OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUESTÕES JURÍDICAS
ALEGAÇÕES
LEI DA AMNISTIA
Sumário

“Padece da nulidade por omissão de pronúncia prevista no art. 379º nº 1 c) do CPP, a sentença que não conhece da questão da aplicação do perdão da pena (de multa) aplicada às arguidas nos termos da Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto, apesar dessa questão ter sido por elas expressamente invocada perante o tribunal do julgamento em sede de alegações orais (, cfr. art. 360º do CPP) por, tal dever de conhecimento por parte do tribunal a quo, decorrer da conjugação do disposto nos arts. 339º nº 4 e 360º nº 1 ambos do CPP e encontrar-se abrangida pelas “soluções jurídicas pertinentes” a que respeitam os arts. 368º e 369º do CPP (não havendo, por isso, que aguardar-se pelo trânsito em julgado da respetiva condenação)”.

(da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Processo nº 242/23.0PAESP.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Espinho – Juiz 2


Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

Por sentença depositada em 06/03/2024, foi, além do mais, decidido:

“1. CONDENAR a arguida AA pela imputada prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo art.º261.º, n.º1, por referência aos art.ºs35.º e 39.º da Lei do Jogo, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete Euros).

2. CONDENAR a arguida BB pela imputada prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo art.º261.º, n.º2, por referência aos art.ºs35.º e 39.º da Lei do Jogo, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete Euros e cinquenta cêntimos)”.


*

Não se conformando, as arguidas AA e BB interpuseram o presente recurso em 10/04/2024, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“A. Nos presentes autos, realizada a audiência de discussão e julgamento, em sede de alegações finais, foi invocada explicitamente a possibilidade de aplicação das normas constantes dos artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2, alínea a) da Lei 38- A/2023, de 2 de Agosto.

B. Acontece que, por douta Sentença de fls…, o Dign.º Tribunal a quo decidiu condenar a Arguida pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º1, por referência aos artigos 35.º e 39.º da Lei do Jogo, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €: 7,00 (sete euros), perfazendo o montante de €: 420,00 (quatrocentos e vinte euros), e , igualmente, a Arguida BB pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º2, por referência aos artigos 35.º e 39.º da Lei do Jogo, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €: 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante de €: 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), não se pronunciando, de todo, sobre a aludida questão suscitada.

C. No modesto entendimento das ora Recorrentes, e sempre com o devido e merecido respeito por opinião contrária, o Dign.º Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre a aplicação das normas constantes dos artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2, alínea a) da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto e, consequentemente, ter declarado perdoadas as penas de multa (de 60 dias) aplicadas pela prática do mencionado crime, o que não sucedeu, revelando manifesta omissão de pronúncia, o que constitui NULIDADE nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P.

D. Sempre importará referir que, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto – a qual entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023 e que estabelece o regime de perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – são perdoadas «As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão», desde que o agente, à data da prática dos factos, tivesse entre 16 e 30 anos de idade, e o ilícito criminal tenha sido praticado até 00:00 horas de 19 de Junho de 2023.

E. O crime de uso de documento de identificação alheio não se encontra excecionado nos termos contemplados no artigo 7.º da Lei nº 38 – A/2023 de 2 de Agosto.

F. Ora, no caso sub judice, no dia da prática dos factos (10 de Abril de 2023), a Arguida AA tinha 28 anos de idade e a Arguida BB tinha 52 anos de idade.

G. Entende a Recorrente BB que, não obstante, na data da prática dos factos, tivesse idade superior a 30 anos, se encontra, de igual forma, abrangida pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que vigora desde o dia 1 de Setembro de 2023.

H. Isto porque, desde logo, no modesto entendimento da Arguida BB, aqui Recorrente, o limite de idade imposto no artigo 2.º, n.º 1 da mencionada Lei, constitui manifesta discriminação, sem fundamento razoável, relativamente a todos os cidadãos com idade superior a 30 anos.

I. Entendendo-se como ferido de inconstitucionalidade material esse mesmo limite, por violação do núcleo fundamental do princípio da igualdade, na modalidade de proibição do arbítrio, prevista no artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que prevê que, «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» e, «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual». (negrito e sublinhado nossos) J. Neste sentido, embora se compreenda que as medidas de graça dirigidas à população mais jovem tenham em vista a tentativa de minimizar as consequências negativas que a reclusão acarreta, e, mesmo que se procure explicar o limite de idade fixado na presente Lei na faixa etária dos peregrinos que participaram na Jornada Mundial da Juventude, sempre se entende que, um tal regime é desprovido de justificação, sentido e lógica, convocando, inevitavelmente, uma profunda discriminação, atendendo ao primado do supra aludido princípio constitucional da igualdade, mas, também, de um direito penal mais justo, equitativo e, sobretudo, humanitário.

K. Donde resulta que, o limite etário imposto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto é, manifestamente incompreensível, infundado e injusto, inexistindo qualquer fundamento para uma tal distinção, até porque, realce-se, a discriminação para ser legítima terá, pois, que ser proporcional, necessária e adequada, não podendo, de modo algum, ser arbitrária.

L. Assim, concluindo-se que, o limite de 30 anos descrito na norma do artigo 2.º, n.º 1 da referida Lei, é materialmente inconstitucional, inconstitucionalidade que, desde já, se invoca perante V.Exa., entendem as Arguidas, aqui Recorrentes, poderem beneficiar, ambas, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, nº 2, alínea a) da Lei nº 38 – A/2023 de 2 de Agosto, do perdão da pena de multa de 60 dias que lhes foi aplicada, sujeito à condição resolutiva prevista no artigo 8.º do mesmo diploma.

M. A douta Sentença recorrida encontra-se em plena violação das disposições legais previstas nos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, alínea c), ex vi artigo 425º, n.º 4, do Código Processo Penal, artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2, alínea a) da Lei nº 38–A/2023 de 2 de Agosto, e 2.º, 3.º, 9.º, 13.º, 18.º, 20.º, 29º, 32.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa “.

Pugnam pela revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que aplique às arguidas o perdão da pena de multa nos termos previstos nos arts. 2º nº 1 e 3º nº 2, alínea a) da Lei nº 38– A/2023 de 2 de Agosto, sujeito à condição resolutiva prevista no artigo 8.º do mesmo diploma legal.


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Em 13/05/2024 o recurso foi admitido (referência 133007398).

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A este recurso respondeu o MºPº em 31/04/2024, sem formular conclusões, pronunciando-se pelo não provimento do recurso, da qual se extraem as seguintes passagens mais relevantes (transcrição):

“As arguidas vêm alegar a nulidade por omissão de pronúncia sobre a possibilidade de aplicação às arguidas da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08.

Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se verifica a nulidade invocada pelo arguido, uma vez que, afigura-se-nos que o momento apropriado para que se possa aferir da aplicabilidade ou não da Lei supra mencionada, será após decisão transitada em julgado.

No que respeita à alegada inconstitucionalidade material do art.º 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, importa dizer que, tal como consta do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 22.11.2023, no âmbito do processo n.º 39/07.5 TELSB-H.C1, disponível no site www.dgsi.pt, com o qual se concorda na íntegra e do qual consta o seguinte: “(…) A lei aqui em causa reveste carácter geral e abstrato, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.

Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.

Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade (como refere o despacho de sustentação, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias e perdões. (…)” – referindo-se ao acórdão do TC com o n.º 300/00, relatado por Guilherme da Fonseca.

Em suma, não se verifica a inconstitucionalidade alegada pelas arguidas, nem qualquer nulidade por omissão de pronúncia nos termos alegados pelas mesmas.

Face ao exposto, afigura-se-nos que o presente recurso não merece provimento devendo ser mantida a decisão recorrida “.


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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, em 07/06/2024, aderindo à resposta do MºPº junto do Tribunal recorrido, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, acrescentando o seguinte:” Para o que aqui importa, nos termos do nº1 do artº 2º da referida Lei nº 38-A/2023, de 02.08.: “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.”. (Destacado e sublinhado nossos) .

A arguida AA nasceu em ../../1995, pelo que à data da prática dos factos – 10.04.2023 – tinha 28 anos de idade.

A arguida BB nasceu em ../../1970, pelo que à data da prática dos factos – 10.04.2023 – tinha 52 anos de idade.

No que diz respeito à interpretação dos preceitos normativos da Lei da Amnistia e à definição do seu âmbito, sempre se dirá que a primeira consideração de que se deve partir, nesta matéria é, a nosso ver, aquela que sinteticamente o Supremo Tribunal de Justiça exarou no seu Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, proc. n.º 2748/00-5: “as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas”.

E, nem se diga que, desta forma, se mostra violado o princípio da igualdade, como pretendem as recorrentes.

E isto porque “O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.”. (cfr. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e segs.).

Considerando que a Lei n.º38-A/2023 de 2 de Agosto se reporta ao evento das Jornadas Mundiais da Juventude, realizadas em Portugal, tendo sido assumido pela organização do evento que o conceito de “juventude” para esse efeito seriam todos os jovens até aos 30 anos de idade, foi opção do legislador assumir o mesmo critério de abrangência subjectiva.

E, por natureza, as Leis da Amnistia são leis de clemência do Estado, cuja abrangência e aplicação tem inerente uma injustiça relativa que não é possível eliminar.

Conforme bem refere o AC RP de 24.01.2024 (Proc. nº 628/08.0PAPVZ-C.P1, in www.dgsi.pt):

Como é sabido e pacífico na doutrina e na jurisprudência as leis de amnistia e perdão são entendidas como leis de “graça e de clemência” e deverão ser entendidas como leis de exceção cujo fim é unicamente o que o legislador entendeu expressar na sua letra.

Como leis excecionais que são não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica, tal como estatuído no artigo 11.º do Código Civil, e no campo penal nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do Código Civil.

Isto mesmo afirmou o Venerando Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 5 de dezembro de 1995, sendo claro que: “As leis de amnistia, como providências excecionais que são, não admitem interpretação extensiva ou aplicação analógica, devendo ser interpretadas nos seus exatos termos sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas - interpretação declarativa estrita.”. (Destacados e sublinhados nossos)

E, quanto à específica matéria ora em análise:

I – Ao restringir a aplicação do perdão de penas a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática dos factos, a Lei n.º 38-A/23, de 2 de agosto, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.

II – O tratamento diferenciado por parte do legislador justifica-se devido à especificidade de uma faixa etária, em que as necessidades de ressocialização se mostram mais prementes e os efeitos da permanência em meio prisional potenciam maiores malefícios.”. (Cfr. AC RP, de 19.12.2023 – Proc. nº 1415/21.6JAPRT-F.P1, in www.dgsi.pt) (Igualmente destacados e sublinhados nossos)

 Também o AC RP, de 05.01.2024 (Proc. nº 30/21.9SFPRT-B.P1, em www.dgsi.pt), é lapidar quando refere:

“V – A sobredita delimitação pela idade da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade.”.

 Igualmente em AC RP, de 27.11.2023 (Proc. nº 24/21.4PEPRT-B.P1, in www.dgsi.pt) e em que a questão levantada era precisamente a mesma dos presentes autos, qual seja:

“(Despacho que considerou não ser aplicável a Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (Lei de amnistia), devido à idade do arguido / Recurso do arguido, invocando a inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, dessa Lei, por violação do princípio da igualdade, na parte em que limita a aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos…), explana-se claramente que:

“VI – A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspectos da regulação da vida em sociedade.

VII – A ideia subjacente à publicação da referida lei, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.

VIII – Ora, sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.

IX – A violação do princípio da igualdade somente ocorreria se, estando o recorrente dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP.”. (Idem, destacados e sublinhados nossos)

 Número 2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que estatui, relembre-se “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.


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Em conclusão, e dando aqui por reproduzidas as superiores considerações da Exma. Colega junto da primeira instância, com as quais concordamos na íntegra, somos de parecer que:

- Foi correctamente inaplicada in casu a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.;

- A mesma não é inconstitucional, no segmento que limita a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 a 30 anos à data da prática dos factos, e referente a ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023;

-o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão ora em crise, nos seus precisos termos “.


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Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, as arguidas apresentaram resposta onde reiteraram os fundamentos do recurso.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi realizada a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pelas recorrentes da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, são duas as questões a decidir no presente recurso:

a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia relativamente à aplicação às arguidas do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto (art. 379º nº 1 c) do CPP);

o perdão das penas de multa aplicadas às arguidas AA e BB, nos termos dos arts. 2º nº 1 e 3º nº 2 a) da Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto e a inconstitucionalidade material do limite de idade imposto no art. 2º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto, relativamente à arguida BB por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13º nº 2 da CRP.


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A sentença recorrida nos segmentos que aqui relevam, tem o seguinte teor (transcrição parcial):

Factos Provados:

Da discussão da causa, após ponderação crítica dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 10.04.2023, as arguidas deslocaram-se ao ..., sito na Rua ..., em ..., com o objetivo de nele entrarem e acederem às salas de jogo.

2. Na ocasião, a arguida AA não tinha consigo qualquer documento de identificação, não podendo ser autorizada a entrar no mencionado Casino e aceder às salas de jogo.

3. A arguida AA deu conta desse facto à arguida BB, a cuja posse, por via de sua filha CC, veio o cartão de cidadão de DD, e decidiu emprestar tal documento de identificação, passando-lhe para a mão o cartão de cidadão n.º ..., emitido pelos Serviços de Identificação Civil em nome da cidadã DD.

4. Assim, pelas 23:30 horas do dia 10.04.2023, a arguida AA, usando o cartão de cidadão pertencente a DD, entrou no Casino.

5. A arguida AA agiu com o propósito, concretizado, de aceder ao interior do ... usando um cartão de cidadão que não lhe pertencia, bem sabendo que, para entrar nesse espaço, necessitava de registar a sua entrada com documento de identificação pessoal, e que, sem apresentá-lo, não conseguiria esse acesso.

6. Sabia que, ao utilizar um documento de identificação que não titulava, punha em causa a credibilidade e fé pública a ele inerente.

7. A arguida BB agiu com o propósito, concretizado, de facultar o cartão de cidadão de DD à arguida AA, a fim de lhe permitir aceder ao interior do ..., bem sabendo que, para entrar nesse espaço, era necessário registar a entrada com documento de identificação pessoal, e que, sem a apresentação do documento de identificação que titulava e lhe emprestou, a arguida AA não conseguiria esse acesso.

8. Sabia que, ao emprestar e permitir a utilização de tal documento de identificação que estava na sua posse, punha em causa a credibilidade e fé pública a ele inerente.

9. Atuaram ambas de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

10. As arguidas não possuem registo de antecedentes criminais.

11. A arguida AA trabalha como empregada de balcão, tal como o seu companheiro, auferindo ambos o vencimento correspondente ao salário mínimo nacional.

12. A arguida identificada em 11) reside com o seu companheiro e os dois filhos de ambos, respetivamente de 10 e 04 anos de idade, em casa arrendada, despendendo a quantia mensal a título de renda de € 750,00.

13. A arguida BB é empresária e aufere o rendimento mensal declarado de € 1.500,00.

14. A arguida identificada em 13) reside em casa própria com o seu companheiro, a filha e o namorado desta e ainda com o filho de 18 anos.

15. Paga, a título de prestação mensal de crédito o montante de € 600,00.

16. O seu companheiro aufere subsídio de doença, em montante não concretamente apurado.

17. A filha e o namorado desta não contribuem com qualquer quantia para as despesas correntes.


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Factos Não Provados:

    Sem prejuízo daqueles que se encontram em contradição com os factos provados, com relevo para a descoberta da verdade material, não se provou:

A. Que as arguidas sejam pessoas humildes, honestas e trabalhadoras.


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(…).

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IV. Enquadramento Jurídico-penal:

Feito o enquadramento fáctico, importa, agora, proceder ao enquadramento jurídico-penal.

Vêm as arguidas acusadas nos seguintes termos:

- A arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de uso de documento de identificação e de viagem alheio, p. e p. pelo art.º261.º, n.º1 do Código Penal, por referência aos art.ºs35.º e 39.º da Lei do Jogo.

- A arguida BB, pela prática, em autoria matéria e na forma consumada, de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, p. e p. pelo art.º261.º, n.º2 do Código Penal, por referência ao regime dos art.ºs35.º e 39.º da Lei do Jogo.

Preceitua o n.º1 do normativo referido que “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar u encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias,” complementando o n.º2 que “na mesma pena incorre quem, com intenção de tornar possível o facto descrito no número anterior, facultar documento de identificação ou de viagem a pessoa a favor de quem não foi emitido.”

Por documento de identificação ou de viagem, entende a alínea c) do art.º255.º do mesmo diploma legal que é “o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível.”

    O bem jurídico protegido por este tipo legal é, conforme o refere Helena Moniz, in Comentário Conimbricense, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág.732, «a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não já por a ação do agente constituir uma atividade perigosa relativamente ao bem jurídico – não se tratando, pois, de um crime de perigo – mas sim uma conduta danosa

É, portanto, um crime de dano, em que o agente é punido porquanto exige uma sua conduta com intenção de causar um prejuízo a outra pessoa ou ao Estado.

São, então, elementos típicos do tipo de crime:

- O uso, por pessoa distinta do seu titular, de documento de identificação ou de viagem verdadeiro;

- A intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo ou a de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

- Acresce, no n.º2, a cedência do documento a outra pessoa com a intenção prevista no n.º1.

A título subjetivo exige-se o dolo direto.

Ora, em face da factualidade supra acolhida como provada, resultam presentes todos os pressupostos objetivos do tipo de ilícito.

Verifica-se, assim:

- O uso pela arguida AA do cartão de cidadão de DD.

- A intenção de obter para si (e da parte da arguida BB, para a sua funcionária, a aqui coarguida AA) um benefício ilegítimo, consubstanciado no caso em apreço na permissão de entrada que, de outro modo, ou seja, na ausência de documento de identificação, não seria permitida a esta.

- A cedência, por parte da arguida BB, à coarguida AA de cartão de cidadão alheio.

- O conhecimento de ambas as arguidas da sua conduta típica e a vontade em praticá-la, ou seja, o dolo, na sua vertente de dolo direto.

Afirmando-se a tipicidade e não constando dos autos quaisquer elementos de onde se possa excluir a ilicitude ou a culpa, conclui-se que se encontram aqui presentes todos os pressupostos na teoria da infração e que as arguidas praticaram o crime nos moldes pelos quais vinham acusadas.


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V. Da determinação da sanção:

    A conduta das arguidas é, em moldes abstratos, punível com pena de prisão [de 01 mês] até dois anos ou com pena de multa [de 10] até 240 dias.

Em homenagem ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal, estabelece o art.º70.º do CP que, sendo aplicáveis, em alternativa duas penas principais (uma delas privativa e outra não privativa da liberdade), “o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

E como a aplicação de uma pena tem por objetivo a proteção dos bens jurídicos ínsitos na norma e a reintegração (vide art.º40.º do CP), dir-se-á que serão considerações de prevenção (geral e especial) a decidir da possibilidade de fazer prevalecer, in casu, uma ou outra.

   Como atalha Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, Aequitas, p.215, “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”

Vejamos, então:

   Têm-se aqui por médias as exigências de prevenção geral pois não obstante a importância dos bens jurídicos aqui em causa, trata-se de tipo de crime com uma diminuta taxa de incidência na nossa comunidade.

São diminutas as exigências de prevenção especial na medida em que nenhuma das arguidas possui registo de antecedentes criminais, pelo que se nos afigura suficiente e adequada às finalidades da punição, e quanto a ambas as arguidas, uma pena não privativa da liberdade.


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A. Da medida de pena concreta a aplicar aos arguidos:

Cumpre, então, aferir da medida da pena concreta a aplicar às arguidas.

Serão, então, a culpa e a prevenção os dois termos do binómio com que se há-de construir o modelo da medida da pena, havendo de temperá-los com as demais circunstâncias que rodearam o cometimento do crime por que vêm as arguidas acusadas (art.º71.º, n.º2 do Código Penal).

Nos termos do art.º71.º, n.º1 CP, a determinação da medida da pena é efetuada em razão da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.

Para tanto, e cfr. estabelece o n.º2 do referido artigo, deverão ainda ser consideradas todas as circunstâncias gerais que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, em particular o grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o crime e a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, bem como as condições pessoais do agente e a sua situação económica.

Para avaliar da medida da pena no caso concreto, a Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, in A determinação da pena privativa da liberdade, Coimbra Editora, 1995, pág.658 e seg.s, entende que há que indagar fatores que se prendem com o facto praticado e com a personalidade do agente que o cometeu.

Como fatores atinentes ao facto e por forma a efetuar-se uma graduação da ilicitude do facto, podem referir-se ao modo de execução deste, o grau de ilicitude e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o grau de perigo criado e o seu modo de execução.

   Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins ou os motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos.

Assim, neste caso, e como fatores de graduação da pena importa considerar:

- A ilicitude ancorada numa imagem global do facto de pouca expressividade e a ausência de prejuízo económico adveniente da conduta praticada.

- O dolo das arguidas foi intenso, porquanto direto.

- A inexistência de registo de antecedentes criminais.

- A circunstância de ambas se encontrarem integradas familiar, social e profissionalmente.

Ponderadas todas estas circunstâncias, entende este Tribunal por adequada a pena de 60 dias de multa para ambas.

No que respeita ao quantitativo diário da pena de multa, este é fixado pelo Tribunal em função da situação económica e financeira dos arguidos e dos seus encargos pessoais, único critério que a lei impõe na fixação deste montante diário, no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, sendo que, nos termos desta disposição legal “(...) cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €:5,00 e €: 500,00.”

A tais critérios, acrescenta a jurisprudência, de forma unânime, que a aplicação de uma pena de multa não pode consistir numa forma disfarçada de dispensa da pena ou mesmo de absolvição, mas, antes, tem que constituir um verdadeiro e real sacrifício para o condenado, ainda que, tendo em consideração o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.10.1997, in Coletânea da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 3, página 183).

Assim, em face do apurado quanto às condições socioeconómicas das arguidas, que aqui se dá por reproduzido, entende-se como adequado fixar a taxa diária em € 7,00 para a arguida AA e em € 7,50 para a arguida BB “.


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No despacho que admitiu o recurso (referência 133007398) o Sr. Juiz a quo fez constar o seguinte (transcrição parcial):

“(…)

Assim, mantendo-se na íntegra a sentença proferida – pois, independentemente de se considerar que as alegações orais não são o momento processual próprio para se introduzirem novas questões, é n/ entendimento não constituir omissão de pronúncia a falta de referência à aplicabilidade do regime da Lei n.º38.º-A/2023, de 02.08, porquanto tal cogitação implica que, previamente, a decisão transite em julgado, só após se analisando e, uma vez reunidos os seus pressupostos, aplicando o perdão nela previsto (…)”.

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Apreciação do recurso

1ª questão: da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia relativamente à aplicação às arguidas do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto (art. 379º nº 1 c) do CPP).

As recorrentes alegam que, uma vez realizada a audiência de discussão e julgamento, em sede de “alegações finais”, foi explicitamente invocada a possibilidade de aplicação das normas constantes dos arts. 2º nº 1 e 3º nº 2 alínea a) da Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto; porém, o Tribunal recorrido tendo aplicado uma pena de multa a cada uma das recorrentes, não se pronunciou, de todo, quanto à questão suscitada.

Em seu entender, tal omissão, acarreta a nulidade da sentença por omissão de pronúncia cominada pelo art. 379º nº 1 c) do CPP.

Apreciando.

No presente recurso não vem posta em causa a matéria de facto provada e não provada fixada na sentença, o seu enquadramento jurídico-penal, nem as operações realizadas quanto à escolha e determinação da medida concreta das penas nem o número de dias de multa ou da respetiva taxa diária, aplicados a cada uma das recorrentes.

A discordância cinge-se à omissão, na decisão, de pronúncia/apreciação da questão suscitada, em sede de alegações orais (art. 360º do CPP), da aplicação do perdão à pena de multa aplicada a cada uma das recorrentes nos termos previstos nos arts. 2º nº 1e 3º nº 2 a) da Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto.

Prescreve o art. 379º nº 1 do CPP, sob a epígrafe «Nulidades da sentença» que:

 “1 - É nula a sentença:

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento “.

O regime das nulidades da sentença previsto neste art. 379º e o seu modo de sanação é especial relativamente ao que vem estabelecido nos arts. 119º e 120º do CPP para os trâmites processuais, traduzindo uma invalidade específica da própria decisão quanto ao seu conteúdo ou tomando em consideração a decisão como ato, aplicando-se exclusivamente à sentença ou acórdão conforme decorre do disposto no art. 97º nºs 1 a) e 2 do mesmo Código (e já não aos despachos).

As «questões» a que alude o art. 379º nº 1 c) são as pertinentes para o objeto do processo, tal como vem originariamente fixado por ato exterior à jurisdição (acusação) e ainda derivadamente, pelo que puder ser-lhe acrescentado nas fases processuais subsequentes nos termos e dentro dos limites permitidos na lei (cfr. arts. 303º, 309, 358º, 359º e 424º nº 3, todos do CPP)([1]), pela contestação ou pelas conclusões recursais([2]), a não ser que esse conhecimento fique prejudicado pela solução a outras questões antes apreciadas([3]), devendo entender-se por «questões», “os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença. A falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.”([4]).

No caso destes autos, a sentença nada decidiu quanto ao perdão de pena previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto expressamente requerido pelas arguidas em sede de alegações orais.  

Estatui o art. 339º nº 4 do CPP que “Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º”.     

Dispõe por sua vez o art. 360º nº 1 do CPP que “Finda a produção da prova, o presidente concede a palavra, sucessivamente, ao Ministério Público, aos advogados do assistente e das partes civis e ao defensor, para alegações orais nas quais exponham as conclusões, de facto e de direito, que hajam extraído da prova produzida “.

Decidiu a propósito, o Ac. da R.E. de 04/04/2017([5]) que “(…) resulta da conjugação do preceituado nos citados arts. 339º nº 4 e 360º nº 1 com princípios estruturais do processo penal, que as alegações orais em audiência são meio próprio para suscitar questões jurídicas pertinentes (…)“, sendo no caso destes autos, perante o tribunal de julgamento, a aplicabilidade das normas previstas na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto à pena aplicada a cada uma das arguidas.

Expendeu-se em tal aresto que “Na verdade, a lei de processo admite amplamente a instrução e discussão de todas as questões pertinentes na audiência de julgamento, independentemente da sua redução a escrito, fruto da relevância que o princípio da oralidade na fase de julgamento ainda assume entre nós. Assim e constituindo as alegações orais momento ritualizado de as partes apresentarem na audiência a sua posição sobre as diversas questões que julguem pertinentes para a decisão da Questão da culpabilidade e da Determinação da sanção (arts 368º e 369º do CPP), não se vê fundamento para considerar que o tribunal de julgamento não fica vinculado a apreciar as questões relevantes (independentemente do mérito respetivo), apresentadas pelas partes nas suas alegações orais “ – destacado nosso.

Na mesma senda no Ac. da R.L. de 14/09/2021([6]) entendeu-se que “A acusação delimita o objecto do processo, mas não restringe o objecto da discussão. É o que se extrai do consagrado no artigo 339º, nº 4, do CPP, onde se pode ler que, “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º” – destacado nosso.

Entre as questões passíveis de conformar omissão de pronúncia, figura a do não conhecimento de aplicação de perdão ou amnistia([7]).

Donde de tudo se conclui que a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia (art. 379º nº 1 c) do CPP).

Assim sendo, deverão os autos baixar ao Tribunal a quo para que complete a sentença, conhecendo-se nela da questão da aplicabilidade às arguidas do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto([8]), ficando assim prejudicadas as restantes conclusões do recurso.


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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso, declarando-se a nulidade da sentença por omissão de pronúncia nos termos do art. 379º nº 1 c) do CPP, devendo, em consequência, ser completada a sentença com o conhecimento da questão omitida.

Não é devida tributação – cfr. art. 513º nº 1, última parte, a contrario, do CPP.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.


Porto, 03/07/2024

Lígia Trovão

Maria Joana Grácio

Pedro Afonso Lucas


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[1] Cfr. Henrique Salinas in “Os Limites Objetivos do Ne Bis In Idem e a Estrutura Acusatória no Processo Penal Português”, Universidade Católica Editora, págs. 205, 206 e 522.
[2] Cfr. Ac. da R.L. de 11/01/2023, no proc. nº 145/20.0PTOER.L1-3, relatado por Maria Margarida de Almeida, acedido in www.dgsi.pt
[3] Cfr. Ac. do STJ de 11/10/2022 no proc. nº nº 602/15.0T8AGH.L1-A.S1, relatado por Isaías Pádua, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. do STJ de 15/12/2011, no proc. nº 17/09.0TELSB.L1.S1, relatado por Raúl Borges, acedido in www.dgsi.pt
[5] Cfr. proc. nº 115/15.0T8LAG.E1, relatado por António João Latas, acedido in www.dgsi.pt
[6] Cfr. proc. nº 436/18.0T9LRS.L1-5, relatado por Artur Varges, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. J. Mouraz Lopes no “Comentário Judiciário do CPP”, Tomo IV, pág. 801.
[8] Cfr. neste sentido, P. Pinto de Albuquerque no “Comentário do CPP à luz da CRP e da CEDH”, Volume II, 5ª edição atualizada, pág.494, nota 12.