TAXA DE JURO
LIVRANÇA
JUROS MORATÓRIOS
Sumário

1 – A taxa dos juros de mora devidos por falta de pagamento de dívida titulada por livrança é a dos juros civis, actualmente de 4% ao ano.
2 – A natureza comercial ou civil da relação subjacente não influi no regime jurídico da taxa dos juros moratórios devidos por falta de pagamento da livrança.
3 – O Assento do STJ n.º 4/92 releva para a resolução da questão de saber se a taxa de juros referida em 1 e 2 é a dos juros civis ou a dos juros comerciais na estrita medida em que, ao afastar a aplicabilidade da taxa de juros prevista nos n.ºs 2 dos artigos 48.º e 49.º da LULL, abriu a porta à aplicação do direito interno, que é o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16.06.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 407/14.6T8ENT-A.E1

Exequente/recorrente:

Banco (…), S.A..

Executados/recorridos:

(…) – Fabrico e Comercialização de (…), Unipessoal, Lda..

(…).

(…).

Despacho recorrido:

Indeferiu liminarmente o requerimento executivo, por manifesta insuficiência do título, quanto à parte do pedido respeitante aos juros de mora comerciais vencidos e vincendos, devendo a execução prosseguir apenas para pagamento da verba de capital (€ 13.453,64), acrescida dos juros de mora vencidos, calculados sobre aquela verba, desde a data de apresentação da livrança a pagamento, à taxa legal de 4%, e juros de mora vincendos, até integral e efectivo pagamento.

Conclusões do recurso:

O despacho recorrido violou o disposto nos §§ 2º, 3º e 4º do artigo 102.º do Código Comercial, e o disposto na Portaria n.º 1105/2004, de 31 de Agosto, e consequentemente, na esteira desta, o disposto nos Avisos da Direcção-Geral de Tesouro e Finanças aplicáveis à hipótese dos autos, ou seja os Avisos 9944/2012, de 2 de Junho, 594/2013, de 3 de Janeiro e 8266/2014, de 16 de Julho, pelo que revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se o mesmo por acórdão que ordene que a execução prossiga com juros contabilizados, liquidados e vincendos, à taxa de juros comerciais, nos termos dos Avisos consequência do disposto na Portaria n.º 1105/2004, de 8 de Agosto e revogando-se a condenação em custas do ora recorrente, que é também objecto do presente recurso, se respeitará e cumprirá a lei e se fará, em suma, Justiça.

Questão a decidir:

Taxa dos juros de mora devidos por falta de pagamento de dívida titulada por livrança.

Factos julgados provados no despacho recorrido:

1 – O Banco (…), S.A. intentou a presente execução comum para pagamento de quantia certa sob a forma de processo ordinário, dando à execução uma livrança, no valor de € 13.453,64, vencida em 27.11.2013;

2 – No requerimento executivo, na exposição de factos, fez constar, além do mais, o seguinte: «os executados são assim responsáveis pelo pagamento ao exequente do valor de € 13.453,64, bem como dos juros que sobre esta quantia se vencerem à taxa legal dos juros comerciais desde a data de apresentação da livrança a pagamento – 27.12.2013 – até integral e efectivo pagamento, que nesta data perfazem já o valor de € 780,68».


*


1. A fundamentação do despacho recorrido é, sucintamente, a seguinte:

- De acordo com o Assento do STJ n.º 4/92, nas letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16.06, e não a prevista nos n.ºs 2 dos artigos 48.º e 49.º da LULL;

- O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83 estabelece que o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais;

- Actualmente (entenda-se, em 13.11.2014, data da prolação do despacho recorrido), atento o previsto no n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil, os juros legais estão fixados na Portaria n.º 291/03, de 08.04, sendo de 4%;

- Consequentemente, o recorrente tem direito aos juros legais, mas não aos juros comerciais, que não estão abrangidos pelo título executivo.

O recorrente contrapõe a seguinte argumentação:

- Resulta do requerimento executivo e do teor da livrança que esta dimana do incumprimento de um contrato comercial;

- O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02, deu nova redacção aos §§ 2.º, 3.º e 4.º do artigo 102.º do Código Comercial;

- O n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil estabelece que «os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em Portaria conjunta dos Ministros da Justiça, das Finanças e do Plano»;

- Os juros comerciais não são juros ilegais;

- O § 2.º do artigo 102.º do Código Comercial, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, manda aplicar, aos juros comerciais, o disposto nos artigos 559.º-A e 1146.º do Código Civil;

- No que respeita aos juros comerciais, há ainda que atender ao disposto na Portaria n.º 1105/2004, de 23.08, na sequência do que consta do § 4.º do artigo 102.º do Código Comercial;

- Os juros comerciais são os que derivam de créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, e a taxa respectiva não pode ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do primeiro dia de Janeiro ou de Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1.º ou no 2.º semestres do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais;

- Na esteira da Portaria n.º 1105/2004, têm sido publicados os competentes avisos;

- O Assento do STJ n.º 4/92 foi proferido aquando da discussão, então em curso, sobre se os juros que se podiam pedir em execuções de letras e livranças eram apenas à taxa de 6%, conforme a LULL, ou os juros comerciais então em vigor, juros legais também, mas não juros civis;

- Consequentemente, é aplicável ao caso dos autos a taxa estabelecida pela lei para os juros comerciais e não aquela que o é para os juros civis.

O recorrente não tem razão, pelas razões que se seguem.

2. O recorrente alega, no requerimento executivo, que «o valor da livrança corresponde ao quantitativo em débito, à data do respectivo vencimento, com referência às obrigações resultantes e emergentes do incumprimento do contrato de locação financeira n.º 34983, celebrado entre os executados e o EX-(…) CRÉDITO SFAC, S.A.». Está escrito na livrança o seguinte: «Contrato Vendas Crédito n.º (…)». Apesar destas referências à relação subjacente e à fonte desta, é fora de dúvida que o título executivo é a livrança e não o contrato de locação financeira, desde logo porque consta do requerimento executivo o seguinte: «Título Executivo: Livrança».

A livrança não constitui um mero documento probatório da celebração do contrato de locação financeira, antes corporizando uma relação jurídica diversa da subjacente, sujeita a um regime jurídico próprio, denominada relação cambiária. É neste sentido que se diz que o direito cartular incorporado na livrança é abstracto: «o direito impregnado no título não é uma parte da relação fundamental, mas uma realidade nova, um quid distinto; depois, e por isso, um quid que não tem comunicação com a relação fundamental, que não pode ser afastado ou afectado por qualquer defeito desta.»[1]

Não há, pois, confusão possível entre a relação cambiária e a relação subjacente, como não pode haver entre o regime jurídico de cada uma delas. Nomeadamente, nada impede que a lei estabeleça taxas de juro diferentes para a hipótese de mora do devedor no âmbito de cada uma dessas relações. E, ainda que o legislador estabeleça taxas de juro idênticas, os juros moratórios devidos no âmbito da relação cambiária não se confundem com aqueles que são devidos no âmbito da relação subjacente.

O recorrente optou por dar à execução a livrança, preenchida de acordo com o quantitativo em débito, à data do seu vencimento, no âmbito da relação subjacente. Sendo assim, é aplicável a taxa de juros moratórios que a lei estabelece para a livrança e não a taxa de juros moratórios que a lei ou o contrato estabelecem para a relação subjacente.

Tudo isto para concluir que, ao contrário do que o recorrente sugere, a natureza comercial ou civil da relação subjacente não influi no regime jurídico da taxa de juros moratórios por falta de pagamento da livrança. Essa taxa é sempre a mesma.

3. Qual é essa taxa?

A resposta a esta questão é dada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16.06, ao estabelecer que o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.

O recorrente põe em causa que a referência aos «juros legais» equivalha a «juros civis», argumentando que «os juros comerciais não são juros ilegais». Todavia, não desenvolve este argumento, antes se limitando a enunciar esta última frase.

É evidente que os juros comerciais não são juros ilegais, no sentido de contrários à lei. Contudo, não é isso que está em discussão, mas sim a interpretação das normas que contêm a referência a «juros legais». Importa precisar se esta expressão é sinónima de «juros civis», de «juros comerciais», ou, indistintamente, destas duas categorias.

A redacção original do n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil era a seguinte: «São de cinco por cento ao ano os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo.» Este artigo sofreu uma única alteração, através do Decreto-Lei n.º 200-C/80, de 24.06, da qual resultou a redacção actual do n.º 1, que é a seguinte: «Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano».

Por seu turno, o artigo 102.º do Código Comercial regula os juros comerciais desde a sua versão originária, que era a seguinte: «Artigo 102.º Haverá logar ao decurso e contagem dos juros em todos os actos commerciaes em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiaes fixados no presente código. § 1.° A taxa de juros commerciaes só póde ser fixada por escripto. § 2.° Havendo estipulação de juros sem fixação de taxa, ou quando os juros são devidos por disposição legal, os juros commerciaes são de cinco por cento.» A referência deste artigo aos juros comerciais manteve-se até à actualidade, não obstante as alterações que o mesmo sofreu.

Regulando o Código Civil os «juros legais» e o Código Comercial os «juros comerciais», parece-nos evidente que os primeiros são os «juros civis», por isso regulados no Código Civil, contrapondo-se aos segundos, invariavelmente designados como «juros comerciais» e por isso regulados no Código Comercial, ainda que, como actualmente acontece, por remissão para normas do Código Civil em alguns aspectos.

Portanto, a diferenciação legal entre os juros legais ou civis e os juros comerciais é clara. Os juros civis são regulados no Código Civil e os juros comerciais são-no no Código Comercial. A designação dos juros civis como juros legais, uma vez que é feita no Código Civil e concomitantemente com a regulação dos juros comerciais no Código Comercial, nem sequer é criticável por imprecisão, pois, nestas circunstâncias, é evidente que se reporta aos juros civis. Seja como for, é esta a terminologia legal, concorde-se ou não com ela.

Sendo assim, não há dúvida de que a referência, constante do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, aos «juros legais», tem em vista a taxa dos juros civis, determinada nos termos previstos no n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil. Por força da Portaria n.º 291/2003, de 08.04, que se mantém em vigor, essa taxa é de 4% ao ano.

Vai neste sentido toda a jurisprudência que conhecemos sobre esta questão. Salientamos a seguinte: STJ 23/10/2007 (Mário Cruz), RG 26.04.2006 (Rosa Tching), RL 18.10.2007 (Pereira Rodrigues), RC 15.03.2011 (Falcão de Magalhães), RL 10.01.2012 (Luís Lameiras), RL 08.05.2014 (Olindo Geraldes), RG 08.10.2015 (José Amaral) e RE 27.02.2020 (Tomé de Carvalho).

4. Resta deixar uma nota sobre a relevância do Assento do STJ n.º 4/92 para a questão que vimos analisando, uma vez que o mesmo é referenciado, quer no despacho recorrido, quer nas alegações de recurso.

A questão resolvida por este assento consistia em saber se, nas letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83, ou a prevista nos n.ºs 2 dos artigos 48.º e 49.º da LULL. Ou seja, estava em causa saber se se aplicava uma fonte de direito internacional ou uma fonte de direito interno.

Esta questão é diferente daquela que vimos analisando, em que as fontes potencialmente aplicáveis são, ambas, de direito interno. Mais precisamente, a questão analisada pelo assento é logicamente anterior àquela que nos vem ocupando. Havendo concorrência entre uma fonte de direito internacional e uma fonte de direito interno, há que resolver esta questão em primeiro lugar. Se tal questão for resolvida no sentido de afastar a aplicabilidade da fonte de direito internacional, então sim, faz sentido a discussão sobre qual das duas fontes internas potencialmente aplicáveis o é na realidade.

Sendo assim, a conclusão a que se chegou no Assento do STJ n.º 4/92 releva para a resolução da nossa questão na estrita medida em que, ao afastar a aplicabilidade da taxa de juros prevista nos n.ºs 2 dos artigos 48.º e 49.º da LULL, abriu a porta à aplicação do direito interno, que é o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/83. Este, que é o ponto de chegada do assento, não passa do ponto de partida da nossa discussão: como interpretar a referência deste preceito aos juros legais?

Respondemos a esta questão em 3. Pela razão que acabamos de referir, fizemo-lo sem recurso ao Assento do STJ n.º 4/92.

5. Concluindo, o tribunal a quo decidiu acertadamente, devendo o recurso improceder.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

Sumário: (…)

Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Cristina Dá Mesquita (1ª adjunta)

Ana Margarida Leite (2ª adjunta)

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[1] Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Títulos de Crédito – Letra, Livrança, Cheque, 2017 – 2.ª edição revista e actualizada, página 57.