CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
EMPURRÕES
DESCONFORTO FÍSICO
ADEQUAÇÃO SOCIAL
Sumário

A atuação da arguida que dá dois empurrões no ombro da ofendida, que sentiu desconforto físico, não ultrapassa o socialmente censurável e inadequado, mas não deixa de ser insignificante, não constituindo um ilícito criminal.

(da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 2
Processo nº244/22.4GAMAI





ACÓRDÃO


1. RELATÓRIO

Por sentença de 01.02.2024 foi decidido condenar a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de oitenta dias de multa, à razão diária de seis euros, no montante total de quatrocentos e oitenta euros;



**


RECURSO DA ARGUIDA.

Não se tendo conformado com tal decisão, veio a arguida AA interpor recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
a- a sentença decidiu incorretamente (3 até o 5) que existe prova dos empurrões.
b- a sentença decidiu incorretamente na avaliação do depoimento da arguida que deveria ser suficiente para a absolvição.
c- A sentença decidiu incorretamente a questão referente à posição da arguida no momento da suposta agressão, portanto, a prova produzida impunha uma decisão diversa da que foi tomada, uma vez que o arguido devia ter sido absolvido da prática dos crimes que foi acusado, decisão de absolvição essa que pode e deve ser tomada com base nos elementos suficientes que já existem nos autos, nos termos do art.º 412/n.º 3 alínea b) do C.P.P.
d- Portanto, existem elementos nos autos que impunham uma decisão diversa da que foi proferida.
e- Tais elementos são, a prova testemunhal contraditória entre cônjuges, depoimento da arguida negando de forma veemente todo o que lhe foi imputado, o que determina a aplicação do princípio constitucional da inocência.
f- E mesmo se os referidos empurrões tivessem ocorrido não deveria haver condenação, pois a jurisprudência majoritária e referida assim determina.

NB: bold da nossa autoria





**



RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

O Digno Magistrado do MP na 1ª instância veio responder dizendo:
O recorrente pretende a reapreciação da prova gravada considerando que não foi feita prova dos factos constantes da acusação, não tendo o Tribunal a quo valorado com devido rigor a prova produzida.
Todavia, não se vislumbra em que medida tenha o Tribunal recorrido feita uma má apreciação da prova já que fez uma livre apreciação devidamente fundamentada.
A este propósito, convém ter presente o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual: “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O princípio da livre apreciação da prova configura assim «um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de “regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova”.1»1 Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 10/10/2007, proc. n.º 8428/07 (Relator: Carlos Almeida).
Significa isto que, em regra, não vigora no nosso sistema penal um sistema de prova vinculada ou legal, mas antes um sistema de prova livre segundo a qual, o julgador valora a prova de acordo com as regras da experiência e da sua livre convicção.
Assim, a decisão do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, até porque, nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva – o raciocínio lógico que é feito para considerar determinado facto provado ou não provado – mas também elementos racionalmente não explicáveis (como seja, a credibilidade que é atribuída a determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais- cfr. Prof. Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal ", Coimbra Editora, vol. I, ed. 1974, pág. 204.
Ora este tipo de motivações não são, pois, proibidas pela lei. O que não se permite é que na decisão estejam subjacentes a formulação de juízos arbitrários, exclusivamente emotivos, e destituídos do raciocínio lógico, que qualquer homem médio comum faria, perante os dados objectivos do caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum.
Dizer isto, não é dizer que o conhecimento pelo Tribunal da Relação, do recurso da matéria de facto, está limitado pelo princípio da livre apreciação da prova, caso contrário, estaríamos a subverter o recurso da matéria de facto a uma duplicação de recurso exclusivo de matéria de direito.
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o Tribunal da 1.ª instância como o Tribunal de recurso. O que sucede é que o julgamento em primeira instância é o palco por excelência da revelação do facto, sendo que esse momento nunca mais se repetirá no processo- cfr Assim, Ana Brito, “Recursos em P.P. – a interposição do recurso/o recurso da matéria de facto”, Revista CEJ, nº 9, pág. 390.
Há que atender sempre à multiplicidade de factores que se desenrolaram no julgamento da 1.ª instância e que não se repetem perante o julgamento do recurso, salvo nos casos em que é requerida a renovação da prova – o que não sucede no presente recurso.
O que o Tribunal recorrido viu e ouviu dos vários intervenientes processuais, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, a linguagem gestual, as expressões faciais, os olhares, a linguagem gestual, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, as pausas e os silêncios dos depoentes, constituem factores para aquilatar quem está a falar verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que não intencionalmente.
Na verdade, o que limita os poderes do Tribunal da Relação é ausência de imediação e oralidade, o que é dificilmente ultrapassado mesmo com o recurso à transcrição e audição da prova gravada. Cfr. Pese embora, a actual imposição do fim da transcrição (artigo 412.º, n º.6 do C.P.P) assegurar uma menor perda de imediação ou até “uma espécie de para-oralidade”. Sobre esta matéria, vide Ana Brito, ob. cit., pág. 391.

A este propósito, refere Figueiredo Dias: “Só estes princípios [da imediação e da oralidade] permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais” cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, págs. 233-234.
Também sobre a mesma temática, pronunciou-se a Relação de Lisboa, relativamente à prova transcrita, desta forma: (Acórdão da Relação de Lisboa de 20/03/2007): “uma transcrição de prova não pode ser lida linearmente, como se fosse uma escritura de um notário. É que sempre coisas que os juízes de julgamento viram e ouviram e não ficaram na transcrição e às quais, por isso, o tribunal de recurso nunca terá acesso, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa, […] a prova testemunhal não é pois para ser avaliada aritmeticamente”.
Ora, da análise crítica da prova produzida em sede de discussão e audiência de julgamento, não lográmos verificar nenhum facto como incorrectamente julgado, nem nenhuma prova que deva ser renovada.
O Tribunal analisou de forma criteriosa todas as provas necessárias relacionadas com os factos constantes da acusação. E mais, justificou a razão pela qual deu mais credibilidade às testemunhas do que à arguida. Equacionou, ainda, o Tribunal, a tese alegada em sede de recurso pela arguida tendo sido expressamente consignado que a versão de facto adoptada não “obstaria à plausibilidade” “a circunstância, não suficientemente esclarecida, de a arguida se encontrar num plano ligeiramente inferior (um degrau abaixo) face ao da ofendida”.
Por tudo que foi exposto, deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pela arguida AA e, em consequência, mantida a douta decisão recorrida.

PARECER

Já nesta Relação, a Ex. Srª. Procuradora Geral Adjunta emitiu Parecer:
A arguida Recorrente pretende com o seu recurso colocar em causa os factos dados como provados na sentença recorrida.
E por outro lado, e ainda assim, considerando os factos dados como provados, defende que os mesmos não são suficientes para o preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples, crime pelo qual foi condenada, dado que no que diz respeito ao resultado causal da sua conduta apenas se afirma nos factos dados como provados que foi provocado “desconforto” à ofendida.
Ou seja, no entender da Recorrente os empurrões disferidos no ombro da ofendida tinham que ser executados de forma a atingi-la fisicamente, causando-lhe dor, ou atingindo-a na sua saúde.
Ora, no que diz respeito à impugnação da matéria de facto dada como provada por parte da arguida não obedece a mesma ao ónus de impugnação especificada exigido no artigo 412.º , n.º3, 4 do CPP, pelo que fica o Tribunal de Recurso limitado à sindicância restrita da matéria de facto no que diz respeito aos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2 do CPP, de conhecimento oficioso.
A arguida Recorrente argumenta relativamente ao modo como o tribunal a quo formou a sua convicção no que diz respeito à prova produzida m julgamento, focando a sua fundamentação àquilo que pretende que seja uma hierarquia de valor probatório que o legislador não estabeleceu.
A ofendida e o seu marido foram ouvidos como testemunhas e ficaram por isso sujeitos ao dever de verdade, prestando ambos juramento legal.
O mesmo não se verifica obviamente à arguida, que não só pode remeter-se ao silêncio, sem que tal a prejudique, como pode apresentar uma versão alternativa dos factos, cuja falta de veracidade não acarreta consequências legais para a mesma.
A arguida negou os factos, embora admitindo a situação factual onde os mesmos ocorreram-discussão nas escadas do prédio entre primeiramente o arguido e a ofendida- e argumentou que a versão dos ofendidos não é plausível, nem verdadeira.
Na verdade, o tribunal a quo fundamentou de modo claro a sua convicção sobre a prova produzida em julgamento e que sustentaram os factos dados como provados, livre convicção apenas balizada pela lógica e regras da experiência comum, regras essas que não foram colocadas em causa.
Porém, e quanto ao facto dado como provado em 3.º « Surgiu também, no local, a arguida AA que desferiu dois empurrões no ombro da ofendida, causando-lhe desconforto» entende-se ser o mesmo insuficiente para a verificação do resultado exigido para a consumação do crime de ofensa a integridade física simples.
Dispõe o artigo 143.º, n.º1 do Código Penal que « Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.».
Estamos perante um crime de resultado e esse resultado tem de atingir o corpo ou a saúde de outrem. No caso concreto dos autos, e de acordo com os factos dados como provados, a arguida deu dois empurrões no ombro da ofendida.
Quanto ao resultado desses empurrões diz-se que os mesmos causaram desconforto.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-1-2009, «No léxico comum o verbo “empurrar” contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência».
Na verdade, a conceito de corpo e integridade física como bem jurídico defendido no crime de Ofensa à integridade física simples tem tido diversas interpretações pela jurisprudência, sendo certo que se admite poder verificar-se o resultado de mal estar físico sem haver dor física.
Assim, entendeu, por exemplo, também o acórdão da Relação de Coimbra de 9-5-2012 « Para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física apenas se exige a existência de uma ofensa no corpo (não cumulativamente a existência de ofensa à saúde), constituindo ofensa toda a acção que prejudique o bem estar físico da vítima, até independentemente de provocar ou não dor. 2. No caso, uma acção de empurrar, que até foi suficiente para fazer cair a vítima, tem de considerar-se ter sido atentatória do bem-estar físico da vítima.»
É certo que no facto dado como provado em 3.º se fala em empurrão, que parece pressupor, segundo a sua definição de sentido, uma acçao de « impulso forte que faz mover a pessoa ou o objeto afetados».
No entanto, entende-se que mais tinha que ser dado como provado ao nível dos factos típicos objectivos imputados à arguida, para que resultasse inequívoco não só que a arguida pretendeu com a sua ação- desferir dois empurrões de forma a causar mal estar físico à ofendida e eventualmente dor- como, por outro lado, que efetivamente tal resultado ocorreu.
O tribunal a quo dá como provado que os dois empurrões causaram desconforto.
Pode-se então equiparar desconforto a mal-estar físico?
Na verdade, e sob esse prisma concreto, os factos dados como provados são escassos quanto à conduta típica objectiva imputada à arguida e o resultado concreto provocado por essa conduta.
Assim, como se entende relevante consignar em termos de matéria de facto dada a dar como provada o posicionamento da ofendida e arguida quando os empurrões ocorreram, parecendo evidente que estando a ofendida em plano superior à arguida (diferentes degraus) a intensidade do toque no ombro da ofendida dificilmente seria intenso.
Como se entendeu no acórdão desta Relação de 4-5-2022 « O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem; por ofensas no corpo deve entender-se, “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”.
Tal crime abrange qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente de esta provocar lesão corporal, como decorre do Assento n.º 2/92 do STJ de 18 de dezembro de 1991 (in DR, serie I-A de 8 de Fevereiro de 1992) que declara: “integra o crime do art.º 143.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.”
Ou seja, não é qualquer prejuízo causado no bem-estar físico de outrem que assume relevância criminal, apelando-se ao conceito de “insignificante” para estabelecer um limite de referência à avaliação desse prejuízo.
Assim se entendeu, estando em causa uma acção com “empurrão” no acórdão também desta Relação de 28-4-2021
« O crime de ofensa à integridade física supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão
do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade.
II – Conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência das Relações, as lesões insignificantes estarão excluídas do referido tipo legal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor.
III – Se alguém coloca as mãos nos ombros de outrem, empurrando essa pessoa para trás, mas não lhe provocando quaisquer dores, tal empurrão não pode deixar de considerar-se insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico aqui tutelado”
Atento o exposto, entende-se que os factos dados como provados na sentença recorrida são insuficientes para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física simples imputado à arguida/Recorrente, devendo o processo ser reenviado à 1ª instância para novo julgamento sobre o concreto ponto de facto acima destacado ( artigo 426.º, n.º1 do CPPP). NB: bold da nossa autoria


Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP houve resposta ao Parecer.
*

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº 3 al. c), do diploma citado.



2. FUNDAMENTAÇÃO

A) DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:
- errada avaliação da prova
- (im)punibilidade da conduta da arguida



B) DECISÃO RECORRIDA

Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.
(…) II. Fundamentação
Factualidade provada e não provada
Dos factos vertidos na acusação e bem assim dos que resultaram da discussão da causa, mostra-se provado, com relevo para a respectiva decisão, que:
1. No dia 6 de março de 2022, pelas 23h45m, a ofendida BB encontrava-se no interior da sua residência sita na Rua ..., ..., ..., ... ..., ...;
2. Quando o seu vizinho do 1º direito, o arguido CC bateu na porta da sua habitação;
3. Surgiu também, no local, a arguida AA que desferiu dois empurrões no ombro da ofendida, causando-lhe desconforto;
4. A arguida AA, ao desferir empurrões na ofendida, fê-lo com o propósito de molestar a sua integridade física, da forma como se verificou;
5. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; (…)
Não se provaram, com relevo para a decisão da causa, quaisquer outros factos, para além ou contrariamente aos que antecedem e, designadamente, que: (…)
2. A arguida AA tenha desferido três empurrões no ombro
da ofendida;
(…)
--Motivação da decisão da matéria de facto
Para dispor sobre a matéria de facto que antecede, ancorado nas regras da experiência, fundou este tribunal a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida e no seu cotejo com o princípio da livre apreciação.
--O arguido não prestou declarações.
A arguida, prestando declarações, referiu que, no dia em causa nos autos, a sua filha com 15 anos de idade se encontrava com música a ser reproduzida e, a dada altura, ouvindo gritos, disse ter percebido a voz do pai. A declarante acercou-se do local e viu o seu marido a discutir com a ofendida, de quem já foi cliente. Puxou o marido pelo braço. Houve discussão sem insultos. A declarante apenas disse que ela não tinha que bater com um martelo no chão. Não a agrediu. Nem ouviu o CC verbalizar a expressão que lhe vem imputada. Não havia problemas anteriores de vizinhança.
BB, disse conhecer os arguidos como vizinhos. No dia em causa nos autos, ouviu um barulho na parede, provindo do andar de baixo. Bateram à porta do seu apartamento. Quando a depoente abriu a porta, o arguido dirigiu-lhe a expressão que vem descrita na acusação. Depois subiu a esposa e outras pessoas. O seu marido ouviu barulho e chegou a si, tal como a sua filha, ficando ambos atrás de si. A arguida empurrou-a por três vezes no ombro. A arguida era sua cliente no salão. Não existia animosidade entre ambas. Sentiu desconforto físico com os empurrões e ficou assustada.
DD, marido da ofendida, disse que, no dia em causa nos autos, alguém bateu na parede e os arguidos dirigiram-se ao seu apartamento. Primeiro o arguido e depois a arguida. O depoente estava na sala. Foi a BB quem abriu a porta. Ouviu gritos e dirigiu-se à porta, tentando acalmar. A expressão do art. 3º da acusação foi proferida mas foi-lhe dirigida a si e o arguido disse que o depoente se lembrasse bem da cara dele. A arguida desferiu dois empurrões na ofendida. (…) Em sede de discussão dos meios de prova, importa referir que os factos provados decorrem da sua credível sustentação pela ofendida, a qual prestou um depoimento dotado de caracteres de notória esponteidade e objectividade, próprios de quem relata um evento efectivamente vivenciado, no que foi, nessa parte, em boa medida corroborado pelo depoimento do seu marido, prestado igualmente de forma consistente e inexistindo razões que justifiquem questionar a credibilidade e a fiabilidade do que referiu. Consolidou-se probatoriamente o número de golpes descritos pelo depoente DD, como um mínimo de evidenciada ocorrência, porque contido no sustentado pela ofendida. Não obstaria à plausibilidade do facto a circunstância, não suficientemente esclarecida, de a arguida se encontrar num plano ligeiramente inferior (um degrau abaixo) face ao da ofendida.
No que respeita ao acervo factual não provado, tal se deveu à circunstância de, pese embora descrita a expressão como tendo sido verbalizada pelo arguido, os depoimentos da ofendida e do marido divergem, nesta parte, de forma absolutamente inconciliável, não sendo viável desconsiderar uma das versões, motivo pelo qual se conclui pelo não devido esclarecimento de a quem a expressão se dirigiu, ocorrendo uma situação de não segura identificação do interlocutor, com a consequente formulação de um juízo dubitativo a respeito de tal questão, impondo-se abordá-lo mediante o acionamento do princípio de direito probatório in dubio pro reo, julgando-se não provado o acerto factual em apreço.
--Enquadramento jurídico do acervo factual apurado Do tipo de crime de ofensa à integridade física simples
Prevê o art. 143º, nº 1 do Código Penal que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O preenchimento do respectivo elemento típico objectivo verifica-se com a perpetração de um gesto ofensivo do corpo ou saúde de outra pessoa.
No que concere ao âmbito de subjectividade deste tipo fundamental, é de estrutura dolosa, isto é, apenas se verifica quando o agente represente o resultado da sua conduta, querendo-o, encarando-o como necessário ou admitindo como possível a sua ocorrência e, neste caso, conformando-se com tal desfecho.
No caso que nos ocupa, a descrita conduta da arguida conduz ao preenchimento do elemento típico objectivo do ilícito criminal sobre o qual nos debruçamos.
Estando também preenchido o elemento subjectivo (na modalidade de dolo directo), inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, evidenciando a arguida uma atitude contrária ao dever ser jurídico-penal e verificando-se, pois, todas as condições de punibilidade, impõe-se a sua condenação respectiva, à qual se procederá. (…)


C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.

Do preceituado nos artigos 368.º e 369.º do CPP pela remissão que é feita pelo art. 424º nº 2 CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.


Citando o AC RE de 09.01.2018 in www.dgsi.pt.” A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação).
O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento.
Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto. Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”.
Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre cada um dos recorrentes, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado.
No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal.
Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt),
“(…) Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
– Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
– Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
– Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.
(…)”
Os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo certo que, da leitura efectuada do acórdão impugnado, não descortinamos a existência de qualquer vício, mormente nos moldes alvitrados pelos arguidos na sua motivação de recurso.
Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, os Recorrentes pretendem, repetindo-nos, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”.
Ora, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente terá de cumprir o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n°4). “

O que diz a recorrente?
Que a sentença decidiu incorretamente (3 até o 5) ao dizer que houve prova dos empurrões; a sentença avaliou de forma incorrecta o depoimento da arguida que era suficiente para a absolvição; a sentença decidiu incorrectamente a questão referente à posição da arguida no momento da suposta agressão.

Tal como diz a Sr. Procuradora Geral Adjunta no seu Parecer, a impugnação da matéria de facto dada como provada por parte da arguida não obedece ao ónus de impugnação especificada exigido no artigo 412.º , n.º3, 4 do CPP, pelo que fica o Tribunal de Recurso limitado à sindicância restrita da matéria de facto no que diz respeito aos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2 do CPP, de conhecimento oficioso.

Podemos afastar, sem dúvidas, a existência do vício previsto nas alíneas b) e c) do citado nº 2 do artigo 410º do CPP.
A Sr. Procuradora Geral Adjunta, no seu Parecer, entendeu que os factos dados como provados na sentença recorrida são insuficientes para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física simples imputado à arguida/Recorrente, devendo o processo ser reenviado à 1ª instância para novo julgamento sobre o concreto ponto de facto acima destacado ( artigo 426.º, n.º1 do CPPP).
Qual é, então, o facto que a Sr. Procuradora Geral Adjunta entende que devia ser averiguado em novo julgamento?
Saber de o desconforto referido nos factos provados pode ser equiparado a mal estar físico.
Esta pergunta, parece-nos, não contende com atitudes, mas com conceitos, e, por isso, dizemos, não se responde, no caso em concreto, com nova apreciação da matéria de facto.
Matéria de facto é, dizemos nós, saber se a ofendida sentiu mal estar físico.
Esta resposta consta da própria motivação da decisão de facto. A Sr. Juiz, ao relatar o depoimento da ofendida escreve “Sentiu desconforto físico com os empurrões e ficou assustada.”
A Sr. Juiz considerou que o depoimento da ofendida foi “dotado de caracteres de notória esponteidade e objectividade, próprios de quem relata um evento efectivamente vivenciado, no que foi, nessa parte, em boa medida corroborado pelo depoimento do seu marido, prestado igualmente de forma consistente e inexistindo razões que justifiquem questionar a credibilidade e a fiabilidade do que referiu.” (…) “Não obstaria à plausibilidade do facto a circunstância, não suficientemente esclarecida, de a arguida se encontrar num plano ligeiramente inferior (um degrau abaixo) face ao da ofendida.

A decisão ora em crise condenou a arguida, considerando que os empurrões que esta desferiu causaram desconforto (físico) na ofendida e que não era necessária qualquer outra diligência para esclarecer a posição da arguida – ligeiramente inferior (um degrau abaixo) ao da ofendida.

Deste modo, entende este tribunal de recurso que não há necessidade de produzir mais prova do que aquela que existe e foi apreciada nos autos.
Ademais, a repetição de um julgamento deve ser deixada para casos em que não é possível, de modo algum, a tomada de decisão pelo tribunal de recurso.
A repetição de um julgamento tem como efeitos colaterais lidar com uma prova já “contaminada”, pelo que deve ser determinada ” in extremis”.
Voltando ao recurso em causa e entendendo nós que a matéria provada é suficiente, impõe-se responder à pergunta da Ex. Sr. Procuradora Geral Adjunta, a qual, vai ao encontro de um dos fundamentos de recurso da arguida.
Desconforto é sinónimo de mal estar físico? A conduta da arguida é punível?
Foram vários os Acórdãos já citados no Parecer.
Assim, Acórdão da Relação do Porto de 1132/18.4PBMTS. P1 – O crime de ofensa à integridade física supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade.
II – Conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência das Relações, as lesões insignificantes estarão excluídas do referido tipo legal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor.
III – Se alguém coloca as mãos nos ombros de outrem, empurrando essa pessoa para trás, mas não lhe provocando quaisquer dores, tal empurrão não pode deixar de considerar-se insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico aqui tutelado.

Acórdão da Relação de Coimbra de 21-01-2009, tirado no processo 525/06.4GCLRA.C1. “ Considera o recorrente que, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no art. 18°, n° 2 da CRP, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do art. 143°, n° 1 do CP deve ser determinada objectivamente e não pode ser insignificante, diminuta ou ligeira. Diga-se desde já que concordamos inteiramente com essa afirmação, pois neste, como em todos os domínios, a apreciação da censura jurídico-penal não dispensa a ponderação de respeito e conformidade com a representação e valoração colectiva densificada na norma incriminadora [[vi]]. Nessa medida, «a (in)adequação social fornece-nos o ponto a partir do qual a ofensa ao bem jurídico há-de considerar-se relevante, o limiar mínimo [...] a partir do qual é legítimo desencadear a reacção jurídico-penal» [[vii]]. É que, como indica Figueiredo Dias, «a realidade do crime [...] não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da construção social daquela realidade; ele é em parte produto da sua definição social, operada em último termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes, vizinho) de controlo social. Numa palavra: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes» [[viii]].
Afirmado este entendimento normativo, vejamos se no caso em presença foi respeitado esse limite, o mesmo é dizer, se a condenação do arguido respeitou o princípio da legalidade, na vertente da tipicidade penal. De acordo com o que ficou provado, o arguido abeirou-se de …, colocou-lhes a mãos no peito e empurrou-o, causando-lhe dor, resultado que visou e atingiu. Será esta uma conduta insignificante? Ou, colocando a questão de outro modo, estaremos perante comportamento sem relevância social bastante para justificar materialmente a censura jurídico-penal? Cremos que a resposta é negativa e que a conduta em apreço merece tipicidade penal.
No léxico comum o verbo empurrar contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto [[ix]]. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência. Violência essa que, sem perder tal caracterização, pode assumir muitas e diversas graduações, algumas em que a discussão sobre a tipicidade encontra relevo.
Com efeito, as situações da vida nos nossos dias colocam-nos muitas vezes em situações de proximidade corporal que proporcionam e de certa forma vulgarizam variados contactos físicos pelo que cobrir com a força repressiva penal uma total ausência de impacto físico noutra pessoa seria manifestamente excessivo. (…) Acontece que, no caso dos autos, a vítima da conduta do arguido não se limitou a sofrer o empurrão: sentiu dor em resultado da conduta do arguido e do emprego por este de força física importante. Ora, independentemente de não ser elemento exigido pelo tipo [[xii]], esse resultado da conduta não pode ser ignorado neste plano de análise, pelo suplemento de afastamento relativamente ao dever ser colectivamente exigido que aduz à conduta. Sendo a dor um fenómeno complexo e que pode ter múltiplas origens, certo é que a sua origem no caso em apreço encontra-se claramente associada a reacção bio-fisiológica causada por uma agressão, ao mesmo tempo lesiva da integridade física – pois os tecidos da zona onde foi exercida a força são mecanicamente afectados – e da saúde – pois desencadeou no organismo uma reacção biopsicológica penalizadora, i.e. uma alteração funcional do organismo e também do bem-estar psicológico da vítima [[xiii]]. Afirma-se assim a lesão do bem jurídico protegido com a incriminação da ofensa à integridade física.
É certo que dos factos provados não resulta que a vítima tenha carecido de qualquer intervenção terapêutica ou sofrido lesão duradoura mas daí não resulta que estejamos perante resultado socialmente insignificante. Com o devido respeito por opinião diversa, não nos parece que a sociedade tolere ou conviva sem forte censura relativamente a tais comportamentos nem que, ao contrário do referido no recurso, os assuma como «banais» e fruto de uma agressividade não desviante. (…) A tolerância, por desistência das instâncias formais de controlo, de um clima social de agressão e violência por via da vulgarização de comportamento como o dos autos reduziria inevitavelmente a cidadania e a vivência comunitária.
Cabe ainda notar que não é exacto afirmar que a decisão recorrida trilhou caminhos diversos, mormente no que toca à reclamada interpretação desconforme com a constituição. De forma clara, a referência de que a agressão foi «bastante leve» encontra-se na parte da decisão que motiva a escolha e graduação da pena e não significa a assunção de insignificância ou de ligeireza social da conduta. Trata-se apenas da indicação de que, no universo das condutas passíveis de subsunção no tipo penal, aquela desenvolvida pelo arguido devia situar-se no plano inicial - gravidade ligeira - da esfera de protecção da norma.
Não se veja, então, na decisão recorrida, nem, acrescente-se, nesta decisão, o que manifestamente nela(s) não se contém – entendimento distinto do recorrente quanto ao alcance do princípio da subsidiariedade consignado no artº 18º, nº2, da CRP e à exigência de importância social relativamente às condutas susceptíveis de integrar a prática do crime p. e p. pelo artº 143º do CP – mas tão somente diferente ponderação relativamente à ultrapassagem, em concreto, desse limiar mínimo de adequação social na perseguição e censura penal.
Assim, e em síntese, conclui-se que a conduta de alguém que empurra voluntariamente outrem, querendo e conseguindo causar-lhe dor, preenche todos os elementos do tipo contido no artº 143º, nº1, do CP. Bem andou, por conseguinte, o tribunal a quo na condenação do arguido.”

Socorrendo-nos deste último Acórdão, parece-nos que o conceito de (in)adequação social permitirá estabelecer o dito limiar mínimo de adequação social na perseguição e censura penal.
Ora, o caso em apreço, situa-se numa situação de fronteira.
A atitude da arguida, embora inadequada, censurável, não ultrapassa este limite. Não entra no campo do delito criminal.
Desta forma, entende este tribunal considerar que os factos em causa não constituem a prática de um crime de ofensa à integridade física.




3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto em dar total provimento ao recurso interposto pela arguida, absolvendo-a do crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal.

Sem custas







Porto, 03 de Julho de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.


Raquel Correia Lima (Relatora)
Paula Natércia Rocha (1º Adjunto)
Pedro Menezes (2º Adjunto) - [«(Vencido. Não olvidando que por ofensa ao corpo deve entender-se «todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante», na formulação corrente da jurisprudência e doutrina alemãs, e que, entre nós, é também acolhida por Paula Ribeiro de Faria, na sua anotação ao artigo 143.o do Código Penal, no Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, 2.a ed., § 15, não posso concordar que seja insignificante a agressão deliberada, perpetrada no contexto de uma discussão entre duas pessoas na qual o agente se intrometeu para o efeito, e concretizada através de dois empurrões no ombro da vítima, que por via de tais agressões sofreu desconforto (físico). A aplicação coerente e consistente da decisão que antecede ameaça deixar a descoberto, de forma patente, e sem fundamentação adequada, uma dimensão significativa do direito fundamental à incolumidade física da pessoa, legitimando, doravante, formas de contacto físico indesejado e suscetíveis de gerar lesões de natureza física e psíquica, que a meu ver, e à luz das conceções sociais vigentes entre nós, não podem deixar de merecer (e exigir) a tutela do Direito Penal. De todo o modo, entendendo-se que a factualidade dada por assente é insuficiente para concluir pela «não insignificância» das agressões perpetradas, haveria que colmatar a eventual lacuna mediante os mecanismos processuais para tanto legalmente predispostos, antes de proferir uma decisão absolutória. Nestas circunstâncias, não posso associar-me à decisão que antecede, dela, em consequência, e muito respeitosamente, dissentindo.)]