RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
RENÚNCIA AO MANDATO
Sumário

1 – A renúncia ao mandato por parte de advogado constituído pelo arguido não tem como consequência a imediata extinção da relação de mandato e a consequente cessação das obrigações do mandatário para com o seu cliente, mantendo-se o dever de prestar assistência ao mandante até que este seja notificado da declaração de renúncia.
2 – O prazo para a interposição do recurso é atribuído ao arguido e não à pessoa do seu defensor, não exigindo a necessidade de garantia de um efectivo direito ao recurso em processo penal, que se concedam tantos prazos distintos quantos os defensores que se sucedam na assistência ao arguido.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 164/23.5JAFAR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central de Competência Cível e Criminal de Beja – J1
*
I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
*
Em 03/04/2024 foi lido acórdão condenatório aqui em discussão, na presença do arguido e do seu mandatário e depositado nessa mesma data.
*
O prazo para a interposição do recurso terminava a 03/05/2024.
*
Em 21/04/2024 o ilustre mandatário da arguida veio renunciar ao mandato.
*
A arguida foi notificada pessoalmente da renúncia nesse mesmo dia para, em 20 dias, constituir novo mandatário, com a cominação de não o fazendo lhe ser nomeado defensor.
*
Nada tendo sido requerido nos autos no prazo de 20 dias e não tendo a arguida constituído mandatário, foi-lhe nomeado defensor oficioso.
*
Em 17/05/2024 foi a arguida notificada da nomeação de defensor oficioso.
*
Em 20/05/2024, a arguida veio aos autos informar que solicitou a nomeação de defensor oficioso junto da Segurança Social, assim que foi notificada da renúncia ao mandado
*
Esse requerimento não foi junto aos autos e o Tribunal a quo solicitou à Segurança Social que prestasse informação sobre o alegado.
*
Prestada a informação apurou-se que a arguida dirigiu um pedido à Segurança Social, não na data por si indicada, mas sim no dia 07/05/2024.
*
A procuração outorgada a favor do advogado subscritor da reclamação foi junta aos autos em 11/06/2024.
*
O requerimento de interposição de recurso deu entrada em 13/06/2024.
*
Em 21/06/2024, a Mma. Juíza de Direito não admitiu, por extemporaneidade, o recurso apresentado pela arguida (…).
*
O despacho em causa foi notificado, no dia 24/06/2024, por termo, ao Ministério Público e aos restantes sujeitos processuais, na pessoa dos mandatários/defensores, via citius.
*
Nessa sequência, a arguida apresentou a presente reclamação.
*
II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
*
III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
Em matéria de recursos dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal que o prazo para a respectiva interposição é de 30 dias e conta-se, tratando-se de sentença ou acórdão, do respectivo depósito na secretaria.
A interposição de recurso depende obrigatoriamente da assistência de um defensor legalmente habilitado para subscrever, seja através da constituição de mandato forense, seja por via do regime do patrocínio oficioso, em nome do arguido, o requerimento de interposição e a respectiva motivação de recurso (alínea d) do n.º 1 do artigo 64.º[2] do Código de Processo Penal).
A questão que se coloca na presente reclamação é a de saber se a renúncia ao mandato ocorrida nos autos teve a virtualidade de fazer interromper o decurso do prazo de interposição de recurso do acórdão proferida.
*
A renúncia ao mandato por parte de advogado constituído pelo arguido não tem como consequência a imediata extinção da relação de mandato e a consequente cessação das obrigações do mandatário para com o seu cliente, mantendo-se o dever de prestar assistência ao mandante até que este seja notificado da declaração de renúncia.
Havendo renúncia ao mandato, por parte de mandatário constituído, quando decorre o prazo para interposição de recurso, impõe-se, na conjugação do artigos 47.º do Código de Processo Civil com o estatuídos nos artigos 64.º, n.º 1, alínea e) e 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, notificar o arguido pessoalmente para, querendo em 20 dias, constituir novo mandatário, com a advertência que caso não constituía mandatário, ser-lhe-á nomeado defensor oficioso.
Como afirma a mais ilustrativa jurisprudência, «sendo o CPP completamente omisso a respeito da renúncia do mandato, por força do artigo 4.º do CPP, impõe-se observar, quanto a esta matéria, as normas do processo civil que se harmonizam com o processo penal e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal. Por outro lado, não obstante o arguido gozar do direito e da inteira liberdade para, em qualquer fase do processo constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor (artigo 61.º, n.º 1, alínea e), do CPP), não pode o mesmo recusar a assistência de defensor nos atos previstos no artigo 64.º, nomeadamente nos recursos ordinários ou extraordinários, nos termos da alínea e) do n.º 1 deste último artigo. Do mesmo modo e para salvaguarda do seu direito de defesa, previsto no artigo 32.º, n.º 3, da CRP, o n.º 4 do artigo 66.º do CPP prevê que enquanto não for substituído, o defensor nomeado mantém-se para os actos subsequentes do processo.
Pelo que, havendo renúncia ao mandato, por parte de mandatário constituído, quando decorre o prazo para interposição de recurso, impõe-se, na conjugação do artigo 47.º do CPC com os artigos 64.º, n.º 1, alínea e) e 66.º, n.º 4, do CPP, notificar o arguido pessoalmente para, querendo em 20 dias, constituir novo mandatário, com a advertência que caso não constituía mandatário, ser-lhe-á nomeado defensor oficioso. Tendo o arguido na sequência da renúncia do advogado vindo apresentar pedido de apoio judiciário, torna-se evidente a sua vontade de não constituir novo mandatário, pelo que impunha-se tão-só notificá-lo, pessoalmente, da renúncia, nos termos do 47.º, n.º 2, do CPC, o que foi feito.
De harmonia com o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do CPC, os efeitos da renúncia ao mandato produzem-se tão-só a partir da notificação pessoal ao mandante, pelo que o arguido se manteve representado pelo seu advogado constituído, impendendo sobre este o dever de, até então, praticar todos os atos processuais em representação do arguido»[3].
Deste modo, na análise jurisprudencial sobre o assunto, gera consenso a afirmação que os prazos em curso no processo penal, nomeadamente o prazo para interposição de recurso não se suspendem nem se interrompem por via da renúncia ao mandato por parte do advogado constituído do arguido[4].
Convém assinalar que, no presente âmbito hermenêutico, nos seus traços fundamentais, o Tribunal Constitucional apreciou a questão aqui colocada nos acórdãos n.ºs 314/2007, 487/2018 e 501/2021, tendo emitido posição no sentido que «a renúncia de mandatário constituído do arguido, no decurso de prazo para recurso, só suspende a contagem deste com a notificação da renúncia ao arguido, prosseguindo essa contagem com a constituição de novo mandatário»[5].
Complementarmente, o Tribunal Constitucional teve ainda oportunidade de se pronunciar sobre esta matéria, entre outros nos Acórdãos n.ºs 188/2010 e 251/2022, dos quais resulta assente que «a renúncia ao mandato por parte de advogado constituído não tem como consequência a imediata extinção da relação de mandato e a consequente cessação das obrigações do mandatário para com o seu cliente (n.º 1), mantendo-se o dever do mandatário renunciante prestar assistência ao mandante, o qual tem, de resto, de ser “pontual e escrupulosamente” cumprido, como impõe o artigo 83.º do Estatuto da Ordem dos Advogados[6].
Neste parâmetro, é entendimento consolidado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e do próprio Tribunal Constitucional que o prazo para a interposição do recurso é atribuído ao arguido e não à pessoa do seu defensor, não exigindo a necessidade de garantia de um efectivo direito ao recurso em processo penal, que se concedam tantos prazos distintos quantos os defensores que se sucedam na assistência ao arguido.
Por outras palavras, a sucessão de mandatários e de defensores oficiosos não tem um efeito suspensivo na marcha do processo nem pode ser hipoteticamente utilizado para prolongar artificialmente o prazo de apresentação de um determinado recurso.
Na verdade, aquando da renúncia ao mandato apresentada em 21/04/2024 estava ainda a decorrer o prazo para interposição de recurso. E esse prazo terminou no dia 03/05/2024 e apenas em 07/05/2024 a arguida solicitou a nomeação de mandatário, já fora do prazo admissível para a interposição do recurso.
Ao tempo da dedução do pedido junto da segurança social, já havia decorrido o prazo para a interposição do recurso e, além do mais, oportunamente, não foi comunicada ao processo qualquer causa de justo impedimento, não podendo ser fundamento de admissão extemporânea tal impedimento ser referenciado nas alegações de recurso, as quais apresentadas em 13/06/2024.
Comunga-se assim do entendimento expresso na decisão reclamada quando a mesma avança que «resulta evidente que o prazo de interposição de recurso se mostra claramente ultrapassado, tendo inexistindo qualquer causa de suspensão do prazo em curso já que a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto decorre o prazo de 20 dias concedido ao arguido para constituir mandatário, sendo certo que durante o prazo de interposição de recurso a arguida não solicitou a nomeação de defensor».
Neste espectro lógico-jurídico, o recurso apresentado pela arguida foi interposto quando o acórdão já havia transitado em julgado, devendo assim manter-se o despacho de não admissão de recurso, por extemporaneidade.
*
IV – Sumário: (…)
*
V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo do arguido, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 10/07/2024

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


__________________________________________________
[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 64.º (Obrigatoriedade de assistência):
1 - É obrigatória a assistência do defensor:
a) Nos interrogatórios de arguido detido ou preso;
b) Nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária;
c) No debate instrutório e na audiência;
d) Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;
e) Nos recursos ordinários ou extraordinários;
f) Nos casos a que se referem os artigos 271.º e 294.º;
g) Na audiência de julgamento realizada na ausência do arguido;
h) Nos demais casos que a lei determinar.
2 - Fora dos casos previstos no número anterior pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito.
4 - No caso previsto no número anterior, o arguido é informado, no despacho de acusação, de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição desse defensor mediante a constituição de advogado.
5 - Sendo arguida uma pessoa coletiva ou entidade equiparada é correspondentemente aplicável o disposto nos números anteriores.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/11/2016, pesquisável em www.dgsi.pt.
[4] Em apoio desta tese, podem ser consultadas as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 11/03/2024 e do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2004 e 12/05/2005, todas disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Todos os acórdãos do tribunal Constitucional referenciados encontram-se disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[6] Em todos estes acórdãos, como naquele que foi convocado na decisão reclamada (Ac. do TC n.º 671/2017), se decidiu «não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 47.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), segundo a qual, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário».