EXECUÇÃO
PERSI
CLIENTE BANCÁRIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário

1 - Apesar de, no art. 39º do DL 227/2012, de 25 de outubro, não ter sido excluída a situação de ação judicial pendente, o cliente bancário contra o qual foi instaurada execução antes da entrada em vigor do referido diploma não tem de ser integrado no PERSI.
2 - O PERSI constitui uma fase pré-judicial.
3 - As condições de admissibilidade da ação têm de se aferir pela lei vigente na data em que a ação foi proposta.

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na ação executiva que Sandalgreen, Assets, S.A. move contra A e B, os executados interpuseram recurso do despacho proferido a 15 de março de 2024, pela qual foi julgada improcedente a arguição de nulidade.
Na alegação de recurso, os recorrentes pediram que seja revogado o despacho recorrido e absolvidos os executados da instância, declarando-se a nulidade da adjudicação e subsequente transmissão.
Os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
«1º Tal como decorre do Ac. STJ de 9/02/2017 no Proc. 194/13 durante o período entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento a instituição de crédito não pode instaurar ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito
2º A instituição de crédito mutuantes deve informar o cliente da ocorrência de uma situação de mora e dos montantes vencidos em dívida, procurando obter informações acerca das razões subjacentes ao incumprimento; e, caso esse incumprimento se mantenha, integram, obrigatoriamente, o cliente no PERSI entre o 31.º dia e 60.º dia subsequentes à entrada em mora;
3º Recorde-se que, muito antes de 2012, através DL 349/98, art.º 7º B, n.º 1, estabelecia-se que os mutuantes apenas podem proceder à resolução ou a qualquer a outra forma de cessação do contrato de crédito após três prestações vencidas e não pagas pelo mutuário, acrescentando-se que o incumprimento parcial da prestação não é considerado desde que…
4º A questão que se coloca desde logo é a de saber tal imposição normativa em vigor desde 1998, era ou não do conhecimento oficioso e sendo a responsabilidade do mandatário constituído anos depois da instauração da execução era de fazer lembrar que era obrigação do Tribunal exigir tal prova à Exequente?
5ª Aliás, nos termos da correspondente Diretiva foi imposto aos Estados-Membros adotar medidas que determinem uma ponderação adequada antes de intentarem processos de execução. Será que foi exigida prova da tentativa da instituição bancária de evitar ir para Tribunal? Foi exigida prova da interpelação do fiador?, etc… como condição de procedibilidade.
6ª Não restam dúvidas de que o regime do PERSI instituído em 2012 já tinha consagração legal à data da instauração da execução e decorria, aliás, de uma Diretiva Comunitária (Diretiva nº 2014/17/EU) através da qual as instituições financeiras ficaram obrigadas a acompanhar de forma permanente e sistemática a execução dos contratos de créditos dos seus clientes, com vista a detetar eventuais indícios de riscos de incumprimento, cabendo-lhes implementar um plano de reestruturação ou um modelo de negociação, não estando dependente de qualquer pedido formulado pelo mutuário.
7ª Efetivamente, na data da instauração da execução já se encontrava em vigor a obrigação legal de a instituição financeira dar cumprimento, sem nada ser solicitado, aos deveres de informação e comunicação os quais não tendo sido alegados nem demonstrado o seu cumprimento deveria ter conduzido ao despacho de ineptidão do requerimento executivo – de conhecimento oficioso – o que não teve lugar e apesar do tempo decorrido ainda podem e devem ser suscitados.
8ª Temos assim que enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da divida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito.
9ª Ora, a instituição financeira não só não demonstrou no requerimento executivo ter dado cumprimento a essa obrigação como também não notificou o fiador, sendo que também com base em tal omissão deveria o requerimento executivo ter sido (oficiosamente) liminarmente indeferido omissão essa que não é da responsabilidade do Recorrente, não obstante o tempo decorrido.
10ª Aliás, dir-se-á que o executado já deveria ter entregue as chaves há 15 anos, mas como pode tal entendimento ser compatível a omissão dos referidos deveres por parte da instituição financeira, exceção essa que é do conhecimento oficioso?
11ª E como pode a adquirente que não ponderou aquando da compra, por um valor manifestamente inferior ao de mercado o que levaria a que a exequente mesmo após a venda prosseguisse com a penhora?
12ª Mais, adquiriu uma casa sabendo que estava ocupada, afigurando-se que uma família não tem mais direitos do que a outra!
13ª Aliás, a adquirente assumiu uma posição semelhante à de uma cessionária, verificando-se que através dessa compra pretendeu-se alcançar o que era proibido, resultando do DL 227/22, de 25/10, artigos 14º, 16º e 18º - em vigor na data da compra pela ora Exequente – proíbe a cessão total ou parcial do crédito ou a transmissão a terceiro da posição contratual na vigência do PERSI.
14ª Aliás, admitir a Exequente a prosseguir com a penhora ainda que com base em alegada lacuna não é mais do que deixar entrar pela janela o que se impediu de entrar pela porta, contornando a intenção que esteve subjacente ao regime criado pelo DL nº 227/2012, de 25/10, configurando tal solução uma clara fraude à lei que nada tem a ver com a posição do executado e ora Recorrente ao longo de todos ou parte dos 13 anos!
15ª A lógica do Tribunal a quo reside em considerar que nunca se poderá pôr em causa a cobrança de um crédito, ainda que o procedimento subjacente à cessão do mesmo tenha violado flagrantemente normas imperativas, uma vez que o Tribunal a quo coloca as regras da iniciativa privada, da livre transmissibilidade da propriedade, da concorrência e da estabilidade do mercado acima de quaisquer outros interesses!
16ª Pelo contrário, regime instituído nos artigos 14.º a 16.º e 18.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, não permite outro entendimento que não seja o de que o legislador pretendeu impedir a cessão de créditos e a instauração de uma ação de execução antes da integração do devedor em incumprimento no PERSI e durante a sua execução; sendo assim ininteligível a alegação de que a exceção em causa apenas pode ser invocada até à primeira transmissão sob pena de se beneficiar o infrator.
17ª Naturalmente que perante a alegação da exceção a instituição bancária deveria vir ao autos alegar e sobretudo fazer prova com junção do talão do registo do CTT da carta a comunicar que perante o sinal de incumprimento o mutuário tinha o direito ou período de carência de 4 anos com pagamento apenas da parte relativa aos juros.
18º A instituição bancária notificada da exceção nada veio dizer e muito menos juntar em termos de prova documental, sendo certo que foi notificada através do mandatário.
19º A doutrina tem sido unânime a considerar que perante essa falta de alegação e sobretudo de prova, sejam consideradas como demonstração do incumprimento da norma imperativa sobre a instituição bancária.
20º Demonstrado o incumprimento da norma imperativa encontra-se evidenciada a aplicação das denominadas exceções dilatórias contempladas no artº 578º do CPC, as quais são de conhecimento oficioso, com efeitos à data da instauração da execução ao abrigo do normativo da Defesa do Consumidor.
21º Sendo do conhecimento oficioso, não está sujeita a qualquer preclusão, ou seja, pode ser invocada e declarada a todo o momento, e diríamos nós qualquer que seja a fase do processo pois que de outra forma a instituição bancária incumpridora passaria a ser beneficiaria da violação. Afigura-se assim irrelevante se decorreram ou não 15 anos após o prazo concedido para Oposição mediante Embargos, tal como é irrelevante alguma não resposta por parte executado e ora Recorrente visto que se trata de matéria do conhecimento oficioso.
22º Ao contrário da decisão recorrida, há muito que o Tribunal da 1º instância – por se tratar de exceção de conhecimento oficioso - devia ter apreciado e verificado a exceção dilatória da inominada de preterição do PERSI.
23º Assim é absolutamente irrelevante que o prazo de apresentação de embargos tenha ou não sido precludido pois que o conhecimento oficioso e o carácter imperativo da exceção em causa não se compadecem com a preclusão do prazo de embargos.
24º Sendo, aliás, irrelevante se já teve lugar ou não alguma transmissão pois que na prática o imóvel nunca deixou de estar na posse do Recorrente em conjunto com o seu filho e netos visto que quem adquire um bem sem primeiro verificar se a casa estava e está habitada não pode ser considerado terceiro de boa-fé. Se não solicitou o dinheiro de volta foi porque não quis!
25º Ora, no caso em apreço não é essa a questão nem se trata de indeferimento preliminar nem de aperfeiçoamento do requerimento executivo, mas tão só do conhecimento da exceção dilatória e da absolvição da instância executiva, naturalmente com consequências na nulidade de adjudicação e/ ou transmissão.
26º Por outras palavras, o conhecimento da exceção não visa qualquer aperfeiçoamento do requerimento executivo pois que não se pode aperfeiçoar a falta de uma notificação formal pois que o não envio da carta registada não pode ser suprido com o aperfeiçoamento do…
27ºNão está em causa o aperfeiçoamento do requerimento executivo nem o indeferimento preliminar pois que o indeferimento preliminar é passível de suprir deficiências e apresentar novo requerimento e como já vimos a questão não se resolve com suprir deficiências mas tão só com aplicar uma sanção à instituição bancária que violou uma norma imperativa, e que não pode com base na violação ser beneficiada com novas oportunidades.
28ª Resulta do despacho recorrido que o recorrente reclamou e arguiu a nulidade da penhora e da venda. Perante tal arguição de nulidade era suposto que o Meritíssimo Juiz proferisse despacho limiar e consequente determinação de suspensão imediata dos atos de execução.
29º Aliás, também era suposto que o Tribunal ordenasse a notificação do Exequente para se pronunciar sobre a arguição de nulidade da penhora e da venda e pedido de extinção da execução.
30ª Mais, quanto a dúvidas sobre o realojamento as mesmas foram colocadas de forma expressa tendo sido arroladas testemunhas destinadas a fazer prova da impossibilidade de realojamento, desconhecendo-se as razões da recusa de inquirição (artº 861º nº 6 do CPC).»
A exequente não respondeu à alegação dos recorrentes.
É a seguinte a questão a decidir:
- da aplicação do regime instituído pelo DL 227/2012, de 25 de outubro.
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Compulsados os autos principais, constatou-se o seguinte:
1 - A execução foi instaurada em 2004.
2 - No dia 5 de novembro de 2019, a agente de execução e a exequente celebraram escritura de compra e venda relativa à fração penhorada nos presentes autos.
3 - Por requerimento apresentado a 29 de janeiro de 2024, os executados vieram arguir a nulidade da penhora e da venda, invocando o regime instituído pelo DL 227/2012 e pedindo que seja “declarada a extinção da execução, absolvendo-se os executados da instância e do pedido, com natural revogação da penhora/ adjudicação/ venda”.
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Nos termos do art. 14º nº 1 do DL 227/2012, “mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”.
Por força do art. 17º nº 4 do citado diploma, a extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação da extinção feita pela instituição de crédito ao cliente bancário.
O art. 18º do DL 227/2012 dispõe o seguinte:
“1 - No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
a) resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento;
b) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito;
c) ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou
d) transmitir a terceiro a sua posição contratual.
2 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a instituição de crédito pode:
a) …
b) ceder créditos para efeitos de titularização; ou
c) ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito.
…”
A comunicação de integração no PERSI e a comunicação de extinção do mesmo constituem “condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 13 de abril de 2021, no processo 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1).
Nos termos do art. 734º nº 1 do C.P.C., “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
Depois do termo do prazo para se opor à execução e até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, o executado pode invocar exceções de conhecimento oficioso mediante requerimento apresentado nos autos de execução.
Os executados apresentaram requerimento a 29 de janeiro de 2024, ou seja, já depois da transmissão da fração penhorada.
Nas alegações recursivas, pode ler-se:
“Vem o presente recurso interposto contra o despacho que julgou improcedente a exceção dilatória do PERSI quando deveria ter conhecido da invocada nulidade”.
O despacho recorrido julgou improcedente a arguição de nulidade, não se referindo em momento algum a exceção dilatória, pelo que não se compreende a afirmação dos recorrentes.
Pese embora a qualificação do requerimento de arguição de nulidade, o que os executados pretendiam era a extinção da execução com fundamento na procedência da exceção da falta de comunicação de integração no PERSI e a invocação de tal exceção é extemporânea, porque posterior à transmissão da fração penhorada.
Contudo, não foi por o requerimento ser extemporâneo que o tribunal recorrido proferiu despacho de improcedência.
Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se:
«O regime instituído pelo DL 227/2012 não tem aplicabilidade nestes autos.
Com efeito, o diploma em apreço entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2013, sendo que apenas seriam de considerar automaticamente integrados no PERSI os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrassem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias (artigos 39 e 40º do DL 227/2012).
Na data de entrada em vigor do diploma em análise os contratos já não estavam em vigor, já estando em curso a execução à data.»
Nas alegações recursivas, os recorrentes afirmaram que “o regime do PERSI instituído em 2012 já tinha consagração legal à data da instauração da execução e decorria, aliás, de uma Diretiva Comunitária (Diretiva nº 2014/17/EU)”.
A execução foi instaurada em 2004.
Quer o DL 227/2012 quer a Diretiva 2014/17/EU são posteriores à propositura da execução.
O art. 39º do DL 227/2012 dispõe o seguinte:
“1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no nº 4 do artigo 14º.
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no nº 1 do artigo 14º.”
Apesar de, no citado artigo, não ter sido excluída a situação de ação judicial pendente, o cliente bancário contra o qual foi instaurada execução antes da entrada em vigor do referido diploma não tem de ser integrado no PERSI.
Importa ter presente que “o PERSI constitui uma fase pré-judicial” (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 9 de fevereiro de 2017, no processo 194/13.5TBCMN-A.G1.S1; a 29 de setembro de 2020, no processo 7576/18.4T8CBR-A.C1.S1; e a 9 de dezembro de 2021, no processo 4734/18.5T8MAI-A.P1.S1).
Por outro lado, tendo em conta o disposto no art. 12º do C.C., as condições de admissibilidade da ação têm de se aferir pela lei vigente na data em que a ação foi proposta.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 11 de julho de 2024
Maria do Céu Silva
Amélia Puna Loupo
Carla Mendes