ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
SENTENÇA CONDENATÓRIA
TÍTULO EXECUTIVO
INSTAURAÇÃO DE EXECUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

I - A acção de prestação de contas reveste a natureza de uma acção de condenação que segue a forma de processo especial, sendo a respectiva sentença condenatória. Neste tipo de processo, é atribuída exequibilidade à sentença que aprove as contas, relativamente ao saldo que apresentarem, independentemente de uma expressa condenação.
II – A defesa do entendimento jurídico que a sentença oferecida à execução consubstancia título executivo para a concreta execução que foi instaurada, entendimento esse, desconforme com a correcta interpretação da lei e com o conteúdo daquela sentença, por si só, não implica a qualificação da respectiva conduta como litigância de má-fé.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
A e OUTROS intentaram contra B a acção executiva – de que estes embargos são apenso - para pagamento da quantia certa, sob a forma de processo sumário, dando à execução a sentença proferida na acção de prestação de contas que correu termos, sob o nº 2221/11.1TBALM, no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada.
Consta do Requerimento Executivo, sob a epígrafe “Factos”, o seguinte:
“A aqui Executada moveu contra os aqui Exequentes ação de prestação de contas que correu termos com o N.º 2221/11.1TBALM, no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada.
A prestação de contas incidiu sobre os anos de 2006 a 2010.
Os Réus apresentaram contas, as quais foram objeto de perícia, cujo relatório consta de fls. 2391 a 2412.
De acordo com os factos dados como provados na douta sentença (pontos 14 e 27) a aqui Executada não procedeu ao pagamento da sua comparticipação nas despesas comuns da propriedade designada por Campimar (correspondentes aos artigos Artigo … e …, Secção AK, sitos no Pinhal da Aroeira), no período abrangido pelo processo de prestação de contas, intentado pela própria Exequente.
A douta sentença foi notificada às partes em 24.02.2014, pugnando pela não aprovação das contas apresentadas pelos Réus, em virtude de diversas discrepâncias apresentadas, mas antes remetendo o resultado dos valores apurados quanto a receitas e despesas para os resultados apurados em sede de relatório pericial.
De acordo com o relatório do Sr. Perito, para onde remete a douta sentença, o total das despesas apuradas foram as seguintes:
No que se refere ao ano 2006: 16.744,91 €uros (fls. 2406 dos autos principais)
No que se refere ao ano 2007: 16.931,17 €uros (fls. 2407 dos autos principais)
No que se refere ao ano 2008: 15.286,35 €uros (fls. 2408 dos autos principais)
No que se refere ao ano 2009: 19.655,47 €uros (fls. 2410 dos autos principais)
No que se refere ao ano 2010: 18.201,79 €uros (fls. 2411 dos autos principais)
O total das despesas relativas ao período em referência ascende a 86.816,69 €uros (oitenta e seis mil oitocentos e dezasseis euros e sessenta e nove cêntimos).
Tal como resulta do ponto 23 da factualidade dada como provada na douta sentença que é título executivo nos presentes autos, a Executada não contestou as contas até ao ano de 2006.
As despesas foram sempre suportadas em partes iguais pelos 10 (dez) compartes dos artigos … e …, Secção AK, sitos no Pinhal da Aroeira, a que respeitam as despesas supra indicadas.
Tendo em conta o montante global apurado, ou seja, 86.816,69 €uros (oitenta e seis mil oitocentos e dezasseis euros e sessenta e nove cêntimos), cabe à Executada a responsabilidade pelo pagamento de um décimo, ou seja, 8.681,67 €uros (oito mil seiscentos e oitenta e um euros e sessenta e sete cêntimos).
Nos termos do disposto no artigo 1411º do Código Civil, os comproprietários devem contribuir, em proporção das respetivas quotas, paras as despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum, sendo que as despesas elencadas no processo supra são suscetíveis de integrarem o conceito do n.º 1 supra citado preceito.
Do montante apurado, e apesar de devidamente notificada da douta sentença que é título executivo nos presentes autos, a Executada nada pagou até à presente data, pelo que permanece em dívida o montante global de 8.681,67 €uros.
A Executada constituiu-se em mora desde a data de trânsito em julgado da douta sentença – 26.03.2014 – nos termos e para efeitos do disposto no artigo 805º, n.º 1 do Código Civil, pelo são devidos juros nos termos legais, à taxa de 4% (Portaria n.º 291/03, de 08.04).
A Executada é responsável pelo prejuízo que o referido incumprimento causa aos Exequentes nos termos do disposto no artigo 798º do Código Civil.
Porque estamos no âmbito de uma obrigação pecuniária por parte Executada, esta está obrigada a pagar aos Exequentes uma indemnização correspondente aos juros de mora legais, desde a data da constituição em mora até efetivo e integral pagamento dos montantes em dívida, de acordo com o preceituado nos artigos 806º, n.º 1 e n.º 2 e 559º, ambos do Código Civil.
A Executada está ainda constituição na obrigação do pagamento da sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 3 e n.º 4 do artigo 829-A do Código Civil, à taxa de 5%, o que desde já igualmente se requer.”
A executada intentou os presentes embargos de executado, insurgindo-se contra a execução, invocando - para além da ilegitimidade da executada e dos exequentes - a inexistência de título executivo, entendendo que aquela sentença não constitui título executivo no que concerne à quantia exequenda, porquanto: a executada, na qualidade de cabeça-de-casal da herança de seus pais, moveu contra os exequentes, na qualidade de administradores de dois lotes de terreno detidos por vários comproprietários, a mencionada acção de prestação de contas, alegando que estes estavam obrigados a prestar contas referentes aos anos de 2006 a 2010; os exequentes apresentaram contas naquela acção, que foram rejeitadas pelo tribunal, porque incorrectas, tendo o tribunal considerado que as correctas eram as que constavam da perícia realizada naqueles autos, sendo o dispositivo da sentença o seguinte: “Pelo exposto, e julgando que as contas não foram validamente prestadas pelos réus, recusa-se a aprovação das mesmas, antes se considerando que os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, e respectivos saldos são os que constam do relatório pericial, para o qual se remete”; e, esta sentença não contém elementos suficientes que permitam retirar da mesma a conclusão que a herança deve aos comproprietários a quantia dada à execução.
A embargante formula pedido de condenação dos exequentes/embargados como litigantes de má-fé em multa a definir pelo prudente arbítrio do tribunal e em indemnização a favor da embargante/executada, consistente no reembolso das despesas em que a mesma incorreu com a presente demanda, incluindo os honorários da respectiva mandatária, que fixou em € 750,00.
Os embargados contestaram, pugnando pela improcedência dos embargos, sustentando, para o efeito, a legitimidade activa e passiva das partes, e que a sentença oferecida como título executivo “é um todo, na medida em que a respectiva decisão resulta de uma decisão global sobre o processo de prestação de contas” e que, “ao remeter para as receitas e despesas resultantes do relatório, a” “sentença claramente procedeu à aprovação dos referidos valores, tendo em conta o objecto legalmente previsto para a acção judicial interposta pela Embargante”; daquela sentença “resulta um saldo a pagar pela Embargante à compropriedade de onde fazem parte os aqui Exequentes”, “embora não corresponda saldo apurado pelos Exequentes (réus na acção da prestação de contas)”; “a Embargante “ganhou a acção” de prestação de contas, mas tem uma dívida para com a compropriedade, uma vez que o saldo apurado não é a seu favor, antes pelo contrário, é a favor da compropriedade de onde fazem parte os aqui Exequentes”; e “todos os valores indicados no requerimento executivo resultam do apuramento obtido por via do relatório pericial, valores esses aprovados nos termos do artigo 941º do CPC”, “resultando claramente um saldo em dívida por parte da Embargante”; pelo exposto, deve também ser julgado improcedente o pedido de condenação dos exequentes como litigantes de má-fé.
Após audição das partes, foi dispensada a audiência prévia e proferido saneador-sentença, que, após ter considerado que “O estado da causa habilita já ao conhecimento de mérito, apreciando as excepções invocadas, nomeadamente de falta de título executivo e de ilegitimidade”, julgou: (i) improcedentes as excepções dilatórias de ilegitimidade activa e passiva; (ii) procedentes os embargos de executado, por falta de título executivo, e consequentemente absolveu a executada “do pedido executivo, julgando extinta a execução, com todas as legais consequências, nomeadamente o imediato levantamento de todas e quaisquer penhoras”; e (iii) procedente o pedido de condenação dos exequentes como litigantes de má fé, com a respectiva condenação solidária “na multa de 5 UC (…), e no pagamento de indemnização à executada”, no valor de € 1.500,00.
Inconformados, os embargados recorrem desta decisão, requerendo a sua revogação, formulando as seguintes conclusões recursórias:
“1. O título executivo dado à execução nos presentes autos é uma sentença proferida no âmbito de uma ação especial de prestação de contas instaurada pela aqui Embargante / Recorrida.
2. No âmbito dessa mesma ação especial de prestação de contas o Tribunal deferiu a realização de prova pericial às contas apresentadas pelos aí Réus, aqui Recorrentes.
3. A perícia acima indicada veio a apurar concretamente os saldos de despesas e de receitas, os quais foram expressamente aprovados pela douta sentença dada à execução, remetendo expressamente sentença dada à execução para estes mesmos saldos.
4. Dispõe o artigo 941º do CPC o seguinte: “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
5. No caso concreto, trata-se de comparticipações e despesas devidas pela Embargante e da herança que esta representa relativas à AUGI em que são compartes com os Embargados / Recorrentes.
6. A ação de prestação de contas é um processo especial, que tem uma tramitação própria, cujo objeto é muito especifico e que passa por apurar um saldo, naturalmente a favor de uma das Partes – requerente ou requerido – tanto assim que nos termos do n.º 5 do artigo 944º do CPC pode emergir a obrigação de pagamento de determinada quantia, ainda que na referida fase processual não exista qualquer sentença podendo, inclusivamente, o credor do saldo, recorrer à penhora, por apenso.
7. “A finalidade do processo de prestação de contas é o apuramento do saldo resultante da receita e da despesa envolventes, com subsequente condenação no pagamento do saldo apurado.
O pedido de prestação de contas envolve necessariamente um pedido de condenação no eventual saldo final, podendo dizer-se que a ação de prestação de contas é, por natureza, uma ação de condenação que segue a forma de processo especial.
Nessa medida, relegar tal apuramento para liquidação em execução da sentença seria esvaziar o processo de prestação de contas do seu conteúdo específico. (…) A sentença proferida funciona como título executivo, sendo que na hipótese de o saldo ser favorável a quem presta as contas, a condenação será a seu favor.” (bold e sublinhado nossos) In “Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, Luís Filipe Pires de Sousa, 2017, Editora Almedina (págs. 165 e 168)
8. O título executivo dado à execução nos presentes autos corresponde a uma sentença condenatória em sentido próprio, proferida no âmbito de um processo especial.
9. Os Embargados / Recorrentes liquidaram a quantia exequenda no requerimento inicial, cumprindo o estipulado no artigo 716º do CPC.
10. O requerimento executivo cumpre com todos os requisitos previstos no artigo 724º do CPC.
11. A Embargante não contestou a liquidação da quantia exequenda.
12. Resulta dos factos provados sob os n.ºs 40, 41 e 42 da douta sentença recorrida que a Embargante reconhece a existência de valores em dívida em datas muito posteriores à data de trânsito em julgados da sentença dada à execução.
13. O Tribunal a quo valorou apenas uma parte da decisão, quando se impunha a valoração da decisão na sua globalidade, logo a remissão expressa para a provação dos saldos de receita e despesas resultantes do relatório pericial realização na ação especial de prestação de contas.
14. O indicado no ponto anterior constitui uma violação clara do princípio previsto no n.º 5 do artigo 607º do CPC, já que o título executivo tem que ser valorado no seu todo e, no caso concreto, com o relatório pericial para o qual remete expressamente, bem como pelo requerimento executivo.
15. O Tribunal a quo valorou apenas a primeira parte do segmento decisório da sentença que constitui título executivo, de formar completamente arbitrária, violando assim o disposto no n.º 4 do artigo 607º do CPC.
16. O título executivo dado à execução nos presentes autos existe, é válido e eficaz, devendo a Embargante e a herança por esta representada ser condenadas no pagamento da quantia exequenda nos termos requeridos no requerimento inicial.
17. A sentença dada à execução integra-se na classe de títulos executivos indicados na al. a), n.º 1 do artigo 703º do CPC, tendo os Embargados cumprido com o disposto no artigo 716º do CPC quanto à liquidação da obrigação no requerimento executivo.
18. Dúvidas não subsistem pois que a sentença dada à execução nos presentes autos – proferia no âmbito de ação especial de prestação de contas – constitui título executivo, válido e eficaz, nos termos e para efeitos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 703º do CPC.
19. O requerimento executivo inicial cumpre com todos os requisitos previstos no artigo 724º do CPC.
20. Ao decidir pela inexistência do título executivo nos presentes autos, o Tribunal a quo, decidiu contra a lei, com base erro grosseiro e em apreciação parcial dos factos, termos em que se impõe a revogação da sentença recorria, substituindo-a por Acórdão que decida pela existência, validade e eficácia do título executivo.
21. Resulta de tudo o que foi expendido a propósito do título executivo que os Embargados não agiram nem litigaram e/ou litigam com má fé.
22. A condenação dos Embargados como litigantes de má fé é infundada e precipitada, porque assenta numa valoração parcial e totalmente subjectiva, que não se coaduna com o princípio da livre convicção do julgador.
23. Da fundamentação indicada na douta sentença recorrida verifica-se que a mesma assenta na opinião pessoal do julgador e não em factos concretos que tenham sido carreados para os autos a começar pelo facto de existir diversa jurisprudência e doutrina no sentido de classificar a sentença dada à execução como um verdadeiro título executivo.
24. Ora, quem julga está adstrito a critérios que não permitem que as decisões sejam tomadas sem qualquer ligação ou sustentação com os factos carreados para os autos.
25. A levar em linha de conta os critérios adotados para que o Tribunal a quo tenha concluído pela condenação do Embargados como litigantes de má fé, levaria necessariamente à conclusão que todo o Sujeito Processual que perca uma ação litiga com má fé, o que não é de todo aceitável.
26. Dos factos dados como provados na sentença recorrida, sob os n.ºs 40, 41 e 42, resulta inequivocamente que a Embargante, em datas posteriores ao trânsito em julgado da sentença dada à execução veio interpelar os Embargantes no sentido de regularizar a sua dívida.
27. Dar tais factos como provados e concluir, com base em questões, que só podemos classifica como retóricas, que os Embargados agiram com má fé processual, é totalmente desprovido de qualquer razoabilidade e inadmissível à luz do Direito aplicável.
28. Não resulta da atuação dos Embargados qualquer conduta da qual tenha resultado o entorpecimento do processo, bem pelo contrário, durante os cerca de sete anos que estiveram a aguardar pela prolação da douta sentença de que se recorre os Embargantes foram agindo de acordo com o que era legalmente exigível e expectável.
29. A condenação dos Embargantes como litigantes de má fé é abusiva e discricionária, uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos exigidos no artigo 542º do CPC.
30. Ao decidir no sentido em que decidiu, o Tribunal a quo errou ao declarar procedentes os embargos e declarar extinta a execução, condenado ainda os Embargados em litigância de má fé.
31. Violados estão assim, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 607º, n.º 4 e n.º 5, 615º, n.º 1, al. b) e c), 703º, n.º 1, al. a), 704º, 716º, 724º e 542º, todos do CPC.
32. Termos em que, e nos demais de Direito, que V.Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que decrete a existência, validade e eficácia do título executivo dado à execução com o consequente prosseguimento dos autos executivos e que absolva os Embargados da condenação como litigantes de má fé, com todas as legais consequências.”
A embargante não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).
Nestes termos, no caso, as questões a decidir são as seguintes:
- da (in)existência de título executivo e sua (in)exequibilidade face ao objecto desta execução;
- a (não) verificação dos pressupostos da condenação dos exequentes/embargados como litigantes de má-fé.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para além das ocorrências processuais descritas na parte I-Relatório desta decisão, são relevantes para esta decisão os factos que foram considerados como provados na decisão recorrida, aos quais acrescentamos os nºs 46, 47 e 48, ao abrigo do artigo do art. 607º, nº 4, ex vi do art. 663º, nº 2, ambos do Cód. Proc. Civil, por resultarem da certidão judicial do processo que correu termos no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada, onde foi proferida a sentença oferecida à execução (cfr. ofício junto em 28/01/2021, sob a Referência Citius nº 28354770):
“1 – A aqui Executada e Embargante B, na qualidade de cabeça de casal da herança por óbito de C …. e B ….., moveu contra D …., E ….., F …., G …., e H ….. uma acção de prestação de contas que correu termos com o n.º 2221/11.1TBALM, no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada.
2 – Consta do relatório da sentença proferida nos autos n.º 2221/11.1TBALM: “Alegou a Autora, em síntese, que a herança que aqui representa é comproprietária de dois prédios rústicos, os quais foram adquiridos em vida de seus pais, juntamente com amigos e conhecidos, a fim de fazerem do local um espaço para passarem as suas férias e fins de semana. O espaço foi fisicamente dividido em zonas afectadas ao uso exclusivo de cada comproprietário e zonas comuns, os comproprietários acordaram em pagar uma contribuição mensal fixa, a que poderiam acrescer outras comparticipações extraordinárias. Havia uma administração para gerir as contas do fundo e todos os anos eram apresentadas contas da Gestão. Segundo a autora encontram-se por prestar as contas relativas aos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, contas essas que pretende sejam prestadas nesta acção”.
3 – Consta do facto provado nº 1 do elenco dos factos provados da sentença que: “A autora é cabeça-de-casal da herança indivisa por óbito de sua mãe B …. e de seu pai C …., de que são herdeiras a própria requerente e sua irmã I …….”
4 – Consta do facto provado nº 2 do elenco dos factos provados da sentença que: “A herança é proprietária de 1/10 avos do prédio rústico sito na Herdade da Aroeira, freguesia da Caparica, concelho de Almada, distrito de Setúbal, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo …, Secção AK.”
5 – Consta do facto provado nº 3 do elenco dos factos provados da sentença que: “Sendo, ainda, proprietária de 1/10 avos do prédio rústico sito na Herdade da Aroeira, freguesia da Caparica, concelho de Almada, distrito de Setúbal, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo …, Secção AK.”
6 – Consta do facto provado nº 4 do elenco dos factos provados da sentença que: “Os referidos prédios rústicos foram adquiridos em vida dos pais da ora Requerente, em compropriedade com amigos e conhecidos, a fim de fazerem dos mesmos um local para passar as suas férias e fins-de-semana.”
7 – Consta do facto provado nº 5 do elenco dos factos provados da sentença que: “Dividiram fisicamente o espaço que ficaria exclusivamente afecto a cada um dos comproprietários, correspondendo o espaço remanescente a áreas para utilização comum, como piscina, sala de reuniões, casa do caseiro, sala de jogos e casa do guarda, a que deram a designação “CAMPIMAR”.”
8 – Consta do facto provado nº 6 do elenco dos factos provados da sentença que: “A fim de suportar os gastos com as despesas de manutenção dos espaços de uso comum dos dois imóveis e, ainda, consumos de água e electricidade, os comproprietários deliberaram uma contribuição mensal fixa a pagar por cada um dos comproprietários, a que acresceriam outras comparticipações sempre que surgissem despesas extraordinárias.”
9 – Consta do facto provado nº 7 do elenco dos factos provados da sentença que: “Para este efeito, os comproprietários elegiam em assembleia-geral uma Administração, a qual exercia funções por período variável entre dois e três anos, a qual geria as contas desse fundo comum, recebia as receitas, pagava as despesas.”
10 – Consta do facto provado nº 8 do elenco dos factos provados da sentença que: “No final do exercício de cada administração, esta apresentava contas dessa gestão, perante uma assembleia geral de comproprietários.”
11 – Consta do facto provado nº 9 do elenco dos factos provados da sentença que: “Nessa assembleia de aprovação de contas, os membros da administração apresentavam um balanço discriminativo do que haviam recebido e do que haviam gasto (e a que título), apurando-se um saldo final.”
12 – Consta do facto provado nº 10 do elenco dos factos provados da sentença que: “Este grupo de comproprietários passou por diversas vicissitudes ao longo dos tempos.”
13 – Consta do facto provado nº 11 do elenco dos factos provados da sentença que: “A dada ocasião, mais propriamente em 21.09.2005, alguns dos comproprietários constituíram uma associação “Mar e Campo – Associação de Proprietários do Pinhal da Aroeira”.
14 – Consta do facto provado nº 12 do elenco dos factos provados da sentença que: “Alguns dos comproprietários pretendem transformar os dois imóveis em causa numa AUGI (área urbana de génese ilegal)”.
15 – Consta do facto provado nº 13 do elenco dos factos provados da sentença que: “Desde Abril de 2008, os Administradores da CAMPIMAR cortaram a água do alvéolo da autora (quer a da companhia quer a do furo hertziano”.
16 – Consta do facto provado nº 14 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em 9 de Março de 2009, a ora Requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção, à Comissão de Gestão da “Campimar”, a propósito das contas, na qual refere que “(…) transmiti ao Sr. D… que procederia de imediato à liquidação total das minhas comparticipações, desde que, obviamente, pudesse analisar toda a contabilidade e respectivos documentos de suporte, comprovativos das receitas e despesas” e “até à presente data não me foi facultado qualquer elemento contabilístico, malgrado as minhas inúmeras insistências, nem me foi possível consultar as contas e documentos comprovativos”.
17 – Consta do facto provado nº 15 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em 30 de Março de 2009, a Requerente através da respectiva mandatária, envia uma carta à comissão de gestão da CAMPIMAR, a propósito da questão das contas dos anos de 2006 e 2007.”
18 – Consta do facto provado nº 16 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em 5 de Maio de 2009, em nova missiva (registada com aviso de recepção), a Requerente, através da respectiva mandatária, refere que “a m/cliente deslocou-se por duas vezes ao escritório a fim de consultar os documentos que titulam as contas dos anos de 2006, 2007 e 2008, conforme indicação da Administração da Campimar, pois os dossiers já estariam lá… Mais uma vez, em vão; não se encontravam lá. Pelo que, contrariamente ao que lhe foi prometido não pode consultar quaisquer elementos relativos aos mencionados anos.”
19 – Consta do facto provado nº 17 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em Fevereiro de 2011, a Requerente (bem como sua irmã) receberam a convocatória, dirigida aos “Herdeiros de C …..”, e que tem por objectivo a realização de assembleia geral dos comproprietários dos dois imóveis identificados supra, tendo como ponto único da Ordem de Trabalhos “interpor acção de injunção contra os herdeiros do casal C ……”.”
20 – Consta do facto provado nº 18 do elenco dos factos provados da sentença que: “Alguns dos demandados na presente acção, foram membros da comissão de gestão da “CAMPIMAR”.”
21 – Consta do facto provado nº 19 do elenco dos factos provados da sentença que: “A Administração eleita para gerir a “vida” da Campimar não tinha prazo certo para o desempenho das suas funções, podendo os mesmos administradores estar em funções por um, dois ou três anos.”
22 – Consta do facto provado nº 20 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em regra, as contas eram prestadas no final de cada mandato da administração.”
23 – Consta do facto provado nº 21 do elenco dos factos provados da sentença que: “A associação “Mar e Campo – Associação de Proprietários do Pinhal da Aroeira” nunca chegou a funcionar.”
24 – Consta do facto provado nº 22 do elenco dos factos provados da sentença que: “Os serviços do caseiro reportam-se exclusivamente às partes comuns, sendo este serviço suportado por todos os comproprietários, ao que respeita aos serviços dentro de cada um dos alvéolos, bem como o pequeno espaço de terreno envolvente aos mesmos, o respectivo pagamento é da responsabilidade de cada um dos comproprietários.”
25 – Consta do facto provado nº 24 do elenco dos factos provados da sentença que: “Até ao ano de 2006, a Autora não contestou as contas apresentadas.”
26 – Consta do facto provado nº 24 do elenco dos factos provados da sentença que: “Na assembleia na qual se discutiu a constituição da AUGI, datada de 09.05.2009, a Autora fez-se representar pelo seu marido, tendo o mesmo assinado a lista de presenças na referida Assembleia.”
27 – Consta do facto provado nº 25 do elenco dos factos provados da sentença que: “Da ordem de trabalhos da referida assembleia fez parte a aprovação do orçamento para 2009, sendo que o mesmo mereceu a abstenção por parte do representante da Autora.”
28 – Consta do facto provado nº 26 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em 16.05.2005, a comissão de administração informou a Autora que o livro de actas estava disponível para consulta no escritório (em referência ao escritório existente no espaço comum), bem como o local onde ficavam depositados os recibos, assim como o NIB da conta para onde poderiam ser efectuados os pagamentos.”
29 – Consta do facto provado nº 27 do elenco dos factos provados da sentença que: “Em 17.02.2006, a Autora solicitou que lhe fossem remetidos os documentos referentes às suas despesas para que possa proceder ao respectivo pagamento”.
30 – Consta do facto provado nº 28 do elenco dos factos provados da sentença que: “Desde o ano de 2006, inclusive, não há apresentação de contas em assembleia geral”.
31 – Consta da parte decisória da sentença proferida no processo n.º 2221/11.1TBALM o seguinte: “Pelo exposto, e julgando que as contas não foram validamente prestadas pelos réus, recusa-se a aprovação das mesmas, antes se considerando que os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, e respectivos saldos, são os que constam do relatório pericial para o qual se remete. Custas pelos réus.”
32 – Os Réus apresentaram contas no processo n.º 2221/11.1TBALM, as quais foram objecto de perícia, cujo relatório consta de fls. 2391 a 2412 daquele processo.
33 – Os Exequentes vêm dar à execução a sentença proferida no processo nº 2221/11.1TBALM, a qual transitou em julgado em 24.03.2014, pretendendo que a ora Embargante pague a quantia de € 9.700,45, alegando que se trata de 1/10 das despesas.
34 – Consta da parte decisória da sentença proferida no processo n.º 2221/11.1TBALM o seguinte: “Pelo exposto, e julgando que as contas não foram validamente prestadas pelos réus, recusa-se a aprovação das mesmas, antes se considerando que os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, e respectivos saldos, são os que constam do relatório pericial para o qual se remete. Custas pelos réus.”
35 – Na referida de acção especial de prestação de contas foram demandados os ora quatro Exequentes e também a Sra. D. E ….. na qualidade de administradores de um fundo comum (CAMPIMAR) que geria a utilização de dois lotes de terreno.
36 – Por despacho de 29-09-2011, proferido nos autos de prestação de Contas n.º 2221/11.1TBALM, foi ordenada a notificação dos Réus para informarem quem exerceu as funções de administrador nos anos de 2006 a 2010.
37 – O que foi feito pelos Réus mediante requerimento apresentado nos autos em 7.11.2011, declarando que, “de 22.10.2005 a 30.12.2008, exerceram as funções de administradores: D ….; E …. e F ….. (tendo este último apresentado demissão em 01.08.2008); de 30.12.2008 a 01.08.2011 exerceram as funções de administradores: J …, G …. e H ….; Actualmente, exercem as funções de administradores: F …, E …. e H …..”.
38 – Dando origem ao incidente de intervenção principal provocada, em que a A. requereu o chamamento aos autos do ora também Exequente J …., porquanto havia sido administrador e, nessa qualidade, teria de prestar contas, tendo intervenção principal provocada sido aceite.
39 – Com data de 17.02.2006, a ora Embargante enviou à Comissão de Administração uma carta com o seguinte teor: “Na sequência da carta enviada em 25.Out.2005 e dado como até à presente data ainda não me foi facultado qualquer documento para que pudesse efectuar o pagamento de quaisquer despesas, conforme foi pedido nessa carta e dado que no regime de compropriedade o pagamento das despesas é feito à factura, ao contrário do que é feito no regime de condomínio, solicito mais uma vez, o envio de cópia de todos os documentos referentes às despesas efectuadas com a nossa propriedade relativas aos meses de Outubro, Novembro, Dezembro e Janeiro, para que possa efectuar de imediato a liquidação da minha quota parte.”
40 – Com data de 20.08.2006, a ora Embargante enviou à Comissão de Administração uma carta com o seguinte teor: “Junto incluo dois cheques para pagamento das mensalidades atrasadas, pelo que peço as minhas desculpas pela minha falta. O valor da comparticipação extraordinária de 350€ liquidarei nos próximos dias. Renovando as minhas desculpas pelo meu atraso no pagamento das minhas mensalidades acordadas, apresento meus cumprimentos.”
41 – Com data de 27 de Janeiro de 2015, a Embargante, na qualidade de Cabeça de Casal da Herança de C …. .. e B …., enviou à CAMPIMAR uma carta com o seguinte teor: “Tendo sido proferidas sentenças relativas aos processos de Anulação de Deliberação Social e de Acção Judicial de Prestação de Contas e tendo consciência da existência de valores em dívida, venho por este meio solicitar a V. Exa. a discriminação de tais valores para que se possa proceder à sua regularização”.
42 – Com data de 18 de Março de 2015, a Embargante, na qualidade de Cabeça de Casal da Herança de C … e B …, enviou à Representante dos Comproprietários B …, uma carta com o seguinte teor: “Na sequência da minha carta datada de 27 de Janeiro p.p. e qe só obteve vossa resposta através de carta datada de 20 de Fevereiro e recepcionada a 24 de Fevereiro, e em resposta à vossa carta datada de 9 de Março e recepcionada em 13 de Março, venho pela presente informar que o conteúdo exposto na vossa carta datada de 20 deFEvereiro está a ser objecto de análise e que em breve será dada a resposta adequada.”
43 – Com data de 27 de Abril de 2015, a Il. Mandatária da Embargante enviou a B …., uma carta registada com A/R, com o seguinte teor: “Dirijo-me a V. Exa. na qualidade de advogada da Sra. D. B ….., acusando desde já, e na referida qualidade, a recepção da vossa carta identificada em epígrafe, - de 9 de Março de 2015 – que mereceu a nossa melhor atenção. Aproveito, aliás, para informar que já lhe havíamos respondido em 26.03.2015, mas a carta veio devolvida com indicação de não reclamada. No que concerne ao valor que indica como estando em dívida, creio que os restantes comproprietários estarão a lavrar em erro, pois como bem sabe, por via do corte abusivo da água, a M/cliente esteve impedida de usar o seu alvéolo e, portanto, de fruir das vantagens e comodidades para a qual o espaço “Campimar” foi concebido e criado. Tal facto, por si só, legitimaria a M/cliente a escusar-se ao pagamento de qualquer quantia, pois se está impedida de usar, deveria, isso sim, ser ressarcida por esse facto. Todavia, a fim de obviar a mais incómodos e aborrecimentos, solicita-se a V. Exa. que diligencie junto dos restantes comproprietários a revisão do valor ora indicado, tendo em conta as circunstâncias mencionadas supra e do conhecimento de todos. Aproveito também esta missiva para solicitar que nos indique o que foi feito na sequência da sentença proferida no processo de prestação de contas, que correu termos no Tribunal de Almada, designadamente se as diversas administrações já repuseram os valores que resultam da divergência das contas elaboradas internamente e os valores fixados por sentença judicial. (…)”.
44 – Em 11.04.2007, a ora Embargante transferiu para a conta bancária de D ….. a quantia de € 1.500,40, referente às despesas da Campimar referentes ao ano de 2006.
45 – A execução de que estes autos são apenso deu entrada em 4 de Julho de 2015, tendo sido instaurada por F …, H …., A ….. e D …., contra B ….. (Cabeça de Casal).”.
46 – Consta do ponto 2. “Motivação” da sentença proferida nos autos nº 2221/11.1TBALM (na parte relevante para esta decisão):
“(…) Não existe também controvérsia que a autora, em determinada altura, deixou de pagar a sua comparticipação, sobre os factos que estão na base dessa tomada de posição, porque marginais ao objecto deste processo, não iremos aqui tomá-los em conta, nem fazer a aferição sobre se é, ou não, legítima tal posição.”
(…)
As contas apresentadas pelos réus (receitas, despesas e saldos) foram submetidas a uma perícia que se encontra materializada nos autos.
(…)
O relatório pericial acentuou a dificuldade na execução da perícia, muito devido ao facto de a associação não ter livro de receitas e de despesas. Não obstante esta dificuldade, a perícia realizou-se e a mesma não sustenta as alegações dos réus quanto aos valores do total das despesas, receitas e saldos para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010. Com base nos documentos de suporte que foram juntos aos autos, a perícia chegou a resultadas diferentes quanto aqueles totais. Embora nos diversos quadros nos quais se procura condensar despesas e receitas de cada ano, constem nominalmente os valores por indicados pelos réus nos arts. 52º e segs. da contestação (ex: docs. 10 e 11 juntos com a contestação), a verdade é que os documentos não permitem sustentar aqueles valores.”.
47 – Consta do ponto “3. O Direito” da sentença proferida nos autos nº 2221/11.1TBALM (na parte relevante para esta decisão):
“Não nos merece reparo que os réus tenham optado por organizar quadros/mapas nos quais discriminam as receitas de cada mês, as despesas de cada mês e apuram o respetivo saldo (cfr. docs. 15 a 18, juntos com a contestação). Embora nesses mapas não se indique a origem da despesa, a verdade é que o mapa de fls. 554 (doc. 10 junto com a contestação), com exceção dos anos de 2009 e 2010, enumera para os anos de 2005 a 2009 diversas categorias de despesas (ex: empregado, segurança social, telefone, etc...) e quantifica a mesmas, fornecendo um bom ponto de apoio no sentido de perceber a tipologias das despesas de gestão das partes comuns da compropriedade.
Assim, quanto à apresentação formal das contas, nada obstaria à sua homologação.
O mesmo já não se pode dizer dos valores que estão inscritos nessas contas.
O juiz, como supra referimos, tem grande campo de manobra para oficiosamente encontrar e fixar esse saldo, cometendo-lhe a lei o poder/dever de ordenar a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo mesmo considerar justificadas, sem documentos, as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los (arts. 1015º, nº 2 e 1017º, nº 2, ambos do CPC).
O processo de prestação de contas visa precisamente o apuramento do saldo resultante da receita e da despesa efetiva. Ora, aqui é que as contas dos réus apresentam problemas: em regra as receitas e despesas inscritas devem estar suportadas por documentos, no entanto, a perícia efetuada nestes autos, detetou discrepâncias muito sensíveis entre os valores de receita e de despesa inscritos nas contas e os totais que resultaram do somatório dos valores inscritos nos documentos de suporte, quer para despesas, quer para receitas. Só para citar dois exemplos: 1º para o ano de 2006 inscreveu-se um valor global de receita de 22.522,36€ e os documentos comprovam uma receita global de 16.814,85€; 2º para o ano de 2008 inscreveu-se um valor global de despesa de 18.014,99€ e os documento comprovam uma despesa global de 15.286,86€. Mesmo levando em conta a informalidade e amadorismo com que a contabilidade desta "associação" era tratada, não alcançamos razões que nos possam levar a considerar justificados os valores inscritos nas contas sem suporte documental, sobretudo quando estamos a falar de diferenças de valores tão acentuadas.
Na situação vertente, as desconformidades referidas não nos permitem ter por seguras as contas apresentadas pelos réus quanto às despesas e receitas, com reflexo nos saldos apurados.
Concluímos, pois, que as contas apresentadas pelos réus não estão em condições se ser aprovadas.”.
48 - No relatório pericial aludido em 32. e 34., consta o seguinte (na parte relevante para esta decisão):
“Resposta aos quesitos dos Réus:
(…)
“15. No ano de 2006 o montante global de receitas foi 22.522,36 €uros?
R: Segundo o somatório dos documentos apresentados como de receita que encontrei para o ano de 2006 a resposta é não. Encontrei documentos comprovativos de receitas globais no valor de 16.814.85 €.
16. No ano 2006 as despesas ascendem ao montante global de 17.816,27 €uros?
R: Segundo o quadro constante da fl. 557 dos Autos (Vol. 3.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos de despesa que encontrei para 2006, a resposta é não: encontrei documentos comprovativos de despesas no valor de 16.744, 91 €.
17. No final do ano 2006 havia um saldo positivo de 4.706,09 €uros?
R: Segundo os valores apresentados pelos Réus nos quesitos 15 e 16, a resposta é sim.
Segundo os valores encontrados por mim para os mesmos quesitos 15 e 16, a resposta é não. Em 2006, o saldo positivo, foi no montante de 69.94 €.
(…)
19. No ano 2007 as receitas efectivas foram de 14.831,21 €uros?
R: Segundo o quadro constante da fl. 937 dos Autos (Vol. 5.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos apresentados como de receita que encontrei para o ano de 2007 a resposta é não. Encontrei documentos comprovativos de receitas no valor de 15.391.45 €.
24. No ano 2007 as despesas ascenderam ao montante de 17.579,96 €uros?
R: Segundo o quadro constante da fl. 557 dos Autos (Vol. 3.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos de despesa que encontrei para o ano de 2007 a resposta é não. Encontrei documentos comprovativos de despesas no valor de 16.931, 17 €.
25. O saldo de 2007 foi negativo em 2.748,75 €uros?
R: Segundo os valores apresentados pelos Réus nos quesitos 19 e 24, a resposta é sim.
Segundo os valores encontrados por mim para os mesmos quesitos 19 e 24, a resposta é não: em 2007, o saldo foi negativo, em 1.539, 72€.
26. No ano 2008 as receitas ascenderam ao montante de 15.069,56 €uros?
R: Segundo o quadro constante da fl. 937 dos Autos (Vol. 5.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos apresentados como de receita que encontrei para o ano de 2008 a resposta é não. Encontrei documentos comprovativos de receitas no valor de 13. 699.67 €uros. Não encontrei as receitas referentes aos meses de Outubro e Novembro.
(…)
29. No ano 2008 as despesas ascenderam a 18.014,99 €uros?
R: Segundo o quadro constante da fl. 557 dos Autos (Vol. 3.º), a resposta é não: foram de 13. 147, 83 €.
Segundo o somatório dos documentos de despesa que encontrei para 2008, a resposta também é não. Encontrei documentos comprovativos de despesas no valor de 15. 286, 35 €uros.
30. No ano 2008 as despesas foram superiores às receitas em 2.945,43 €uros?
R: Segundo os valores apresentados pelos Réus nos quesitos 26 e 29, a resposta é sim.
Segundo os valores encontrados por mim para os mesmos quesitos 26 e 29, a resposta é não. Em 2008, as despesas foram superiores às receitas em 1. 586.68 €.
31. No ano 2008 ficou esgotado o saldo positivo transitado do ano 2007?
R: Segundo a pergunta dos Réus do quesito 25 o saldo do Ano de 2007 pode ter sido negativo em 2.748,75 €, pelo que não se entende vir-se agora a falar de um saldo positivo transitado de 2007.
De acordo com a resposta que dei no quesito 30, o saldo negativo em 1.539, 72 € com que terminou o Ano de 2007 (ver resposta ao quesito 25) foi recuperado no Ano de 2008, que terminou com um saldo positivo de 1. 586.68 €.
32. No ano 2009 as receitas foram no montante de 18.744,10 €uros?
R: Segundo os quadros constantes das fl. 1 587 e 1 589 dos Autos (Vol. 8.º), a resposta é não: a receita aí mencionada é de 21 624, 10 €.
Segundo o somatório dos documentos apresentados como de receita que encontrei para o ano de 2009 a resposta é não: as receitas efetivas no Ano de 2009 foram no valor de 24.307.52 €.
(…)
35. No ano 2009 as despesas ascenderam a 20.598,16 €uros?
R: Segundo os quadros constantes das fl. 1 587 e 1 589 dos Autos (Vol. 8.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos de despesa que encontrei para o Ano de 2009, a resposta é não: as despesas no Ano de 2009 totalizaram 19. 655.47 €.
(…)
37. A diferença de 1.854,06 €uros, agravou o saldo negativo transitado de 2008?
R: Por virtude da resposta aos quesitos 33 e 36, também não posso responder à pergunta deste quesito.
Todavia e de acordo com as respostas que dei aos quesitos 32 e 35, o Ano de 2009 terminou com um saldo positivo de 4.652. 05 €
38. No ano 2010 as receitas foram no montante de 20.075,50 €uros?
R: Segundo os quadros constantes das fls. 2 044 e 2 046 dos Autos (Vol. 11.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos apresentados como de receita que encontrei para o ano de 2010, a resposta é não: no Ano de 2010, as receitas foram no valor de 20.316. 64 €uros.
(…)
41. As despesas do ano 2010 ascendem a 20.159,96 €uros?
R: Segundo os quadros constantes das fls. 2 044 e 2 046 dos Autos (Vol. 11.º), a resposta é sim.
Segundo o somatório dos documentos de despesa que encontrei para o Ano de 2010, a resposta é não: para o ano de 2010, as despesas ascenderam a 18. 201.79 €uros.
42. Relativamente ao ano 2010 a diferença negativa entre receitas e despesas é de 84,46 €uros?
R: Segundo os valores apresentados pelos Réus nos quesitos 38 e 41, a resposta é sim.
Segundo os valores encontrados por mim para os mesmos quesitos 38 e 41, a resposta é não. Em 2010, as receitas foram superiores às despesas em 2. 114, 85 €.”.

IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da (in)existência de título executivo e sua (in)exequibilidade face ao objecto desta execução
Neste recurso está em causa a questão de saber se a sentença dada à execução consubstancia título executivo face ao concreto objecto da execução, nos termos do art. 703º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Civil, entendendo os apelantes de forma afirmativa, ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo.
Como decorre do disposto no art. 10º, nºs 4 e 5 do Cód. Proc. Civil, a acção executiva visa a implementação das providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação que lhe é devida e tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. A acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação que emerge do próprio título dado à execução e que o direito nele inscrito esteja definido e acertado.
O art. 703º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Civil elenca como títulos executivos “as sentenças condenatórias”.
Sentenças condenatórias serão não só as explicitamente condenatórias, como também as que apenas de forma implícita contenham uma imposição ao demandado de determinada responsabilidade ou de cumprimento de uma obrigação.
A doutrina e a jurisprudência maioritária vêm assumindo, também, a exequibilidade das sentenças proferidas em acções constitutivas das quais resulte implicitamente a imposição de uma obrigação – cfr., neste sentido, por todos, e com amplas referências doutrinais e jurisprudenciais, o Acórdão do STJ de 08/01/2015, relator Abrantes Geraldes (proc. nº 117-B/1999.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
Como se conclui neste aresto: “É da natureza do título executivo conter o acertamento do direito. Por isso, se perante o acto jurídico – maxime a sentença de onde emerge uma condenação implícita no cumprimento de uma obrigação - for possível concluir que aquela finalidade já se encontra assegurada, é de todo inútil a interposição de nova acção declarativa, sendo a mesma dotada de exequibilidade.”. Como esclarecem a este propósito, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial”, Vol. II, Almedina, 2020, p. 18, nota 18: “O facto de a sentença tornar segura, ainda que de modo implícito, a existência da obrigação basta para a sua exequibilidade”.
No caso dos autos, a sentença dada à execução foi proferida num processo especial de prestação de contas.
Como tem vindo a ser considerado pela jurisprudência, a acção especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação consagrado no art. 573º do Cód. Civil, sendo a obrigação de prestação de contas “estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (Artigo 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de credito ou de débito” - Luís Filipe Pires de Sousa, in “Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, 3ª edição, Almedina, 2023, p. 141.
A finalidade do processo de prestação de contas é, ainda seguindo o mesmo autor, in ob. cit., p. 207: “o apuramento do saldo resultante da receita e da despesa envolventes, com a subsequente condenação no pagamento do saldo apurado.” – cfr., ainda, art. 941º do Cód. Proc. Civil.
Aquele que exija a prestação de contas deve alegar, como causa de pedir, que tem direito a essa prestação de contas e que o demandado tem a obrigação de as prestar, envolvendo o pedido de prestação de contas, necessariamente, o pedido de condenação do obrigado no eventual saldo final (art. 941º, parte final, do Cód. Proc. Civil). Por isto, a acção de prestação de contas reveste a natureza de uma acção de condenação que segue a forma de processo especial, sendo a respectiva sentença condenatória – cfr., neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, in ob., p. 182 e 207; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit., p. 390, nota 1, e p. 399, nota 6; e, Acórdãos: do STJ de 16/12/1999, relator Garcia Marques (proc. nº 99A902); do TRC de 05/07/2000, relator Serra Baptista (proc. nº 1115/2000); do TRP de 26/09/2006, relator Cândido Lemos (proc. nº 0624521); e, do TRC de 14/05/2013, relator Henrique Antunes (proc. nº 9-B/1991.C1), todos, acessíveis em www.dgsi.pt.
Neste tipo de processo, é atribuída exequibilidade à sentença que aprove as contas, relativamente ao saldo que apresentarem, independentemente de uma expressa condenação – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit., p. 20, nota 20; e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit. p. 209; e Acórdãos: do STJ de 02/12/1993, relator Sousa Macedo (proc. nº 084242); do TRP de 26/09/2006, relator Cândido Lemos (proc. nº 0624521); e do TRE de 27/01/2022, relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário (proc. nº 706/04.5TBEVR-G.E1), todos, acessíveis em www.dgsi.pt.
Está em causa nestes autos a sentença proferida na acção de prestação de contas (que correu termos sob o nº 2221/11.1TBALM, no 3º Juízo do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada) que a executada/embargante, na qualidade de cabeça-de-casal da herança de seus pais, instaurou contra os ora exequentes/embargados, na qualidade de administradores de dois lotes de terreno em regime de compropriedade (sendo a mencionada herança proprietária de 1/10 avos de cada um daqueles imóveis), requerendo a prestação de contas da administração destes dois imóveis relativas aos anos de 2006 a 2010; constando no dispositivo daquela sentença: “Pelo exposto, e julgando que as contas não foram validamente prestadas pelos réus, recusa-se a aprovação das mesmas, antes se considerando que os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, e respectivos saldos são os que constam do relatório pericial, para o qual se remete.”
Tem sido ajuizado pela jurisprudência que, na interpretação das peças processuais - nomeadamente, decisões judiciais - são aplicáveis, por força do disposto no art. 295º do Cód. Civil, os princípios da interpretação das declarações negociais (comuns à interpretação das leis), valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no art. 236º, nº 1 do mesmo diploma legal, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes da peça processual, para o que se deve ainda lançar mão do princípio, aplicável aos negócios formais, do mínimo de correspondência verbal, isto é, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – cfr. art. 238º, nº 1 do Cód. Civil.
A este propósito, escreve-se no Acórdão do STJ de 01/07/2021, relatora Rosa Tching (proc. nº 726/15.4T8PTM.E1.S1), acessível em www.dgsi.pt: “II. Sendo a sentença um ato jurídico formal, regulamentado pela lei de processo e implicando uma objetivação da composição dos interesses nela contida, a sua interpretação deve ser feita de acordo com os critérios estabelecidos nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, ambos do Código Civil, ou seja, tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. III. Para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência bem como outras circunstâncias, mesmo posteriores à respetiva elaboração. IV. O pedido, a causa de pedir e os fundamentos de facto e de direito da sentença são importantes meios auxiliares da sua interpretação, na medida em que permitem retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar.”
De acordo com as regras de interpretação acabadas de enunciar, ressalta do teor do dispositivo da sentença oferecida como título executivo, que o tribunal ali decide aprovar os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, e respectivos saldos, que constam do relatório pericial, estando, pois, as partes obrigadas a respeitar esse apuramento/saldo.
Do mencionado relatório pericial (cfr. factos provados sob o nº 48), afere-se que, o saldo global final entre as receitas efectivas e as despesas realizadas nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 é positivo, no valor total de € 3.710,44. Ou seja, subtraindo o total das despesas suportadas naquele período de tempo com a administração dos imóveis em causa ao valor global das receitas efectivamente recebidas no mesmo período de tempo, obtém-se o saldo positivo de € 3.710,44. Por outras palavras, o valor total das receitas obtidas na administração dos aludidos imóveis naquele período de tempo excede em € 3.710,44 o valor total das despesas liquidadas nessa administração no mesmo período de tempo, a saber:
a) ano de 2006: saldo positivo de € 69,94 [receitas de € 16.814,85 e despesas de € 16.744,91] – cfr. respostas aos quesitos nºs 17., 15., 16., respectivamente, da perícia aludida no art. 48 dos factos provados;
b) ano de 2007: saldo negativo de € 1.539,72 [receitas de € 15.391,45 e despesas de € 16.931,17] - cfr. respostas aos quesitos nºs 25., 19., 24., respectivamente, da perícia aludida no art. 48 dos factos provados;
c) ano de 2008: saldo negativo de € 1.586,68 [receitas de € 13.699,67 e despesas de € 15.286,35] - cfr. respostas aos quesitos nºs 30., 26., 29, respectivamente, da perícia aludida no art. 48 dos factos provados;
d) ano de 2009: saldo positivo de € 4.652,05 [receitas de € 24.307,52 e despesas de € 19.655,47] – cfr. respostas aos quesitos nºs 37., 32., 35., respectivamente, da perícia aludida no art. 48 dos factos provados;
e) ano de 2010: saldo positivo de € 2.114,85 [receitas de € 20.316,64 e despesas de € 18.201,79] – cfr. respostas aos quesitos nºs 42., 38., 41., respectivamente, da perícia aludida no art. 48 dos factos provados;
f) efectuando o cálculo dos saldos finais dos anos enunciados em a) a e), obtemos o mencionado saldo global final positivo de € 3.710,44 [€ 69,94 - € 1.539,72 - € 1.586,68 + € 4.652,05 + € 2.114,85].
Ora, considerando:
(i) o concreto teor do dispositivo da sentença oferecida à execução (do qual não consta qualquer condenação expressa da executada/embargante/ora apelada no pagamento de uma quantia pecuniária);
(ii) a constatação de um apuramento de saldo global final positivo entre receitas e despesas (de € 3.710,44), que foi validado no dispositivo daquela sentença, e que afasta desde logo, por razões óbvias (receitas superiores às despesas), qualquer interpretação de uma condenação implícita da executada/embargante/ora apelada no pagamento de uma quantia pecuniária;
(iii) e, maxime, que a acção de prestação de contas foi intentada pela executada/embargante/ora apelada na qualidade de detentora do direito de exigir a prestação de contas contra os exequentes/embargados/ora apelantes na qualidade de obrigados a prestar contas [pelo que, de acordo com o disposto no art. 941º do Cód. Proc. Civil, nunca aquela poderia ser condenada no pagamento do eventual saldo negativo que viesse a ser apurado (o que, aliás, como resulta do enunciado em (ii) supra, nem sequer se veio a verificar, pois o saldo global final apurado é positivo)];
é cristalino que a sentença dada à execução não é dotada da concreta exequibilidade pretendida pelos exequentes/embargados/ora apelantes.
Acresce que, conforme se apura do invocado no Requerimento Executivo, os exequentes/apelantes nem sequer equacionam como quantia exequenda o valor do saldo global final (diferença entre o deve e o haver) apurado no relatório pericial referente à administração dos dois imóveis nos anos de 2006 a 2010 que foi aceite no dispositivo da sentença dada à execução, mas, antes, peticionam como quantia exequenda a comparticipação da executada/apelada “nas despesas comuns da propriedade designada por Campimar (correspondentes aos artigos Artigo … e …, Secção AK, sitos no Pinhal da Aroeira), no período abrangido pelo processo de prestação de contas”, liquidando a quantia exequenda por referência ao total das despesas daquela administração constantes do mencionado relatório pericial (no valor de € 86.816,69: soma das despesas globais anuais realizadas de 2006 a 2010 que foram indicadas no relatório pericial) e imputando à executada um décimo desse valor total (€ 8.681,67), sustentando, para tal, que “as despesas foram sempre suportadas em partes iguais pelos 10 (dez) compartes dos artigos … e …, Secção AK, sitos no Pinhal da Aroeira, a que respeitam as despesas supra indicadas”.
Ora, se a sentença em causa não é dotada de exequibilidade contra a executada/apelada quanto ao saldo global final na mesma apurada, como se viu, muito menos o é para servir de título executivo para pagamento de comparticipações daquela em despesas de administração comum.
Com efeito, o pagamento dessas comparticipações não constituiu objecto da acção de prestação de contas, nem sequer sobre as mesmas foi emitida qualquer apreciação e pronúncia do tribunal. E, não constituiu objecto da acção, porquanto legalmente, como se viu, o objecto da acção especial de prestação de contas é, apenas, o apuramento do saldo resultante da receita e da despesa envolventes, com a subsequente condenação no pagamento do saldo apurado, e não qualquer outro, nomeadamente, a obrigação de pagamento de despesas com a administração dos bens relativamente aos quais está em causa a prestação de contas.
Na verdade, e como se escreve no Acórdão do STJ de 16/02/2016, relator Sebastião Póvoas (proc. nº 17099/98.0TVLSB.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt, o processo especial de prestação de contas “não tem por escopo verificar um eventual incumprimento de contrato por uma das partes mas, tão somente, a apurar o montante das receitas e despesas que efectivamente foram cobradas ou efectuadas. / Daí que não tendo a despesa/pagamento sido efectivamente realizada, e tratando-se, se fosse caso, de despesa futura eventual não há que reflecti-la no cotejo de entradas e saídas na conta-corrente, irrelevando para efeito de apuramento de saldo. / Só se, e noutra sede, fosse declarada a obrigação da dívida peticionada e a mesma tivesse sido satisfeita, é que relevaria, como receita, mas em ulterior prestação de contas. / Não é, pois, nesta lide que a recorrente pode efectivar o direito de crédito que alega ter sobre os recorridos e que não exerceu previamente”.
No mesmo sentido, escreve Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit. p. 177-178, que: “A ação de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na ação de prestação de contas o valor ou a inscrição de receitas alegadamente efectivas e não de receitas virtuais. O disposto no Artigo 944º (apresentação das receitas e despesas em conta-corrente) não se compagina com a determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente, virtuais. (…) / Caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, deve o autor recorrer ao processo comum e não ao processo especial de prestação de contas.” – no mesmo sentido, cfr., ainda, A. Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in ob. cit. p. 389/390.
Em suma, repete-se e salienta-se, a sentença dada à execução não se pronuncia sobre a constituição, na esfera jurídica da executada/apelada, da obrigação de pagamento das comparticipações para as despesas comuns de administração dos imóveis, isto é, não contém, quer na sua fundamentação, quer no dispositivo, qualquer condenação (expressa ou implícita) da executada/apelada no pagamento daquelas comparticipações. A este respeito, são, ainda, de fazer duas observações que reforçam o entendimento a que vimos aludindo: (i) na “motivação” daquela sentença consta que: “(…) Não existe também controvérsia que a autora, em determinada altura, deixou de pagar a sua comparticipação, sobre os factos que estão na base dessa tomada de posição, porque marginais ao objecto deste processo, não iremos aqui tomá-los em conta, nem fazer a aferição sobre se é, ou não, legítima tal posição.”, do que se apreende que o tribunal afastou de forma expressa a pronúncia sobre se as aludidas comparticipações eram – ou não – devidas pela executada/apelada; (ii) nos factos provados sob o nº 6 daquela sentença consta: “A fim de suportar os gastos com as despesas de manutenção dos espaços de uso comum dos dois imóveis e, ainda, consumos de água e electricidade, os comproprietários deliberaram uma contribuição mensal fixa a pagar por cada um dos comproprietários, a que acresceriam outras comparticipações sempre que surgissem despesas extraordinárias” (factos provados sob o nº 8) – ora, no Requerimento Executivo nem sequer é indicada como quantia exequenda o valor da comparticipação mensal fixa ou extraordinária que ali ficou provado ter sido deliberado como obrigação dos comproprietários e que se encontraria em dívida pela executada/apelada, mas um décimo das despesas totais anuais, proporção esta, relativamente à qual não é feita nenhuma alusão na sentença (nem nos factos provados, nem na motivação, nem na fundamentação).
E, ao contrário do que parecem entender os apelantes, não está em causa a liquidez e exigibilidade da obrigação exequenda, mas, antes, um pressuposto processual prévio: a (in)exequibilidade da sentença oferecida à execução, ou seja, a sua (in)susceptibilidade de servir de título executivo para o cumprimento coercivo da concreta prestação pecuniária que os exequentes/apelantes reclamam por via da execução.
É que, não podemos aqui perder de vista que, determinando o fim da execução e definindo os seus limites, atenta a sua função documentadora da obrigação, o título executivo deve “definir de forma rigorosa o fim e os limites da execução, não sendo, por isso, permitido ao exequente apelar à relação causal ou a uma hipotética obrigação implícita para, através dessa via, procurar suprir as eventuais insuficiências ou imprecisões do título. Do mesmo modo, uma vez que a obrigação exequenda deve estar consubstanciada no próprio título, é irrelevante tudo aquilo que o exequente alegue no requerimento executivo e que extravase o âmbito do título.” - Marco Carvalho Gonçalves, in “Lições de Processo Civil Executivo, 2ª ed. revista e aumentada, p. 54-55.
Em suma, há que concluir pela verificação da falta de título executivo para a concreta execução instaurada, pelo que resta decidir pela manutenção da decisão recorrida quanto a esta matéria, julgando-se improcedente a apelação nesta parte.
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Da verificação dos pressupostos da condenação dos exequentes/embargados no pagamento de multa e de indemnização como litigantes de má-fé
A decisão recorrida condenou os exequentes/embargados como litigantes de má-fé, nos termos do art. 542º do Cód. de Processo Civil, com os seguintes fundamentos (por facilidade de exposição, a nota de rodapé no original será transcrita, entre parêntesis, no próprio texto):
“No caso sub judice, e analisados os autos, que dizer de Exequentes que instauram uma execução de sentença em que a Executada não foi condenada em qualquer quantia, nem da mesma se possa inferir tal condenação ainda que de forma implícita? Que dizer de Exequentes cujas contas não foram julgadas verificadas na acção de prestação de contas, tendo-se verificado inúmeras e graves irregularidades? Que dizer de Exequentes que cortaram a água ao alvéolo da ora Executada e lhe impediram o uso e fruição da sua propriedade? Que dizer de Exequentes que, na correspondência trocada e junta aos autos admitem várias graves irregularidades/ilegalidades na gestão (cfr. email de B ….. enviado a 03.02.2015 aos vários comproprietários e junto aos autos com a contestação – doc. 6)?
É assim manifesto que a conduta dos Exequentes se integra no disposto no nº 2, als. a), c) e d) 59 (Embora os requisitos constantes das várias alíneas do nº 2 do artº 542º do NCPC não sejam cumulativos, entendemos que a conduta dos Exequentes se integra em todas as alíneas referidas) do artº 542º do NCPC. E tal não pode ser desconhecido dos Exequentes uma vez que se encontram representados por advogado.
Assim, é forçoso concluir pela condenação dos Exequentes como litigantes de má fé, em multa e em indemnização à contraparte.”
Os apelantes insurgem-se contra este entendimento, invocando que não litigaram de má-fé.
Preceitua o art. 542º do Cód. Proc. Civil, no nº 1, que, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
Os comportamentos que a lei tipifica como integrando má fé são: a) dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento, de facto ou de direito, a parte não devia ignorar, ou seja, a parte deve ponderar a razoabilidade da pretensão, evitando-a se não houver fundamento sério para a mesma; b) alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa; c) omissão grave do dever de cooperação; d) instrumentalização manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com vista a impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão – nº 2 do art. 542º do Cód. Proc. Civil.
Como tem vindo a ser entendido, resulta do art. 542º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, que a má fé pode revestir: (i) um carácter substancial/material, que se relaciona com o próprio mérito da causa, e é inerente a uma actuação que se revele pelas condutas descritas nas alíneas a) e b) do preceito; (ii) um carácter instrumental, que se abstrai do mérito da causa, e é inerente a uma actuação subsumível às alíneas c) e d) do mesmo preceito. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem actuar com má fé instrumental, podendo, portanto, o vencedor da acção ser condenado como litigante de má fé – cfr. José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 196.
A litigância de má fé (nas suas vertentes material e instrumental) pressupõe uma actuação, em termos da intervenção na lide, dolosa ou com negligência grave (de tal modo grave que, sendo próxima de uma actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reacção punitiva), consubstanciada, objectivamente, através da ocorrência de alguma das situações previstas numa das alíneas do art. 542º, nº 2 do Código de Processo Civil.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a densificar a litigância de má fé, apontando-se, de forma exemplificativa e para o que aqui releva, os seguintes Acórdãos (todos, acessíveis em www.dgsi.pt):
- “(… ) a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.” - Acórdão de 11/12/2003, relator Quirino Soares (proc. nº 03B3893);
- a defesa intransigente e reiterada pelo recorrente de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples expediente para protelar a decisão denegadora da razoabilidade da sua posição, pois, de contrário, todo aquele que perde pode, só por isso, incorrer em condenação como litigante de má fé - Acórdão de 02/02/2006, relator Araújo Barros (proc. nº 05B3425);
- a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei não implica por si só, em regra, a qualificação de litigância de má fé na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos, entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, inter alia porque, pela própria natureza das coisas, a certeza jurídica é meramente tendencial - Acórdão de 04/12/2003, relator Salvador da Costa (proc. nº 03B3909);
- a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º, nºs 1 e 2 do CPC. Todavia, se não forem observados, por negligência ou culpa grave, os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má fé - Acórdão de 13/01/2015, relator Fonseca Ramos (proc. nº 36/12.9TVLSB.L1.S1);
- a litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se, ainda, que a parte tenha actuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele - Acórdão de 18/02/2015, relator Silva Salazar (proc. nº 1120/11.1TBPFR.P1.S1);
- a condenação como litigante de má fé exige o dolo ou uma negligência grave, o que não se verifica quando estejamos perante a construção de uma tese errada - Acórdão de 11/12/2014, relator Távora Victor (proc. nº 728/09).
Do que apreendemos da decisão recorrida, o tribunal a quo, em sede de litigância de má-fé, “censura” aos exequentes:
(i) instaurarem a execução com base em sentença que não constitui título executivo face ao objecto da execução;
(ii) as contas da administração dos imóveis não terem sido julgadas verificadas na acção de prestação de contas;
(iii) terem “cortado” a água ao alvéolo da executada e impediram o respectivo uso e fruição da sua propriedade;
(iv) admitirem, “na correspondência trocada”, várias graves irregularidades/ilegalidades na gestão.
Ora, perante este circunstancialismo, afigura-se-nos que a conduta processual dos exequentes não consubstancia uma conduta integradora do conceito legal de má fé, definida no art. 542º, nº 2 do Cód. Proc. Civil e com o sentido legal e jurisprudencial acima delineado.
Na verdade, relativamente ao enunciado em (i), o que temos evidenciado nos autos é que os exequentes sustentaram o entendimento jurídico que a sentença proferida na acção de prestação de contas consubstanciava título executivo para a concreta execução que instauraram, entendimento esse, desconforme com a correcta interpretação da lei e com o conteúdo daquela sentença (como vimos), o que, por si só, não implica a qualificação da respectiva conduta como litigância de má-fé, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que acima citámos. Com efeito, se é forçoso reconhecer que os exequentes, ao configuraram a execução e ao deduziram o seu pedido da forma que o fizeram, omitiram, na sua actuação, deveres de cuidado e de indagação dos fundamentos de facto e de direito da pretensão que propugnavam (estando, como estavam, representados por Ilustre Advogada), agindo, por isso, com negligência (simples), afigura-se-nos que tal omissão de diligência não chega a atingir um grau tal que a negligência deva ser configurada como grave, de modo a qualificar a conduta como litigância de má-fé.
Por seu turno, o enunciado de (ii) a (iv) extravasa o objecto da execução e destes embargos, respeitando à administração dos bens em regime de compropriedade e à acção de prestação de contas conexa com tal administração.
Donde, tal factualidade (independentemente de ser verdadeira/justificada/legítima ou não) não pode ser valorizável para efeitos de condenação dos exequentes como litigantes de má-fé pela instauração da execução com base na sentença condenatória proferida na acção que decorreu entre as partes e que terminou com um dispositivo em que foram validadas contas daquela administração, pese embora com referência aos valores encontrados pelo Sr. Perito que realizou a perícia.
Impõe-se, assim, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou os exequentes como litigantes de má fé, julgando-se procedente a apelação nesta parte.
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As custas devidas por esta apelação são da responsabilidade dos apelantes e da apelada, na proporção dos respectivos decaimentos – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência:
a) manter a decisão recorrida quanto à procedência dos embargos de executado, por falta de título executivo, e consequentes absolvição da executada do pedido executivo e extinção da execução, com todas as legais consequências, nomeadamente o imediato levantamento de todas e quaisquer penhoras;
b) revogar a decisão recorrida na parte em que condenou os exequentes como litigantes de má fé e no pagamento da multa de 5 (cinco) UCs e da indemnização à executada no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), absolvendo-se os exequentes deste pedido.
Custas pelos apelantes e pela apelada, na proporção dos respectivos decaimentos.
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Lisboa, 11 de Julho de 2024
Cristina Silva Maximiano
Diogo Ravara
Ana Mónica Mendonça Pavão