QUESTÃO NOVA
ABUSO DE DIREITO
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Sumário

- Embora seja regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objeto a decisão de questões que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação de questões decididas pela instância inferior, o facto de a questão – abuso de direito – constituir matéria de conhecimento oficioso, permite uma exceção a essa regra e torna legítima a sua invocação e o seu conhecimento apenas neste grau.
- Invocado o abuso de direito em execução de sentença, a apreciação nestes autos de execução, de eventual abuso de direito por parte da exequente está circunscrita ao exercício do direito de execução e aos diversos requerimentos da exequente visando impulsionar os autos.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 3723/20.4T8STB-C.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I
A presente execução de sentença para entrega de coisa certa (imóvel) foi instaurada pela exequente AA, na qualidade de cabeça de casal no inventário subsequente a divórcio contra os executados BB e CC.

A sentença que constitui título executivo transitou em julgado em 10/01/2020 e tem o seguinte dispositivo:

“a) Declaro a resolução do contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na conservatória do registo predial ... sob o n.º ...56, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...55.

b) Condeno os Réus BB e CC a entregar à Autora o prédio referido, livre de pessoas e bens.

c) Absolvo a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

d) Condeno os Réus no pagamento das custas da presente ação.»

Sendo Autora naquela ação: AA, divorciada, na qualidade de cabeça de casal, nomeada em processo de inventário por partilha de bens em consequência de divórcio, que corre termos sob o número ...4, no Cartório Notarial .... Sra. Dra. DD.

Em 28/09/2023 vieram os executados expor e requerer o seguinte:

“1- No dia 22 de Maio de 2023, no Cartório Notarial ..., em Lisboa, foi outorgada uma escritura pública de “cessão de meação”, nos termos da qual EE, que foi casado com a ora exequente AA no regime de comunhão de adquiridos, cedeu a sua meação nos bens comuns do ex-casal à ora requerente mulher, CC, executada nestes autos, conforme documento junto.

2- A ora requerente mulher, CC, é atualmente casada, no regime de separação de bens, com o ora co-executado BB, detentor de dupla nacionalidade (portuguesa e espanhola) e que, por isso, também usa e assina FF.

3- A cedência da dita meação inclui o “ativo”, bem como o “passivo”, relativamente aos bens comuns do ex-casal.

4- Encontra-se a correr termos, no Cartório Notarial ... (...), o competente processo de inventário, sob o n.º ...4, para separação de meações, decorrente do divórcio de EE e de AA, ora exequente, onde já foi feita a comunicação da realização da aludida escritura de “cessão de meação”, para efeitos de habilitação da cessionária CC, em representação do interessado EE.

5- O imóvel cuja entrega a ora exequente reclama, nos presentes autos, faz parte do acervo patrimonial dos bens comuns do referido ex-casal.

6- Assim, na sequência da mencionada “cessão de meação”, a ora requerente CC passou a ser titular do direito a uma quota indivisa, na proporção de ½, de todo o património pertencente ao dito ex-casal, onde se inclui o imóvel objeto da presente execução.

7- Nesta conformidade, o direito de propriedade da ora requerente CC é completamente incompatível com o objeto e a finalidade da presente ação executiva, que tem como objeto a entrega da totalidade do bem à comproprietária AA, ora exequente.

8- A dita cessão da quota de ½, sobre o referido imóvel, constitui um facto superveniente que obsta à continuação da presente execução, nos termos em que foi instaurada, uma vez que a desocupação do imóvel pela ora também comproprietária CC, só poderá ser alcançada no âmbito de uma ação de “divisão de coisa comum” ou no “processo de inventário” acima identificado, em função de uma adjudicação do imóvel à ora exequente AA, ou à ora co-executada CC, conforme vier a verificar-se na partilha.

9- Outro dos destinos possíveis do imóvel é a “venda do bem” a terceiros, no âmbito de qualquer desses procedimentos (ação judicial de divisão de coisa comum ou processo de inventário), sendo o produto da venda repartido em partes iguais pelas interessadas, depois de resolvido o problema do passivo, que a cessionária CC assume na proporção de metade.

10- O que parece não fazer qualquer sentido é a entrega coerciva do imóvel, na sua totalidade, à ora exequente, sendo certo que a executada CC ali tem instalada a sua casa de morada de família, com o seu agregado familiar, vendo-se na contingência absurda de ter de abandonar um imóvel que também lhe pertence, parcialmente, por força da cessão que, a seu favor, foi realizada.

11- Acresce que, como já foi dito, em requerimentos anteriores, encontra-se pendente um incidente de remoção da ora exequente AA, do cargo de cabeça-de-casal, no inventário identificado no n.º 4 do presente requerimento, situação que terá, forçosamente, de ser modificada, em consequência da "cessão" a que temos vindo a aludir...

12- Diga-se, ainda, que a executada CC perdeu a sua qualidade de ex-arrendatária do prédio cuja entrega ("despejo") é requerida na presente execução, passando a ser titular do direito de propriedade de uma quota-parte desse prédio (...), correspondente à meação do ex-marido da exequente, EE, tudo indicando que deixou de ser parte legítima, na qualidade de executada, nos presentes autos.

Face ao exposto, requer-se a V. Exa. que se digne decretar a extinção da presente execução, com fundamento na inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, com todas as legais consequências.”

A exequente respondeu em 11/10/2023 alegando que, a pretensa cessão do direito à meação do ex-cônjuge da Exequente, nenhum efeito tem sobre a presente ação executiva.

Nesta está em causa a entrega de um bem imóvel em concreto, que constitui o acervo do património do extinto casal.

A admitir-se como válida a referida cessão, o que se passou para a esfera jurídica da adquirente, aqui executada, foi o conteúdo de um direito – a “meação” que tem a mesma caracterização jurídica da herança – abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras. Só pela partilha é que se determina os bens em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado. Enquanto se não constatar a efetiva titularidade de algum (ou alguns) bem concreto que constitui o acervo do património do extinto casal, os protegidos com esta cessão não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem.

Logo, não assiste à Executada qualquer direito sobre o bem objeto da presente execução.

Requerendo a final que a execução prossiga os seus termos com vista à entrega do bem imóvel à Exequente, por inexistirem quaisquer fundamentos de facto ou de direito que obstem a tal entrega.

Foi nos autos proferida a seguinte decisão:

«Como se refere no acórdão da RL de 13.02.2014, citado no acórdão da mesma Relação de 22.06.2023 (proc. n.º 2415/20.9T8OER-C.L1-2), disponível em www.dgsi.pt, a “meação incide sobre a totalidade do património coletivo, não existe um direito à meação de cada um dos bens concretos comuns, esse direito à meação no património coletivo resulta da regra do artigo 1730.º do CC e uma vez que a sociedade conjugal foi já dissolvida, a forma de concretizar esse direito à meação em bens concretos só pode ser concretizada em processo de inventário e nesse processo de inventário bem pode acontecer que o imóvel em questão, comum embora, venha a ser adjudicado ao outro ex-cônjuge (…) integrando-se a quota ideal (…) com outros bens ou valores comuns”.

Seguindo-se a mesma orientação, afirma-se no acórdão da Relação de Coimbra de 24.09.2013, também citado no referido acórdão da Relação de Lisboa, que “[o] direito à meação do insolvente no património comum do casal formado por este e pela sua ex-mulher, é único e indiviso, não incidindo sobre bens concretos e determinados, sendo que só por via da separação dos bens e partilha com liquidação do património do casal há lugar a essa concretização”.

Afigura-se-nos assim que, não incidindo o direito cedido (“direito à meação nos bens comuns do ex-casal”) sobre bens concretos e determinados, a requerente não passou por via da celebração da escritura de “cessão de meação” a ser comproprietária do imóvel identificado nos autos, como defendem os executados, porquanto não houve qualquer cessão da quota ideal de ½ sobre o imóvel. (sublinhado nosso)

Como se salienta no acórdão da RL de 22.06.2023, acima citado, “[n]a comunhão conjugal existe um património coletivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de cada um dos seus membros não poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição.

Essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges como na compropriedade ou comunhão do tipo romano: antes, como na antiga comunhão de tipo germânico, pertence-lhes em bloco e só em bloco.

Os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela.

O património coletivo pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal”.

Neste conspecto, na esteira da orientação seguida no ac. da RP de 15.04.2021, proc. n.º 17294/18.8T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt, estará excluído o cenário da proposição de uma ação de divisão de coisa comum, aventado pelos executados:

I - No âmbito da propriedade dos bens comuns do casal, também chamada comunhão de mão comum ou propriedade coletiva, não assiste aos contitulares o direito a uma quota ideal sobre cada um dos bens integrados na comunhão, mas sim o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, apenas concretizável pela partilha.

II - Na compropriedade, o consorte é titular de uma quota ideal que recai especificamente sobre o bem indiviso, assistindo-lhe o direito de exigir a divisão da coisa comum, nos termos dos artigos 1403.º, 1412.º e 1413.º do Código Civil.

III - O património comum do casal assim persiste até à partilha de bens; não se converte num regime de compropriedade ou semelhante.” (sumário do acórdão).

A mesma orientação foi seguida no Acórdão da RE de 10.03.2010 (proc. n.º 2214/09.9TBPTM.E1, in www.dgsi.pt), onde se refere que:

“II - O património conjugal constitui uma propriedade coletiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade.

III - O meio processual adequado para a divisão dos bens comuns subsequente a divórcio é o inventário e não a ação de divisão de coisa comum.” (excerto do sumário do acórdão).

Aqui chegados, concluindo-se, como se conclui, que a executada não é titular de qualquer direito sobre o imóvel identificado nos autos, designadamente, de uma quota ideal de ½ que recaia especificamente sobre o imóvel em causa, nada mais haverá a acrescentar para se afirmar que se mantém a obrigação de entrega decorrente da sentença que serve de base à execução, improcedendo a pretensão dos executados e prosseguindo os autos os seus termos subsequentes.

Como tal, publicada que foi a Lei n.º 31/2023, de 4/7, que revogou a Lei n.º 1-A/2020, de 19/3 (com exceção do artigo 5.º), deve ser autorizada a requisição do auxílio da força pública, tendo em vista a efetivação da entrega do imóvel, a coberto do disposto nos artigos 626.º, n.º 3, 757.º, n.º 4 e 861.º, n.º 1, do CPC.

É o que se vai decidir.

Pelo que vem de ser exposto, do mesmo passo que se indefere o requerimento dos executados, autoriza-se a requisição da força pública tendo em vista a entrega do imóvel identificado nos autos, na medida do estritamente necessário à efetivação da diligência.

Caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento dos executados, deverá proceder-se à comunicação prevista na parte final do n.º 6 do artigo 861.º do CPC.

Notifique e, após trânsito, solicite a entrega à Secção de Serviço Externo.”

Inconformados com tal decisão, vieram os executados recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

A- Nos presentes autos corre uma ação executiva, para entrega de coisa certa, com referência a um imóvel onde residem os executados e sua respetiva família;

B- A ação declarativa de despejo, que serve de base à presente execução, foi instaurada contra a vontade expressa do então conjugue meeiro, e tinha como fundamento a oposição unilateral por parte da ora Exequente, na qualidade de cabeça-de-casal, à renovação do contrato de arrendamento então existente, celebrado, com os ora executados, que detinham a qualidade de inquilinos;

C- A exequente, munida do título executivo, veio instaurar a presente ação executiva (execução essa movida sempre contra a vontade expressa do seu ex-marido), com vista ao despejo dos executados e sua respetiva família, sem que para tal existisse qualquer motivação de ordem financeira, ou qualquer outro benefício patrimonial, quer para ela, quer para o património conjugal indiviso;

D- A instauração da ação declarativa, e bem assim, da presente ação executiva fundou-se, apenas, em questões de índole pessoal, desprovida de qualquer razão económica, em virtude de os ora executados terem uma relação cordial e de amizade com o ex-marido da Exequente, facto que nunca foi bem aceite pela ora Exequente;

E- Em momento algum, seja em âmbito judicial ou extrajudicial a Exequente solicitou aos então inquilinos, qualquer aumento de renda ou qualquer outra prestação pecuniária adicional que estes tivessem de liquidar perante si, o que demonstra não ter a Exequente, qualquer necessidade, económica ou de outra índole, na entrega do imóvel objeto de execução, tudo como melhor consta da sentença proferida na ação declarativa, e que constituí o título executivo que serve de base à presente execução;

F- Em função da gestão danosa do património comum do ex-casal, no dia 18 de Janeiro de 2021, o ex-marido da ora Exequente intentou o respetivo incidente de remoção de cabeça-de-casal no processo de inventário, porquanto sentiu-se profundamente lesado nos seus interesses ao ter conhecimento que os inquilinos, que sempre estimaram de forma perfeita o locado, e bem assim, procederam ao pagamento pontual da renda acordada;

G- Incidente esse, que foi trazido ao conhecimento dos presentes autos em sede de embargos de executado, e que ainda não foi decidido, face à morosidade dos autos que correm termos no Cartório Notarial, facto que tem vindo a ser aproveitado pela Exequente com vista ao prosseguimento da presente ação executiva;

H- Nesse seguimento, o ex-marido da Exequente, EE, ao tomar conhecimento da conduta da sua ex-mulher, ora Exequente, e apercebendo-se da sua absoluta falta de motivação, decidiu ceder o seu direito à meação dos bens comuns do ex-casal à executada, CC, com o objetivo de salvaguardar a posição da família que ali residia;

I- Em consequência, a ora Executada, já na qualidade de titular de 50% do património coletivo, que é composto por 92% do imóvel objeto da presente execução, veio aos autos, requerer a extinção da execução, por entender que o facto aquisitivo da referida meação do património coletivo, tornava o prosseguimento dos presentes autos inútil;

J- Inutilidade superveniente da lide essa, que se prendia, com o facto de a continuidade da execução dos presentes autos culminar com o despejo da executada, co-titular do “património coletivo” composto 92% pelo imóvel objeto de execução, tratando-se de uma situação absurda e injusta, considerando que não resultaria desse despejo nenhum benefício económico para o património indiviso, e bem assim, para a Exequente, que tem, naturalmente exatamente os mesmos direitos sobre o imóvel, que a ora Executada/Recorrente;

K- A Exequente, após ter conhecimento da cessão da meação, requereu ao Tribunal, em manifesto abuso de direito, o prosseguimento dos autos, com vista ao subsequente despejo dos executados e respetiva família, bem sabendo que não pode proceder à venda do bem sozinha;

L- O Tribunal a quo entendeu que nem a Exequente nem a Executada são proprietárias de nenhum bem em concreto, apenas sendo titulares de um direito a 50% do património indiviso, razão pela qual, foi ordenado o prosseguimento da execução e o despejo de uma família inteira que sempre residiu no imóvel objeto de execução ao longo dos últimos 10 (dez) anos;

M- É claro e ostensivo que a Exequente após ter conhecimento da cedência do direito à meação nos bens comuns do ex-casal, litiga em manifesto abuso de direito ao promover o prosseguimento da presente ação executiva, impondo um sacrifício completamente desmesurado à executada e sua restante família, apenas e só por mero capricho, exercendo de forma despótica a sua função de cabeça-de-casal e exercendo o seu direito (de executar a sentença de despejo), de forma manifestamente abusiva e desproporcional;

N- Porquanto, quando colocado em confronto a vantagem que a Exequente pretende obter com o despejo dos executados (que é nula, estamos apenas perante uma atitude puramente de carácter vingativo desprovida de qualquer razão económica) e o prejuízo notório provocado à executada e sua restante família, destruindo um lar composto por duas crianças e uma senhora gravemente doente;

O- Recorde-se, que em momento algum a Exequente peticionou qualquer aumento de renda ou invocou qualquer outro fundamento para promover o despejo da família que reside no imóvel, ficando por demais evidente que nesta fase em que Exequente e Executada têm exatamente os mesmos direitos sobre o imóvel objeto da execução;

P- O abuso de direito consiste num exercício inadmissível de posições jurídicas, isto é, num exercício de posições permitidas, mas em termos tais que são contrariados os valores fundamentais do sistema, expressos, por tradição, na boa-fé;

Q- O instituto do abuso de direito, plasmado no artigo 334.º do Código Civil, consiste numa válvula de segurança, de conhecimento oficioso, que obsta a situações de injustiça reprováveis para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, tal como figuram os presentes autos;

R- É do conhecimento do Tribunal, os argumentos aqui aduzidos, que fundamentam o exercício abusivo do direito da Exequente ao prosseguimento da presente ação executiva;

S- Em virtude do referido instituto do abuso de direito ser de conhecimento oficioso, poderia e deveria o Tribunal a quo ter dele conhecido, ao não ter feito, violou o artigo 334.º do Código Civil, padecendo o despacho recorrido de erro de julgamento;

T- A doutrina e jurisprudência tem tipificado certos comportamentos inadmissíveis, nomeadamente o exercício em desequilíbrio de direitos, que consiste numa desproporção inadmissível entre a vantagem própria do exercente (ora Exequente) e o sacrifício que impõe a outrem, in casu, Executados.

U- No caso dos presentes autos, a conduta despótica exercida pela Exequente é qualificada como um exercício em desequilíbrio de direitos, uma vez que estamos perante uma desproporção inadmissível entre a vantagem da exequente (que é nula) e o sacrifício brutal que impõe à executada, que vê-se despejada a si e à sua família do bem imóvel objeto de execução, sobre o qual tem exatamente o mesmo direito que a Exequente;

V- Não se perca de vista, que a Exequente assume, ainda que de forma precária, o cargo de cabeça-de-casal, devendo as suas tomadas de decisão proteger o interesse do património coletivo de que são detentoras a Exequente e a Executada, devendo, por inerência, abster-se de tomar decisões que prejudiquem o património coletivo, como é o caso do despejo da executada, única responsável por assegurar a manutenção do imóvel e pagamento da respetiva hipoteca, compromissos que cumpre de forma escrupulosa, com vista à salvaguarda do património comum;

W- Conforme supra evidenciado, em sede de alegações, o abuso de direito que é exercido pela Exequente, é de conhecimento oficioso podendo e devendo ser declarado pelos Venerandos Desembargadores da Relação de Évora, paralisando, desse modo, o direito da Exequente de prosseguir com a presente execução, devendo o despacho recorrido ser revogado, e substituído por outro que declare extinta a presente execução,

X- possibilitando ambas as partes procederem à partilha efetiva do património comum, sem que a executada e respetiva família que reside no imóvel tenha que sofrer, de forma indigna o sacrifício de ser despejada da casa que sempre habitou ao longo dos últimos 10 (dez) anos,

Y- evitando ser forçada a ter de mobilizar toda a sua família para outra habitação num contexto de uma crise habitacional que é pública e notória, impedindo dessa forma a consumação de facto da situação absurda do despejo de uma família inteira, de um bem imóvel, que compreende um património coletivo à rácio de 92%, do qual, na presente data, a Executada tem exatamente os mesmos direitos patrimoniais que a Exequente.

Assim, requerem a revogação do despacho recorrido e em sua substituição despacho que declare extinta a presente execução.

Em Contra-alegações concluiu a exequente recorrida:

(…)

III-Ainda sem prescindir/Do não conhecimento do objeto do recurso

h) Da leitura das alegações recursais dos recorrentes confrontamo-nos assim com a circunstância da questão que os impetrantes pretendem sujeitar à censura deste Venerando Tribunal não ter sido tratada pelo Tribunal recorrido, o que deixa o presente recurso sem objeto.

i) Daí o facto de a recorrida se abster de contra-alegar quanto aos referidos factos, dizendo apenas que, é por demais evidente, que não estamos perante um caso de abuso de direito, pois, a recorrida mais não fez do que exercer o seu direito, dentro dos limites impostos pela boa-fé, direito esse, tanto assim, que se encontra devidamente estribado na sentença que serve de título executivo à presente execução, assim como no despacho sub judice.

j) Por isso, e quanto às questões novas suscitadas pelos recorrentes, não sendo de conhecimento oficioso, não pode este venerando Tribunal da Relação emitir um qualquer juízo de reavaliação ou reexame.

k) Assim sendo, constituindo a matéria suscitada pelos recorrentes na motivação/conclusões do recurso, inquestionavelmente, questões novas, não podem assim ser apreciadas.

l) Daí que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não deve ser conhecido o objeto do presente recurso nos termos do disposto no artigo 655.º do CPC, o que se requer a V.ª Exa..

Só assim se fará a competente Justiça.


II

Do objeto do recurso:

Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar:

- Se ocorre abuso de direito por parte da exequente, devendo a execução ser declarada extinta.


III

A factualidade a considerar extrai-se do relatório supra.

IV


Fundamentação jurídica:

Pretendem os apelantes que a exequente age em abuso de direito ao intentar e fazer prosseguir a presente execução, porquanto:

- O imóvel cuja entrega se executa, constitui a casa de morada de família dos executados;

- A ação declarativa foi intentada pela exequente na qualidade de cabeça de casal no inventário subsequente a divórcio, contra a vontade do ex-cônjuge meeiro;

- Também a ação executiva foi instaurada contra a vontade do ex-cônjuge meeiro;

- E não teve qualquer motivação de ordem financeira ou patrimonial, quer para a exequente, quer para o património indiviso;

- Estando apenas motivada em questões de índole pessoal pelo facto de os executados serem amigos do ex-marido da exequente;

- Este cedeu entretanto o seu direito à meação dos bens comuns do ex-casal à executada, CC, com o objetivo de salvaguardar a posição desta família;

- Vindo a executada, agora titular dessa meação, requerer a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide;

- A exequente, em manifesto abuso de direito insiste no prosseguimento da execução, com vista ao subsequente despejo dos executados e respetiva família, bem sabendo que não pode proceder à venda do bem sozinha.

Apreciando.

A questão “abuso de direito” surge como questão nova, não suscitada no requerimento que imediatamente antecedeu a decisão recorrida e não apreciada nesta decisão, o que nos coloca perante a admissibilidade do seu conhecimento pela primeira vez, em sede de recurso.

É jurisprudência quase uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que o abuso de direito é de conhecimento oficioso.

Nesse sentido os acórdãos do STJ de 04/04/2002, 18/10/2012 ou 17/04/2018, todos eles, consultáveis em www.dgsi.pt.

Referindo o mencionado Ac. de 18/10/2012 que, o abuso do direito “é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjetivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados

Representando o abuso do direito a consagração de uma “forma de anti-juricidade ou ilicitude” é sempre permitida sua apreciação oficiosa, na medida em que está em causa a violação de princípios de interesse e ordem pública, mesmo quando o manifesto excesso no exercício do direito redunda em violação de interesses individuais.

Logo, sendo o abuso de direito de conhecimento oficioso, ao tribunal ad quem é lícita a sua apreciação porque neste grau é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida – Acórdão deste TRE de 26/01/2017, Proc. n.º 1654/15.9T8PTG.E1.

Conhecendo.

Existe abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334.º do Código Civil, quando alguém, detentor de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos claramente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Sucede que o abuso de direito está, pelos apelantes, centrado nas razões subjetivas da representante da Autora para intentar a ação declarativa, as quais terão persistido na ação executiva.

Ora, a existir abuso de direito no exercício da ação declarativa apenas nessa sede poderia o mesmo ser conhecido.

A exequente, cabeça de casal da herança subsequente a divórcio, está munida de um título executivo que lhe confere o direito a exercer judicialmente a entrega de um imóvel e, esse terá de ser o ponto de partida na avaliação de uma conduta abusiva, sob pena de, por tal via se voltarem a reapreciar os fundamentos de uma decisão condenatória transitada em julgada, com possibilidade de perda do respetivo direito, em ofensa pelos limites do caso julgado (artigos 619.º e 621.º do CPC).

Assim, a apreciação nestes autos de execução de eventual abuso de direito por parte da exequente está circunscrita ao exercício do direito de execução e aos diversos requerimentos da exequente visando impulsionar os autos.

Nada se colhe nesse procedimento de censurável.

Como referimos o abuso do direito pressupõe que o direito exista e que o excesso cometido no seu exercício seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.

Obtendo-se uma sentença condenatória de entrega de imóvel, transitada, o expectável é que a mesma seja executada se não for cumprida voluntariamente.

O comportamento da exequente (herança) está conforme essa expectativa.

A ex-cônjuge AA, a quem os apelantes atribuem motivações estritamente pessoais, não é, sequer, parte nos autos, mas sim, o património comum do casal que representa e que está sob inventário subsequente a divórcio.

Assim, a eventual divergência de propósito entre os primitivos titulares desse património comum e, a aparente falta de fundamento financeiro para a demanda executiva, não são aptos a afetar a legitimidade do direito à execução por parte do património comum.

Pelo que, não se vislumbra abuso de direito por parte da apelada, improcedendo tal questão do recurso.

Nada mais se impõe decidir.

Em suma: (…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 27 de junho de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Ana Margarida Leite (1ª Adjunta)

Cristina Dá Mesquita (2ª Adjunta)