já tinha patologias que não referiu no momento da adesão ao contrato de seguro em causa nestes autos.
(…)
Do exposto decorre que, à data da adesão ao contrato de seguro, a pessoa segura padecia de várias patologias clínicas.
34.º - E era bem conhecedora das mesmas, não só porque para elas estava medicado,
35.º - Como ainda era seguida em consultas da especialidade.
36.º- Aliás, e no que respeita à patologia cardíaca, não só chegou a sofrer um enfarte agudo do miocárdio,
37.º - Como ainda, foi submetido a intervenções cirúrgicas!
38.º - As informações então omitidas são absolutamente relevantes na celebração de um contrato de seguro, ainda para mais num contrato de seguro com cobertura dos riscos de morte ou invalidez.
39.º - Tanto assim é que nos termos do disposto no artigo 5.º das condições gerais do contrato de seguro, recorde-se,
“Para efeitos de adesão ao Seguro, o candidato a Pessoa Segura deve preencher os seguintes requisitos:
(…)
f) Não estar atualmente sujeito a controlo ou acompanhamento médico regular por razão de doença ou acidente (…)” – cfr. cit. doc. n.º 2.”
Ora, estamos, sem dúvida, no âmbito duma atividade jurisdicional e a defesa da apelante ao direito à eventual anulabilidade contratual, reclama o conhecimento objetivo do historial clínico requerido, logo, demonstra-se a necessidade de tratamento de tais dados sensíveis, tratamento esse na modalidade de disponibilização judicial de tais informações, a ser efetuado no restrito âmbito deste processo judicial (processo sujeito a dados sensíveis), o que igualmente assegura o princípio da proporcionalidade considerando o interesse conflituante do “titular” dos dados, no caso os seus herdeiros, ora apelados, pelo que importa permitir esse tratamento.
Assim, procedendo a apelação, deverá oficiar-se:
a) A (…) – Setúbal, sita na Rua (…), 2900-246 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
b) O Centro Hospitalar de (…), EPE, serviço de cardiologia, sito na Rua (…), Aptd. 140, 2910-446 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
c) O Hospital de (…), sito na Rua de (…), 1169-024 Lisboa, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura..
Em suma: (…)
a) A (…) – Setúbal, sita na Rua (…), 2900-246 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
b) O Centro Hospitalar de (…), EPE, serviço de cardiologia, sito na Rua (…), Aptd. 140, 2910-446 Setúbal, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura;
c) O Hospital de (…), sito na Rua de (…), 1169-024 Lisboa, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura.
Sem custas.
Évora, 11 de julho de 2024
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Eduarda Branquinho (1ª Adjunta)
Ana Margarida Leite (2ª Adjunta)