PRESCRIÇÕES JUDICIAIS
DECAIMENTO NO PEDIDO DE CONDENAÇÃO DA OUTRA PARTE EM LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DAS CUSTAS
Sumário


I – A “intenção” consubstancia matéria de facto, só assim não sendo, se a conclusão da respectiva verificação tiver de ser encontrada mediante a interpretação de uma declaração negocial, segundo critérios normativos.
II – As presunções judiciais consistem em ilações que o julgador, tendo em conta a sua convicção alicerçada na lógica e nas regras da experiência comum, retira de factos provados, para assim também considerar outros factos, desde que inexista factualidade dada como provada ou não provada que os contrarie.
III – O pedido de uma das partes no sentido de a outra ser condenada por litigância de má fé não pode ser qualificado como um pedido reconvencional, pelo que o respectivo decaimento, não acarreta responsabilidade pelo pagamento de custas.

Texto Integral

Apelações em processo comum e especial (2013)
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Relator: Falcão de Magalhães
1.º Adjunto: Des. Pires Robalo 2.º Adjunto: Des. Luís Ricardo
Apelação n.º 54/22.9T8VLF.C1
 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra1:
 
I - A) - 1) – 2«[…] AA e esposa BB, ambos residentes no Largo ..., ..., ... ..., ..., intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra CC, residente na Travessa ..., Quinta ..., ... ..., e L..., Lda., com sede na Av. ..., ... ..., tendo peticionado a condenação destes no pagamento, solidário, aos autores da quantia de €7.000,00 a título de danos morais que a sua conduta dolosa e de má-fé causou aos autores, acrescida dos juros, à taxa legal, contados desde a sua citação até efectivo pagamento e, ainda, nas custas e procuradoria.
Para sustentar a sua pretensão, alegam os autores, em suma, que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, destinado a habitação, composto de dois pisos, sito no Largo ..., também designado Largo ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho ..., sob o artigo matricial ...66 (anterior artigo ...0 da extinta freguesia ...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...35 da (extinta) freguesia ..., ali inscrito em nome dos autores sob a apresentação 258 de 2021.04.30.
 
Referem que o telhado do referido prédio se encontrava em ruínas, e por isso, no princípio do mês de Agosto de 2021, deram início à colocação de um novo telhado em tudo idêntico ao que antes o prédio teve. Sendo que, no dia 4 desse mesmo mês de Agosto, a ré CC, por si, e em representação da 2.a ré, remeteram uma participação ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ..., que as próprias rés designaram por “Participação de Obra sem Licença”, nos termos que transcreve, e que em suma, solicitava a verificação da obra por se situar no PDM em Zona Especial de Proteção do Alto Douro Vinhateiro e as obras implicarem alterações na estrutura principal do telhado da moradia, sem o devido enquadramento legal; por a obra estar a ser executada pelo proprietário e por isso sem Alvará Profissional e seguros de trabalho, devendo, ser comunicada ao ACT.
Acrescentam os autores que a participação foi acompanhada de duas fotografias e mostra-se assinada pela ré CC e foi remetida ao Senhor Presidente da referida Autarquia por meio de email com o endereço da 2a ré (..........@.....), dia 4 de Agosto de 2021- 10:21h.
Argumentam os autores que, na sequência dessa participação e, por causa dela, a referida Autarquia instaurou um auto de contra-ordenação aos autores relativo à referida obra e, a pedido das rés, comunicou os factos participados à Autoridade para as Condições de Trabalho e ao Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, do que a referida Autarquia deu conta às rés. Ademais, na sequência da referida participação e, por causa dela, a referida Autarquia, por despacho de 5 de Agosto de 2021 deu indicações ao seu fiscal Senhor DD para “promover acção de fiscalização, bem como encetar os procedimentos previstos na lei para a situação em causa”.
 
E assim, em cumprimento de tal despacho, o referido fiscal, no dia 13 de Agosto de 2021, deslocou-se à dita obra que os autores estavam a levar a efeito e deu indicação verbal aos autores para suspenderem a dita obra, o que estes tiveram de acatar. Sendo ainda que poucos dias depois, no dia 18 de Agosto de 2021, o mesmo fiscal, acompanhado do Chefe de Divisão, senhor EE, estiveram novamente no local da dita obra e confirmaram a sua suspensão; por, segundo aqueles, “os autores estavam a colocar um telhado no prédio que antes não tinha, sem a necessária licença” e fizeram constar do auto que então lavraram que “o infrator (referindo-se aos autores) procedeu a obras de alteração e ampliação punível com 500,00€ a 200 000€”.
Segundo os autores, ficando os mesmos inconformados, apresentaram uma reclamação que dirigiram ao senhor Presidente da referida Autarquia, cujos termos transcrevem, e que se prendem em súmula, com a manifestação de desagrado dos autores com o relatório elaborado por não ter havido qualquer alteração nem ampliação, estando o telhado que se encontrava a colocar a ficar exactamente igual ao que estava antes. Mais invocaram os autores nessa reclamação estragos no material.
Na sequência dessa reclamação e, por causa dela, dizem os autores, que a Câmara Municipal ..., em despacho de 27 de Setembro de 2021 concluiu que a obra que os autores estavam a levar a efeito era uma “obra de conservação, isenta de licenciamento”; e no despacho de 8 de Outubro de 2021, concluiu a mesma Autarquia que “os factos reportados na participação não configuram ilícito”. Tendo, consequentemente, através do despacho de 22 de Outubro de 2021, aquela referida Autarquia ordenado o arquivamento do processo de contraordenação que havia instaurado contra os autores e deu indicações a estes para prosseguirem com a dita obra.
 
Concluem os autores que após reclamação, a autarquia constatou ter caído num logro a que foram conduzidos por actuação das rés.
Por outra parte, argumentam os autores que corre termos neste mesmo Tribunal o processo com o n°134/21...., que os aqui autores moveram contra FF e mulher, GG, que tem como pedido a condenação destes a retirar o capoto e o revestimento de granito que colocaram e mantêm no exterior da parede do seu prédio que fica sobre o telhado do prédio dos ali autores, devendo deixar e manter o espaço aéreo correspondente ao prédio dos ali autores completamente livre e desocupado, e que a 1.ª ré é filha dos ali réus e testemunha naquele processo.
Sendo que, argumentam os autores, pela actividade de arquitectura exercida as rés sabiam, e tinham obrigação de saber, que a obra de substituição do telhado que os autores estavam a levar a efeito, dispensava licença. Pelo que, na perspectiva dos autores, as rés foram unicamente movidas por vingança quanto à instauração daquela outra acção, tendo agido com dolo e má fé.
Os autores invocam, então, que a conduta das rés e a consequente paralisação da obra que os autores tiveram de acatar, obrigou os autores a defender-se da maldosa participação que as rés apresentaram na dita Autarquia, sendo os autores pessoas idosas e de pouca escolaridade, tendo tido necessidade de pedir a quem lhe tratasse dessa defesa junto da referida Autarquia, onde tiveram de se deslocar por várias vezes.
Ao que acresce que, tiveram a dita obra parada por mais de dois meses, e os materiais que tinham para incorporar na obra, nomeadamente, areia e vigas de madeira, ficaram danificadas com as chuvas que, entretanto, caíram nesse período.
 
Tendo esta situação gerado aos autores, preocupações, incómodos e trabalhos e, relativamente à autora BB, que desde que tem questões judiciais com os pais da ré CC, sofre de depressão, essa depressão agravou-se com este episódio.
Entendem, pois, os autores que se mostraram verificados os pressupostos da responsabilidade civil para que as rés sejam condenadas a pagar-lhe indemnização que peticionam no valor de €7.000,00 (cfr. fls. 3 a 7 v.°). *
Devidamente citadas, as rés apresentaram contestação, tendo ainda peticionado a condenação dos autores como litigantes de má fé (cfr. fls. 22 a 25 v.°).
Assim, referem desde logo as rés que a presente acção carece de fundamento factual, legal e até moral, sendo antes exemplo de má fé. Admitem as rés que a 1.a ré assinou a participação, que elaborou, remetida ao Presidente da Câmara Municipal ..., mas a mesma não tem, nem tinha em 2021, qualquer relação de trabalho, representação ou sequer era gerente ou legal representante da 2.a ré, nem era trabalhadora desta. A 1.a ré é antes sócia e gerente da sociedade comercial em que trabalha, a A..., Lda., na qual é também sócio um dos gerentes e legais representantes da 2.a Ré, o Sr. Arquitecto HH, marido da 1.a ré, e motivo pelo qual lhe pediu que enviasse a participação à Câmara, tendo usado o e-mail da 2.a ré. Sendo que, afirmam as rés, esta foi a única intervenção da 2.ª ré na questão em apreço nos autos. Resultando tal expresso no e-mail remetido, onde declara estar a enviar a participação da 1.ª ré, cujos dados constam desta. Não tem já a 2.ª ré qualquer responsabilidade pelo facto de os serviços da Câmara na tramitação subsequente, e terem indevidamente classificado como requerente a 2.a ré em vez da 1.a ré.
 
Ademais, a 1.ª ré limitou-se a, de modo legítimo, participar os factos que viu e verificou, em inícios de Agosto de 2021, no local onde o autor se encontra a executar a obra.
De facto, aduzem as rés, o que se via na via pública, aquando da participação, era uma obra de reconstrução do telhado em ruínas, na casa dos autores, e obra que margina a norte com a rua pública, onde circulam regularmente os pais da ré, morados vizinhos e proprietários de terrenos agrícolas que frequentam regularmente e aí circula também a 1.a ré quando se desloca a casa dos pais.
E por isso, pelo potencial risco de acidentes na execução da obra em causa, nomeadamente, com movimentação de vigas e barrotes de madeira, telhas, etc, que pudesse por em perigo a saúde e segurança dos seus pais, e atenta a natureza da obra que se via em execução - obras de construção de um telhado, com vigamento novo, cujas características a Ré não podia conhecer, nem controlar, em zona de protecção do Alto Douro Vinhateiro - a ré efectuou a participação no legítimo exercício da sua cidadania e ao abrigo da legislação em vigor.
Por outra parte ainda, dizem as rés que como resulta da documentação anexa à petição inicial, a obra dos autores tinha, pelo menos, por objectivo a reconstrução de um telhado em ruínas, com vigamento novo, em área classificada do Alto Douro Vinhateiro. E atendendo à legislação aplicável a mencionada obra de conservação dos autores carecia de licenciamento, ou pelo menos, de parecer prévio da entidade que tutela a área classificada, e o que apenas seria possível se os autores tivessem comunicado à Câmara a execução da obra, por ser executada naquele sítio classificado como acima dito, tal como a 1.a ré entendia e continua a entender.
Sendo que foi, aliás, errada a decisão da Câmara.
 
Em todo o caso, o certo é que esta tramitou como entendeu a situação participada pela 1.a ré, e as obras que os autores tinham em curso não permitiam concluir se eram obras de conservação ou se havia alteração da forma do telhado e até da cércea do edifício em causa, mas que sempre carecia de licenciamento, ou ao menos, parecer prévio.
Resumem as rés que a 1.a ré se limitou a exercer um direito e até um dever de cidadania, sem qualquer intuito daqueles que os autores lhe imputam, e a 2.a ré nada fez. Inexistindo qualquer facto ilícito que causasse aos autores danos, nada, pois, lhes devendo.
Como se começou por dizer, as rés aduzem, ainda, que os autores litigam de má fé já que deduzem, dolosamente, pretensões cuja falta de fundamento conhecem pessoalmente e não podem ignorar até por resultar da lei. Efectivamente, argumentam as rés que os autores sabem e têm obrigação de saber que as Rés, bem como qualquer pessoa, poderia ter efectuado a participação que apenas a Ré CC efectuou e que foi enviada pelo e-mail da L..., sua única intervenção nesta questão. E ademais, imputam às rés que a sua conduta causou danos aos autores quando a tramitação posterior à participação é apenas imputável à Câmara.
Pelo que, afirmam as rés, os autores actuam neste processo com dolo intenso e agem, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, unicamente com vista a conseguirem um avultado ganho económico a que não têm qualquer direito.
E assim, peticionam a condenação dos autores como litigantes de má fé, em pagamento de uma multa a fixar equitativamente pelo Tribunal e, ainda, na indemnização as rés, relativa ao reembolso das despesas a que a presente litigância os vai obrigar, incluindo a totalidade dos honorários do seu mandatário, que serão fixados por recurso aos mecanismos previstos no
 
Estatuo da Ordem dos Advogados para o efeito, considerando, desde já, o valor de €120,00/hora, relegando-se a sua quantificação para momento ulterior. *
Notificados para se pronunciar quanto à eventual condenação como litigantes de má fé, vieram os autores apenas dizer que a resposta a tal pedido das rés se encontra nos fundamentos da acção se encontram na petição inicial para a qual remetem (cfr. fls. 35 v.°). *
Foi proferido despacho saneador no qual se fixou o valor da causa, se declarou a instância válida e regular, e se fixou o objecto do litígio e os temas da prova.
Foram, ainda, programados os actos a realizar na audiência final (cfr. fls. 36 a 40 v.°). […]»;
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2) – O valor fixado à causa foi o de €7.000,00 (despacho de 24.10.2022).
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B) – Realizada que foi a audiência final, na parte dispositiva da sentença de 14/11/2023, que veio a ser proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., consignou-se o seguinte:
«[…] Face a tudo o exposto, julgo totalmente improcedente, por não provada, a presente acção, e em consequência, absolvo as rés CC e L..., Lda. de tudo o peticionado.
Absolvo, ainda, os autores AA e BB do pedido de condenação como litigantes de má fé.
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Condeno os autores na totalidade das custas do processo, nos termos do disposto no artigo 527.°, n.° 1 e 2, do Código de Processo Civil. […]»; *
II – a) - Inconformados com a sentença, vieram os Autores dela interpor recurso, oferecendo, na respectiva alegação, as seguintes conclusões: «1ª- Tendo a douta sentença dado com provado (al. E) que a ré CC foi auxiliada pelo seu marido (Engenheiro de profissão e legal representante da Ré L...), na redacção da participação e que foi a Ré L..., através do seu marido, quem remeteu a participação à Câmara Municipal ..., parece-nos que dúvidas não existem sobre a legitimidade passiva de ambas as rés.
2ª- A intenção com que as rés apresentaram a participação em causa, não é passível de ser provada pelos autores.
A motivação que levou as rés a apresentarem a participação deve resultar do contexto em que ela foi apresentada, ou seja, deve ser obtida por presunção recorrendo aos factos conhecidos, como determina o disposto no art.349° do CC.
3ª - Constando do teor da participação, que o Tribunal deu como provado, que a motivação que as rés ali invocaram foi por as obras implicarem alterações na estrutura principal do telhado da moradia, sem o devido enquadramento legal.
Tendo as rés alegado e o Tribunal dado como provado (al. JJ) que as obras que os autores tinham em curso à data da participação nem sequer permitiam concluir se se tratava de obras de conservação, ou se haveria alteração da forma do telhado e até da cércea do edifício em causa, as rés mentiram deliberadamente quando ali invocaram, para justificar a sua participação, as alegadas alterações na estrutura principal do telhado.
 
4ª - Por outro lado, as rés não invocaram nessa participação razões de segurança ou de cidadania, o que só na contestação vieram alegar.
Se, como as rés alegaram na sua contestação, as obras que os autores tinham em curso à data da participação, não permitiam concluir se se tratava de obras de conservação, ou se haveria alteração da forma do telhado e até da cércea do edifício, o seu dever de cidadania era, antes de apresentarem a participação, informarem-se de que tipo de obras se tratava.
Em vez disso, as rés, não querendo perder a oportunidade de se vingarem do processo que os autores instauram contra os pais da ré CC, apressaram-se a apresentar a participação onde invocaram os referidos factos que sabiam não corresponder à verdade.
Recorrendo à presunção inscrita no art.349° do CC, parece-nos imperativo concluir que as rés agiram de má-fé por mera vingança.
5ª - Tendo os autores provado que a conduta dolosa rés causou aos autores preocupações, incómodos e trabalhos e que sendo os autores pessoas idosas e de pouca escolaridade tiveram de pedir a quem lhe tratasse da sua defesa junto da Autarquia, onde tiveram de se deslocar várias vezes; e que tiveram a obra parada por mais de dois meses, e que os materiais que tinham para incorporar na obra ficaram danificados (als. P, Q, R, S, e T), salvo melhor opinião, deveria o Tribunal de P Instância ter condenado as rés, em regime de solidariedade, a pagar aos autores a quantia de 7 000,00€ a título de danos morais, quantia esta que as rés não impugnaram.
6ª - Salvo melhor opinião, a douta sentença fez uma errada interpretação dos factos dados como provados.
7ª - Mesmo que, por mera hipótese, a acção não fosse de proceder, tendo as rés pedido a condenação dos autores como litigantes de má-fé em indemnização, que incluía, para alem de multa, os honorários do seu
 
mandatário que calcularam em 120,00€/h, tal pedido, considerando 20h de trabalho, seria estimado em 2400,00€ ao que acresceria o IVA no montante de 552,00€ e eventuais despesas, para alem da peticionada multa. Ou seja, o pedido das rés poderia ultrapassar a quantia de 3000,00€. Ora, na prática, trata-se duma reconvenção deduzida pelas rés da qual decaíram, pelo que, salvo melhor opinião, devem ser condenadas nas respectivas custas.
Deve, pois, revogar-se a douta sentença e substituir-se por douto acórdão que julgue a acção procedente e condene as rés no pedido peticionado pelos autores, como nos parece de JUSTIÇA
Mesmo que assim não venha a ser entendido, deverão as rés ser condenadas nas custas relativamente ao pedido que formularam contra os autores […]».
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b) - As Apeladas, na resposta à alegação de recurso, vieram, entre o mais, afirmar que os recorrentes deveriam ter dado cumprimento ao disposto no artº 685º-B, do CPC (ponto 15), para, depois, sustentarem, paradoxalmente, «[…] não tendo sido impugnada a matéria de facto, os factos provados têm de se considerar definitivamente assentes no processo e não permitem a presunção erradamente vertida no recurso […]». Acabam por defender a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida. 
* III - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, do novo Código de Processo Civil3, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/6, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por
 
imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”4 e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Ora, no presente caso, importa saber:

- Se há, na realidade, por parte dos Recorrentes, atendível impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto;

- Se, em face da matéria de facto que se tiver como provada, é de alterar a sentença no que concerne à aí decidida improcedência da acção e, ainda que assim não seja, ao menos, se é de condenar as RR nas custas atinentes à improcedência pedido que formularam, de condenação dos Autores como litigantes de má fé.

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IV - 1) - O Tribunal “a quo”, na sentença, proferiu a seguinte decisão quanto à matéria de facto:
«a) Factos provados e não provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

A) O prédio urbano destinado a habitação, composto de dois pisos, sito no Largo ..., também designado Largo ..., localidade de ..., freguesia e conselho de ...,

 
inscrito na matriz predial urbana da indicada freguesia sob o artigo matricial ...66 (anterior artigo ...0 da extinta freguesia ...), e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...35 da (extinta) freguesia ..., encontra-se inscrito e descrito em nome dos autores sob a Ap. ...58 de 2021.04.30.

B) O telhado do prédio referido em A) encontrava-se em ruínas, pelo que os autores, no princípio do mês de Agosto de 2021, deram início à colocação de um novo telhado, que veio a revelar ser em tudo idêntico ao que antes o prédio teve.

C) No dia 4 desse mesmo mês de Agosto, a ré CC, por si, remeteu uma participação ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ..., que as próprias rés designaram por “Participação de Obra sem Licença”, com o seguinte teor: «ASSUNTO: Participação de obra sem licença CC, portadora do cartão de cidadão nº ...01, com Contribuinte nº ...47, com morada na Travessa ..., Quinta ..., ... ..., vem pela presente solicitar a vossa verificação à obra que decorre no Largo ..., ..., ... ..., ..., em virtude da mesma se situar no PDM em Zona Especial de Proteção do Alto Douro Vinhateiro e as obras implicarem alterações na estrutura principal do telhado da moradia, sem o devido enquadramento legal (conforme fotografias). Mais se informa que a obra está a ser executada pelo proprietário, e como tal sem o devido Alvará Profissional e respetivos seguros de trabalho. Pela natureza dos trabalhosalteração da cobertura- a mesma deverá também ser comunicada ao ACT, com o devido Plano de Segurança e Saúde no Trabalho, de acordo com o
Decreto-Lei n° 273/2003 de 29 de outubro.»

 

D) Essa participação, acompanhada de duas fotografias, encontra-se assinada pela ré CC e foi remetida ao Senhor Presidente da referida Autarquia por meio de email com o endereço da 2a ré (..........@.....), dia 4 de Agosto de 2021, pelas 10:21h.

E) A ré CC pediu ao marido, Eng. HH, legal representante da ré L..., Lda. que enviasse a participação referida em C), ao que este acedeu, tendo auxiliado na redacção da mesma, e usado para o efeito o email da L....

F) A autarquia instaurou um auto de contra-ordenação aos autores relativo à referida obra, e comunicou os factos participados à Autoridade para as
Condições de Trabalho e ao Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, do que a referida Autarquia deu conta às rés.

G) Na sequência e por causa da participação referida em C), por despacho de 5 de Agosto de 2021 a autarquia deu indicações ao seu fiscal Senhor DD para “promover acção de fiscalização, bem como encetar os procedimentos previstos na lei para a situação em causa”.

H) No dia 13 de Agosto de 2021, o fiscal referido em G) deslocou-se à dita obra que os autores estavam a levar a efeito e deu indicação verbal aos autores para suspenderem a dita obra, o que estes tiveram de acatar. I) No dia 18 de Agosto de 2021, o mesmo fiscal, acompanhado do Chefe de Divisão, senhor EE, estiveram novamente no local da dita obra e confirmaram a sua suspensão; por, segundo aqueles, “os autores estavam a colocar um telhado no prédio que antes não tinha, sem a necessária licença” e fizeram constar do auto que então lavraram que “o infrator (referindo-se aos autores) procedeu a obras de alteração e ampliação punível com 500,00€ a 200 000€”.

 
J) Inconformados com tal procedimento, os autores apresentaram uma reclamação que dirigiram ao senhor Presidente da referida Autarquia com o seguinte teor: «Venho pelo presente meio, eu AA, proprietário da casa em ... onde as obras de conservação estão a ser realizadas, apresentar provas com fotografias anexas, assim como três testemunhas em como nas obras acima referidas não há alterações nem ampliação ao que já existia. Dando seguimento a uma denuncia contra a minha pessoa relativo às obras que estava a realizar, no dia 13 de Agosto de 2021, o Sr. DD, fiscal de obras do Município ..., deslocou-se ao local e mandou-me parar as obras, sem qualquer documento oficial relativo ao pedido feito pelo respectivo, para averiguar em seguida se as obras estavam a ser feitas na conformidade. Aparentemente eu estaria a colocar um telhado inexistente sem as devidas autorizações legais para o efeito. No dia 18 de Agosto de 2021, Sr. DD, Fiscal de Obras e o Sr. EE
II, Chefe da Divisão de Higiene e Meio Ambiente e Obras Particulares do Município ..., deslocaram-se ao local. Estando a minha esposa presente no momento, foi solicitado pela mesma para entrar e verem o que estava a ser feito, mas foi dito que não seria necessário. A única pergunta feita à minha esposa relativo aos trabalhos, foi porque é que eu tinha decidido colocar o telhado, onde ela respondeu que simplesmente estava a compor o telhado porque tinha caído. No relatório que foi feito pelo Sr. DD, Fiscal de Obras, e do Sr. EE, Chefe da Divisão de Meio Ambiente e obras particulares, consta que houve alteração e ampliação nas obras de conservação realizadas até então. Assim sendo, venho contestar e manifestar o meu desagrado ao relatório feito, porque o que consta não corresponde à verdade. Não houver qualquer alteração, nem ampliação. As obras que
 
estão a ser realizadas por mim, são a colocação de um novo telhado, ao qual o antigo que já existia tinha caído derivado já ser muito antigo. O novo telhado está e vai ficar exatamente como estava desde sempre. Caso queriam confirmar, podem a qualquer momento deslocar-se e confirmar no local, tanto no exterior como no interior da casa, para verificarem que realmente não houver qualquer modificação e que o telhado sempre existiu. Onde tenho ainda o material antigo que estava, como as telhas e vigas de madeira. Sendo necessário, e para testemunhar o que acima afirmo, estão à disposição três testemunhas que o podem confirmar. As testemunhas são: JJ, KK e LL. Derivado ao que me foi ordenado, para parar com a continuação dos trabalhos, o telhado não foi finalizado. Decorrido este tempo todo e visto que o telhado não foi terminado, existem partes do mesmo que não tem telha, provocando assim deterioração de material, como das vigas de madeira expostas ao sol e às chuvas, águas essas que entram para a parte interior da casa estragando assim também o material no interior do local (como fotografias anexas a comprovar). Assim como o material necessário para a realização do mesmo, como a areia que derivado às fortes chuvas, foi espalhada pela rua sem qualquer hipótese de recuperação. Na esperança que esta situação se resolva o mais depressa possível, peço ao Exmo. Senhor Presidente juntamente aos demais responsáveis, para poder continuar os trabalhos e assim não ter ainda mais prejuízos.»”.
K) Na sequência dessa reclamação e, por causa dela, a Câmara Municipal ..., em despacho de 27 de Setembro de 2021 concluiu que a obra que os autores estavam a levar a efeito era uma “obra de conservação, isenta de licenciamento”.
 
L) E, no despacho de 8 de Outubro de 2021, concluiu a mesma Autarquia que “os factos reportados na participação não configuram ilícito”.
M) Consequentemente, através do despacho de 22 de Outubro de 2021, aquela referida Autarquia ordenou o arquivamento do processo de contraordenação que havia instaurado contra os autores e deu indicações a estes para prosseguirem com a dita obra.
N) Corre termos neste mesmo Tribunal o processo com o n.° 134/21...., que os aqui autores moveram contra FF e mulher, GG, que tem como pedido a condenação destes a retirar o capoto e o revestimento de granito que colocaram e mantêm no exterior da parede do seu prédio que fica sobre o telhado do prédio dos ali autores, devendo deixar e manter o espaço aéreo correspondente ao prédio dos ali autores completamente livre e desocupado.
O) CC é filha dos réus naquele indicado processo e está ali indicada como sua testemunha.
P) A apresentação de participação pelas rés e a paralisação da obra que os autores tiveram de acatar, obrigou os autores a defender-se da participação que as rés apresentaram na dita Autarquia.
Q) Os autores são pessoas idosas e de pouca escolaridade, pelo que tiveram de pedir a quem lhe tratasse dessa defesa junto da referida Autarquia, onde tiveram de se deslocar por várias vezes.
R) Os autores tiveram a dita obra parada por mais de dois meses.
S) Os materiais que os autores tinham para incorporar na obra, nomeadamente, areia e vigas de madeira, ficaram danificadas com as chuvas que, entretanto, caíram nesse período.
T) Os procedimentos desencadeados pela Câmara geraram aos autores, preocupações, incómodos e trabalhos e, relativamente à autora BB
 
, que desde que tem questões judiciais com os pais da ré CC, sofre de depressão.
U) A Ré CC não tem, e também não tinha em 2021, qualquer relação de trabalho ou de representação na e da Ré L....
V) A Ré CC não é, nem nunca foi, gerente e/ou legal representante da L....
W) A ré CC não é, tal como não era no ano de 2021, trabalhadora a cargo da Ré L....
X) A ré CC é sócia e gerente na sociedade comercial imobiliária em que trabalha, a A..., Lda., na qual também é sócio um dos gerentes e legais representantes da Ré L..., o Arquitecto HH, marido da ré.
Y) A obra referida em B) decorria à data da participação mencionada em
C).
Z) A obra referida em B) situa-se em Zona Especial de Protecção do Alto Douro Vinhateiro.
AA) A obra referida em B) implicava a alteração das vigas de madeira e respectivos barrotes de descarga.
BB) A obra referida em B) encontrava-se a ser executada pelo autor marido.
CC) Inexistia na obra referida em B) qualquer alvará profissional ou seguro de trabalho para execução de obra.
DD) A obra implicava risco de queda em altura.
EE) O autor solicitou licença de ocupação da via com colocação de andaimes.
FF) O que se via da via pública, à data da referida participação, era a execução de uma obra de reconstrução do telhado em ruínas, na dita casa dos autores, obra essa que margina a Norte com uma rua pública.
 
GG) Por essa rua circulam regularmente os Pais da Ré CC, ali moradores vizinhos e proprietários de terrenos agrícolas que frequentam também regularmente, tal como circula a Ré CC quando ali se desloca em visita a seus Pais, bem como diversas outras pessoas.
HH) O licenciamento, ou pelo menos, o parecer prévio da entidade que tutela a área classificada só era possível se os autores tivessem comunicado previamente a execução da obra.
II) A Câmara tramitou como entendeu a participação efectuada pela ré CC.
JJ) As obras que os autores tinham em curso à data da participação nem sequer permitiam concluir se se tratavam de obras de conservação, ou se haveria alteração da forma do telhado e até da cércea do edifício em causa. *
Não resultaram provados os seguintes factos:
1) A participação referida em C) foi igualmente remetida por CC em representação da ré L..., Lda. 2) As rés, pela própria actividade de arquitectura que exercem, sabiam, e tinham obrigação de saber, que a obra de substituição do telhado que os autores estavam a levar a efeito, dispensava licença.
3) As rés, ao apresentarem a dita participação contra os autores, foram unicamente movidas por acto de vingança, pelo facto dos aqui autores terem instaurado o referido processo contra os pais da ré CC, pelo que, agiram com dolo e má-fé.
4) Enviar, por e-mail, o requerimento da participação elaborada pela Ré CC foi a única intervenção da L... no que tange à questão em apreço nos presentes autos.
5) Os autores sabem e têm obrigação de saber que as Rés, bem como qualquer pessoa, poderia ter efectuado a participação que apenas a Ré
 
CC efectuou e que foi enviada pelo e-mail da L..., sua única intervenção nesta questão.
6) Os autores actuam neste processo com dolo intenso e agem, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, unicamente com vista a conseguirem um avultado ganho económico a que não têm qualquer direito.
7) A depressão da autora referida em T) agravou-se com este episódio.». *
2) – Os Recorrentes, entre o mais, alegam o seguinte:
«[…] 2ª- A intenção com que as rés apresentaram a participação em causa, não é passível de ser provada pelos autores.
A motivação que levou as rés a apresentarem a participação deve resultar do contexto em que ela foi apresentada, ou seja, deve ser obtida por presunção recorrendo aos factos conhecidos, como determina o disposto no art.349° do CC.
(…)
Tendo as rés alegado e o Tribunal dado como provado (al. JJ) que as obras que os autores tinham em curso à data da participação nem sequer permitiam concluir se se tratava de obras de conservação, ou se haveria alteração da forma do telhado e até da cércea do edifício em causa, as rés mentiram deliberadamente quando ali invocaram, para justificar a sua participação, as alegadas alterações na estrutura principal do telhado.
(conclusão 3ª). (…) as rés, não querendo perder a oportunidade de se vingarem do processo que os autores instauram contra os pais da ré CC, apressaram-se a apresentar a participação onde invocaram os referidos factos que sabiam não corresponder à verdade.
 
Recorrendo à presunção inscrita no art.349° do CC, parece-nos imperativo concluir que as rés agiram de má-fé por mera vingança. (conclusão 4ª).
[…]».
Vejamos.
Tem sido jurisprudência do STJ, que a “intenção” consubstancia matéria de facto, só assim não sucedendo, se a conclusão da respectiva verificação tiver de ser encontrada mediante a interpretação de uma declaração negocial segundo (ou por aplicação de) critérios normativos. (Acórdão do STJ, de 13-01-2005, Revista n.º 4158/04 - 2.ª Secção, relatado pelo Cons. 
Ferreira de Almeida).
No caso, a pretensão dos AA, que se dizem lesados pela conduta das RR – uma participação contra eles ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ..., designada por “Participação de Obra sem Licença” - importava que provassem que a mesma tinha sido adoptada por estas, que a sabiam sem fundamento, por mera vingança.
As presunções judiciais – que não se reconduzem a um meio de prova propriamente dito, como se salienta no Acórdão do STJ, 14/7/2016 (Proc. n.º 377/09.2TBACB.L1.S1) – consistem em ilações, ou seja, em inferências que o julgador, tendo em conta a sua convicção alicerçada na lógica e nas regras de experiência comum, retira de factos provados para assim também considerar outros factos, que, não obstante não ter havido sobre eles prova directa, seriam, em circunstâncias idênticas, as mais das vezes, consequência daqueles (cfr. 349° e 351º do Código Civil).
Importa salientar, porém, que as presunções judiciais têm de assentar em factos que, não só hajam sido alegados pelas partes, como sejam hábeis a suportar a inferência que está subjacente àquelas, pois que as inferências permitidas são as que se alicerçam em sólida base factual provada de que o facto inferido seja consequência lógica.
 
Dito isto, há que admitir que, embora, na prática, tal situação seja muito pouco frequente, o Recorrente pode, exclusivamente com base nos factos provados - salvaguardadas as limitações resultantes dos artºs 393º a 395º do Código Civil -, requerer à Relação que a tais factos sejam aditados outros que, de alguns daqueloutros, provados, sejam de extrair, por presunção judicial que o Tribunal “a quo”, indevidamente, não extraiu. (cfr.
Acórdão       da      Relação       de      Lisboa,        de      20/12/2022, Apelação     nº 17760/20.5T8LSB.L1-7).5
Para que isto seja possível, é necessário, porém, que não haja factualidade dada como provada, ou não provada, que contrarie os factos que se pretende que se extraia(m) por presunção, ou que, existindo essa factualidade, o Recorrente a impugne validamente. (Cfr. Acórdão do STJ, de 01-06-2017, Revista n.º 883/14.7T8BRG.G1.S2 - 7.ª Secção – Relator: Cons. Salazar Casanova).6
Ora, desde logo, os factos provados que os RR apontam para o efeito, não consubstanciam base suficiente, para, mediante a sua consideração e a ponderação das regras da experiência comum, deles extrair, por ilação, a factualidade que os RR pretendem que se dê por assente.
Para além disso, a presunção que se pretende extrair, vai contra os seguintes factos que se deram como não provados e que os Recorrentes não impugnaram, ao invés daquilo que lhes cumpria fazer, em conformidade com o acima exposto:
«[…] 2) As rés, pela própria actividade de arquitectura que exercem, sabiam, e tinham obrigação de saber, que a obra de substituição do telhado que os autores estavam a levar a efeito, dispensava licença.
3) As rés, ao apresentarem a dita participação contra os autores, foram unicamente movidas por acto de vingança, pelo facto dos aqui autores
 
terem instaurado o referido processo contra os pais da ré CC, pelo que, agiram com dolo e má-fé. […]». (os sublinhados são nossos).
Acresce que, na sentença, ainda se diz:
«[…] Diga-se somente, em jeito de conclusão, que atenta a posição das partes, o que importa apurar era, no fundo, a motivação da participação apresentada, e quanto a esta, ainda que resulte clara a existência de conflitos entre os autores e os pais da 1.ª ré, e que os mesmos não falavam e que, eventualmente falando até poderia ter interpelado os autores ao invés de avançar com a participação, a verdade é que não foi feita prova que se tratou de uma qualquer vingança. É que, como se percebeu, a própria Câmara Municipal, por meio dos seus engenheiros e fiscais, também tiveram dúvidas acerca da necessidade ou não de licenciamento, e a verdade é que a tramitação levada a efeito pela Câmara apenas a esta respeita. Com efeito, se se tratasse de participação totalmente infundada, nem sequer teria motivado diversas idas ao local da obra, e diligências.
Isto para concluir que da apreciação conjugada de toda a prova, não resultou demonstrado qualquer acto de vingança. […]».
De tudo o acima exposto decorre que é de manter inalterada a decisão proferida na sentença quanto à matéria de facto, sendo a factualidade provada, e a não provada, aquela aí considerada como tal e que mais acima está discriminada.
*
A absolvição dos AA do pedido de condenação como litigantes de má fé e a decisão proferida na sentença quanto a custas.
Sustentam os Apelantes:
«[…] Mesmo que, por mera hipótese, a acção não fosse de proceder, tendo as rés pedido a condenação dos autores como litigantes de má-fé em indemnização, que incluía, para alem de multa, os honorários do seu mandatário que calcularam em 120,00€/h, tal pedido, considerando 20h de trabalho, seria estimado em
 
2400,00€ ao que acresceria o IVA no montante de 552,00€ e eventuais despesas, para alem da peticionada multa.
Ou seja, o pedido das rés poderia ultrapassar a quantia de 3000,00€.
Ora, na prática, trata-se duma reconvenção deduzida pelas rés da qual decaíram, pelo que, salvo melhor opinião, devem ser condenadas nas respectivas custas. Deve, pois, revogar-se a douta sentença e substituir-se por douto acórdão que julgue a acção procedente e condene as rés no pedido peticionado pelos autores, como nos parece de JUSTIÇA
Mesmo que assim não venha a ser entendido, deverão as rés ser condenadas nas custas relativamente ao pedido que formularam contra os autores. […]».
O pedido das RR no sentido de os AA serem condenados como litigantes de má fé não pode ser qualificado como um pedido reconvencional. Na verdade, tal pedido é alheio aos requisitos exigidos em qualquer das alíneas do nº 1 do artº 266º, bem como a qualquer dos restantes pressupostos previstos nesse artigo, não tem, ao invés da reconvenção, de ser formulado na contestação (artº 583º, nº 1), podendo-o ser após os articulados, e até, em sede de recurso, não tendo, diferentemente daquilo que nas mais das vezes sucede com a reconvenção (artº 299º, nº 1 e 2), qualquer influência no valor da causa.
Veja-se o que se escreveu no Acórdão desta Relação de Coimbra, de 20/06/2012, Apelação nº 391/10.5TBTNV-A.C17:
«[…]» segundo a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 305.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que «A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido», sendo este o valor, acrescenta o n.º 2 deste artigo, que determina «…a competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal».
 
Face a estas regras, verifica-se, sem esforço, que o pedido de indemnização com base na litigância de má fé não tem qualquer conexão com «a utilidade económica imediata do pedido» e é apenas esta utilidade, como se viu, que conta para efeitos de determinar o valor do processo.
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta questão no seu acórdão de 22 de Novembro de 2006 (http://www.gdsi.pt, processo n.º 06S1542), tendo decidido que «O pedido de condenação da parte contrária, como litigante de má fé, em multa e em indemnização, não releva para a determinação do valor da causa, nem pode ser tido em conta para achar o valor do decaimento do pedido com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não» […]».
E é elucidativo o que, já há muitos anos, escreveu o Prof. José Alberto dos Reis, em anotação ao artº 466º do Código de 39 - preceito equivalente ao artº 543º do NCPC8: «Foram postas à Revista de Legislação duas questões:
1ª O montante da indemnização acresce ao pedido para o efeito de alçadas e recurso, isto é, para o efeito de fazer aumentar o valor da acção? 2ª Pode pedir-se indemnização em processos de jurisdição voluntária?
A Revista respondeu negativamente à primeira pergunta e afirmativamente à segunda (Ano 79º, págs. 60 e 61). Concordamos com as respostas.».  
Do exposto resulta, pois, que improcede, também, o pedido de condenação dos AA em custas pelo decaimento dos RR no pedido de condenação daqueles como litigantes de má fé.
Importa, pois, concluir, que, inalterada a matéria de facto fixada na sentença “sub judice”, nesta solucionaram-se correctamente as questões que se suscitavam, sendo acertada a improcedência da acção, com a consequente absolvição das RR de tudo o peticionado e a condenação dos AA, porque vencidos, nas custas da acção.
*
 
V – Decisão
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra, em, na improcedência da Apelação, confirmar a sentença do Tribunal “a quo”.
*
Custas pelos Apelantes (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
 
18/6/20249


(Luiz José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Luís Manuel Carvalho Ricardo)

 
 
                                                 
1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Transcrição de extracto do relatório da sentença recorrida.
3 Doravante NCPC, pois que só se utilizará a sigla “CPC” para referir o código pretérito, ou, excepcionalmente, nos casos em que transcrevemos texto onde essa sigla foi já utilizada para identificar o novo Código de Processo Civil.
4 Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de
08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, ou com uma outra, vierem a ser citados adiante.
5 Os Acórdãos e decisões sumárias dos Tribunais da Relação, que sejam citados sem referência de publicação, poderão ser consultados:
- Os da Relação de Coimbra, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase;
- Os da Relação de Lisboa, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase.
6 “(…) A Relação, não obstante ser a última instância de facto e dispor, por isso, do poder de firmar um facto desconhecido a partir de facto ou factos conhecidos (arts. 349.º e 351.º do CC) não pode, com base em  
                                                                                                                                                        
presunção judicial, considerar provado facto ou factos que, alegados, foram objeto de julgamento que os houve por não provados. (…) – extracto do sumário do Acórdão.
7 Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.
8 Código de Processo Civil Anotado Vol. II, pág. 283.
9 Processado e revisto pelo Relator.