I - Porque a lei não faz ali qualquer distinção quanto a quem possa ser demandado, as ações previstas na alínea b) do nº3 do art. 82º do CIRE podem ser propostas contra anterior administrador da insolvência e/ou outras pessoas e, como se prevê no nº 5 daquele mesmo art. 82º, apenas se exige é que sendo a ação interposta contra anterior administrador – só ou acompanhado de outra ou outras pessoas – tem que ser intentada pelo administrador que lhe suceda.
II – Devendo a ação ali prevista correr por apenso ao processo de insolvência (art. 82º nº 6 do CIRE), é materialmente competente para a mesma o tribunal onde corre o processo de insolvência.
Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro
2º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório
“Massa Insolvente de A..., Lda.”, representada pelo Administrador da Insolvência, propôs ação declarativa comum contra AA e BB, deduzindo o seguinte pedido:
“a) ser a primeira Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €109.048,13, bem como dos juros legais desde a citação até efectivo e integral cumprimento;
b) ser o segundo réu condenado solidariamente com a primeira ré a pagar à Autora a quantia de €22.500,00 (dos €109.048,13 supra peticionados), bem como dos juros legais desde a citação até efectivo e integral cumprimento; e
c) ser a primeira ré condenada, nos termos do disposto no artigo 556.º do CPC, no pagamento à Autora dos valores que se vierem a apurar estar ainda em falta na conta bancária desta, por referência à liquidação por aquela realizada quanto aos bens por si apreendidos no âmbito do processo nº 249/12.3TBGRD a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, montante a ser oportunamente liquidado em sede de execução de sentença”.
Alegou para tal, em síntese:
- por decisão proferida a 6/3/2012 no processo nº 249/12.3TBGRD, do então 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda e, mercê da reorganização judiciária entretanto ocorrida, do atual Juízo Local Cível da Guarda, Juiz 1, foi declarada a insolvência da sociedade comercial “A..., Lda”, com sede em Parque Industrial, lotes ..., ... ..., e foi a ré AA nomeada administradora de tal insolvência;
- a ré, por decisão de 8/3/2029, foi entretanto destituída de tais funções naquele processo;
- que aquela ré, em proveito próprio ou de desconhecidos, ordenou a saída da quantia de €79.566,53 da conta bancária da massa insolvente, não apresentando qualquer justificação documental para tal;
- que da quantia de €32.432,11, recuperada judicial e extrajudicialmente com recurso à prestação de serviços do mandatário da massa insolvente, não foram pela ré depositados na conta da massa insolvente €6.981,60, desconhecendo-se o destino que a mesma deu a tal montante;
- que resta saber qual o verdadeiro valor pelo qual foram vendidos bens apreendidos que indica e qual o destino que foi dado a esse montante;
- que no âmbito do processo de insolvência, a 1 de Maio de 2013, a ré acordou com a sociedade comercial “B..., Lda” ceder-lhe onerosamente o uso, gozo e fruição de um conjunto de bens móveis pertencentes à insolvente; esse acordo previa que a locatária “B..., Lda”, como contrapartida pelo gozo e fruição dos mesmos, procedesse ao pagamento de €7.500,00 anuais; tal acordo vigorou por 3 anos e aquela sociedade procedeu ao efetivo pagamento de €22.500,00; esse valor pago pela locatária nunca deu entrada na conta bancária da massa insolvente; isto porque, astuciosamente, os dois réus, na elaboração do contrato de locação dos bens móveis pertencentes à “A...”, fizeram figurar como locador apenas o segundo réu, marido da ré e apresentado como colaborador da então administradora, e não a própria massa insolvente; tal atitude ardilosa dos réus passou despercebida à locatária, não causando estranheza ao seu legal representante, na medida em que a pessoa que figurou como locador dos bens pertencentes à insolvente foi apresentada como colaborador da ré; aquele legal representante transferiu €22.500,00 para o IBAN indicado pelos réus e que não surge identificado no contrato em apreço, IBAN esse que não pertence à demandante;
- que a primeira ré tem obrigação de indemnizar a autora em, pelo menos, €109.048,13, e o segundo réu tem a obrigação de indemnizar a autora, solidariamente com a primeira ré, em pelo menos €22.500,00.
Apresentada a petição inicial a despacho liminar, foi pela Sra. Juíza proferida a seguinte decisão, da qual se transcreve a fundamentação e o dispositivo final:
“Cumpre apreciar e decidir:
Atento o supra exposto, cumpre apreciar da competência material deste tribunal.
A competência dos tribunais é um pressuposto processual que consiste numa condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, sendo aferida face à configuração dada pelo Autor na alegação da causa de pedir e pedido formulado. Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 2ª Ed, pg.13 e Manuel de Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra Ed., 1976, pg. 90.
A falta de tal competência, in casu, material, configura uma exceção dilatória que obsta que o tribunal conheça do mérito da causa.
A competência em razão da matéria dos tribunais comuns é residual estabelecendo-se em função da matéria que se discute na ação não estar atribuída a outra ordem jurisdicional – artigo 211º/1 da Constituição da República Portuguesa, artigo 64º do Código de Processo Civil e 40º/1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
A aferição da competência em razão da matéria é feita em função do pedido efetuado e da causa de pedir.
Como resulta do supra exposto a causa de pedir em que assenta a pretensão da Autora é a violação pela 1ª Ré das obrigações de Administradora de Insolvência.
O artigo 128º/1 da LOSJ, que estabelece a competência material do Tribunal do Comércio, dispõe que “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização”, acrescentando no seu nº 3 que “A competência a que se refere o n.1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.
Do exposto, impõe-se apreciar se a ação destinada a fazer valer a responsabilidade do administrador da insolvência constitui um incidente ou um apenso do processo de insolvência.
No que se refere à responsabilidade do administrador da insolvência, o artigo 59º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, estabelece que: “O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.
Neste âmbito - da responsabilidade do administrador da insolvência estabelecida neste normativo - Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª Ed., pg. 357 e ss. referem que: “Há aqui de específico o facto de estarmos em presença de uma modalidade funcional de responsabilidade, que se fundamenta na violação de deveres postos a cargo do administrador da insolvência na satisfação da missão geral de que está encarregado.”.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não contém qualquer norma quanto à competência, em razão da matéria, para conhecer das ações respeitantes à responsabilidade civil do administrador baseadas no artigo 59º.
No entanto, o artigo 82º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que “3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir: (…) b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência; (…) 5 - Toda a ação dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda. 6 - As ações referidas nos n.os 3 a 5 correm por apenso ao processo de insolvência.”.
Tal disposição resulta de o processo de insolvência conter especificidades quer quanto à sua estrutura quer quanto à sua dinâmica que justificam a intervenção de um juízo especializado, com ganho de eficiência técnica, que se traduz numa melhor administração da justiça. (cf. Ac. RL, de 08.03.2018, in www.dgsi.pt).
Em anotação a este artigo, Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pg. 363 referem que: “O Código não resolveu a questão relativa à competência jurisdicional para o exercício da acção de responsabilidade nem ao processamento respectivo. Decorre, entretanto, do nº 3, do artigo 7, que o tribunal competente para o processo é igualmente para todos os seus incidentes e apensos. Acontece, porém, não existir nenhuma disposição que, por si só, sustente a conclusão de a acção de responsabilidade constituir um incidente ou um apenso do processo. Isto dito, há que convir em que a responsabilidade do administrador, resultando da violação funcional dos deveres que lhe incumbem, é originada no próprio devir processual e constitui, por isso, uma questão inteiramente conexionada com a insolvência. Neste contexto, cremos que o tribunal do processo será ainda competente para a acção de responsabilidade que, então, deve ser autuada por apenso. Esta solução é, de resto, não só a que melhor se ajusta aos princípios da economia processual, como também a que melhor permite um adequado julgamento. E é suportada pelo sentido geral do art. 91, nº 1, do C.P.Civ.”.
Tendo em conta a causa de pedir, o universo dos lesados (a massa insolvente e, consequentemente, todos os credores da insolvente), que a presente ação contende com os interesses da massa e que a responsabilidade do administrador de insolvência resulta da violação funcional de deveres que lhe incumbem, que é originada no próprio devir processual, está intrinsecamente conexionada com o processo de insolvência.
Por todo o exposto, nos termos do disposto no artigo 82º/3/b) e 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 128º/1 e 3, da LOSJ, entendo que a presente ação deve correr por apenso ao processo de insolvência. Neste sentido, cf. Ac. da RG de 29.11.2011 e 26.11.2020, in www.dgsi.pt.
Assim, competente para apreciação da ação dos autos é o Tribunal do Comércio.
Pelo exposto, e ao abrigo das normas legais citadas, julgo verificada a exceção de incompetência absoluta, e, consequentemente, absolvo os Réus da instância.”
A autora veio interpor recurso de tal decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) A recorrente intentou os presentes autos contra Administradora de Insolvência destituída no processo nº 249/12.3TBGRD, bem como contra o seu marido, formulando pedido indemnizatório fundado em responsabilidade civil.
B) É alegado, nomeadamente, que o réu marido figurou em contrato como locador em nome individual de bens móveis pertencentes à insolvente e que ordenou à locatária o pagamento das rendas para IBAN desconhecido que não pertencia à massa insolvente, não tendo propriamente provocado directamente uma diminuição do património da insolvente, mas sim, obtendo um enriquecimento sem causa à custa desse , diferentemente da particularidade prevista no artigo 82.º do património mediante a prática de acto ilícito CIRE.
C) Assim, o pedido indemnizatório não assenta única e exclusivamente nos requisitos específicos de natureza insolvencial.
D) Porém, o Tribunal a quo julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do Tribunal e consequentemente, absolveu os Réus da instância, porquanto entendeu que a acção destinada a fazer valer a responsabilidade do administrador da insolvência constitui um incidente ou um apenso do processo de insolvência, nos termos do disposto no artigo 82.º do CIRE, mesmo que não tenha apreciado o facto da acção não se destinar ao apuramento de responsabilidade apenas da Administradora de Insolvência destituída, mas igualmente contra o seu marido nos termos referidos.
E) No entanto, a recorrente entende que “a procedência da pretensão indemnizatória depende também da verificação de outros requisitos (os da responsabilidade civil), que não são especificamente de natureza insolvencial, mas sim de direito civil em geral”, razão pela qual os presentes “deverão correr nos juízos de competência genérica”, tal como resulta do Acórdão proferido por unanimidade a 8/03/2018 Supremo Tribunal de Justiça disponível em www.dgsi.pt que apresenta o seguinte sumário:
“I. O processo de insolvência apresenta especificidades, quer quanto à sua estrutura quer quanto à sua dinâmica (nomeadamente a diversidade tipológica dos intervenientes processuais e a sua natureza urgente), que justificam a intervenção de um juízo especializado, o qual trará um ganho de eficiência técnica e de harmonização decisória (em casos idênticos), que se traduzem numa melhor administração da justiça (por confronto com um hipotético juízo de competência genérica). Todavia, não deverá bastar uma qualquer conexão temática com a matéria da insolvência para que o juízo de comércio seja chamado a decidir.
II. Numa ação de apreciação da responsabilidade do administrador (por não ter pago as rendas devidas pela arrendatária insolvente), embora a factualidade relevante respeite ao incumprimento de deveres próprios da sua função (nos termos do art.59º do CIRE), a procedência da pretensão indemnizatória depende também da verificação de outros requisitos (os da responsabilidade civil), que não são especificamente de natureza insolvencial, mas sim de direito civil em geral. Compreende-se, assim, que a solução específica estabelecida no art.82º, n.5 do CIRE não possa ser estendida às demais hipóteses de responsabilização do administrador da insolvência, as quais deverão correr nos juízos de competência genérica (onde poderão ser apresentados todos os meios de prova que poderiam ser invocados caso as ações corressem por apenso no juízo de comércio).”
F) Desta forma e em consonância com os ensinamentos do STJ supra transcritos em sede de alegações, entende-se que ocorreu erro na aplicação e interpretação do artigo 82.º do CIRE pelo Tribunal a quo ao considerar que os presentes deveriam correr por apenso à acção de insolvência, não devendo ter sido julgada verificada a excepção de incompetência absoluta do Tribunal.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar da competência material do tribunal.
Vamos ao tratamento da questão enunciada.
Como se sabe, é com base na factualidade alegada na petição inicial e na pretensão nela formulada que terá que ser apurada a competência em razão da matéria do tribunal [neste sentido, Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1993, pág.91, e, na jurisprudência, entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 18/6/2015, proc. 13857/14.9T8PRT.P1.S1 (relator Silva Gonçalves), disponível em www.dgsi.pt, no qual se diz que “a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e confrontando-a com o pedido formulado pelo demandante”].
Conforme decorre da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ – Lei da Organização do Sistema Judiciário), a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território (artigo 37º, nº1), estes tribunais, relativamente à competência em razão da matéria, têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art. 40º nº1) e estabelece-se nesta sua esfera de competência uma especialização, em que a competência residual de natureza cível é atribuída aos juízos cíveis ou de competência genérica de cada tribunal de comarca, nos termos estabelecidos pelas disposições daquela mesma lei (vide a propósito, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2018, Almedina, pág. 92).
No caso vertente, porque o Tribunal da Comarca da Guarda não integra Juízo de Comércio (vide Mapa III anexo ao Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março, que regulamenta a Lei de Organização do Sistema Judiciário), o processo de insolvência referido na petição inicial (nº 249/12.3TBGRD) corre termos no Juízo Local Cível da Guarda, pois este juízo local cível, conforme previsto no art. 130º nº1 da Lei 62/2013, de 26/8 (LOSJ), tem competência material a título residual para as matérias próprias de juízo de comércio previstas no art. 128º daquela mesma lei.
Considerando o pedido formulado na ação e a causa de pedir nela alegada, pretende-se por via dela a indemnização de prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência a que respeita aquele processo por atos de retirada e de não entrada de valores pecuniários no património da massa insolvente praticados pela ré, anterior administradora da insolvência, e pelo réu, seu alegado marido.
Está pois em causa ação plenamente subsumível à previsão do art. 82º nº3 b) do CIRE, onde se preceitua que “Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir… “As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência”.
O corpo de tal preceito, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda[1], estabelece, a título exclusivo, a legitimidade do administrador da insolvência para a propositura de certas ações que se referem a casos de responsabilidade de terceiros conexos com a situação de insolvência (sublinhado nosso), sendo que, quanto à previsão da sua alínea b) (a aqui em causa), referem também aqueles, a lei não identifica os autores desses atos e vê-se aliás do nº5 daquele mesmo art. 82º – onde se preceitua que “Toda a ação dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alinea b) do nº3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda” – que pode ser mesmo um anterior administrador da insolvência em causa (o que há de particular nesta última hipótese é que, por força daquele nº5, a ação apenas pode ser proposta pelo administrador que suceda ao administrador faltoso, como igualmente evidenciam aqueles autores).
Isto é, porque a lei não faz ali qualquer distinção quanto a quem possa ser demandado, as ações previstas naquela alínea b) podem ser propostas contra anterior administrador da insolvência e/ou outras pessoas e, como se prevê naquele nº5, apenas se exige é que sendo a ação interposta contra anterior administrador – só ou acompanhado de outra ou outras pessoas, pois precisa-se ali que é “Toda a ação” – tem que ser intentada pelo administrador que lhe suceda, como acontece no caso dos autos.
Como expressamente se prevê no nº6 daquele art. 82º do CIRE, as ações referidas nos seus nºs 3 a 5 “correm por apenso ao processo de insolvência”.
Por outro lado, o juízo local cível da Guarda onde corre o processo de insolvência, mercê da orgânica judiciária e por via da competência material residual prevista no nº1 do art. 130º da LOSJ, é o tribunal cível competente para as matérias próprias de juízo de comércio previstas no art. 128º daquela mesma lei.
Ora, prevê-se neste art. 128º, sob o seu nº1 e respetiva alínea a), que “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar… Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização”, e, sob o seu nº3, que “A competência a que se refere o nº1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões” (sublinhado nosso).
Deste modo, porque a ação dos autos deve correr por apenso ao processo de insolvência, é materialmente competente para a mesma o tribunal onde corre o processo de insolvência – no caso, o Juízo Local Cível da Guarda, por via da sua já referida competência residual para as matérias próprias de juízo de comércio previstas no art. 128º da LOSJ.
Depois deste percurso expositivo, cumpre, para finalizar, referir o seguinte: o Acórdão do STJ de 8/3/2018 referido pela recorrente sob a conclusão E), em abono da sua pretensão de ser considerado competente o tribunal recorrido [proferido no proc. nº 70/13.1TYLSB-E.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt], não se coaduna minimamente com o caso dos autos: a ação a que o mesmo se refere não foi proposta pelo administrador da insolvência, como o têm que ser as ações previstas nas alíneas a), b) e c) do art. 82º do CIRE, e, além disso, em tal ação não estava em causa a responsabilização do administrador pela diminuição do património da massa insolvente, como é o caso dos autos, mas antes a responsabilização deste por dívida de rendas respeitantes a contrato de arrendamento no qual a sociedade insolvente era arrendatária (seria assim, diferentemente daquele, um caso de responsabilização por aumento do passivo da insolvente).
Como assim, do referido em tal acórdão nada resulta em contrário do que acima se concluiu no sentido da competência material do tribunal onde corre o processo de insolvência para a ação dos autos (Juízo Local Cível da Guarda), a qual, como se viu, decorre diretamente da conjugação dos arts. 130º nº1 e 128º nº1 a) e nº3 da LOSJ e do art. 82º nº3 b) e nº6 do CIRE.
Deste modo, é de concluir pela incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal recorrido e, nessa decorrência, pela absolvição dos réus da instância (arts. 576º nº2 e 577º a) do CPC), como decidido na decisão sob recurso.
Na sequência do que se veio de expor, há que julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que nele decaiu (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
…………………………………….
…………………………………….
…………………………………….
III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Porto, 10/7/2024.
Mendes Coelho
Ana Olívia Loureiro
Aristides Rodrigues de Almeida
____________________
[1] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa 2009, pág. 346.