CRIME DE DEVASSA DA VIDA PRIVADA
DOLO DIRECTO
Sumário

A expressão “intenção de devassar a vida privada” contida no corpo do nº 1 do artigo 192º, do C.P. quer significar que a devassa da vida privada objectivamente descrita no tipo só poderá ocorrer com dolo directo, traduzido numa vontade do agente dirigida a atingir o bem jurídico protegido pela norma.

(da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo 165/21.8PEGDM.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 2







Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:



I - RELATÓRIO
I.1 Por sentença proferida em 23.02.2024 o arguido AA foi condenado da prática, como autor material, na forma consumada e concurso real, de três crimes de Devassa da Vida Privada Agravados, ps. e ps. pelos artigos 14.º, 192.º, n.º 1, als. a), b) e d) e 197.º, al. b), todos do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, por cada um deles, tendo sido fixada a pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a multa global de € 1.080,00 (mil e oitenta euros).
Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos e o arguido/demandado AA sido condenado a pagar à Demandante BB a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em sequência da sua conduta, acrescido de juros moratórios à taxa legal de 4% contados desde a notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento.

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I.2. Recurso da decisão
O arguido AA interpôs recurso da sentença, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem integralmente):
“a) A sentença recorrida fundou a sua convicção, primordialmente, na confissão do Arguido, que, diz a sentença recorrida, terá sido uma confissão integral e sem reservas.
b) Contudo, nunca o Recorrente confessou de forma integral e sem reservas os elementos subjetivos dos crimes pelos quais foi condenado.
c) Tendo, outrossim, confessado os elementos objetivos, designadamente, a criação de um website, mas sem que para tanto tenha tido o objetivo de devassar a vida privada, quer da Assistente, quer dos filhos de ambos.
d) É precisamente isto o que resulta da contestação apresentada pelo Recorrente, e bem assim das declarações pelo mesmo prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento.
e) O Recorrente deixou bem claro as circunstâncias que envolveram a criação do site, nunca, em caso algum, tendo afirmado ser sua intenção devassar a vida da Assistente ou dos filhos de ambos.
f) Por outro lado, nunca poderia o Recorrente confessar qualquer elemento subjetivo, uma vez que a Acusação Pública não faz qualquer referência à intenção do Recorrente em devassar a vida privada da Assistente e dos filhos de ambos.
g) O que o Recorrente mais quis frisar foi o facto de estar há três anos impedido de conviver livremente com os seus filhos, tendo sido essa a grande motivação para a criação do website,
h) Pelo que não há qualquer confissão integral e sem reservas do elemento subjetivo, designadamente do dolo específico de devassa da vida privada, ao contrário do que vem consignado na douta sentença recorrida.
i) O crime de devassa da vida privada é um crime de dolo específico, não se tratando de um crime de intenção.
j) A "intenção de devassar a vida privada das pessoas", referida no corpo do n° 1 do artigo 192° do Código Penal, enquanto "elemento subjetivo típico", não assume uma específica autonomia, tendo apenas como efeito prático dizer-nos que o crime de devassa da vida privada ali previsto só admite o dolo direto;
k) No crime de devassa da vida privada, para além do dolo genérico assente no conhecimento e vontade dos elementos objetivos, isto é, saber o agente que a ação é de divulgação de factos da vida privada e querer manter essa conduta, exige-se uma vontade hostil, no caso concretizada na vontade específica de devassar a vida privada do visado.
l) Ora, in casu, o que se verifica é que o Recorrente confessou apenas o elemento objetivo do crime, não tendo sido produzida qualquer prova relativamente ao elemento subjetivo do tipo de crime em apreço.
m) Logo, nunca poderia o tribunal considerar como provado o vertido no ponto 13. dos factos provados: "O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal".
n) Devendo, ao invés, considerar esta matéria como NÃO PROVADA.
o) Da mesma forma, até porque não resulta, sequer da matéria confessada pelo arguido, como provada a factualidade aludida no Ponto 14: "Por causa dos factos praticados pelo Arguido/Demandado a assistente/demandante sentiu-se humilhada e angustiada".
p) É que, quanto a esta parte da matéria, nenhuma prova foi produzida em audiência e, recorda-se, toda a prova indicada pela própria ofendida, foi prescindida.
q) O arguido não confessou, nem isso caberia na matéria suscetível de confissão, a eventual e alegada humilhação e angústia da assistente, logo, à mingua de qualquer outra prova, esta matéria não pode ser considerada provada.
r) Pelo que, e em suma, não ficou provado o elemento subjetivo do crime e, bem assim, o dano alegadamente causado à ofendida.
s) Razão pela qual deverá a decisão recorrida ser revogada, pugnando-se por uma decisão de absolvição.
t) Ora, não existindo qualquer confissão quanto ao elemento subjetivo, e carecendo o processo de qualquer elemento probatório que indicie sequer a verificação o elemento subjetivo, o Tribunal a quo, ao proferir decisão condenatório, incorre em erro gravíssimo, violador do princípio in dubio pro reo.
u) Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
v) Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.°, n.° 2, 1.a parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidirpro reo.
w) Atento o supra exposto, impunha-se que, na falta de produção de qualquer prova, o Tribunal a quo ficasse, no mínimo, na dúvida quanto à verificação do elemento subjetivo do tipo de crime.
x) E, em dúvida, não poderia o Tribunal a quo condenar o Recorrente.
y) Pelo que, também aqui, se impunha uma decisão diversa daquela que foi proferida, razão pela qual deverá a sentença recorrida ser revogada, sendo substituída por uma decisão absolutória.”
Pugna pela revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que absolva o recorrente dos crimes pelos quais foi condenado na primeira instância.
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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões (transcrição integral):
“I. O princípio da livre apreciação da prova, consignado no artigo 127.°, do Código de Processo Penal, permite ao Tribunal apreciar a prova segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
II. O Tribunal de julgamento pode munir-se de todos os elementos de prova constantes do processo, fazendo uma análise dos factos à luz das regras da experiência comum.
III. O elemento subjetivo, à semelhança do elemento objetivo do tipo, pode ser considerado provado com base em prova indiciária.
IV. Ademais, sendo o elemento subjetivo um facto psicológico, por norma, o mesmo é considerado provado com base na análise dos factos objetivos à luz das regras da experiência.
V. Raciocínio que o Tribunal a quo teve em consideração na elaboração da sentença, tendo, acertadamente, valorado a conduta do arguido à luz das regras da experiência.
VI. O princípio in dubio pro reo determina que quando o Tribunal esteja perante uma situação de dúvida insanável, deve o mesmo decidir em favor do arguido.
VII. No caso sub judice, o Tribunal nunca teve dúvidas relativamente aos intentos do arguido.
VIII. Pelo que não houve violação do princípioin dubio pro reo.
IX. A circunstância de o Recorrente considerar que há dúvida relativamente a determinado facto, apenas respeita à análise que o mesmo faz da prova produzida, em nada vinculando o Tribunal.
X. Pelo supra exposto, deve a decisão ser mantida e o recurso julgado improcedente.”
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I.4. Resposta da assistente
A assistente BB, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência e manutenção da sentença recorrida, concluindo no seguintes termos (transcrição integral):
“a) Preceitua o artigo 127° do Código de Processo Penal, que regra geral (excecionalmente, há prova que se presume subtraída à livre apreciação, como é o caso da prova pericial - art.° 163°, n.° 1 do CPP), a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, no caso dos autos, a juiz que profere a decisão - princípio da livre apreciação da prova;
b) A livre apreciação da prova pressupõe um entendimento objetivo da mesma, afastando-se a compreensão do livre convencimento do juiz como sinónimo de uma liberdade sem freio na sua apreciação;
c) A decisão recorrida foi feita a análise cabal do preenchimento dos pressupostos objetivos e subjetivos do ilícito criminal, facto que não nos merece qualquer reparo;
d) No que concerne a intenção do Arguido/Recorrente, por ser matéria respeitante ao dolo da atuação, este situa-se no campo da subjetividade e é sempre de difícil discernimento, pelo que, tem que se inferir dos factos objetivos em causa, a luz das regras da experiência comum;
e) Assim, se quem atua não esclarecer qual o estado de alma em que atuou, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objetivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a atuação;
f) In casu o arguido/recorrente afirma que não agiu com intenção de cometer o ilícito criminal, mas entende o Tribunal a quo que isto por si só não basta;
g) Pelo que, deverá manter-se a factualidade dada como provada;
h) Assim, a decisão recorrida, nesta parte, além de aplicar o DIREITO ao caso concreto, cumprindo com as regras processuais penais legalmente admissíveis, fez também JUSTIÇA, ao condenar o arguido/recorrente nos sobreditos termos pelo que deve ser mantido;”
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I.5. Parecer do Ministério Público
No sentido da improcedência do recurso.
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I.6. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.7. Foram colhidos os vistos e, de seguida, o processo foi à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Objecto do Recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt).
Assim, da análise das conclusões do recorrente extraímos as seguintes questões que importam apreciar e decidir:
1ª Falta do preenchimento do elemento subjectivo do crime de devassa da vida privada;
2ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada sob os pontos 13) e 14) por erro de julgamento;
3ª Violação do princípio in dubio pro reo.
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Conheceremos os fundamentos do recurso pela sua ordem lógica das consequências da sua eventual procedência e influência preclusiva.
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II.2. Sentença recorrida (que se transcreve na parte com relevo para apreciação do recurso)
“II. Fundamentação de Facto
a) Factos Provados:
Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
Da Acusação:
1. O arguido AA e a assistente BB contraíram casamento em ../../2013.
2. Dessa união nasceram dois filhos:
- A ofendida CC, em ../../2013; e
- O ofendido DD, em ../../2019.
3. O arguido e a assistente deixaram de coabitar em março de 2021, tendo a assistente se ausentado da residência comum, levando consigo os menores ofendidos.
4. Nos meses que se seguiram, o arguido e a assistente encontravam-se desavindos quanto às questões relacionadas com as responsabilidades parentais dos menores ofendidos.
5. Nesse âmbito, foram instaurados vários processos judiciais, quer de natureza criminal, quer de natureza de família e menores, opondo-os.
6. Foi neste contexto que, no dia 30/11/2022, pelas 17h56m, quando se encontrava no seu domicílio, na Rua ..., ..., ..., na freguesia ..., município ..., o arguido, sem o consentimento da assistente e dos menores ofendidos, criou, na internet, o domínio "...".
7. Na referida página, o arguido divulgou mensagens de correio eletrônico, imagens dos ofendidos, e relatou factos relativos à vida privada da assistente e dos dois filhos menores ofendidos.
8. Com efeito, ali, se referiu expressamente:
• aos nomes completos da assistente e dos filhos menores ofendidos, identificando-os cabalmente, com as respetivas datas de nascimento e estabelecimento de ensino que frequentavam;
• aos dias concretos das visitas aos menores e dos entraves levantados pela assistente, depois da separação;
• aos problemas de saúde de que a assistente alegadamente padecia;
• aos alegados episódios de agressões à menor ofendida CC, que lhe eram imputados pela assistente;
• às vivências pessoais com a assistente, reproduzindo declarações prestadas por esta em sede de processo de inquérito;
• à situação económica da assistente aquando do casamento com o arguido, designadamente, alegadas dívidas que tinha;
• à transcrição do despacho judicial proferido em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, no âmbito destes autos;
• às vicissitudes das visitas aos menores, determinadas pelo Tribunal de Família e Menores, descrevendo o estado de espírito e comportamento dos ofendidos menores nesses momentos;
• aos problemas de saúde da menor ofendida CC e aos diagnósticos efetuados pelos psicólogos que a acompanhavam;
• às declarações que terão sido prestadas pela menor ofendida CC no âmbito de perícias psicológicas realizadas no âmbito dos processos judicias que estavam em curso;
• às assistências médicas de urgência a que a menor ofendida CC foi sujeita e respetivos sintomas e diagnósticos.
9. Para além disso, nessa página, o arguido inseriu um link que permitia o acesso a várias pastas, nomeadamente:
• "..." - contendo o curriculum vitae da assistente, notas pessoais, e outros dados;
• "..." - contendo a digitalização integral, em formato PDF, do processo de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais dos menores (e seus 10 apensos) e dos presentes autos;
• "..." - contendo peças processuais dos presentes autos;
• "..." - contendo relatórios de saúde, psicologia e escolares referentes aos menores ofendidos;
• "...";
• "... em casa" - contendo vários documentos a esse propósito;
• "... de 2022" - contendo documento referente a relatório de visitas aos menores ofendidos;
• "... com advogado do divórcio anterior"
• "..." - contendo vários documentos a esse respeito;
• "..." - contendo vários documentos a esse propósito.
10. O referido site foi suspenso às 03h05m do dia 23/12/2022, por determinação de autoridade judiciária.
11. Ao atuar do modo descrito, o arguido sabia que agia sem autorização da assistente e dos menores ofendidos e que expunha, ao público, factos, mensagens de correio eletrônico e imagens das vítimas (incluindo de todos os trâmites dos processos judiciais em que eram intervenientes), pretendendo, como conseguiu, difundir a terceiros esses mesmos conteúdos.
12. Sabia ainda que o fazia através da Internet, meio de difusão pública generalizada.
13. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
- Do pedido deindemnização civil (para além dos factos provados constantes da acusação pública):
14. Por causa dos factos praticados pelo Arguido/Demandado a assistente/demandante sentiu-se humilhada e angustiada.
- Das condições pessoais e económicas do arguido:
15. O arguido é engenheiro informático e possui uma empresa denominada por A..., Lda., com sede na Calçada ..., ... ..., cuja atividade está ligada, maioritariamente, à área da construção Civil, auferindo cerca de € 1200,00 (mil e duzentos euros) por mês.
16. O seu agregado familiar é composto por si e pela sua companheira EE, que se encontra a trabalhar fora do país.
17. Tem dois filhos menores, pagando uma pensão de alimentos no valor total de € 300,00 (trezentos euros), sendo € 150,00, para cada um.
18. O arguido reside em habitação própria, pagando empréstimo bancário, cujo valor que ronda os € 600,00 (seiscentos) euros por mês.
- Dos antecedentes criminais:
Ao arguido são desconhecidos antecedentes criminais, constando do respetivo certificado do registo criminal, que os não tem.
(…)
c) Motivação da Matéria de Facto:
O tribunal fundou a sua convicção nos meios de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, apreciando os mesmos de forma livre e com espírito crítico e, atendendo ainda às regras de normalidade e experiência comum, nos termos do art.° 127.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), atenta a especificidade da questão em apreço.
Vejamos,
Os factos dados como provados tiveram por base as declarações do arguido, o qual, confrontado com os mesmos, imediatamente os confessou, de uma forma integral e sem reservas, revelandosinais de pesar e arrependimento pela prática dos mesmos.
Mais clarificou que, teve aquele comportamento, porque queria expressar a sua revolta, dado que se encontrava afastado dos seus filhos há cerca de dois anos, tendo criado o site, num dia em que, se tinha realizado uma audiência no Tribunal de Família e Menores para voltar a ter convívios com os filhos, a qual se revelou improdutiva, tendo, esse facto, motivado a criação do site. Ainda acrescentou, num primeiro momento que quando criou o site e o divulgou não tinha a consciência de que se encontrava a praticar um crime, para depois de seguida admitir que todos os factos que lhe são imputados (entenda-se quer os concernentes aos elementos objetivos, quer os concernentes aos elementos subjetivos do tipo), retratando-se, pedindo desculpa a todos os envolvidos e verbalizando que, se fosse hoje nunca que o faria.
Além das declarações do arguido, relevante foi ainda a prova documental junta aos autos, mais concretamente, os aditamentos 11 e 12 a fls., 759 e 841, cópias de fls., 765 a 774, informação de piquete a fls., 805., informação de site a fls., 807 a 808, auto de pesquisa e apreensão, a fls., 809, relatório de cópia e gravação de página internet fls., 809 e CD a fls., 814., informação de dados a fls., 815 e certificado de registo criminal a fls., 1003.
Com efeito,
Dos aditamentos 11 e 12 a fls., 759 e 841 sobressaem as denúncias efetuadas relativamente à prática destes ilícitos.
Através dos documentos a fls., 765 a 774, correspondentes a prints dos dados informáticos inseridos na página da internet com o domínio "...", é possível apurar que os mesmos dizem respeito a dados pessoais e íntimos da assistente BB e dos seus filhos menores, CC e DD, do qual constam documentos e ficheiros de texto, de imagem e em gravação, em formatos de áudio e vídeo, suscetíveis de ser descarregados e visualizados por terceiros. Inclusive, são disponibilizados, no referido site, documentos como o "curriculum" da assistente, diários e escritos pessoais desta, assim como é oferecido cópia integral dos processos de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais dos menores (com os respetivos apensos).
Depois, por intermédio da informação de piquete a fls., 805 e do auto de apreensão a fls., 809 a 810 constata-se que, no dia 19/12/2022, foram apreendidos os conteúdos digitais que se encontravam no site da internet ..., cujo conteúdo da página e respetivos ficheiros foram exportados para disco ótico (DVD), constando o DVD a fls., 814.
Seguidamente, resulta da informação de site a fls., 807 a 808 que a página da internet com o domínio ..., tem como empresa de alojamento a "B...", detida pela sociedade "C... Unipessoal Lda., que após ter sido interpelada para proceder ao encerramento/cancelamento da referida página (a fls., 795), presta a comunicação a fls., 815, onde dá nota que a página da internet foi iniciada no dia 30 de novembro de 2022, pelas 17H56m e suspenso pela B..., no dia 23 de dezembro de 2022, pelas 03H05m, fornecendo a identificação do cliente que subscreveu o serviço, precisamente a empresa A..., Lda., que pertence ao arguido.
Deste modo, com base nas aludidas declarações do arguido que confessou os factos, conjugadamente com os documentos a que supra se fez referência, não ficou o tribunal com qualquer dúvida, sobre os factos imputados ao arguido motivo pelo qual foram os mesmos dados como provados.
Relativamente ao elemento subjetivo, dado que o arguido disse mum primeiro momento que não tinha consciência de que se encontrava a praticar um crime para depois em seguida acabar por admitir que era tudo verdade, sempre se diga que,o mesmo foi extraído da verificação dos factos objetivos em conjugação e por apelo às regras da experiência comum e do normal acontecer, não tendo o Tribunal ficado com dúvidas acerca da vontade do arguido em querer devassar a vida privada da assistente e dos filhos.
Senão vejamos,
O Arguido criou a página na internet com o domínio ..., com o propósito de dar a conhecer, de uma forma rápida e a um número indeterminado de pessoas, um conjunto de informações e dados pessoais e íntimos da assistente e dos seus filhos menores, que o arguido sabia e não podia ignorar, que não eram seus, que não tinha autorização para divulgar e, bem assim, que consubstanciavam informações privadas e pessoais que a assistente e os seus filhos, aliás como qualquer pessoa colocada nos seus lugares, quereria manter em segredo.
Não vislumbrando o Tribunal qualquer outra motivação que não fosse a de afetar e devassar a vida privada e íntima destas pessoas, e isso é notório, pela forma como o site é produzido.
Desde logo, pelo rigor, organização e pormenorização dos dados/conteúdos que se encontram no site, dado que os conteúdos se encontram divididos por pastas, devidamente identificadas, por títulos e nomes das pessoas envolvidas, individualizando os processos, correspondentes à violência doméstica e o das responsabilidades parentais, que contêm a cópia integral de tudo o que se passou no âmbito dos mesmos, constatando-se nitidamente que, por detrás da sua suposta revolta, há uma vontade inequívoca de devassar e escrutinar a vida destas pessoas.
Tanto mais que, se assim não fosse, o arguido teria adotado comportamento diferente. Isto é, se queria manifestar publicamente a sua alegada revolta, por não puder estar com os filhos livremente ou o seu desagrado pela forma como o processo judicial estava a ser conduzido, não precisaria, nem tinha necessidade para atingir esse fim, de expor e identificar as pessoas envolvidas. Simplesmente, podia ter-se remetido ao relato escrito da sua história, sem disponibilizar informações, documentos pessoais e íntimos, mensagens eletrónicas, imagens e vídeos destas pessoas, inclusive o próprio Curriculum Vitae, diários e escritos pessoais da assistente, que só tiveram o propósito de divulgar e expor publicamente, ao escrutínio de terceiros, a vida privada e íntima da assistente e seus filhos.
Portanto, para o Tribunal, ficou claro, atentas as regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido atuou com cognoscibilidade e intencionalidade na divulgação de conteúdos relativos à vida privada e íntima da assistente e dos seus filhos, com um número indefinido de pessoas, através de um meio tão difuso, como é a internet, de modo a devassar as suas vidas privadas.
A factualidade provada e respeitante ao pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente/Demandante, assentou nas regras da experiência comum e normal acontecer, conjugadamente com a prova documental constante dos autos e supra analisada.
De facto, atendendo que, qualquer pessoa colocada no lugar da assistente se sentiria angustiada e humilhada ao saber que os seus dados pessoais, factos da sua vida privada e íntima, inclusive dos seus filhos, foram partilhados com um número generalizado de pessoas, através da internet, sem nada puder fazer, conteúdos esses, que seguramente, também chegaram a pessoas do seu meio social e profissional, intensificando, ainda mais, essa humilhação e angústia.
Quanto às circunstâncias pessoais, profissionais e familiares do arguido, o tribunal atendeu, na falta de outros meios de prova às declarações que, em sede de audiência de julgamento, foram prestadas pelo arguido AA.
Por fim, tendo em atenção o disposto no artigo 169.° do Código de Processo Penal, quanto à inexistência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em consideração o teor dos respetivos certificados de registo criminal a fls. 1003, respetivamente.
Por fim, a convicção negativa relativamente à factualidade que se teve como não provada, derivou da ausência de prova que, em sede de audiência de julgamento tivesse sido produzida a seu propósito.
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III. Fundamentação de Direito:

1. Enquadramento jurídico penal
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Ora, no caso vertido nos autos, em termos objetivos, ficou provado que, o arguido no dia 30/11/2022, sem o consentimento da assistente e dos menores ofendidos, criou, na internet, o domínio ..., através da qual, divulgou mensagens de correio eletrônico, imagens dos ofendidos, e relatou factos relativos à vida privada da assistente e dos dois filhos menores ofendidos (ponto 6 e 7 dos factos dados como provados).
Com efeito, ali, se referiu expressamente, entre o mais, os nomes completos da assistente e dos filhos, as datas de nascimento e estabelecimento de ensino que frequentavam; aos dias concretos das visitas aos menores e dos entraves levantados pela assistente, problemas de saúde de que a assistente alegadamente padecia; os alegados episódios de agressões à menor ofendida CC, que lhe eram imputados pela assistente; as vivências pessoais com a assistente, reproduzindo declarações prestadas por esta em sede de processo de inquérito; os problemas de saúde da menor ofendida CC e diagnósticos, declarações prestadas pela ofendida CC, perícias psicológicas (ponto 8 dos factos dados como provados).
Para além disso, nessa página, o arguido inseriu um link que permitia o acesso a várias pastas, entre as quais, temos os "..." - contendo o curriculum vitae da assistente, notas pessoais, e outros dados; os "..." - contendo a digitalização integral, em formato PDF, do processo de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais dos menores (e seus 10 apensos) e dos presentes autos; "..." - contendo peças processuais dos presentes autos; "..." - contendo relatórios de saúde, psicologia e escolares referentes aos menores ofendidos; "...; "... com advogado do divórcio anterior" (ponto 9 dos factos dados provados).
Assim sendo, face à matéria de facto dada como provada, dúvidas não restam de que a conduta do arguido é subsumível à previsão normativa ínsita no crime previsto e punido pelo 192.°, n.° 1, alíneas a), b) e d) e 197.°, al., b) do Código Penal, preenchendo os elementos objetivos do crime em causa.
Relativamente ao elemento subjetivo, como já se disse anteriormente, tal conduta só será punida se praticada com intenção de devassar a vida privada das pessoas, do direcionamento da vontade do agente para atingir o bem jurídico protegido pela norma, prevendo, assim, um dolo específico.
Assim, percorridos os factos provados, verificamos que o arguido ao atuar do modo descrito, sabia que agia sem autorização da assistente e dos menores ofendidos e que expunha, ao público, factos, mensagens de correio eletrónico e imagens das vítimas (incluindo de todos os trâmites dos processos judiciais em que eram intervenientes), pretendendo, como conseguiu, difundir a terceiros esses mesmos conteúdos. Sabia ainda que o fazia através da Internet, meio dedifusão pública generalizada (ponto 11 e 12 dos factos dados como provados).
Portanto, o arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal (cf. o artigo 14.°, n.° 1 do CP).
Não se verificam quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade.
Donde se conclui que o arguido praticou, em autoria material, na forma consumada e concurso real de (três) crimes de Devassa da Vida Privada Agravados, p. e p. pelos artigos 14.°, 192.°, n.° 1, alíneas a), b) e d) e 197.° al. b) do Código Penal.”
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II.3. Apreciação do recurso

II.3.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
§1. O recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto provada, alegando que a prova produzida em audiência de julgamento impõe decisão diversa da recorrida, existindo factos incorrectamente julgados.
Não obstante não indicar a respectiva norma jurídica em que assenta tal pretensão recursiva, dos fundamentos do recurso depreende-se claramente que a discordância manifestada pelo recorrente diz respeito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (cfr. artigo 412º, n.º 3 do CPP).
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§2. Nos termos do artigo 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º do CPP “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”.
Por sua vez, o artigo 412º, n.º 3 do CPP dispõe que “Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
E, o seu n.º 4 estabelece que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
A impugnação da matéria de facto por o tribunal a quo ter efectuado uma incorrecta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não pode confundir-se com discordância na apreciação da prova que invada o espaço da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP, que é de estrito domínio do julgador.
Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há-de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cfr. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).
Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o princípio in dubio pro reo.
Como pode ler-se no acórdão do TRP de 17.09.2003, relatado por Fernando Monterroso (disponível in www.dgsi.pt) “O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204).
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (…) – Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss.”
A impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do CPP consiste, tal como sustentou o acórdão do TRL de 29.03.2011, relatado por Jorge Gonçalves (acessível in www.dgsi.pt) “na apreciação que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º].”
Como se escreveu no acórdão do TRP de 12.05.2021 (processo 6098/19.0JAPRT.P1, não publicado, proferido no âmbito do processo 6098/19.0JAPRT que correu termos no JC Criminal de Vila Nova de Gaia-J2): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
Não basta assim ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha que fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.”
De facto, como se exarou no acórdão do STJ de 15.12.2005, relatado por Simas Santos “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros” (cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 09.03.2006, relatado pelo mesmo relatador, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).
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§3. Transpondo estas considerações para o caso em concreto, o recorrente AA sustenta que os factos provados sob o ponto 13 – o arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal – e o ponto 14 – por causa dos factos praticados pelo Arguido/Demandado a assistente/demandante sentiu-se humilhada e angustiada – deveriam ter sido considerados como não provados.
Afigura-se-nos que o recorrente cumpre minimamente os ónus de impugnação acima referidos, o que permite que prossigamos na apreciação da pretensão.
Como concreta prova que impunha decisão diversa o recorrente indicou as suas declarações prestadas em audiência de julgamento (transcrevendo um breve excerto da gravação das suas declarações).
Argumenta que a sentença recorrida fundou a sua conviccção na confissão do arguido, no entanto, este apenas confessou o elemento objectivo dos crimes de que vinha acusado, não tendo sido produzida qualquer prova relativamente ao elemento subjectivo do tipo de crime em apreço.
Adiantamos, desde já, que não assiste qualquer razão ao recorrente pela simples razão de que não é, de todo, rigorosa a sua alegação.
Na verdade, percorrida a motivação de facto da sentença recorrida é notório que o tribunal a quo não se baseou nas declarações do arguido para dar como provado os pontos 13 e 14 controvertidos.
No que concerne ao ponto 13 dos factos provados, destaca-se a seguinte passagem da sentença recorrida, em sede de motivação da decisão de facto, que ilustra a falta de rigor da alegação do recorrente:
“Relativamente ao elemento subjetivo, dado que o arguido disse num primeiro momento que não tinha consciência de que se encontrava a praticar um crime para depois em seguida acabar por admitir que era tudo verdade, sempre se diga que, o mesmo foi extraído da verificação dos factos objetivos em conjugação e por apelo às regras da experiência comum e do normal acontecer, não tendo o Tribunal ficado com dúvidas acerca da vontade do arguido em querer devassar a vida privada da assistente e dos filhos.
Senão vejamos,
O Arguido criou a página na internet com o domínio ..., com o propósito de dar a conhecer, de uma forma rápida e a um número indeterminado de pessoas, um conjunto de informações e dados pessoais e íntimos da assistente e dos seus filhos menores, que o arguido sabia e não podia ignorar, que não eram seus, que não tinha autorização para divulgar e, bem assim, que consubstanciavam informações privadas e pessoais que a assistente e os seus filhos, aliás como qualquer pessoa colocada nos seus lugares, quereria manter em segredo.
Não vislumbrando o Tribunal qualquer outra motivação que não fosse a de afetar e devassar a vida privada e íntima destas pessoas, e isso é notório, pela forma como o site é produzido.
Desde logo, pelo rigor, organização e pormenorização dos dados/conteúdos que se encontram no site, dado que os conteúdos se encontram divididos por pastas, devidamente identificadas, por títulos e nomes das pessoas envolvidas, individualizando os processos, correspondentes à violência doméstica e o das responsabilidades parentais, que contêm a cópia integral de tudo o que se passou no âmbito dos mesmos, constatando-se nitidamente que, por detrás da sua suposta revolta, há uma vontade inequívoca de devassar e escrutinar a vida destas pessoas.
Tanto mais que, se assim não fosse, o arguido teria adotado comportamento diferente. Isto é, se queria manifestar publicamente a sua alegada revolta, por não puder estar com os filhos livremente ou o seu desagrado pela forma como o processo judicial estava a ser conduzido, não precisaria, nem tinha necessidade para atingir esse fim, de expor e identificar as pessoas envolvidas. Simplesmente, podia ter-se remetido ao relato escrito da sua história, sem disponibilizar informações, documentos pessoais e íntimos, mensagens eletrónicas, imagens e vídeos destas pessoas, inclusive o próprio Curriculum Vitae, diários e escritos pessoais da assistente, que só tiveram o propósito de divulgar e expor publicamente, ao escrutínio de terceiros, a vida privada e íntima da assistente e seus filhos.
Portanto, para o Tribunal, ficou claro, atentas as regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido atuou com cognoscibilidade e intencionalidade na divulgação de conteúdos relativos à vida privada e íntima da assistente e dos seus filhos, com um número indefinido de pessoas, através de um meio tão difuso, como é a internet, de modo a devassar as suas vidas privadas.”
A propósito do ponto 14 dos factos provados a sentença recorrida consignou na motivação de facto:
“A factualidade provada e respeitante ao pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente/Demandante, assentou nas regras da experiência comum e normal acontecer, conjugadamente com a prova documental constante dos autos e supra analisada.
De facto, atendendo que, qualquer pessoa colocada no lugar da assistente se sentiria angustiada e humilhada ao saber que os seus dados pessoais, factos da sua vida privada e íntima, inclusive dos seus filhos, foram partilhados com um número generalizado de pessoas, através da internet, sem nada puder fazer, conteúdos esses, que seguramente, também chegaram a pessoas do seu meio social e profissional, intensificando, ainda mais, essa humilhação e angústia.”
Assim, ao contrário do que vem alegado em sede de recurso, a convicção do tribunal a quo acima transcrita não permite concluir que se fundou nas declarações do arguido (mais precisamente, na sua confissão) para dar como provados os factos aqui impugnados.
O que aconteceu foi que o tribunal recorrido fundou a sua convicção em juízos de probabilidade decorrentes da globalidade da prova produzida, avaliada em função de critérios de normalidade (ou seja, de acordo com as regras da experiência comum, como prescreve o artigo 127º do CPP).
Perante o exposto, o recorrente não evidencia variáveis que contrariem as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e da ciência na apreciação da prova por parte do julgador.
Nesta conformidade, a decisão do tribunal a quo quanto à factualidade provada impugnada é inatacável por ter sido proferida de acordo com a sua livre convicção nos termos do artigo 127º do CPP e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis, pelo que, mantêm-se integralmente os factos dados como provados na decisão recorrida.
Improcede, nesta parte, o recurso.


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II.3.2. Da violação do princípio in dubio pro reo
§1. O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), constitui, pois, um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Com efeito, o princípio in dubio pro reo configura-se, basicamente, como uma regra da decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos -, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova, do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se na imposição de que um non liquet, na questão da prova, tem que ser sempre valorado a favor do arguido. “No que se traduz que apenas pode haver condenação se se tiver alcandorado a verdade com um grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que, naturalmente, fica aquém da noção de qualquer sombra de dúvida” (neste sentido, o acórdão do TRP de 28.10.2015, relatado por Ernesto Nascimento, acessível in www.dgsi.pt). Como igualmente se refere no referido acórdão do TRP, a verificação deste vício “pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador. A simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo”.
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§2. O recorrente alega que se impunha que, na falta de produção de qualquer prova, o tribunal a quo ficasse, no mínimo, na dúvida quanto à verificação do elemento subjectivo do tipo de crime.
Analisada a sentença recorrida não decorre que o tribunal a quo tenha ficado numa situação de dúvida a respeito do factualismo integrador do ilícito que deu por configurado e que, apesar disso, se decidisse por entendimento desfavorável ao arguido ao arrepio do sentimento de dúvida reconhecidamente inafastável, nem se evidencia qualquer possibilidade de que a prova legitimamente conduzisse o julgador a uma dúvida razoável e insuperável quanto à sua verificação.
Não estamos, pois, na presença de uma situação em que houve violação do princípio in dubio pro reo.
Improcede igualmente, nesta parte, o recurso.
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II.3.3. Do preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal
§1. O recorrente entende que não se encontra preenchido o elemento subjectivo do crime de devassa da vida privada por não se ter feito prova e, por isso, devia ter sido absolvido dos crimes de que vinha acusado.
A argumentação recursiva, nesta parte, pressupunha desde logo ter havido alteração da decisão sobre a matéria de facto provada nos termos propugnados no presente recurso.
Ora, tal pretensão recursória não mereceu acolhimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida sobre a matéria de facto.
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§2. O recorrente sustenta ainda que nos factos provados não se faz qualquer referência à intenção de o arguido em devassar a vida privada da assistente e dos filhos de ambos, referência essa que nem sequer consta da acusação pública e, por isso, não se mostra preenchido o elemento subjectivo do tipo de crime aqui em causa.
Não tem qualquer razão o recorrente.
A matéria de facto dada por assente é susceptível de configurar a prática por parte do arguido/recorrente dos crimes de devassa da vida privada ps. e ps. pelo artigo 192º, n.º 1, als. a), b) e d) e 197º, al. b), ambos do Código Penal pelos quais foi condenado.
Senão vejamos.
Dispõe o artigo 192º do Código Penal, na parte que aqui releva, o seguinte:
“1- Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:
a) Intercetar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio eletrónico ou faturação detalhada;
b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos;
(…) d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;(…)”.
No caso vertente, sendo certo que nos factos dados como provados na decisão recorrida não se fez constar, “expressis verbis” que o arguido, ao agir como agiu, fê-lo “com intenção de devassar a vida privada” da assistente e dos filhos de ambos, também é certo que na mesma decisão resultou provado que o arguido “ao atuar do modo descrito, sabia que agia sem autorização da assistente e dos menores ofendidos e que expunha, ao público, factos, mensagens de correio eletrónico e imagens das vítimas (incluindo de todos os trâmites dos processos judiciais em que eram intervenientes), pretendendo, como conseguiu, difundir a terceiros esses mesmos conteúdos. Sabia ainda que o fazia através da Internet, meio dedifusão pública generalizada” (cfr. ponto 11 e 12 dos factos provados), agindo “sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” (cfr. ponto 13 dos factos provados).
É sabido que tal crime só é punível a título de dolo, nos termos do disposto nos artigos 13º e 14º, ambos do Código Penal, isto é, exigindo desde logo o conhecimento e vontade de o agente levar a cabo uma tal divulgação, e sabendo que a mesma tem por objeto facto que claramente integra a intimidade ou a reserva da vida privada de outrem.
Como refere o acórdão do TRP de 06.02.2019, relatado por Francisco Mota Ribeiro (acessível in www.dgsi.pt) “diríamos que a dita referência à “intenção de devassar a vida privada das pessoas”, enquanto “elemento subjetivo típico”, não assume uma específica autonomia, como já a assumiria se estivéssemos no âmbito dos chamados crimes de intenção, pois aquele elemento subjetivo, ao contrário do que acontece nesta espécie de crimes, “não acrescenta nada ao tipo objetivo, cobrindo-o por completo e, desse modo, identificando-se com o próprio dolo.” Sendo “o seu efeito prático o de excluir as formas de dolo necessário e eventual. Ou seja, tal elemento subjetivo visa apenas dizer-nos que no crime de devassa da vida privada o tipo subjetivo aí em causa só admite o dolo direto [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2010, p. 597]. Tratando-se, portanto, de um “crime de dolo específico (especificamente o dolo direto) e não de um crime de intenção” [Ibidem]. Ou, numa outra perspetiva, considerando agora não estarmos perante “um crime de tendência interna transcendente, nomeadamente de um crime de resultado cortado” [Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra 1999, p. 734 e 735] ou de “resultado parcial” [Cf. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra 1999, p. 309; Como sucede, por exemplo, com o crime de burla, na medida em que a intenção de enriquecimento ilegítimo neste prevista assume autonomia enquanto elemento subjetivo do tipo, não tendo que lhe corresponder, ao nível do tipo objetivo, um resultado de enriquecimento, falando-se por isso numa incongruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo, sendo por isso categorizado como crime de “resultado cortado” ou de “resultado parcial”] (e precisamente por o crime dos autos ser um crime de dano, na medida em que pressupõe a lesão efetiva do bem jurídico, no caso a privacidade ou a intimidade da pessoa humana, onde iniludivelmente se inclui a sua vida sexual, e não o mero pôr em perigo essa reserva ou intimidade) [Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 308 e ss] mas, isso sim, perante um crime inserido na “categoria dos delitos de tendência”, em que “a ação típica está subordinada à direção da vontade do agente, que é o que lhe confere o seu particular caráter ou especial perigosidade”, ainda que com isso se entenda ser de afastar apenas a punibilidade com dolo eventual. Ou, num outro entendimento, afastar também a punibilidade com dolo necessário. Podendo falar-se, em qualquer caso, e por outras palavras, num elemento subjetivo que pertence ao dolo do tipo, mas não se traduzindo num elemento subjetivo especial do tipo, ainda que com o estrito sentido, portanto, de configurar a punibilidade assente apenas num “dolo direto intencional ou de primeiro grau”[Sobre o dolo direto, Jorge de Figueiredo Dias, Idem, p. 348, 349 e 367], não abrangendo, em suma, o dolo necessário e eventual.” (sobre a questão em apreço veja-se ainda o acórdão do TRP de 25.10.2023, relatado por Maria Joana Grácio, acessível in www.dgsi.pt).
Transpondo as considerações que se deixam expendidas para o caso dos autos, designadamente que a expressão “intenção de devassar a vida privada”, contida no corpo do nº 1 do citado artigo 192º, quer significar que a devassa da vida privada objetivamente descrita no tipo só poderá ocorrer com dolo direto, traduzido numa vontade do agente dirigida a atingir o bem jurídico protegido pela norma, temos que se mostra, inequivocamente, preenchido o elemento subjectivo do tipo legal de crime aqui em causa.
Na verdade, verifica-se, na presente situação, que a intenção determinada de o arguido levar a cabo a divulgação de factos relativos à vida privada dos ofendidos, mensagens de correio eletrónico e imagens das vítimas (incluindo de todos os trâmites dos processos judiciais em que eram intervenientes), sabendo e querendo realizar uma tal divulgação, com o sentido e desvalor penal que a mesma encerrava, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 14º, n.º 1, do Código Penal está descrito na factualidade dada como provada, quando aí se diz que “ao atuar do modo descrito, sabia que (…) expunha, ao público, factos, mensagens de correio eletrónico e imagens das vítimas (incluindo de todos os trâmites dos processos judiciais em que eram intervenientes), pretendendo, como conseguiu, difundir a terceiros esses mesmos conteúdos. Sabia ainda que o fazia através da Internet, meio dedifusão pública generalizada”.
Sendo que tal divulgação foi exposta ao público “sem autorização da assistente e dos menores ofendidos”, divulgação cuja proibição legal o arguido tinha plena consciência e mesmo assim quis livremente levar a cabo.
Pelo que se deixa dito, ao contrário do sustentado pelo recorrente, considera-se que se mostra preenchido nos autos o elemento subjectivo dos crimes por que foi condenado na decisão recorrida, nos termos em que o mesmo vinha descrito na acusação pública.
Por isso, e também neste segmento, improcede o recurso.

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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigo 515º, nº 1, b) do CPP e artigo 8º, nº 9 do RCP, com referência à Tabela III).
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Porto, 03.07.2024
Maria Rosário Martins (relatora)
Paula Natércia Rocha (1ª adjunta)
Raquel Lima (2ª adjunta)