RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
SANÇÃO DISCIPLINAR
EXECUÇÃO DE PENAS
Sumário

1 – O direito ao recurso expressamente referido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição, relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade.
2 – Não há que confundir o estatuto jurídico constitucional do arguido em processo penal e o estatuto jurídico constitucional do condenado, mormente daquele em execução de pena de prisão.
3 – As garantias de defesa do artigo 32.º não são aplicáveis às questões da execução da pena, a não ser nos casos em que se esteja perante uma decisão que afecte de forma grave ou insuportável os direitos fundamentais de um recluso a um tratamento condigno, à luz dos objectivos de reinserção social.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 506/15.7TXEVR-E.E1
Tribunal de Execução de Penas de Évora – J2
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Manifestação de interesse em recorrer para o Tribunal Constitucional:
Em direito processual são chamados “actos prematuros” os praticados antes do início de um prazo estabelecido por lei. Assim, não pode ser admitido, por prematuridade, a manifestação de interesse na interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, no caso de a reclamação que aqui será apreciada não seja atendida. Por isso, se for caso disso, o reclamante deverá renovar a sua pretensão, após a notificação da decisão que incide sobre a reclamação.
Notifique.
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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Em 14/03/2024, a (…), recluso no Estabelecimento Prisional de Faro, foi aplicada por decisão do Sr. Director do referido EP, a sanção disciplinar de internamento em cela disciplinar pelo período de 10 (dez) dias, nos termos do disposto nos artigos 104.º, alínea m)[1] e 105.º, n.º 1, alínea g)[2], ambos do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL).
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Dessa decisão foi apresentada impugnação para o Tribunal de Execução de Penas de Évora.
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Por decisão datada de 29/04/2024, o Juízo de Execução de Penas de Évora julgou improcedente a impugnação apresentada pelo recluso e, em consequência, manteve a decisão proferida pelo senhor Director do Estabelecimento Prisional de Faro.
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Inconformado o ora recluso apresentou recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora.
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O Tribunal a quo proferiu então a seguinte decisão:
«Notificado da decisão judicial de indeferimento da sua impugnação de medida disciplinar aplicada pelo Sr. Director do EP de Faro, veio o recluso (…) apresentar recurso daquela decisão.
Acontece que a referida decisão é irrecorrível.
Vejamos:
O artigo 235.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (de ora em diante designado apenas por CEPMPL), sob a epígrafe «decisões recorríveis», dispõe da seguinte forma:
«1 - Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.
2 - São ainda recorríveis as seguintes decisões do tribunal de execução das penas:
a) Extinção da pena e da medida de segurança privativas da liberdade;
b) Concessão, recusa e revogação do cancelamento provisório do registo criminal;
c) As proferidas em processo supletivo».
Não se enquadrando a referida decisão em qualquer das alíneas do referido n.º 2 do artigo 235.º do CEPMPL, para que a mesma fosse recorrível seria necessário que a lei o previsse expressamente, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 235.º do CEPMPL.
Ora, no CEPMPL não existe qualquer norma que preveja recurso da decisão judicial a que alude o artigo 206.º do CEPMPL.
Logo, há que concluir pela irrecorribilidade da referida decisão.

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Assim, ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto no artigo 239.º do CEPMPL, não admito o recurso interposto pelo recluso, por irrecorribilidade da decisão supramencionada».
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O recluso pretende que seja dado provimento à reclamação e, em consequência, determinada a admissão do recurso interposto.
Em síntese, diz que não há qualquer norma que consagre que a decisão em apreço é irrecorrível, sublinhando «a matéria em causa não está nem podia estar excluída do direito ao recurso ordinário em pelo menos um grau. Ou seja, para o Tribunal da Relação», sob pena de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição da República Portuguesa.
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do Tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[3] do Código de Processo Penal.
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, tal como estipula o artigo 399.º[4] do Código de Processo Penal. E, neste capítulo, existe um regime especial de recursos previsto no Código da Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (Lei n.º 115/2009, de 12/10).
Quanto aos recursos de decisões proferidas pelos tribunais de execução das penas rege, como princípio geral, o artigo 235.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Deste normativo resulta a regra de que apenas são admissíveis recursos das decisões nos casos expressamente previstos na lei (princípio da tipicidade do recurso).
O n.º 2 deste normativo prevê ainda de forma especial situações em que o recurso de decisões do Tribunal de Execução das Penas é admissível. Porém, a situação dos autos claramente se não enquadra nessa esfera de previsão.
Aquilo que se pergunta é se a referida limitação objectiva para interpor recurso viola a Constituição da República Portuguesa?
Não há que confundir o estatuto jurídico constitucional do arguido em processo penal e o estatuto jurídico constitucional do condenado, mormente daquele que se encontra em execução de pena de prisão.
O direito ao recurso expressamente referido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição, relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afectem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade.
Como refere Inês Horta Pinto «(…) as garantias de defesa do artigo 32.º não são aplicáveis às questões da execução da pena (a não ser naquilo que ainda possa reconduzir-se à interpretação e execução da própria sentença penal). Em abono desta posição, convoca-se a distinção, acima estabelecida, entre execução (da sentença) e cumprimento (da pena)»[5].
Neste enquadramento, a partir do momento que transita em julgado a condenação numa pena ou medida de segurança, existe uma autonomia do regime de execução das penas de prisão e, na nossa perspectiva, com integral respeito por posição diversa, não estamos perante uma decisão que incida directamente sobre direitos fundamentais – rectius, que afecte de forma grave ou intolerável os direitos fundamentais de um recluso a um tratamento condigno –, uma vez que o recluso tem de suportar os efeitos restritivos decorrente do título judiciário de execução de uma pena.
Na situação vertente, apenas se mostra garantizado o direito a uma instância jurisdicional de recurso da decisão administrativa de aplicação de pena disciplinar, sob pena de descaracterização das medidas sancionatórias típicas do sistema prisional e da hipotética implosão do sistema de recursos causada pela extensão da possibilidade para interpor recurso de toda e qualquer decisão administrativa ou disciplinar.
Na verdade, existe um determinado equilíbrio do aparelho penitenciário e da execução de penas, quando, na dimensão do direito infraconstitucional, é restringida a possibilidade de um grau de jurisdição em sede de avaliação da aplicação de penas disciplinares.
Neste domínio, há jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional que aponta que o direito de reapreciação judicial das decisões ou actos jurisdicionais só se deve considerar constitucionalmente imposto, se a afetação de direitos fundamentais tiver tido origem na actuação do próprio Tribunal, e não quando este se limita a verificar se essa afectação resultou de acto administrativo jurisdicionalmente impugnado (vide, neste sentido, os doutos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 40/2008, n.º 43/2008, n.º 362/2010 e n.º 848/2013, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Deste modo, não se perfilam razões para considerar que a situação em apreço viola direitos fundamentais do recluso, mormente o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, assegurado pelo artigo 32.º da Lei Fundamental.
E, como tal, não é inconstitucional a norma constante do artigo 235.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, interpretada com o sentido de que não são recorríveis as decisões proferidas pelo Tribunal de Execução das Penas no âmbito do processo de impugnação das decisões administrativas de aplicação de medidas disciplinares, sempre que essa recorribilidade não esteja prevista naquele diploma.
Razões essas que, à luz do texto legal, justificam a manutenção do despacho recorrido.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, negar provimento à reclamação, mantendo-se o recurso apresentado.
Sem tributação.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 27 de Junho de 2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 104.º (Infracções disciplinares graves):
Considera-se infracção disciplinar grave:
a) Estabelecer comunicação não permitida ou por meios fraudulentos com o exterior ou, violando proibição expressa, com outros reclusos no interior do estabelecimento prisional e criar deste modo perigo para a ordem e segurança do estabelecimento prisional;
b) Divulgar dolosamente notícias ou dados falsos relativos ao estabelecimento prisional e criar deste modo perigo para a ordem e segurança deste;
c) Simular doença ou situação de perigo para a sua saúde ou de terceiro, que implique deslocação ao exterior ou uma excepcional afectação de meios do estabelecimento prisional;
d) Efectuar negócio não autorizado de valor económico elevado com outros reclusos ou, independentemente do seu valor, com funcionários do estabelecimento prisional ou terceiros;
e) Insultar, ofender ou difamar, de forma pública e notória, outro recluso ou terceiro no interior do estabelecimento prisional ou fora deste durante saída custodiada;
f) Insultar, ofender ou difamar, de forma pública e notória, funcionário do estabelecimento prisional no exercício das suas funções ou por causa destas;
g) Destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizáveis, dolosamente ou com negligência grosseira, bens do estabelecimento prisional, de funcionários prisionais, dos demais reclusos e de terceiros, de valor económico significativo, ou, independentemente do prejuízo causado, criando perigo para a ordem e segurança do estabelecimento prisional;
h) Resistir com violência ou desobedecer, de forma pública e notória, a ordens legítimas dos funcionários no exercício das suas funções;
i) Introduzir, produzir, fabricar, fazer sair, distribuir, transaccionar, ter em seu poder ou guardar no estabelecimento prisional objectos proibidos ou organizar essas actividades e criar deste modo perigo para a ordem e segurança do estabelecimento prisional;
j) Deter, possuir, introduzir, produzir, fabricar, distribuir ou transaccionar no estabelecimento prisional estupefacientes ou qualquer outra substância tóxica, fármacos não prescritos ou bebidas alcoólicas não autorizadas ou organizar essas actividades;
l) Intimidar ou estabelecer relação de poder ou de autoridade sobre outros reclusos;
m) Ameaçar, coagir, agredir ou constranger a acto sexual outro recluso, funcionário prisional ou terceiro, no estabelecimento prisional ou durante saída custodiada;
n) Tentar evadir-se, evadir-se, promover ou participar em tirada de recluso;
o) Promover ou participar em motim ou acto colectivo de insubordinação ou de desobediência às ordens legítimas dos funcionários no exercício das suas funções;
p) Praticar, no estabelecimento prisional ou durante saída custodiada, qualquer outro facto previsto na lei como crime cujo procedimento não dependa de queixa; ou
q) Não cumprir, ou cumprir com injustificado atraso, os deveres impostos, nos termos legais ou regulamentares, ou as ordens legítimas dos funcionários, no exercício das suas funções, no estabelecimento prisional ou durante saída autorizada, e criar deste modo perigo para a ordem e segurança do estabelecimento prisional.
[2] Artigo 105.º (Medidas disciplinares):
1 - São aplicáveis ao recluso as seguintes medidas disciplinares:
a) Repreensão escrita;
b) Privação do uso e posse de objectos pessoais não indispensáveis por período não superior a 60 dias;
c) Proibição de utilização do fundo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 46.º por período não superior a 60 dias;
d) Restrição ou privação de actividades sócio-culturais, desportivas ou de ocupação de tempo livre por período não superior a 60 dias;
e) Diminuição do tempo livre diário de permanência a céu aberto, por período não superior a 30 dias, salvaguardado o limite mínimo estabelecido no presente Código;
f) Permanência obrigatória no alojamento até 30 dias;
g) Internamento em cela disciplinar até 21 dias.
2 - A medida prevista na alínea g) do número anterior só é aplicável às infracções graves.
3 - A escolha e a determinação da duração da medida disciplinar são feitas em função da natureza da infracção, da gravidade da conduta e das suas consequências, do grau de culpa do recluso, dos seus antecedentes disciplinares, das exigências de prevenção da prática de outras infracções disciplinares e da vontade de reparar o dano causado.
4 - Em caso de concurso de infracções disciplinares, ainda que a soma das medidas disciplinares aplicadas exceda 120 dias, no caso das alíneas c), d) e e), ou 60 dias, no caso das alíneas f) e g) do n.º 1, a medida disciplinar executada não pode exceder aquelas durações, sem prejuízo do disposto no artigo 113.º.
[3] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[4] Artigo 399.º (Princípio geral)
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
[5] Inês Horta Pinto, "Tutela judicial efectiva na execução da pena privativa da liberdade. Impugnabilidade pelo recluso da aplicação do regime de segurança. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/2012". Revista Portuguesa de Ciência Criminal 22 2 (2012).