NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
MOMENTO DO PAGAMENTO
Sumário


I - É nulo, por falta de fundamentação, o despacho judicial que, não sendo de mero expediente, apenas contém o segmento decisório, sem previamente enumerar um único facto nem formular um qualquer juízo valorativo à luz do direito aplicável.
II - Essa nulidade deve ser suprida pelo Tribunal ad quem quando do processo constem os elementos necessários para o efeito, do que não resulta preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição pois a garantia deste visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.
III - A constituição de caso julgado formal pressupõe a existência de uma decisão anterior, com força vinculativa, que tenha apreciado concretamente determinada questão processual.
IV - A remuneração variável do administrador da insolvência relativa ao produto da liquidação da massa insolvente deve ser fixada pelo juiz e paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo – o qual, tendo havido lugar à liquidação, apenas ocorre após o rateio final – e pressupõe uma decisão do juiz nesse sentido.
V - Sem que a referida remuneração seja fixada pelo juiz e sem que ocorra o seu vencimento, o administrador da insolvência não pode retirar da conta da massa insolvente o montante que entende ter direito àquele título e, fazendo-o, deve restituí-lo.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) Por sentença de 8 de agosto de 2016, foi decretada a insolvência da sociedade comercial EMP01..., Lda., tendo sido nomeado como administrador de insolvência o Dr. AA.
Na sequência, houve lugar à reclamação e graduação de créditos, bem como à apreensão dos bens para a massa insolvente e à sua liquidação.
No dia 3 de outubro de 2023, a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça informou que, pela Deliberação n.º ...23, de 11 de julho de 2023, do Órgão de Gestão, o referido administrador foi considerado inidóneo para o exercício da atividade e retirado das Listas Oficiais dos Administradores Judiciais.
Na sequência, por despacho de 4 de outubro de 2023, foi determinada a sua substituição.
No dia 30 de novembro de 2023, a administradora da insolvência nomeada em substituição apresentou requerimento no qual disse que, tendo procedido à análise da conta-corrente que lhe foi apresentada, constatou que foram feitas diversas transferências da conta bancária da massa insolvente em benefício da entidade identificada como “EMP02... Unipessoal”, correspondendo uma delas, no valor de € 82 469,50, a “um cálculo previsional do anterior administrador da insolvência a título de remuneração variável a que terá dado pagamento sem superior autorização do Tribunal e que, portanto s.m.o., importa devolver!”
Concluiu pedindo, entre o mais: a notificação do anterior AI para que venha esclarecer as transferências realizadas a seu favor; a notificação do AI para, desde, já, restituir para a conta da Massa a quantia dela “retirada indevidamente a título de remuneração variável.”
No dia 4 de 4.12.2023, foi proferido despacho do seguinte teor: “Requerimento de 30.11.2023: [...68]: Diligencie-se, em tudo, nos termos requeridos.”

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2) Inconformado com este despacho, veio o administrador da insolvência inicialmente nomeado (e, entretanto, substituído), Dr. AA, daqui em diante identificado como Recorrente, interpor o presente recurso, através de requerimento constituído por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1. O douto despacho recorrido é nulo porquanto não está fundamentado, não resulta do mesmo qual o valor a restituir, nem os fundamentos que dão causa à restituição da remuneração variável.
2. O direito do ora recorrente a receber a remuneração variável é inquestionável, não sendo posto em causa pelo despacho recorrido.
3. A 19/08/2022 o ora recorrente apresentou relatório final de prestação de contas e pedido de remuneração variável.
4. Por sentença de 08/06/2023 – já transitada em julgado – foram aprovadas as contas apresentadas, das quais já resultava o montante de remuneração variável.
5. A 05/09/2023 foi apresentado rateio final.
6. a 27/09/2023 o Sr. oficial de justiça apresentou Termo de aceitação da proposta de rateio.
7. A remuneração variável recebida pelo recorrente é devida e já foi sufragada por sentença transitada em julgado.
Sem prescindir
8. Mesmo que se entenda – o que só por manifesto dever de patrocínio se concebe – que há um qualquer lapso no valor da remuneração variável recebida pelo recorrente, o tribunal a quo terá de dar um despacho onde decrete o valor correto da remuneração variável e - em função desse valor – ordene a restituição ou… o pagamento da diferença.
9. O tribunal a quo violou o disposto no art. 628 do CPC e o art. 23 da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.”
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3) A massa insolvente (Recorrida), representada pela administradora da insolvência atualmente em funções, respondeu, pugnando pela inadmissibilidade do recurso ou, assim não sendo entendido, pela sua improcedência, com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões (transcrição):

“1. O presente recurso vem interposto de um alegado despacho que não foi proferido, pelo que não pode ser admitido.
2. Sem prescindir, entende o anterior Administrador da Insolvência que foi proferido um despacho que alegadamente “ordena a restituição para a conta da massa da quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável”.
3. Caso se entenda que este despacho foi proferido, à cautela, cabe alegar que o mesmo é legal e correto.
4. O recorrente vem sustentar o seu recurso no trânsito em julgado na sentença de 08.06.2023 que provou as contas das quais já resultava o montante da remuneração variável.
5. Acontece que, as referidas contas as contas das quais já resultava o montante da remuneração variável foram apresentadas a 19.08.2022 e
6. A 03.03.2023, o Tribunal a quo pronunciou-se expressamente sobre o cálculo de remuneração variável apresentado pelo senhor administrador da insolvência à data, ora recorrente, determinado que “(…) no que respeita à remuneração variável deverá ser elaborada conta e só depois de esta ser paga e aprovadas as contas é que poderá apresentar no processo principal o respetivo cálculo (…)”.
7. Ao contrário do que o senhor administrador da insolvência substituído tenta fazer crer, a sentença de 08.06.2023 que aprova as contas, não considera (como já se tinha pronunciado primeiramente a 03.03.2023 em despacho já transitado em julgado àquela data) o cálculo da remuneração variável.
8. As contas aprovadas em sede de prestação de contas não têm em consideração a remuneração variável que, como decidiu o Tribunal a quo, não tinham que ser apreciadas naquela sede, mas antes no processo principal onde deveria ter sido apresentada proposta de remuneração variável.
9. Acresce que, ao contrário do que é sugerido pelo senhor administrador da insolvência substituído ora recorrente, não foi proferido qualquer despacho judicial a aprovar a proposta de rateio que aquele apresentou, pelo que, os valores considerados para efeitos de rateio não foram alvo de aprovação pelo Tribunal.
10. Acresce que, do mapa de rateio apresentado, não se afere o valor pago a título de remuneração variável, pelo que, mesmo que o Tribunal a quo se tivesse pronunciado sobre o mapa de rateio, jamais poderia inferir-se que este se estaria a pronunciar sobre o cálculo da remuneração variável
11. Ao contrário do que alega o recorrente, pode ser posto em causa o direito do recorrente a receber o pagamento relativo à remuneração variável.”
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4) O recurso foi admitido pela 1.ª instância como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5) Por decisão singular do relator, datada de 7 de maio de 2024, o recurso foi julgado improcedente.
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6) O Recorrente, notificado, requereu a apreciação do recurso pela conferência, o que foi deferido, depois do contraditório da Recorrida, atento o disposto no art. 652/3 do CPC.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (artes. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.

Tendo isto presente, as questões que se colocam no recurso consistem em saber se:
1.ª A decisão recorrida é nula por falta de fundamentação;
2.ª A decisão recorrida, ao determinar a restituição da quantia de € 82 469,50, que o Recorrente entende ser-lhe devida a título de remuneração variável pelo serviço que prestou como administrador da insolvência, violou, por erro na subsunção, as normas jurídicas indicadas pelo Recorrente.
Antes coloca-se, porém, a questão suscitada pela Recorrida da inadmissibilidade do recurso.
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III.
1) Na resposta às questões enunciadas, há que considerar os factos descritos no relatório que constitui o ponto 1) da Parte I. deste Acórdão.
Há também que considerar os seguintes factos, resultantes do iter processual:
1 No dia 18 de fevereiro de 2022, o Recorrente apresentou, por apenso (F) aos autos de insolvência, “relatório final de prestação de contas e pedido de remuneração variável (art.º 60º, 62º e Título VII, art.º 172º e seguintes do CIRE)”, nele referindo:
“3. Remuneração do AI
Com a entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11 de janeiro, o Estatuto do Administrador Judicial foi alterado, mormente no que respeita ao artigo n.º 23;
Das referidas alterações resulta, inequivocamente que o AI tem direito às seguintes remunerações:  Componente fixa: 2.000,00 euros, de acordo com n.º 1 do art.º 23 do EAJ; Componente variável: o n.º 4 refere que, “Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: 
5 % do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.”

Por sua vez o n.º 6 refere que “Para efeitos do n.º 4, considera -se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência”;
Acresce que, e de acor com o n.º 10 do mesmo artigo, “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 €.”.
Por sua vez o n.º 7 ainda refere que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”.

Ou seja, para o presente processo resulta o seguinte cálculo:
, cf. ref. Citius 3695963, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
2 O credor BB dias apresentou, no dia 6 de outubro de 2022, no referido apenso, oposição às contas apresentadas dizendo, a propósito da remuneração variável, que “a remuneração variável do Ex.mo A.I. não está correta, na justa medida que a aplicação do n.º 7, do artigo 23.º do Estatuto Administrador Judicial tem que atender em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o valor apresentado muito superior ao correto, o que aqui se impugna os valores apresentados”, cf. ref. Citius 3743900, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
3 O Recorrente foi notificado dessa oposição por termo eletrónico registado na aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais no dia 18 de outubro de 2022, cf. ref. Citius 49378517, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
4 Por despacho de 20 de janeiro de 2023, foi determinado que o Recorrente se pronunciasse expressamente sobre a questão da remuneração variável”, cf. ref. Citius 49857193, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
5 Esse despacho foi notificado ao Recorrente na mesma data, por termo eletrónico registado na aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais, cf. ref. Citius 49349865047, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
6 O Recorrente pronunciou-se no dia 10 de fevereiro de 2023 dizendo que:
“1. Resulta da análise de diversos processos e de diversos despachos que a questão colocada no que respeita à remuneração variável não é pacífica, percebendo-se que o espírito da lei, aparentemente, e salvo melhor opinião, não está plasmado no texto da lei;
2. Certo é que, tem vindo a ser posição generalizada a necessidade de ponderar os 5% respeitante à majoração do n.º 7 do art.º 23 pelo grau de satisfação dos créditos;
3. O aqui AI não tem por pretensão dificultar a conclusão do processo e, desta forma, apresenta o modelo de cálculo corrigido:
4. A receita total foi de 1.425.000,00 euros e as despesas totais, conforme resulta do quadro de receitas e despesas, foi de 123.994,00 euros;
5. Para cálculo da majoração temos que deduzir ao resultado da liquidação o valor da alínea b) do n.º 4 do art.º 23 e ponderar pelo grau de satisfação dos créditos.
6. O valor apresentado não é final já que é necessário considerar as custas do processo”, cf. ref. Citius 49349865047, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
7 No referido apenso de prestação de contas, foi proferido, no dia 3 de março de 2023, despacho com o seguinte teor:
“Requerimento de 28.02.2023 [...06]:
Visto.
Desentranhe e incorpore nos autos principais, advertindo-se o AI que, no que respeita à remuneração variável deverá ser elaborada a conta e só depois de esta ser paga e aprovadas as contas é que poderá apresentar no processo principal o respetivo cálculo, conforme art.º 181.º, n.ºs 1 e 3 do CIRE.
Entretanto, deverá ainda o AI pronunciar-se sobre o requerimento de 12.01.2023.
D.n.”, cf. ref. Citius 50094622, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
8 O referido despacho foi notificado ao Recorrente por termo eletrónico registado na mesma data na aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais, cf. ref. Citius 50099456, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
9 No dia 6 de março de 2023, nos autos principais, foi elaborada a conta, do seguinte teor:
[Imagem], cf. ref. Citius 50103383, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
10 Na mesma data, foram emitidas e enviadas ao Recorrente as guias para pagamento da quantia em que foram calculadas as custas, cf. ref. Citius 50107933, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
11 No dia 20 de abril de 2023, o Recorrente apresentou o comprovativo do pagamento das custas, cf. ref. Citius 3990824, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
12 No dia 18 de agosto de 2023, o Recorrente apresentou a seguinte proposta de rateio final:
[Imagem]
13 No dia 27 de setembro de 2023, a secretaria lavrou o seguinte termo:
“Em 27-09-2023, nos termos do nº 4 do artº 182º do CIRE, procedeu esta secretaria à apreciação da proposta de distribuição e de rateio, sendo que nos parece que o mesmo se encontra devidamente elaborado, achando-se de acordo com a douta sentença de graduação de créditos proferida em 03-03-2020 no apenso D e, ainda, de acordo com o douto despacho de 29-05-2020 proferido nos presentes autos, acautelando, assim, os valores adiantados pelo FGS”, cf. ref. Citius 51012449, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
14 No dia 8 de junho de 2023, foi proferida sentença no apenso de prestação de contas (F) com o seguinte segmento decisório: “Pelo exposto, concluindo-se que se mostram elaboradas em conformidade com o preceituado no art.º 62.º do CIRE, correspondem a despesas atinentes com o exercício do cargo e se mostram documentalmente demonstradas, julgam-se boas as contas apresentadas”, cf. ref. Citius ...41, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
15 Essa sentença foi notificada ao Recorrente e aos credores, não tendo sido objeto de impugnação;
16 No dia 4 de outubro de 2023, nos autos principais, foi proferido despacho a determinar que a administradora da insolvência que no mesmo ato foi nomeada em substituição do Recorrente apresentasse nova proposta de mapa de rateio final ou ratificasse a anteriormente apresentada, cf. ref. Citius 51055471, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
17 No dia 18 de outubro de 2023, a administradora da insolvência nomeada em substituição do Recorrente requereu autorização “para proceder à apresentação da proposta da remuneração e, depois, após fixação da remuneração, apresentar mapa de rateio que tenha essa remuneração em consideração”, cf. ref. Citius 4188326, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
18 Esse requerimento foi deferido por despacho de 19 de outubro de 2023, cf. ref. Citius 51140136, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
19 No dia 21 de outubro de 2023, a administradora da insolvência nomeada em substituição do Recorrente requereu a notificação deste para apresentar os dossiers relativos à insolvência, cf. ref. Citius 4192893;
20 Até à data não foi apresentada nova proposta de mapa de rateio.
21 O Recorrente procedeu às transferências da conta bancária da massa insolvente indicadas destacadas no quadro seguinte:
[Imagem]
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2).1. Vejamos a resposta a dar às questões enunciadas, começando pela da inadmissibilidade do Recurso. Seguiremos, ipsis verbis, a decisão singular do Relator, contra a qual o Recorrente não aduziu, com o pedido de intervenção da conferência, qualquer fundamento.
Sobre a questão prévia, entende a Recorrida que o recurso não tem objeto, uma vez que, por um lado, não está identificado o despacho impugnado e, por outro, ao contrário do que sustenta o Recorrente, não foi proferido, antes da sua interposição, qualquer despacho a determinar a “restituição para a conta da massa da quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável.”
Comecemos por este segundo argumento.
Resulta do iter processual descrito que a Recorrida, depois de nomeada, pediu, no dia 30 de novembro de 2023, entre o mais, a notificação do Recorrido para que viesse esclarecer as transferências realizadas a seu favor e, bem assim, para que restituísse à conta da massa a quantia dela retirada indevidamente a título de remuneração variável.
Sobre esse requerimento recaiu o despacho de 4 de dezembro de 2023 que, como veremos melhor, o deferiu in totum, assim determinando a notificação do Recorrente, não apenas para “esclarecer as transferências realizadas a seu favor”, mas também para restituir a quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável.
O argumento em apreço apresenta-se, portanto, como insubsistente.
Quanto ao primeiro argumento, admitindo-se que o Recorrente, no requerimento de interposição do recurso, não foi minucioso na identificação da decisão recorrida, entende-se, porém, que sempre indicou um elemento bastante para esse efeito: a descrição do que foi decidido. Esta referência, associada ao momento temporal de interposição do recurso, permite que se compreenda – como compreendeu a Recorrida – que está em causa o segmento do despacho de 4 de dezembro de 2023 que deferiu o pedido de restituição da “quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável” adrede formulado no requerimento de 30 de novembro de 2023.
Deste modo, não suscitando qualquer dúvida que uma decisão deste teor admite recurso ordinário, posto que dela decorre a imposição de uma obrigação ao respetivo destinatário, o que exclui a possibilidade de a qualificar como uma decisão de mero expediente (arts. 629/1 e 630/1 do CPC ex vi do art. 17/1 do CIRE), e que, para esse ato, tem legitimidade o Recorrente, enquanto pessoa “direta e efetivamente prejudicada” (art. 631/2 do CPC), concluímos por uma resposta negativa a esta questão prévia.
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2).2.1. Passamos, assim, a conhecer das questões colocadas pelo Recorrente.
Assim, o Recorrente começa por arguir a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
Como se sabe, a sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que “[é] nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
As regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no art. 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
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2).2.2. Por outro lado, vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação. Na doutrina, Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 221, Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Almedina, 2018, p. 737, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 179. Na jurisprudência, STJ 2.06.2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1) e 3.03.2021 (3157/17.8T8VFX.L1.S1), RP 5.06.2015 (1644/11.0TMPRT-A.P1), RG 2.11.2017 (42/14.9TBMDB.G1) e RC 13.12.2022 (98/17.2T8SRT.C1). Na clássica lição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e, por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto (…).”A concreta medida da fundamentação é, portanto, “aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto” (RC 29.04.2014, 772/11.7TBVNO-A.C1).
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2).2.3. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC [4.11.2023)), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
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2).2.4. Analisando a decisão recorrida à luz das precedentes considerações temos de concluir inelutavelmente que a mesma comporta apenas o segmento decisório. Não foi enumerado um único facto, como também não foi formulado qualquer juízo valorativo.
Esta omissão não pode considerar-se suprida pela remissão implícita para os fundamentos do requerimento da atual administradora da insolvência sobre o qual a decisão recaiu: a fundamentação per relationem apenas é admissível, como vimos, quando, tratando-se de despacho interlocutório, como sucede, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. A primeira destas condições não está verificada, atento o dissenso que existe quanto à concreta questão apreciada.
Deste modo, assiste razão ao Recorrente: a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.
Afigura-se, no entanto, que a nulidade não obsta ao conhecimento, nesta sede, da questão colocada à apreciação: por um lado, como resulta do ponto 1), temos ao dispor os elementos de facto necessários para esse efeito; por outro, decorre das conclusões que, não obstante a nulidade, o Recorrente compreendeu a decisão recorrida e procedeu ao enquadramento jurídico da questão.
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2).3.1. Isto dito, vejamos agora se a decisão recorrida enferma de error in judicando conforme sustenta o Recorrente.
Está em causa, como vimos, a decisão, constante do despacho de 4 de dezembro de 2023, que determinou a notificação do Recorrente para restituir à massa insolvente a “quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável.”
Na tese do Recorrente, essa quantia é-lhe devida precisamente a esse título – remuneração variável pelo exercício do cargo de administrador da insolvência.
Diz o art. 60/1 do CIRE que “[o] administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.”
A norma remete para o Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26.02.
O art. 23/1 deste diploma estabelece que o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro). O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que o administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem também direito a uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5; b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
A remuneração e o reembolso das despesas são, em regra, suportados pela massa insolvente (art. 29/1 do EAJ), integrando uma dívida desta (art. 51/1, b), do CIRE).
Na tentativa de explicar esta afirmação, diremos que do art. 1.º/1 do CIRE decorre que o processo de insolvência é um processo de execução universal, isto é, um processo que tem em vista a satisfação dos créditos da generalidade dos credores de determinada entidade. Declarada a insolvência, todo o património do devedor passa a integrar a massa insolvente. A finalidade da massa insolvente é a satisfação dos credores, sendo por isso um património de afetação especial e um património separado.
Por outro lado, resulta do disposto no n.º 1 do art. 46, e bem assim, do n.º 1 do art. 172, ambos do CIRE, que o pagamento dos credores do insolvente só se realiza depois de pagas as dívidas da massa insolvente.
É aqui que releva a distinção entre os créditos sobre a massa insolvente e os créditos sobre a insolvência, posto que o regime de satisfação de uns e de outros é diverso. Com efeito, das citadas normas decorre o princípio da precipuidade das dívidas da massa insolvente, relativamente às dívidas da insolvência. Na verdade, o pagamento dos créditos sobre a insolvência só se realiza depois de terem sido pagas as dívidas da massa insolvente. Por outro lado, e como decorre do n.º 3 do art. 172, o pagamento das dívidas da massa insolvente tem lugar na data dos respetivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo, com a única limitação que decorre do disposto do n.º 1 do art. 89 – que impede a propositura de ações executivas destinadas à cobrança de dívidas da massa insolvente nos primeiros três meses após a declaração de insolvência. A propósito da distinção, vide RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1, relatado por José Alberto Moreira Dias).
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2).3.2. O que antecede dá-nos o primeiro fundamento para afirmar o acerto da decisão recorrida: como diz, de forma clara, o art. 29/5 do EAJ, a remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo.
O encerramento do processo de insolvência em que tenha havido lugar à liquidação, como sucedeu no caso, apenas ocorre após o rateio final e pressupõe uma decisão do juiz nesse sentido: art. 230/1, a), do CIRE.
Ora, quando atentamos no iter processual, concluímos que, por um lado, as operações de rateio ainda não foram concluídas e, por outro, que não foi, naturalmente, proferida decisão de encerramento do processo.
Ao escrevermos isto não estamos a ignorar que o Recorrente, quando no exercício o cargo de administrador da insolvência, apresentou a proposta de mapa de rateio, a qual, depois de publicitada, foi apreciada favoravelmente pela secretaria.
Simplesmente, verificamos que o juiz não validou a proposta, o que é condição da sua eficácia, como resulta do disposto no art. 182/4 do CIRE, na sua redação atual, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.01, aplicável ao processo de insolvência em que foi proferida a decisão recorrida, por força da norma de direito transitório prevista no n.º 1 do art. 17 deste diploma. Pelo contrário, o juiz condicionou a apreciação da proposta de mapa de rateio à sua ratificação pela administradora da insolvência que, no entretanto, foi nomeada em substituição do Recorrente, ato que não foi ainda praticado.
A conclusão é, portanto, no sentido de que não ocorreu o vencimento da remuneração variável, pelo que o seu pagamento não era – rectius, não é – ainda exigível.
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2).3.3. O segundo fundamento para afirmar o acerto da decisão recorrida situa-se a montante: o pagamento da remuneração variável pressupõe, a um tempo, o reconhecimento do correspondente direito e, a outro, a respetiva quantificação.
Na tese do Recorrente, essas tarefas, que incumbem ao juiz, já foram realizadas na sentença proferida no apenso de prestação de contas, já transitada em julgado.
Quid inde?
Decorre do art. 613/1 que, uma vez proferida a sentença ou o despacho, o tribunal não os pode revogar, por esgotamento do seu poder jurisdicional. Devido a esta regra, a decisão adquire, logo que proferida, um primeiro grau de estabilidade. Trata-se, no entanto, de uma estabilidade interna ou restrita, que apenas vale perante o órgão jurisdicional que a proferiu. Perante as demais instâncias, a decisão ainda não adquiriu estabilidade, podendo ser revogada através dos mecanismos de impugnação previstos na lei. Só quando ocorre o trânsito em julgado é que a decisão atinge um nível de estabilidade alargado, vinculando as demais instâncias.
Importa, no entanto, atentar que o poder jurisdicional do autor da decisão apenas se esgota relativamente a questões que por ele foram concretamente apreciadas. Assim, também o caso julgado, que corresponde ao 2.º grau de estabilidade da decisão, só se forma relativamente a questões concretamente apreciadas. Neste sentido, podem ver-se, inter alia, STJ 14.05.2019 (241/09.5TYVNG-A.P2.S1), RP 30.01.2017 (881/13.8TYVNG-A.P1), RG 1.07.2021 (1478-16.6T8AMT.G2), RG 6.10.2022 (1216/22.4T8VRL-A.G1) e RG 30.03.2023 (3584/20.3T8VCT-A.G1).
Vale isto por dizer que, para se falar em caso julgado formal, é pressuposto que exista uma decisão anterior, com força vinculativa, proferida sobre determinada questão processual.
O conceito de questões concretamente apreciadas é utilizado no art. 595/3, 1.ª parte, a propósito do despacho saneador que conheça de exceções dilatórias ou nulidades processuais. Diz a norma que tal despacho “constitui, logo que transite em julgado, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas”, o que significa, a contrario, que não produz esse efeito quanto às questões que não tenham sido concretamente apreciadas.
Questões concretamente apreciadas são aquelas sobre as quais o tribunal se pronunciou especificamente.
Esta solução é facilmente compreendida se atentarmos na história da norma.
Não havendo norma semelhante no CPC de 1961, suscitou-se a discussão sobre se o despacho saneador meramente tabular produzia caso julgado formal quanto à ocorrência dos pressupostos processuais e à inexistência de nulidades, fora do caso da competência em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia, em que a lei expressamente consagrava uma resposta negativa (art. 104-2 do CPC de 1961). Relativamente ao pressuposto da legitimidade processual, o STJ, através do Assento de 1.02.1962 (DR de 21.02.1963), resolveu a questão em sentido afirmativo. Quanto aos demais pressupostos processuais, doutrina e jurisprudência dividiam-se, como dá nota Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 156. Com o DL n.º 329-A-95, de 12.12, o legislador processual resolveu a questão em sentido contrário ao propugnado pelo STJ quanto ao pressuposto da legitimidade processual ao introduzir no art.  510 do CPC um número (3) contendo uma redação semelhante à do citado art. 595/3 do CPC de 2013, atualmente em vigor.
Para saber se uma questão foi (concretamente) apreciada pelo tribunal é necessário proceder à sua exegese, com observância dos cânones interpretativos dos arts. 236 e 238 do Código Civil, uma vez que qualquer decisão judicial consiste, na verdade, num ato jurídico declarativo (art. 295 do Código Civil).
Ora, no caso, verifica-se que a sentença proferida no apenso de prestação de contas apenas se pronunciou sobre as contas em si mesmas; nada disse sobre a reclamada remuneração variável, questão que, conforme despacho proferido no apenso respetivo, no dia 3 de março de 2023, foi excluída do objeto processual e remetida para os autos de insolvência. Resulta, portanto, claro que ainda não houve uma decisão judicial sobre ela.
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2).3.4. Como conclusão do que antecede, o Recorrente carecia de fundamento para transferir as quantias discriminadas no requerimento apresentado pela atual administradora da insolvência no dia 30 de novembro de 2023, pelo que, como se entendeu na decisão recorrida, deve restituí-las à massa insolvente para que, uma vez validado o rateio, a atual administradora da insolvência proceda aos pagamentos que forem devidos.
O valor a restituir resulta claramente da remissão que a decisão recorrida fez para o requerimento que nela foi apreciado.
Resta dizer que, como vimos, a remuneração variável, uma vez reconhecido o direito ao seu recebimento e fixado o respetivo quantum, apenas se vence depois de encerrado o processo; não se vence em momento anterior. Isto exclui qualquer possibilidade de, como pretende o Recorrente, relegar a liquidação do montante a restituir para o momento em que venha a ser reconhecida e liquidada a remuneração variável. Tal redundaria numa antecipação do pagamento em clara violação do citado art. 29/5 do EAJ.
Pelo exposto, as disposições legais indicadas pelo Recorrente não foram violadas, improcedendo in totum as conclusões do recurso.
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3) Vencido, o Recorrente deve suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Declarar a nulidade, por falta de fundamentação, ut art, 613/1 e 615/1, b), do CPC, da decisão recorrida (constante do despacho proferido nos autos de insolvência no dia 4 de dezembro de 2023, na parte em que deferiu o requerimento formulado pela atual administradora da insolvência, no dia 30 de novembro de 2023, de notificação do Recorrente para “restituir para a conta da Massa a quantia retirada indevidamente a título de remuneração variável”);
Não obstante, conhecer do objeto do recurso de apelação, julgando esta improcedente e, corrigindo o vício referido no ponto anterior, confirmar a decisão recorrida, pelos fundamentos exarados na parte III.;
Condenar o Recorrente no pagamento das custas devidas pelo presente recurso.
Notifique.
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Guimarães, 11 de julho de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
2.ª Adjunta: Rosália Cunha