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LIMITE DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
SOBRESSEGURO
RESTITUIÇÃO DE PRÉMIOS
IMPERATIVIDADE DA LEI
Sumário
I. Verifica-se uma situação de sobresseguro sempre que ab initio ou no decurso do contrato o objecto seguro tenha um valor inferior ao valor declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro. II. Verificando-se tal situação é aplicável o disposto no artigo 128º da LCS, pelo que prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, e não a substituição em novo do objecto segurado. Além disso, podem as partes pedir a redução do contrato (nº1 do artigo 132º da LCS) e estando o tomador do seguro ou o segurado de boa fé, o segurador deve proceder à restituição dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido de redução do contrato, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente (nº2 do artigo 132º da LCS). III. É certo que tais normas contém uma imperatividade relativa, ou supletividade “de sentido único”, podendo ser afastadas por vontade das partes, mas tal tem de resultar inequívocamente das cláusulas contidas na apólice, o que não ocorre no caso. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
Â…, Lda, com o número de pessoa colectiva …, com sede no Lugar da …, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra a G… S.A., com o número de pessoa colectiva, com sede na …, pedindo a condenação desta a pagar a quantia de 36.450,00 € (trinta e seis mil quatrocentos e cinquenta euros), acrescida de juros legais contados desde citação.
Alegou, para tanto e em síntese, que a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro denominado “Produto Máquinas Casco”, ao qual foi atribuído pela Ré a Apólice n.º …, com início em 16 de Março de 2019, duração anual e renovação automática, tendo por objecto a retroescavadora Komatsu, de matrícula … e como valor do capital seguro 67.000,00 €, seguro que estava em vigor aquando da ocorrência de um incêndio, que destruiu a referida retroescavadora, ocorrendo perda total desta, sinistro que a Ré, apesar de aceitar estar coberto pelo seguro em causa, não indemnizou de acordo com as cláusulas do contrato e atendendo ao valor do capital seguro, mas em valor inferior.
A Ré contestou, sustentando que pagou o que era devido nos termos do contrato e impugnou parcialmente a factualidade alegada, tendo pugnado pela improcedência da acção, considerando que a pretensão da Autora configuraria uma situação de enriquecimento sem causa. Mais alegou que a Ré pagou à Autora os prejuízos apurados na máquina segura, tendo a Autora assinado o recibo de indemnização, subscrevendo uma declaração na qual reconhece que se considera “integralmente ressarcido de todos os danos referidos no parágrafo anterior” e “consequentemente declara exonerar o segurador de toda e qualquer responsabilidade que diga respeito ao mesmo sinistro”, pelo que a conduta da Autora, de pretender agora indemnização em valor superior, é contraditória com a declaração previamente por si assumida, e subscrita, configurando uma situação de abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
O Tribunal de Competência Genérica de Lagos declarou-se territorialmente incompetente e remeteu os autos para este tribunal.
A Autora respondeu à excepção de abuso de direito, pugnando pela sua improcedência, sustentando que a Autora ao entregar o recibo emitido pela Ré, em simultâneo, entregou uma declaração de reserva, na qual declarou que não se sentia integralmente ressarcida ao receber a quantia de 22.200,00 €. Mais alegou que, aquando da celebração do contrato de seguro, a Autora chamou à atenção da Ré que a máquina retroescavadora era usada, tendo, para comprovar esse facto, entregue à Ré a factura de aquisição e, mesmo assim, comunicaram-lhe que nos contratos de seguro na modalidade de “seguro casco” era assim que se celebravam e que, em caso de sinistro com perda total, a companhia de seguros pagava o valor em novo ao segurado, sendo que o prémio a pagar pela autora foi calculado pelo valor de uma máquina nova. Conclui que a Autora apenas se limitou a exercer um direito absolutamente legítimo e a Ré, por sua vez, está a faltar à verdade e a tentar litigar contra um comportamento negocial que impôs à Autora.
Foi realizada audiência prévia, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se audiência final e de seguida foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu a Ré do pedido.
Inconformada veio a Autora recorrer, formulando as seguintes conclusões:
«(…) 3. O Tribunal recorrido julgou por não provado a seguinte factualidade que resultou da alegação contida nos artigos 4.º, 5.º e 6.º da resposta à contestação: “aquando da celebração do contrato de seguro, o então sócio gerente da Autora, perante o valor do seguro do capital atribuído pela Ré, chamou à atenção dos serviços da Ré que a máquina retroescavadora era usada, tendo-lhe sido comunicado por estes que nos seguros na modalidade de “seguros casco” era assim que eram celebrados e que, em caso de sinistro com perda total, a Ré pagaria o valor em novo ao segurado”
4. A convicção do tribunal recorrido baseou-se no facto de “considerar insuficiente o depoimento da testemunha A...por este ter revelado interesse na causa, uma vez que o seu filho hoje assume as funções de gerente da Autora, sendo que tal depoimento não foi corroborado por qualquer outra prova.
5. Ora aqueles factos mereciam resposta diversa no sentido de serem julgados provados.
6. Os concretos meios probatórios que impunham uma resposta diferente são os seguintes:
7. A testemunha A...revelou, logo no interrogatório preliminar, que era o gerente da Autora à data da celebração do contrato e que agora é o seu filho, pois reformou-se, conforme resulta da passagem gravada do seu depoimento desde do minuto um e quinze segundos até ao um minuto e trinta segundos. (1´15´´ a 1´15´´).
8. Por isso, a relação da testemunha com a Autora foi logo revelada, jurando a testemunha dizer a verdade e só a verdade: o que aconteceu.
9. O facto de ter um interesse indirecto na causa não é por si causa de menor credibilidade e da sua insuficiência.
10. Não é de aceitar que, sem mais, que quem tem interesse indirecto na causa não transmita a realidade, isto é, que se conclua de forma automática e necessária pela sua insuficiência ou falta de credibilidade.
11. A realidade e o normal acontecer que a justiça valoriza, à partida, não o admite.
12. As declarações da testemunha ...são de quem viveu os factos e a forma como os relatou exprimem verosimilhança que se terá de relevar.
13. Por outro lado, os factos relatados pela testemunha não foram contraditados ou sequer postos em dúvida pela Ré e pelo Tribunal, tendo este se abstido realizar qualquer contraditório para aferir da isenção da testemunha.
14. Por outro lado, os factos relatados foram confirmados pela testemunha M..., mediador de seguros da Ré.
15. A testemunha A…, na passagem registada ao minuto dois e vinte segundos (2´20´´) até ao minuto terceiro (3´) refere que entregou a cópia da factura para poder fazer o seguro; também disse que foi um seguro feito pela seguradora e não pelo mediador.
16. Ora, estes factos foram confirmados pela testemunha M..., mediador da Ré, no seu depoimento, na passagem gravada no minuto doze (12´) até ao minuto doze e trinta segundos (12´30´´).
17. A testemunha, A…, relatou que informou que a máquina era usada, cfr. passagem ao minuto três e trinta segundos (3´30´´) até ao minuto quatro (4´). Do depoimento da testemunha M... resulta que lhe foi dito que a máquina tinha mais de 10 anos, cfr. Passagem do seu depoimento registado ao minuto onze até ao minuto onze e quinze segundos (11´a 11´15´´.).
18. Quanto ao valor da apólice, o valor seguro, a testemunha A...relatou com limpidez os factos, afirmando que sabia do valor da máquina atribuído pela Ré e o valor de aquisição da máquina, cfr. passagem gravada do seu depoimento desde o minuto três e cinquenta segundos (3´50´´) até quatro minutos e quinze segundos (4´15´´).
19. A testemunha M... corroborou este facto no seu depoimento na passagem ao minuto catorze, a catorze e trinta segundos (14´a 14´30´´).
20. Quanto ao valor da responsabilidade da Ré, substituição em novo em caso de perda total, dito pela testemunha A...passagem da gravação no minuto quatro a quatro e trinta segundos (4´a 4´30´´) a testemunha M... corroborou no depoimento que pode ser confirmado no seu depoimento desde o minuto catorze e trinta segundos (14´30´´) a quinze minutos e vinte segundos (15´20´´).
21. Portanto, o depoimento da testemunha A...foi corroborado pela testemunha M... e pelo documento n.º 1 junto com a petição inicial que é a declaração das partes relativas às condições particulares a aplicar à execução e cumprimento contratual.
22. Deste modo, terá de concluir-se, ao contrário da decisão do Tribunal recorrido, que o depoimento da testemunha ...foi corroborado por outros meios de prova.
23. Por outro lado, face à limitação do Tribunal da Relação para sindicar a produção da prova testemunhal, dá para perceber, pela gravação, a forma despreendida, espontânea, natural e por isso credível com que a testemunha ...depôs.
24. Assim, os concretos meios de prova indicados testemunhal e documental impõem uma resposta de PROVADO ao facto identificado na conclusão 3.
O DIREITO APLICADO
25. O Tribunal recorrido aplicou ao presente caso, exclusivamente, a Lei 72/2008, de 16 de Abril, designadamente, o disposto nos artigos 49.º, 128, 129, 130, 131, e 132.º da referida Lei.
26. Como das suas disposições resulta, mormente do seu artigo 11.º, o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual tendo carácter supletivo as regras do regime da Lei 72/2008, de 16 de Abril.
27. Ao aplicar o princípio indemnizatório previsto e regulado no artigo 128.º da Lei 72/2008, de 16 de Abril, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do direito e da lei.
28. Com efeito, repete-se, aquela norma é meramente supletiva.
29. O Tribunal deveria aplicar a convenção estabelecida entre as partes, a auto regulamentação fixada nas condições particulares e nas cláusulas contratuais gerais da apólice de “seguro casco”.
30. Na falta de convenção entre as partes é que devem ser accionadas as disposições supletivas.
31. Para afastar qualquer tipo de confusão sobre a aplicação da Lei 72/2008, o legislador definiu as disposições absolutamente imperativas, as que não admitem convenção em sentido diverso,
32. e as relativamente imperativas, as que admitem um regime mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou beneficiário, previsão que consta nos artigos 12.º e 13.º da Lei 72/2008.
33. Ora, nenhuma das aplicadas pelo Tribunal recorrido é absolutamente imperativa.
34. Só a norma prevista no artigo 132.º é relativamente imperativa e mesmo assim não foi interpretada no sentido mais favorável à segurada, a aqui Autora.
35. Pelo que a interpretação formulada pelo Tribunal recorrido é ilegal sem prejuízo de a considerar inútil tendo em conta o que foi convencionado pelas partes.
36. Com efeito, o que se discute na acção é a determinação do quantum da indemnização a que tem direito o segurado em consequência do sinistro.
37. O Tribunal recorrido aplicou as disposições da Lei que regulam o princípio indemnizatório - artigos 128.º a 132.º da Lei 72/2008, de 16 de Abril.
38. Afastando, assim, a convenção concluída entre as partes.
39. Ora, como se disse, as disposições legais do princípio indemnizatório da Lei 72/2008, são supletivas, tendo o próprio preâmbulo se referido a esse princípio nos seguintes termos: “Apesar de o princípio indemnizatório assentar basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo, prescrevem-se várias soluções, nomeadamente quanto ao cálculo da indemnização, ao sobresseguro, à pluralidade de seguros, ao subseguro e à sub –rogação do segurador”
40. Os que as partes contrataram é a lei que deve vigorar entre elas. Não o que está na lei de forma supletiva que só é accionado se as partes não dispuserem de modo diferente ou até em contrário.
41. E mesmo que surgisse alguma imperatividade, a própria lei, também no preâmbulo não deixa de tomar posição: “Superando o regime do Código Comercial, mas sem pôr em causa o princípio da liberdade contratual e o carácter supletivo das regras do regime jurídico do contrato de seguro, prescreve-se a designada imperatividade mínima com o sentido de que a solução legal só pode ser alterada em sentido mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário. Regula-se, assim, numa secção autónoma, a imperatividade das várias disposições que compõem o novo regime. Merece destaque a reafirmação da autonomia privada como princípio director do contrato.”
AO DEMAIS
42. Ainda, a fundamentação pelo Tribunal recorrido às normas supletivas não se compreende também tendo em conta o alegado pelas partes em sede de articulados.
43. Na P.I. a Autora fundamenta o seu direito nas cláusulas contratuais concluídas com a Ré, designadamente, fazendo apelo às condições particulares e condições gerais do contrato “máquinas casco”.
44. A Ré, na sua contestação, jamais invocou o princípio indemnizatório constante na Lei 72/2008, num claro reconhecimento e aceitação de que tais dispositivos da lei não são aplicáveis à relação jurídica estabelecida entre autora e Ré.
45. A Ré limita-se a alegar o abuso de direito, quando foi a própria a criar a situação e o enriquecimento sem causa da Autora.
46. As excepções foram julgadas improcedentes.
47. Pelo que também por esse fundamento, as regras a aplicar ao presente litígio são as que foram estabelecidas pelas partes.
48. O que foi estabelecido pelas partes consta dos factos provados nos números 1, a 10 da sentença.
49. E o que as partes convencionaram foi que, em caso de perda total, como foi o caso destes autos – n.º 4 da sentença – o valor da indemnização era o valor da máquina em novo até ao limite da franquia e da dedução do valor do salvado.
49-A. Existe, portanto, acordo expresso quanto ao valor de substituição.
49-B. Facto que está consagrado nas condições particulares cujo conteúdo serviu outrossim para a determinação do pagamento do preço.
50. Uma vez que ficou provado que o valor de uma máquina em novo à data da ocorrência do sinistro era de € 74.000,00, a Ré deve responder pela totalidade do valor seguro: € 67.000,00.
51. Na verdade, julgamento foi realizado para se apurar o valor em novo, à data do sinistro, de uma máquina com iguais características àquela que se perdeu com o sinistro.
52. Do julgamento resultou a resposta que o valor da máquina em novo era de € 74.000,00.
53. Na verdade, para substituir a máquina perdida, a Autora teria de gastar, pelo menos, como gastou, € 74.000,00.
54. Como estava segurada em € 67.000,00 teria de receber o montante segurado deduzido da franquia estabelecida.
55. E nada mais justo que ser assim: como foi provado nos autos, o valor do prémio pago pela Autora foi fixado em 6 por mil sobre € 67.000,00.
56. Se fosse um caso de sobresseguro e se acaso tivesse aplicação a este caso concreto, teria que ser decidido em sentido mais favorável à Autora: a aplicação das condições do contrato por serem mais favoráveis ao segurado.
57. A sentença recorrida não fez mais do que tornar irrelevante e sem qualquer valor as condições particulares e as condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes.
58. Em nenhum momento, a sentença se refere, em termos substanciais, ao contrato celebrado entre as partes.
59. Faz uma transcrição das cláusulas 15.º e 23.º das condições gerais e passa, imediatamente, para o regime jurídico do contrato de seguro que aplicou.
60. Verifica-se assim errada aplicação do direito por escolha das leis que não se aplicam ao caso sub iudice.».
A recorrida respondeu em contra alegações, concluindo que:
«A) A Recorrente interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo, sustentando:
- A incorrecta aplicação de normas jurídicas;
- Erro notório na apreciação da matéria de facto, por incorrecta valoração do depoimento da testemunha A...consequentemente, ao ter considerado como não provado que: “ Aquando da celebração do contrato de seguro, o então sócio gerente da Autora, perante o valor do seguro do capital atribuído pela Ré, chamou à atenção dos serviços da Ré que a máquina retroescavadora era usada, tendo-lhe sido comunicado por estes que nos seguros na modalidade de “seguro casco” era assim que eram celebrados e que, em caso de sinistro com perda total, a Ré pagaria o valor em novo ao segurado.”
B) Alega a Recorrente que o tribunal a quo procedeu a uma incorrecta aplicação do direito, por ter aplicado normas supletivas, nomeadamente, as disposições constantes dos art. 128º a 132º da Lei 72/2008 de 16 de Abril, em detrimento do que fora, supostamente, acordado pelas Partes, e em violação do princípio da liberdade contratual.
C) A Recorrentea alega que as Partes convencionaram regras indemnizatórias distintas, e que, por serem mais favoráveis ao tomador do seguro, devem ser aplicadas ao caso em apreço.
D) Defende a Recorrente que as Partes contrataram o um valor indemnização, em caso de sinistro, que correspondesse ao valor do objecto do seguro no estado novo.
E) A Recorrente ignora, porém, o disposto na cláusula 23º/3 das condições gerais da apólice, segundo a qual “No caso de Perda Total das máquinas ou instalações seguras, o Segurador prestará ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que elas tinham à data do sinistro (…)”
F) Extrai-se, assim, da leitura da aludida cláusula que, em caso de perda total, o valor a considerar é aquele que a máquina tinha à data do sinistro.
G)Resulta, ainda, da parte final da aludida cláusula 23º/3 que, para efeitos indemnizatórios, ao valor da máquina sinistrada será deduzido o valor relativo à sua depreciação natural.
H) Neste sentido, resulta da factualidade provada, nomeadamente, do facto provado nº 9 que: “ Aquando da celebração do contrato de seguro a Autora entregou à Ré a factura de aquisição da máquina referida em 1., datada de 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 26.500,00€, acrescida de IVA, com a descrição Komatsu WB93 R-5 (ano 2006), número de série F--- e matrícula ..., que foi adquirida no estado de usada.”.
I) Tendo a Recorrida, após a participação do sinistro e no decorrer da fase de averiguação e quantificação dos danos materiais, contactado empresas de revenda e manutenção deste tipo de máquinas, as quais fixaram o valor do objecto seguro, à data do sinistro, isto é, em 26 de Maio de 2021, em quantia idêntica à da sua aquisição em 2019.
J) Não houve qualquer acordo entre as Partes nos moldes alegados pela Recorrente.
K) De acordo com a interpretação conjugada do disposto nos art. 128º e 131º do RJCS, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro, devendo o valor da indemnização corresponder ao valor de mercado do bem seguro, à data da ocorrência do sinistro.
L) A Recorrente alega, ainda, que o tribunal “a quo” extravasou a matéria alegada pelas Partes, no sentido em que estas, nas suas palavras, nunca pugnaram pela aplicação da lei geral.
M) Desde logo, por imposição do princípio do dispositivo, ínsito no art. 264º do CPC, o tribunal não se encontra vinculado à qualificação jurídica atribuída pelas partes.
N) Não obstante, nas alegações orais apresentadas pelos Mandatário da Recorrida na audiência de julgamento realizada em 17 de Janeiro de 2024, é inequívoca a chamada de atenção para a aplicação da lei geral.
O) A Recorrente sustenta, por fim, que o tribunal “a quo” incorreu em erro notório na apreciação da matéria de facto, não tendo valorado devidamente o depoimento da testemunha A….
P) Suportando a sua tese na conjunção do depoimento da referida testemunha com o depoimento da testemunha M....
Q) Porém, da análise do depoimento desta última testemunha pode extrair-se, sem margem para dúvidas, que este não se recorda do sinistro em apreço.
R) Vigora no nosso ordenamento jurídico, encontrando-se plasmado no art. 607.º/5 do CPC, o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, podendo o juiz fundamentar as suas decisões nos elementos
probatórios que se mostrem mais adequados com vista a uma solução justa do litígio.
S) A Recorrente não foi capaz de demonstrar que o tribunal “a quo” tenha contrariado as regras de experiência comum, ou, por outro lado, que tenha sustentado a sua decisão em pressupostos inaceitáveis, pelo que se deverá manter inalterada a factualidade não provada, fixada na sentença.
T) A decisão do tribunal a quo quanto aos factos não merece qualquer reparo, devendo manter-se integralmente.
U) Em suma, deve o recurso apresentado improceder, por não provado, mantendo-se inalterada a decisão do tribunal de primeira instância.»
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Se é de alterar a decisão em termos factuais nos termos pretendidos pela autora recorrente, dando como provada a matéria que se julgou não provada;
- Se é e considerar como valor indemnizatório, por força do contrato de seguro celebrado, o valor do objecto seguro em novo, ou, ao invés, o valor atribuído ao mesmo na data do sinistro.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. A Autora e a Ré celebraram o contrato de seguro denominado “Produto Máquinas Casco”, junto com a petição inicial como documento n.º 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, com a condições gerais juntas como documento n.º 3 no mesmo articulado, que aqui também se dão por reproduzidas, titulado pela Apólice n.º …, com início em 16/03/2019, duração anual e renovação automática, tendo por objecto seguro a retroescavadora Komatsu, de matrícula ..., sendo o valor do capital seguro de 67.000,00 € e a franquia de 10 %, com a taxa comercial aplicada para a determinação do prémio de 6 por mil.
2. Do artigo 15.º das condições gerais do contrato referido em 1. consta: “1. A responsabilidade do Segurador é sempre limitada à importância máxima fixada nas Condições Particulares. 2. O valor seguro relativo a cada máquina ou instalação deverá corresponder ao seu valor de substituição, à data do sinistro, por uma máquina ou instalação novas, de idênticas características e rendimento, acrescido das despesas de frete, montagem e direitos alfandegários, observando-se, em caso de sinistro, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º. 3. Se o valor seguro for, à data do sinistro, inferior ao valor calculado nos termos do n.º 2, o Segurado responderá por uma parte proporcional dos prejuízos”.
3. Do n.º 3 do artigo 23.º das condições gerais do contrato referido em 1. consta: “No caso de Perda Total das máquinas ou instalações seguras, o Segurador prestará ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que elas tinham à data do sinistro. Para os efeitos do número anterior, entende-se por valor à data do sinistro, o de compra, em novo, na mesma data, de uma máquina ou instalação com idênticas características e rendimento, acrescido das despesas de montagem, fretes normais e direitos alfandegários, deduzindo-se, no entanto, o valor relativo à depreciação natural sofrida pela máquina ou instalação segura.”
4. A Autora participou à Ré, em 26 de Maio de 2021, a ocorrência de um incêndio, num estaleiro da Autora, sito em Lagos, em consequência do qual a máquina segura - retroescavadora Komatsu, de matrícula ... - ficou danificada, tendo a Ré considerado a existência de perda total.
5. A Ré assumiu a responsabilidade pela indemnização do sinistro e pagou à Autora, em 23 de Agosto de 2021, a quantia de 22.200,00 €, tendo considerado como valor o da aquisição da máquina 26.500,00 €, deduzido da franquia no valor de 2.650,00 € e o valor do salvado de 1.650,00 €.
6. O salvado foi vendido por 1.650,00 €.
7. Aquando do recebimento do valor referido em 5., a Autora assinou o recibo junto com a petição inicial como documento n.º 2, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta: “O titular aceita receber a quantia acima indicada como completa indemnização por todos os prejuízos sofridos neste sinistro e indemnizáveis ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice em referência, com o recebimento da aludida quantia, considera-se, para todos os efeitos legais, integralmente ressarcido de todos os danos referidos no parágrafo anterior, consequentemente declara exonerar o segurador de toda e qualquer responsabilidade que diga respeito ao mesmo sinistro subrogando-o nos correspondentes direitos, acções e recursos contra quaisquer outras pessoas eventualmente responsáveis pelo sinistro”.
8. A Autora anexou ao recibo referido em 7. uma declaração, junta com a petição inicial como documento n.º 2, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que enviou à Ré, com o seguinte teor: “Declaração de Reserva que acompanha recibo de indemnização da Companhia de Seguros Tranquilidade A…, Lda (…) vem emitir declaração de reserva ao recibo por si assinado relativo ao sinistro coberto pelo contrato de seguro (…) no sentido de que o recebimento de parte da indemnização no montante de € 22.200,00 € (…) não constitui renúncia a que a declarante possa exigir indemnização de valor superior pelo sinistro ocorrido no dia 26/05/2021 (…)”.
9. Aquando da celebração do contrato de seguro a Autora entregou à Ré a factura de aquisição da máquina referida em 1., datada de 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 26.500,00 €, acrescida de IVA, com a descrição Komatsu WB93 R-5 (ano 2006), número de série F--- e matrícula ..., que foi adquirida no estado de usada.
10. Em 26 de Maio de 2021, o valor de aquisição, em novo, de uma retroescavadora do modelo Komatsu WB93 R-5 era de cerca de 74.000,00 €.
*
Deu-se ainda como facto não provado o seguinte:
- Aquando da celebração do contrato de seguro, o então sócio gerente da Autora, perante o valor do seguro do capital atribuído pela Ré, chamou à atenção dos serviços da Ré que a máquina retroescavadora era usada, tendo-lhe sido comunicado por estes que nos seguros na modalidade de “seguro casco” era assim que eram celebrados e que, em caso de sinistro com perda total, a Ré pagaria o valor em novo ao segurado.
* Da impugnação da decisão de matéria de facto:
Na motivação dos factos que considerou provados e não provados o tribunal a quo fundamentou o seguinte: “O tribunal deu como provada a factualidade elencada em 1. a 8. com base no acordo das partes, por falta de impugnação, no teor da apólice de seguro e das condições gerais juntas com a petição inicial, no relatório de peritagem junto pela Ré e no recibo e anexo juntos com a petição inicial, documentos que não foram impugnados. Relativamente à factualidade vertida em 9., considerou o tribunal o depoimento da testemunha A...,à data dos factos gerente da Autora, conjugado com o depoimento da testemunha M…, que trabalha para a mediadora de seguros que mediou o contrato de seguro em causa nos autos e que confirmou tal factualidade, e com o teor da factura que foi junta com o relatório de peritagem apresentado pela Ré. No que concerne ao facto descrito em 10., considerou o tribunal a informação prestada pela empresa S… Limitada, junta aos autos a 4 de Dezembro de 2023. Quanto ao facto não provado, o tribunal considerou insuficiente o depoimento da testemunha A...por ter revelado interesse na causa, uma vez que o seu filho hoje assume as funções de gerente da Autora, sendo que tal depoimento não foi corroborado por qualquer outra prova.”.
Irresignada com a resposta negativa que antecede, veio a Autora pugnar pela sua alteração, tendo por base o depoimento de A...mas igualmente de M….
O ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art. 640.º do C.P.C., impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objecto de impugnação. Acresce que o mesmo preceito exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permite pôr em causa o sentido da decisão da 1ª instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorrectamente julgados e que se pretende ver modificados (Cfr. Ac. do STJ de 03.12.2015, , in www.dgsi.pt. ).
Salienta-se ainda que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Importa ainda ter presente que nos termos da jurisprudência do AUJ ( nº 12/2023, DR, 1.ª série, de 14-11-2023) se fixou que: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
Face ao alegado e transcrito em sede de recurso, importa apreciar o que decorre dos depoimentos indicados, tendo igualmente por base as suas razões de ciência.
A testemunha A...afirmou que, em 2019, era o gerente da Autora, dizendo que actualmente assume tais funções o seu filho. Afirmou igualmente que foi o próprio que realizou o contrato de seguro, dizendo que neste caso não foi feito pelo mediador directamente, mas sim pela seguradora, pelo que teve de aguardar uns dias. Aludiu que entregou a cópia da factura “para ser realizado o seguro”, e que a máquina custou 30 e poucos mil euros com IVA, o mediador sempre lhe transmitiu que para ser feito tal seguro tinha de “enviar para Lisboa, para aceitação”, e quando veio a apólice a testemunha aludiu que constatou que estava errado, pois constava o valor do seguro da máquina nova, quando a máquina era usada. Aludiu que nessa data o mediador ligou para a seguradora e foi-lhe referido que no caso deste tipo de seguro de casco tinha de constar tal valor, pelo que se efectuava o pagamento do prémio em função do valor da máquina nova, e que apenas realizavam o seguro com essa particularidade, ou então não assumiam tal contrato. Ainda foi o próprio que tratou de participar o sinistro e tentou obter o pagamento da indemnização, tendo em conta o valor de uma máquina nova. Dizendo que a seguradora só pagaria vinte e tal mil euros, e “não lhe pagaram logo”, foi o próprio que também assinou o recibo do pagamento. Afirmou que a A. comprou uma máquina de substituição no valor de 90 e tal mil euros, sendo uma máquina igual, mas em novo, mas dizendo que afinal terá sido setenta e tal mil euros, mas por sugestão do mandatário, a que acresce IVA.
Entende que os prémios pagos foram feitos pelo valor da máquina nos termos previsto na apólice, mas tal, nos termos referidos, advém de informação do agente mediador que lhe terá referido tal questão.
AM..., empregado de escritório, afirmou trabalhar na empresa mediadora de seguros onde a A. é cliente, ou seja, é o funcionário da empresa de mediação onde se estabeleceu contactos para a celebração deste contrato de seguro. Referiu que a A. tem mais que um seguro de várias máquinas do mesmo tipo, sabe que relativamente a uma, ocorreu um sinistro. Referiu que a máquina tinha mais de dez anos, pelo que tiveram de pedir autorização da ré, e foi a companhia de seguros que estabeleceu as condições de aceitação da apólice, ou seja, as condições particulares. Não sabe se recebeu a factura da A., ainda que o mandatário a seguir tenha dito “recebeu a factura”, aludiu que tudo foi tratado pela anterior testemunha, não se recordava de “nenhuma conversa em particular” com a testemunha, e a seguradora é que estabeleceu as condições, o mesmo ocorrendo com o valor do prémio, mas que este será normalmente aferido pelo valor atribuído à máquina nas condições particulares. O seguro assegura “tudo o que ocorrer” à máquina, afirmando apenas que tudo “está nas condições particulares”, reiterando repetidamente, sem nunca afirmar a substituição do valor em “novo”, dizendo que no caso específico nem sequer se recorda.
Na apreciação a ter em conta importa ter presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
De sorte que para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Face ao referido quanto ao que resulta da percepção dos depoimentos, resulta evidente que não se logra dar como provado que “Aquando da celebração do contrato de seguro, o então sócio gerente da Autora, perante o valor do seguro do capital atribuído pela Ré, chamou à atenção dos serviços da Ré que a máquina retroescavadora era usada, tendo-lhe sido comunicado por estes que nos seguros na modalidade de “seguro casco” era assim que eram celebrados e que, em caso de sinistro com perda total, a Ré pagaria o valor em novo ao segurado.”.
Na verdade, provou-se que “aquando da celebração do contrato de seguro a Autora entregou à Ré a factura de aquisição da máquina referida em 1., datada de 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 26.500,00 €, acrescida de IVA, com a descrição Komatsu WB93 R-5 (ano 2006), número de série F--- e matrícula ..., que foi adquirida no estado de usada”. Sendo que o contrato de seguro foi celebrado em Março de 2019, tendo o sinistro ocorrido em Maio de 2021, sem que resulte em concreto qualquer comunicação da Autora à ré no sentido de se insurgir quanto ao valor indicado na apólice, nas suas condições particulares, relativamente à máquina objecto do seguro. Acresce que ao contrário do aludido em sede de recurso, a testemunha M... em momento algum afirmou que foi assumido pela ré, em caso de sinistro, o pagamento correspondente ao valor em “novo”.
Quanto ao depoimento da testemunha A...somos em corroborar a fundamentação contida na decisão sob recurso. É por demais evidente a fragilidade da prova assente apenas em tal depoimento, que em nada se diferencia de uma prova por de declarações de parte, pois a testemunha exercia, quer na data da celebração do contrato, quer na data do sinistro, as funções de gerente da Autora. Logo, haverá que considerar quanto a tal depoimento o silogismo que ninguém se aparta da verdade se não tiver interesse na causa. Logo, nunca a prova da assunção pela ré do pagamento indemnizatório correspondente ao estado de “novo” da retroescavadora, no caso de perda desta, poderá assentar em tal depoimento.
Outrossim, é expectável que as declarações de tal testemunha, equivalente à parte Autora, primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor, mas tais características devem ser secundarizadas.
Acresce que perante um contrato necessariamente escrito, dada o carácter formal do contrato de seguro, exigência escrita do mesmo a título quod constitutionem, nunca as cláusulas de tal contrato podem advir da mera assunção verbal, devendo apenas ter em conta o previsto no contrato.
Deste modo, é clara a improcedência do recurso quanto à pretendida alteração dos factos nos termos pretendidos pela recorrente, mantendo-se os mesmos tal como foram considerados na sentença recorrida.
*
III. O Direito:
Apreciado o recurso quanto aos factos, haverá que aferir se é de alterar a subsunção destes ao direito.
A questão essencial a decidir prende-se com a questão de aferir se, face ao valor do objecto seguro, poderá ser exigido à ré seguradora o valor do mesmo em novo, até perfazer o valor considerado em termos de seguro, ou, ao invés, ser considerado o valor de tal objecto à data do sinistro. Devendo, contudo, considerar-se que aquando da celebração do contrato de seguro, o objecto segurado já tinha um valor inferior ao previsto nas condições particulares do contrato, facto que foi comunicado à ré seguradora, nessa altura.
O contrato de seguro define-se como a convenção por virtude da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
Por via de regra, o seguro configura-se como um contrato bilateral ou sinalagmático (por dele emergirem obrigações para ambas as partes), oneroso (por implicar vantagens para ambas as partes), e de execução continuada.
Logo, na definição dada pelo Dr. M. de Almeida ( in “ O contrato de seguro”, pág. 23 ) é aquele em que uma das partes, o segurador, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos.
O regime aplicável ao contrato de seguro encontra-se previsto, desde 1/09/2009 na designada Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovada pelo do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que entrou em vigor na data referida.
Neste tipo de contratos o risco assumido é a questão primordial dos mesmos, sem embargo de situações excepcionais em que o desequilíbrio informativo pode prejudicar as seguradoras, os segurados ou tomadores de seguros não são, em regra, conhecedores dos aspectos ligados ao regime jurídico do contrato de seguro, designadamente no que concerne aos critérios que as seguradoras usam para aceitação dos contratos ou fixação das respectivas condições. Em cada modalidade de seguro existem circunstâncias que, embora sendo inequivocamente relevantes para as seguradoras, podem escapar ao controlo ou ao conhecimento do segurado ou do tomador, ainda que este seja pessoa medianamente informada e diligente. Acresce que uma parte substancial da contratação de seguros é feita através de mediadores que naturalmente estão mais interessados na angariação de novos clientes ou na conclusão de novos contratos do que na exaustiva informação acerca das circunstâncias que, na perspectiva das seguradoras, podem ser relevantes, na colocação de dificuldades que decorrem da completa informação prévia das exigências legais ao nível das declarações e mais ainda das consequências potenciadas pelas omissões, lacunas ou reticências. Noutros casos as dificuldades na percepção integral das exigências legais e do respectivo alcance resultarão do facto de a proposta de contratação ser apresentada com recurso a meios à distância (v.g. Internet), sem que os interessados efectivamente se apercebam de tudo quanto, na perspectiva da seguradora, pode ser relevante.
Acresce que na maioria dos casos o contrato assume-se como um contrato de adesão, pois a vinculação do segurado faz-se através da subscrição de um esquema contratual preestabelecido pelo segurador, consubstanciado nas condições gerais da apólice ( v. g. Mário Júlio Almeida Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 129.º, 1996-1997, n.º 3862, Coimbra Editora, pág. 20 e seguintes).
A propósito da boa fé na interpretação dos contratos de seguro importa ainda aludir ao decidido no Acórdão do STJ de 27/09/2016 ( proc. nº 240/11.7TBVRM.G1.S1, endereço da net aludido), cuja conclusão é no sentido de não permitir um desequilíbrio significativo em detrimento do segurado, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato (v. o nº 1 do art. 3º da Directiva 93/13/CEE - cujos ditames enformam, por via do DL nº 220/95, o regime legal das cláusulas contratuais gerais).
Com efeito e de reforço a tal posição na interpretação do contrato para além das regras gerais, aplicáveis às declarações de vontade de qualquer contrato, há ainda que ter em conta as regras específicas de interpretação em matéria de contrato de seguro.
Como alude Pedro Romano Martinez (in “Conteúdo do Contrato de Seguro e Interpretação das Respectivas Cláusulas”, aquando do II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Almedina, 2001, pág. 66 a 70), na interpretação haverá que atender ao regime das cláusulas contratuais gerais, bem como as normas de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho, com várias alterações, a última das quais pelo Decreto-Lei nº 109-G/2021, de 10 de Dezembro), pois estas consagram especiais deveres. Assim, prossegue o mesmo autor «De facto, se a seguradora aceita uma proposta que lhe é feita assume a posição de declaratário, pois a declaração é apresentada pelo tomador do seguro, mas tendo em conta que a proposta foi previamente elaborada pela empresa de seguros devem inverter-se os papéis e entender-se que o declarante é aquele que elabora a proposta (seguradora) e não quem a subscreve - tomador do seguro). (…) A inversão preconizada vale tão só no que respeita às cláusulas padronizadas que o tomador do seguro subscreve.». Logo, defende que a ressalva final do art.º 236º nº 1 do CC não deve funcionar quando se atende à posição da seguradora como declarante, «pois seria estranho que esta não pudesse razoavelmente contar com uma interpretação da proposta do tomador do seguro no sentido objetivo, até porque a referida proposta foi previamente elaborada pela seguradora.». Concluindo que «No contrato de seguro, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, não se aplica o disposto no art.º 237º do CC, que aponta para o equilíbrio entre as prestações, pois o art.º 11º nº 2 da LCCG determina que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.».
Também Moitinho de Almeida dá nota de regras interpretativas específicas a atender no domínio dos contratos de seguro ( in “Contrato de Seguro, Estudos”, Coimbra Editora, 2009, pág. 115).
Seguindo de perto tal orientação decidiu-se recentemente no Acórdão da Relação do Porto, proferido a 15/6/2022, no proc. nº 13214/20.8T8PRT.P1( in www.dgsi.pt) que: I- Na interpretação do clausulado dos contratos de seguro de vida, para além das regras gerais aplicáveis à interpretação das declarações de vontade previstas no CC, há ainda que ter em conta as regras específicas de interpretação em matéria de contrato de seguro e que, em alguns pontos, não são absolutamente coincidentes.
II - Nessa interpretação, há sempre que atender (ressalvado o caso das cláusulas especificamente negociadas) às regras impostas pelo regime das cláusulas contratuais gerais e da defesa do consumidor.
III - Se do labor interpretativo resultar a dúvida (duas interpretações igualmente possíveis), caímos no domínio das cláusulas ambíguas, o que nos impõe atender ao sentido mais favorável à pessoa segura, por imperativo do art.º 11º nº 2 da LCCG.
A recorrente não convoca tais princípios interpretativos no âmbito do recurso, pretendendo sim que se considere que não é aplicável ao caso a Lei 72/2008, de 16 de Abril, designadamente, o disposto nos artigos 49.º, 128, 129, 130, 131, e 132.º da referida Lei. Porém, acaba por indicar tal lei quando faz alusão ao princípio da liberdade contratual e ainda ao carácter supletivo das regras do regime, face ao disposto no artº 11.º da LCS.
Defende assim, que ao invés de se aplicar o regime supletivo, em especial o artº 128º a 132º da LCS, deveria ter sido considerada a convenção estabelecida entre as partes, ou seja, a auto regulamentação fixada nas condições particulares e nas cláusulas contratuais gerais da apólice de “seguro casco”, as quais não derrogam qualquer norma imperativa e logo, admitem um regime mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou beneficiário, previsão que consta nos artigos 12.º e 13.º da Lei 72/2008. Acaba por concluir que a interpretação formulada pelo Tribunal recorrido é ilegal sem prejuízo de a considerar inútil tendo em conta o que foi convencionado pelas partes.
Por outro lado, sustenta no recurso, que a sentença aplica as normas da LCS sem que a ré tenha convocado tal regime na acção quanto ao princípio indemnizatório constante de tal diploma, daqui resultando que há um claro reconhecimento e aceitação por parte da recorrida que tais dispositivos da lei não são aplicáveis à relação jurídica estabelecida entre autora e Ré. Daqui resulta, no entendimento sufragado pela recorrente, que o que as partes convencionaram foi que, em caso de perda total, o valor da indemnização era o valor da máquina em novo até ao limite da franquia e da dedução do valor do salvado. Assenta tal interpretação no que está consagrado nas condições particulares cujo conteúdo serviu outrossim para a determinação do pagamento do preço, pelo que estando provado que o valor de uma máquina em novo à data da ocorrência do sinistro era de € 74.000,00, a Ré deve responder pela totalidade do valor seguro: € 67.000,00.
Arremata ainda que não estamos perante um caso de sobresseguro, mas mesmo a existir haveria que considerar o acordado entre as partes, decidindo em sentido mais favorável à Autora, argumentando que a sentença ao aplicar as normas legais da LCS fez “tábua rasa” do previsto no contrato de seguro celebrado entre as partes.
A recorrida, na defesa da decisão proferida, veio invocar que inexiste no contrato celebrado a assunção pela ré de tal obrigação. Pois sobre a questão haverá sim que atender ao disposto na cláusula 23º/3 das condições gerais da apólice, segundo a qual “No caso de Perda Total das máquinas ou instalações seguras, o Segurador prestará ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que elas tinham à data do sinistro (…)”. Logo, conclui que de acordo com a interpretação conjugada do disposto nos art. 128º e 131º do RJCS, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro, devendo o valor da indemnização corresponder ao valor de mercado do bem seguro, à data da ocorrência do sinistro. No mais, entende que, ao contrário do defendido no recurso, nas alegações orais apresentadas pelo Mandatário da Recorrida, na audiência de julgamento realizada em 17 de Janeiro de 2024, é inequívoca a chamada de atenção para a aplicação da lei geral. Acresce que trás à colação que o Tribunal não se encontra vinculado à qualificação jurídica atribuída pelas partes, pelo que sempre poderia lançar mão das normas em causa.
Efectivamente razão assiste à recorrida, pois não está o tribunal vinculado ao direito invocado pelas partes, face ao disposto no artº 5º nº 3 do Código de Processo Civil, podendo ser convocado na decisão as normas que decorrem da Lei do contrato de seguro.
Com efeito, face ao contrato celebrado estamos perante um seguro de danos, o qual pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (artigo 123º da LCS). Logo, não se caracteriza pela aplicação no âmbito da responsabilidae civil, como se alude na decisão, visando sim assegurar o bem seguro, ou seja, a retroescavadora identificada nos autos. Logo, tal seguro, entre outros riscos, cobre os de perda por incêndio, pelo que, como vimos é de qualificar, quanto a esta cobertura, como seguro de danos, na modalidade de seguro de coisas (art. 130º da LCS).
Por força da outorga de tal contrato fica a seguradora obrigada a reembolsar o segurado no valor dos danos emergentes dos eventos, nos termos previstos na apólice. Pelo que o exercício do direito do segurado ao ressarcimento dos danos decorrentes de riscos cobertos pelo contrato depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
a. celebração, vigência, validade e eficácia de um contrato de seguro de danos;
b. ocorrência de um evento abrangido pela garantia do seguro, habitualmente designado sinistro;
c. verificação de danos na esfera do segurado;
d. nexo de causalidade e adequação entre o evento e os danos;
e. ressarcibilidade dos danos nos termos previstos no contrato (podendo a apólice prever cláusulas especiais de exclusão de determinados sinistros). ( ver Ac. desta Relação proferido no proc. nº 577/19.7T8CNT.L1-7, de 26/04/2022, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos não se põe em causa a ressarcibilidade do sinistro pela ré seguradora que decorre do evento danoso, sendo a divergência das partes apenas relativa ao valor indemnizatório.
Para aferir desta questão, importa ter presente que no seguro de danos “Produto Máquinas Casco”, titulado pela Apólice n.º …836, com início em 16/03/2019, , o qual tinha por objecto seguro a retroescavadora Komatsu, de matrícula ..., foi fixado como valor do capital seguro 67.000,00 €.
Acresce que nos termos do artigo 15.º das condições gerais do contrato consta que: “1. A responsabilidade do Segurador é sempre limitada à importância máxima fixada nas Condições Particulares. 2. O valor seguro relativo a cada máquina ou instalação deverá corresponder ao seu valor de substituição, à data do sinistro, por uma máquina ou instalação novas, de idênticas características e rendimento, acrescido das despesas de frete, montagem e direitos alfandegários, observando-se, em caso de sinistro, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º. 3. Se o valor seguro for, à data do sinistro, inferior ao valor calculado nos termos do n.º 2, o Segurado responderá por uma parte proporcional dos prejuízos”.
Ora, do n.º 3 do artigo 23.º das condições gerais do contrato previu-se que: “No caso de Perda Total das máquinas ou instalações seguras, o Segurador prestará ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que elas tinham à data do sinistro. Para os efeitos do número anterior, entende-se por valor à data do sinistro, o de compra, em novo, na mesma data, de uma máquina ou instalação com idênticas características e rendimento, acrescido das despesas de montagem, fretes normais e direitos alfandegários, deduzindo-se, no entanto, o valor relativo à depreciação natural sofrida pela máquina ou instalação segura.”.
A par do que ficou previsto no contrato, importa ter presente que aquando da celebração do contrato de seguro a Autora entregou à Ré a factura de aquisição da máquina referida em 1., datada de 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 26.500,00 €, acrescida de IVA, com a descrição Komatsu WB93 R-5 (ano 2006), número de série F-- e matrícula ..., que foi adquirida no estado de usada. Logo, o valor atribuído ao valor do capital seguro não coincidiu com esse valor, sendo claramente superior. No entanto, tal discrepância não tem as consequências jurídicas que a recorrente pretende que se considerem. Senão vejamos.
Com efeito, a Autora participou à Ré, em 26 de Maio de 2021, a ocorrência de um incêndio, num estaleiro da Autora, sito em Lagos, em consequência do qual a máquina segura - retroescavadora Komatsu, de matrícula ... - ficou danificada, tendo a Ré considerado a existência de perda total.
Face a tal perda a Ré pagou à Autora, em 23 de Agosto de 2021, a quantia de 22.200,00 €, tendo considerado como valor o da aquisição da máquina 26.500,00 €, deduzido da franquia no valor de 2.650,00 € e o valor do salvado de 1.650,00 €.
A recorrente entende que face ao acordado haveria que considerar não o valor da máquina na data do sinistro, ou não o seu valor de aquisição pago pela própria, mas sim o valor do capital seguro constante do contrato. Donde, entende que considerando que a
26 de Maio de 2021, o valor de aquisição, em novo, de uma retroescavadora do modelo Komatsu WB93 R-5 era de cerca de 74.000,00 €, deveria a ré efectuar o pagamento correspondente à diferença, ou seja, considerando uma máquina nova até ao valor constante do seguro – 67.000€, deduzidos os salvados.
Em primeiro lugar, nada resulta do contrato de seguro e das suas cláusulas a obrigação de a ré efectuar o pagamento reivindicado nos autos, pois, como bem alude a recorrida é de considerar o previsto no artº 23º das condições gerais do contrato. Acresce que a recorrente não logrou alterar os factos nos termos pretendidos, ou seja, a prova que a ré assumiu que, em caso de sinistro com perda total, a Ré pagaria o valor em novo ao segurado.
Em segundo lugar, a situação de neste seguro de danos o valor do capital seguro ser superior ao valor do objecto segurado encontra solução no âmbito da LCS, tal como se afirmou na sentença recorrida a qual não nos merece qualquer reparo, inexistindo cláusula contratual que afaste tal regime.
Logo, nos termos do disposto no artigo 128º da LCS, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital. E no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (nº1 do artigo 130º da LCS), sendo que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim foi convencionado (nº2 do artigo 130º, da LCS), e o memso ocorre quanto ao valor de privação de uso do bem (nº3 do artigo 130 da LCS).
É certo que, sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no nº1 do artigo 130º, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado (nº1 do artigo 131º da LCS). Donde, as partes podem acordar, nomeadamente, na fixação de um valor de reconstrução ou de substituição do bem ou em não considerar a depreciação do valor do interesse seguro em função da vetustez ou do uso do bem (nº2 do artigo 131º da LCS). Havendo ainda que considerar que os acordos previstos nos números anteriores não prejudicam a aplicação do regime da alteração do risco previsto nos artigos 91º a 94º (nº3 do artigo 131º da LCS).
No entanto, dúvida não há que se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128º, podendo as partes pedir a redução do contrato (nº1 do artigo 132º da LCS). E estando o tomador do seguro ou o segurado de boa fé, o segurador deve proceder à restituição dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido de redução do contrato, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente (nº2 do artigo 132º da LCS).
Da conjugação de tais preceitos somos em concordar com a recorrene quando faz alusão que os mesmos contém uma imperatividade relativa, ou supletividade “de sentido único”, porém, não configurando o previsto no contrato o afastamento do artº 128º da LCS, haverá que considerar o que ocorre quando há sobresseguro, como é o caso.
Como bem alude Menezes Cordeiro ( in “ Direito dos Seguros, 2ª edição, págs.803/806) verifica-se uma situação de sobresseguro “sempre que ab initio ou no decurso do contrato o objecto seguro tenha um valor inferior ao valor declarado ou seja um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro”.
A propósito de tal haverá que trazer à colação o decidido no Ac do STJ, de 24/04/2012 ( proc. nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, in endereço da net a que vemos fazendo referência), ao sumariar que:
I - Verifica-se uma situação de sobresseguro sempre que, ab initio ou no decurso do contrato, o objecto do seguro tenha um valor inferior ao declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro.
II - A questão do sobresseguro e a consagração do principio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no art. 435.º do CCom, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, o qual no seu art. 132.º diz que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato” sendo precisamente este art. 128.º que mantém, na legislação nacional relativa ao contrato de seguro, a consagração do princípio do indemnizatório, referindo que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
III - Em caso de sobresseguro (originário ou posterior), o contrato deve, por força do principio do indemnizatório, na forma em que este se encontra consagrado na legislação sobre seguros, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado – arts. 128.º e 132.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008.
IV - A justificação para esta realidade normativa não pode deixar de ter presente o principio segundo o qual o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido – principio geral contido no art. 562.º CC –, não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado, ter um carácter especulativo ou. muito menos. constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial.
V - As razões da regulamentação da questão do sobresseguro (ou seguro excedente) devam ser, como são, consideradas verdadeiras razões de ordem pública, destinadas à salvaguarda do princípio do indemnizatório, daí resultando que se deva considerar ferida de nulidade absoluta toda a parte do valor contratualmente coberto que exceda o valor do objecto segurado.
VI - A limitação da obrigação de indemnizar ao montante real do objecto seguro decorre, directa e exclusivamente, do disposto no art. 128.º do DL n.º 72/2008.
Na verdade a resposta à questão de não coincidir o valor do interesse seguro ao capital seguro encontra solução no artº 128º, por remissão operada pelo artº 132º, ambos da LCS. Figurando que em caso de sobresseguro (originário ou posterior) o contrato deve, por força do principio do indemnizatório, na forma em que este se encontra consagrado na legislação sobre seguros, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja na parte em que o valor exceda o do objecto segurado – artigos 128º e 132 nº 1 da LCS.
Como se alude na motivação do Acórdão a que vemos fazendo referência “Se procurarmos uma justificação para esta realidade normativa não podemos deixar de ter presente o princípio (estruturante da nossa ordem jurídica) segundo o qual o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido – principio geral contido no artigo 562º CC – não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado, ter um carácter especulativo, ou muito menos constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial, sendo oportuno, apesar de constituir principio de valoração omnipresente, lembrar a este propósito que o direito nunca pode ser desagregado de sentido ético nem tão pouco da boa fé que constitui, aliás um principio estruturante da nossa ordem jurídica.
São precisamente os argumentos acima invocados que conduzem a que as razões da regulamentação dada na nossa ordem jurídica à questão do sobresseguro (ou seguro excedente) devam ser, como são, consideradas verdadeiras razões de ordem pública destinadas à salvaguarda do princípio do indemnizatório daí resultando que se deva considerar ferida de nulidade absoluta toda a parte do valor contratualmente coberto que exceda o valor do objecto segurado”.
Logo de acordo com as normas legais aludidas o principio do indemnizatório determina num primeiro momento que o valor do capital seguro não deve ser superior ao valor do interesse seguro (proibição do sobresseguro) e, num segundo momento, que o valor da indemnização não seja superior ao valor do interesse lesado (valor dos danos). Tal ocorre no âmbito do seguro que temos vindo a analisar e no qual se integra o ceelbrado entre as partes, pelo que considerando a estruturação sistemática da Lei do Contrato de Seguro, tal principio do indemnizatório apenas é válido nos seguros de danos – Título II.
Tais normas consagram assim, o principio da proibição do enriquecimento do segurado à custa do segurador (entre nós principio do indemnizatório), e ainda que se entenda que tal princípio assenta numa justificação tradicional, visando inviabilizar o enriquecimento do lesado, bem como prevenindo a provocação voluntária de danos, não há que olvidar que a norma não é imperativa.
Com efeito, no regime anterior relativamente ao contrato de seguro, previsto no Código Comercial inexistia norma similar, sendo entendido que a questão poderia ser resolvida com base num eventual vício da vontade e consoante o mentor de tal erro, determinava por vezes que a anulabilidade levasse à ausência de obrigação de pagamento pela seguradora.
Porém, já que no âmbito do que se dispunha no art. 435º do Cód. Com., então se defendia a mera redução do valor da indemnização, como era sustentado por José Vasques ( in, Contrato de Seguro, pág. 147) e e Moitinho de Almeida ( in “ O Contrato de Seguro”, pág. 178.).
Tal situação de existência de sobresseguro e solução veio a ser consagrada expressamente na actual lei do contrato de seguro, sem cuidar da boa fé ou má fé das partes, quanto ao efeito atribuido e previsto no nº 1 do artº 132º, ao remeter para o artº 128º, sendo tal adjectivação do comportmento das partes relevante para a restituição ou não dos sobreprémios, nos termos previsto no nº 2 do artº 132º da LCS, situação arredada desta acção, por inexistência de pedido.
Donde, face a tal regime, em caso de sobresseguro, a seguradora apenas responde pelo valor real do bem segurado, nos termos do art. 128º da LCS, nos termos do qual “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Trata-se de um regime que substituiu, nesta parte, o que se consignava no art. 435º do Cód. Comercial e que integra no direito dos seguros o princípio indemnizatório em matéria de seguro de danos que, como refere Arnaldo Costa Oliveira (Lei do Contrato de Seguro anot., Romano Martinez et allium, pág. 363), visa “atalhar o enriquecimento do segurado” e “precaver a ocorrência de sinistros, a fraude e, portanto, a desordenação social” (neste sentido e quanto às especificidades do principio indemnizatório em sede de seguro ver ainda Acórdão do STJ de 18/06/2015, proc. nº 184/12.5TBVFR.P1.S1).
Por tudo o referido, somos em corroborar a bem fundamentada sentença, quando expõe que: «No caso em apreço, se atentarmos nas cláusulas contratuais do contrato em apreciação nos autos, nomeadamente às que se aludiu supra, não resulta que as partes tenham acordado expressamente nos termos previstos no artigo 131.º da Lei do Contrato de Seguro, nem que o valor seguro teria de corresponder ao de substituição em novo, pois que apesar de tal contrato estabelecer que “O valor seguro relativo a cada máquina ou instalação deverá corresponder ao seu valor de substituição, à data do sinistro, por uma máquina ou instalação novas, de idênticas características e rendimento, acrescido das despesas de frete, montagem e direitos alfandegários”, remete, em caso de sinistro, para o disposto “nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º.”, que, por sua vez, estabelecem que, em caso de perda total, “o Segurador prestará ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que elas tinham à data do sinistro”, entendendo-se “por valor à data do sinistro, o de compra, em novo, na mesma data, de uma máquina ou instalação com idênticas características e rendimento”, “deduzindo-se, no entanto, o valor relativo à depreciação natural sofrida pela máquina ou instalação segura.”. Deste modo, julga-se que, como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de Novembro de 2013 (proc. n.º 258/11.0TBCBT.G1, in www.dgsi.pt) “A interpretação das cláusulas da apólice, de acordo com o disposto nos art.ºs 236.º e 238.º do Código Civil, não permite concluir que as partes tiveram em mente que, em caso de perda total, o valor da indemnização seria igual ao valor de uma grua nova semelhante à perdida no momento do sinistro, como pretende o autor”, no caso em apreço, de uma retroescavadora. Na verdade, estando em causa uma máquina usada entende-se que, não demonstrando a Ré desvalorização superior, o preço que foi pago pela Autora com a sua aquisição corresponde ao valor de substituição em novo deduzido da “depreciação natural sofrida pela máquina” segura. Neste sentido, como decidido no Acórdão do Tribunal de Évora de 26 de Janeiro de 2011, (proc. n.º 79/10.7T2GDL.E1, base de dados citada) “Tratando-se de uma máquina em 2ª mão, parece-nos não oferecer qualquer dúvida que o preço que a apelante pagou pela máquina e correspondente ao valor efectivamente seguro, equivalerá ao valor de substituição deduzido da correspondente desvalorização pelo uso.” Acresce que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Maio de 2020 (proc. n.º 24171/178T8LSB.L1-2, base de dados citada) “(…) neste âmbito – ou seja, no estrito âmbito dos artigos 128.º e 132.º da LCS - o valor do capital seguro não deve ser superior ao valor do bem seguro. Mas, do mesmo modo, o valor da prestação a cargo da ré não pode ser superior ao valor do interesse lesado, devendo corresponder ao efectivo dano sofrido pelo segurado”. Assim, ficando demonstrado que o capital seguro é superior ao valor do bem seguro, “Verifica-se, de facto, que o valor do interesse lesado corresponde, na falta de atendibilidade de outro critério, ao do valor venal ou de mercado do bem (…), pelo que, será neste montante que deverá fixar-se a prestação da ré seguradora (…) E, de facto, o artigo 562.º do CC - tal como o mencionado artigo 128.º da LCS – determina que a reparação do dano deva ocorrer com a reconstituição da situação que existiria, se não tivesse havido o evento que obriga à reparação pela ré (…)”, concluindo que, caso não se verificasse o sinistro, “o autor não conseguiria obter valor para o veículo superior ao valor venal do mesmo”.».
Apenas haverá que acrescentar que, ainda que se entenda que o princípio indemnizatório tem vindo a ser frequentemente chamado a resolver situações novas, permitindo um alargamento do seu âmbito em questões que tradicionalmente estariam arredadas da sua aplicação, no caso, não se provando o afastamento das partes da norma contida no artº 128º da LCS, e provando-se apenas que, na data do sinistro, o valor de aquisição, em novo, de uma retroescavadora do modelo Komatsu WB93 R-5 era de cerca de 74.000,00 €, permitir a indemnização com base nesse valor afastar-nos-ia da finalidade ressarcitória. Na verdade, não se provou, por um lado, que a Autora tenha adquirido uma máquina em substituição da segurada, por outro lado, a ter adquirido uma máquina com características idênticas, haveria de ter alegado e provado que foi esse o valor pago. Com efeito, considerando o valor indemnizatório pago pela ré, poderia a Autora ter igualmente adquirido uma máquina usada, na qual poderia não ter despendido mais que o valor entregue pela seguradora. Porém, nada resulta dos autos.
De tudo o exposto, improcede a apelação.
Tendo a apelante ficado vencida é a mesma responsável pelo pagamento das custas (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 11 de Julho de 2024
Gabriela de Fátima Marques
Eduardo Petersen Silva
Octávia Viegas