OBJECTO DO LITIGIO
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Sumário

I – A identificação do objecto do litígio afere-se em função da identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir, cabendo ao autor o ónus de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formular o pedido.
II - A causa de pedir cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, logo, do objecto do processo, pelo que deve conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter.
III – Ocorre ineptidão da petição inicial por falta de indicação da causa de pedir, quando se detecta uma omissão do núcleo essencial, ou seja, quando não tenham sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, residente, ….. Funchal intentou contra B, administradora de insolvência, com sede profissional à Av…, T. da Marinha, … Seixal acção declarativa de condenação, com processo comum em que formulou os seguintes pedidos:
a) A declaração de anulação da escritura de compra e venda de 26/09/2016 em que compareceu como outorgante a ré B por preterição de formalidades essenciais, como exercício do respectivo direito legal de preferência à arrendatária da furna de 25m2, a Amoforte, ou erro sobre o objecto;
b) A comunicação à senhora conservadora do Registo Predial do Funchal, para que esta determine a anulação da inscrição a favor da Tremel Investments Llc, com base na Apresentação mil trezentos e sessenta e um, de dois e dezasseis barra zero sete barra dezoito, assim repristinando a apresentação oitocentos e quarenta e nove, de dois mil e um barra quatro barra zero um, a favor do A.;
c) A determinação de envio de um ofício ao Banco de Portugal denunciando o incumprimento da obrigação inscrita na Instrução n.º 27/2012, de 17 de Setembro, entretanto alterada pela Instrução n.º 56/2012, ambas do Banco de Portugal, por violação, pelas aludidas partes outorgantes, da comunicação de operações com o exterior que impliquem verbas superiores a 100 mil euros.
d) Se oficie à Comissão de Acompanhamento dos Administradores Judiciais sobre a eventual conduta da Administradora de Insolvência Maria ……, ora ré.
Alegou, para tanto, o seguinte (cf. Ref. Elect. 49540004):
- O Autor é (ou foi) proprietário do Ilhéu da ..., também chamado Ilhéu de …, sito a 70 metros da área marítima adjacente, à cidade do Funchal, na Ilha da Madeira, onde tem domicílio;
- Este Ilhéu fez parte do Estado Português, durante a Monarquia, tendo sido destacado do território pelo rei D. Carlos, que, em 1903, através de carta régia o alienou, tendo sido adquirido por um cidadão madeirense, que depois o vendeu a um cidadão inglês - família … – que durante 97 anos manteve na sua esfera jurídica o direito de propriedade, em situação destacada do território português e a quem, no ano de 1999, o autor adquiriu o referido direito de propriedade;
- O autor foi declarado insolvente pelos Tribunais do Estado Português, processo número 25694/15.9T8LSB, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Instância Central – Secção do Comércio, situação que se mantém;
- A importância do Ilhéu da ... ultrapassa as meras questões jurídicas de fronteira, tendo sido nesse Ilhéu que desembarcaram os primeiros navegadores que procuraram aquelas terras e que foram João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, o que lhe confere um significado histórico e simbólico que são únicos;
- Apesar do Ilhéu da ... ter sido registado na Conservatória do Registo Predial do Funchal em 1937, tal registo não tem força constitutiva, sendo aquele Ilhéu território exterior ao território português, apesar de estar inserido no domínio marítimo português;
- Foi reconhecido juridicamente, como direito autónomo, que inclui a posse e o domínio, pela carta régia do rei D. Carlos em 20 de Novembro de 1903, também assinada pelo Ministro do Governo;
- Em momentos de grande tensão militar com a Ilha da Madeira, no referido Ilhéu acamparam tropas militares inglesas em 1801 pelo general Beresford, que aí procederam a enforcamentos em nome da pureza das leis da guerra;
- O Ilhéu não pertence ao território português da Ilha da Madeira nem à soberania de Portugal geologicamente nem juridicamente;
- Não pertence à soberania fiscal nem a outras soberanias, sub soberanias e outras titularidades do Estado português;
- O Ilhéu pertence exclusivamente ao seu proprietário, que é o autor desta acção, como se pode confirmar pela Torre do Tombo que lhe confirma a carta;
- Além disso, o autor é deficiente, faculdade que invocou, em vão, no processo executivo;
- Em sede do processo de insolvência, a R. Administradora de Insolvência promoveu a venda do prédio urbano referenciado, por escritura de compra e venda exarada a 26 de Setembro de 2017, - e que só muito mais tarde o A. obteve dela conhecimento - no “Cartório Notarial de Carla …..”, NIF 213 386 771, sito à Rua das Pretas, 33, r/c A, 9000-049 Funchal;
- Na referida escritura interveio como procurador do Segundo Outorgante (procurador Nuno ……) na referida qualidade, de uma sociedade norte-americana denominada “Tremel Investments Llc”, constituída segundo as leis do Estado de Delaware, um conhecido paraíso fiscal;
- Esta sociedade, para os devidos e legais efeitos, mormente fiscais, é considerada como entidade equiparada estrangeira tal como consta da escritura, e está representada por uma outra, denominada Shipley – Comércio Internacional, Unipessoal, Lda. (Zona Franca da Madeira), NIPC 511 150 202;
- A “Tremel Investments Llc”, precisamente por via da aludida representação, não podia praticar, em nome próprio e directamente, actos jurídicos em território português, senão por via da aludida Shipley, o que não aconteceu na referida escritura de compra e venda, pelo que é parte ilegítima na referida escritura, determinando a sua nulidade;
- Além disso, nessa escritura, as partes outorgantes não estão devidamente identificadas, não constando o Número de Identificação Fiscal, nem o Número de Registo da Tremel; a residência do autor está incorrecta; o bem não estava devoluto de pessoas e bens, como se consignou, e sobre ele incide um ónus resultante de um arrendamento a uma associação de direito privado, denominada Amoforte – Associação dos Amigos de …, constituída no ano de 2006 e outorgante do dito arrendamento desde esse mesmo ano;
- A arrendatária jamais foi notificada para o exercício do seu direito legal de preferência, o que, também por esta via, torna a venda nula;
- A escritura não refere o modo de pagamento do preço e a transacção, pelo montante de 550.000,00 €, não foi comunicada ao Banco de Portugal, que exige tal comunicação para operações financeiras com entidades estrangeiras superiores a 100.000,00 €;
- A ré Administradora Judicial ter-se-á enganado e enganado o comprador, pensando estar a vender um ilhéu quando, de acordo com a descrição predial, o objecto da venda era uma furna;
- E de acordo com a descrição predial em vigor à data de 2003, a furna tinha apenas 25 m2 e não os 173 m2 aludidos na escritura;
- São requisitos gerais da impugnação pauliana a existência de um crédito, a anterioridade deste face ao acto impugnado (escritura no âmbito do processo de insolvência), que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação de um direito;
- Julgamos estar em presença do último requisito da impugnação pauliana que é o da má-fé, requisito exigido se estivermos perante um acto oneroso, como é o caso pois a ré tinha consciência do prejuízo que o acto causava ao autor.
A ré deduziu contestação suscitando as seguintes excepções (cf. Ref. Elect. 5037540):
² Ilegitimidade da ré – a ré foi nomeada administradora da insolvência, por sentença de 13 de Maio de 2016, transitada em julgado, no processo n.º 25694/15.9T8LSB, em que o autor foi declarado insolvente; a sentença foi publicada no portal Citius, foram apreendidos bens para a massa insolvente, entre outros, o prédio urbano sito na …, Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º ..., São Pedro, inscrito na matriz sob o artigo ..., que, no âmbito da liquidação ocorrida no processo, foi vendido a Tremel Investments LLC, através de escritura que foi junta ao processo de insolvência e de que todos foram notificados, incluindo o autor, tendo o processo sido encerrado por decisão de 16 de Janeiro de 2020, também notificada ao autor, que, por diversas vezes, interveio pessoalmente nos autos; a ré interveio no exercício de funções públicas e a venda apenas pode ser anulada no respectivo processo, para além de ser necessária a presença do comprador; o autor não alegou quaisquer requisitos da impugnação pauliana, como qual o crédito que detém sobre a ré, qual o bem que esta vendeu com o intuito de o não satisfazer ou o direito a que se arroga;
- Ineptidão da petição inicial - não dispondo o autor de qualquer crédito sobre a ré, que não vendeu qualquer bem pessoal e não resultando dos autos a existência de qualquer direito do autor, nem a prática de acto doloso, não se verificam os requisitos da impugnação pauliana e, estando em causa uma venda judicial, a sua anulação segue as regras da anulabilidade, a deduzir no prazo de um ano;
- Caducidade do direito de acção – o autor foi notificado da venda em 7 de Outubro de 2017 e do encerramento do processo, em 16 de Janeiro de 2020 e a acção foi proposta em 2022, pelo que precludiu qualquer direito do autor.
No mais, a ré impugnou os factos alegados na petição inicial, referindo que o facto de o prédio ter pertencido à Coroa portuguesa e ter sido vendido não o transforma em território estrangeiro e concluiu pela procedência das excepções deduzidas e consequente absolvição da instância ou, assim se não entendendo, pela improcedência da acção e absolvição do pedido.
Em 20 de Fevereiro de 2023 foi proferido despacho a convidar o autor a juntar aos autos certidão da escritura cuja anulação/nulidade peticiona e certidão processual dos factos ocorridos em processo judicial (cf. Ref. Elect. 53085923).
Em 6 de Março de 2023, o autor juntou o auto de adjudicação do prédio em processo de insolvência e a escritura pública lavrada em 26 de Setembro de 2017 (cf. Ref. Elect. 5137624).
Em 10 de Abril de 2023 foi proferido despacho de convite ao autor para se pronunciar sobre as excepções deduzidas e às partes, para se pronunciarem sobre o valor a atribuir à causa, que nada vieram dizer (cf. Ref. Elect. 53306051).
Em 24 de Maio de 2023 foi proferida decisão que fixou o valor da causa em 550 000,00 € e, simultaneamente, declarou o Juízo Local Cível do Funchal incompetente, em razão do valor, para a apreciação da causa e determinou a sua remessa ao Juízo Central Cível do Funchal (cf. Ref. Elect. 53618751).
As partes foram ouvidas sobre a dispensa da realização a audiência prévia, nada tendo dito, e em 3 de Março de 2024 foi proferida decisão que julgou verificada a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial e absolveu a ré da instância (cf. Ref. Elect. 54940691).
Inconformado com esta decisão, dela veio o autor interpor o presente recurso, cuja motivação conclui do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 5722306):
I- O Recorrente tem todo o direito de ver a sua pretensão de impugnação pauliana do acto jurídico celebrado pela R., ora Recorrida, (venda de um imóvel do Recorrente no âmbito de um processo de insolvência), ser julgada até final.
II- A qualificação e enquadramento jurídicos dos pedidos do Recorrente na figura da impugnação pauliana, não constitui motivo suficiente para que o Mmº. Juiz a quo julgue inepta a petição inicial com a consequente absolvição da instância da R.
III- Porque não há contradição entre pedidos e causa de pedir.
IV- Porque os pedidos nem sequer são subsidiários.
V- Porque não há vício insuperável na forma como a questão a decidir foi colocada à apreciação do juiz a quo.
VI- O Mmº. Juiz a quo podia e devia ter lançado mão do poder-dever que lhe confere o art.º 6.º do CPC e, oficiosamente, solicitar a intervenção de terceiros, enquanto incidente da instância regulado nos artigos 311.º e ss. do Código de Processo Civil (CPC) que, no caso sub júdice, seria chamar à lide, a título de intervenção principal provocada, a TREMEL INVESTMENTS LLC ou sua representante “SHIPLEY – COMÉRCIO INTERNACIONAL, UNIPESSOAL, LDA (ZONA FRANCA DA MADEIRA).
VII- Se considerasse ininteligível a PI, ao abrigo dos artigos 6.º e 7.º do CPC, o Mmº. Juiz a quo podia e devia ter convidado o A. ao aperfeiçoamento do articulado.
VIII- A reforma do processo civil veio permitir ao juiz a opção por soluções que privilegiem aspectos de ordem substancial, em detrimento das questões de natureza meramente formal.
IX- O dever de gestão processual é instrumental relativamente à garantia de acesso aos tribunais e de obtenção de uma resolução do litígio em prazo razoável (nº 4 do artigo 20º da Constituição e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
X- O saneador-sentença está ferido de contradições quando diz que o A. não formula pedidos e depois sustenta que não é pela via da ação pauliana que o A. deveria formular os seus pedidos.
XI- O A. tinha na sua mão duas opções igualmente admissíveis, em termos processuais e substantivos: O recurso à acção de Declaração de Nulidade (art. 605º do CC) ou a Acção Pauliana (arts. 610º e ss. do CC).
XII- Tal opção decorre do disposto no art. 615º, nº 1 do CC, onde o legislador quis expressamente afastar a aplicação do princípio da subsidiariedade da Impugnação Pauliana relativamente à Declaração de Nulidade.
XIII- E, nessa decorrência, nada impedia o Autor de optar por deduzir a sua pretensão fundada – em exclusivo – na Impugnação Pauliana, alegando que os negócios jurídicos que pretendia impugnar (venda do bem no âmbito do processo de insolvência) não deixavam também de ser nulos, desde que alegasse, como alegou, os demais requisitos da Impugnação Pauliana e, formulasse, como formulou, de uma forma cumulativa, os pedidos de nulidade dos negócios jurídicos impugnados com os inerentes efeitos jurídicos.
XIV- Tendo-se invocado as normas legais da impugnação pauliana, face ao estatuído no artº 664º do CPC nada impede que, perante um erro de qualificação jurídica dos efeitos pretendidos pelo autor, o juiz declare a ineficácia do contrato, em vez da pedida anulação, não ocorrendo, por isso, ineptidão da petição inicial.
XV- Quando situações semelhantes à que se encontra em apreço no presente recurso ocorrem, o Juiz titular do processo deve proceder à correcção oficiosa do pedido. Nesse sentido existe a pronúncia da jurisprudência (...) no âmbito do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça (...).
XVI- A douta decisão em apreço violou o disposto nos artºs. 6.º, 7.º e 193º. do C.P.C..
Termina pedindo a procedência da apelação e consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determine o prosseguimento da instância.
A ré/recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 5752658).
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
De notar, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
Assim, perante as conclusões da alegação do autor/recorrente há que apreciar se se verifica uma situação de ineptidão da petição inicial.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A decisão recorrida absolveu a ré da instância por considerar que se verifica a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, que fundamentou nos seguintes termos:
“Nos presentes autos o autor pede que se anule a escritura de compra e venda de 26.09.2017, exarada a fls. 24 a 26 do Livro 34-C do Cartório Notarial Privado do Funchal, da Notária Cristina ….., pela qual a Massa Insolvente de A, representada pela sua administradora, aqui autora, vendeu à sociedade “Tremel Investmets LLC”, pelo preço de €550.000,00, o prédio urbano localizado no Molhe da ..., na freguesia de São Pedro, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o nº ..., pedindo ainda que se anule a inscrição a favor daquela adquirente no registo predial.
Para fundamentar o seu pedido o autor invoca a verificação dos requisitos da impugnação pauliana, previstos no art.º 610º do Código Civil.
Os pressupostos da impugnação pauliana são assim os seguintes:
- a existência de um crédito;
- a prática, pelo devedor, de um ato que não seja de natureza pessoal, que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- a anterioridade do crédito relativamente ao ato ou, se o crédito for posterior, ter sido o ato dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, ou seja com a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.
Ora, na petição inicial não são alegados os factos essenciais que permitam preencher os referidos requisitos da invocada impugnação pauliana, nomeadamente a existência de um crédito do autor sobre a ré, inexistindo causa de pedir.
Acresce que, a impugnação pauliana nunca poderá ter os efeitos pretendidos pelo autor ao peticionar a anulação da referida escritura de compra e venda
“A impugnação pauliana não é uma ação de anulação, mas sim uma ação onde se faz valer apenas um direito do crédito do Autor.
O ato impugnado não pode ser, na ação pauliana, anulado com regresso ao património do alienante” – Ac. do TRP de 04.11.1997, proc. 97A657, acessível in www.dgsi.pt..
A petição inicial apenas contém conclusões genéricas, sem que exista sequer um principio de alegação factual que permita determinar o aperfeiçoamento daquele articulado, no que respeita a factos suscetíveis de demonstrar e/ou preencher os requisitos da impugnação pauliana.
Embora não formalize o pedido de nulidade da referida escritura, o autor também alega que esta é nula em virtude de a ré ter enganado o comprador e de a sociedade adquirente não se mostrar devidamente representada.
Dessa forma, o autor pretenderia a nulidade de uma escritura de compra e venda sem demandar o comprador e o vendedor, sendo manifesto que a ré não é sujeito da relação material controvertida configurada pelo autor, sendo parte ilegítima, sendo necessariamente absolvida da instância.
Assim, atenta a falta de causa de pedir conclui-se que a petição inicial é inepta, considerando o disposto nos artigos 186º n.º 1 e 2 al. a), 278º n.º 1 b), 552º, nº 1, al. d), 576º n.º 1 e 2 e 577º al. b), todos do Código de Processo Civil.
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DECISÃO.
Face ao exposto, julgo verificada a exceção da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, absolvendo-se, consequentemente, a ré da instância.”
Do conteúdo da decisão transcrita afere-se que o Tribunal a quo julgou inepta a petição inicial pela seguinte ordem de razões:
i. O autor formulou um pedido de anulação da escritura de compra e venda celebrada em 26 de Setembro de 2017, que teve por objecto o prédio urbano identificado nos autos, em que interveio a ré, como administradora da massa insolvente de A e, como adquirente, a sociedade Tremel Investments LLC;
ii. O pedido de anulação foi sustentado no instituto da impugnação pauliana;
iii. O autor não alegou factos concretos que integrem os diversos requisitos da impugnação pauliana, desde logo, a existência de um seu crédito sobre a ré;
iv. A impugnação pauliana não determina a anulação do acto, efeito que em concreto foi pedido pelo autor;
v. Não existe um mínimo de factos alegados que sustentem o pedido e que permita o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, pelo que, na falta de indicação de causa de pedir, a petição é inepta;
vi. O tribunal recorrido referiu ainda que o autor não formalizou um pedido de nulidade da escritura, embora tenha referido que é nula por a ré ter enganado a sociedade compradora e por esta não estar devidamente representada, não tendo sequer demandado o comprador e não sendo a ré sujeito da relação material em causa, que sempre teria de ser absolvida da instância, por ilegitimidade.
O apelante insurge-se contra esta decisão com os seguintes argumentos:
- Ao longo do seu articulado identificou a vendedora e a compradora e ainda que se entenda que não demandou quem deveria ter demandado, sempre o Tribunal, ao abrigo dos princípios da cooperação, da economia processual e adequação formal, deveria ter convidado ao aperfeiçoamento do articulado ou, oficiosamente, lançado mão da figura jurídica da intervenção de terceiros;
- O Tribunal entra em contradição quando afirma que o autor não formalizou o pedido de nulidade da escritura, quando este é o seu primeiro pedido, para além de, simultaneamente, referir que a impugnação pauliana não pode conduzir à anulação da escritura;
- Apenas ocorre ineptidão da petição inicial quando a contradição implica verdadeira ininteligibilidade do pedido, sucedendo que, neste caso, percebe-se claramente que o autor pretende valer-se da impugnação pauliana, pelo que o pedido é perceptível e enquadrável na tipicidade da acção pauliana;
- Nada impede a dedução simultânea da impugnação pauliana relativamente à venda do bem no processo de insolvência e da sua nulidade.
É sabido que a identificação da acção ou a determinação do objecto do litígio afere-se em função da identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir - cf. art. 581º, n.º 1 do CPC.
O art. 552º do CPC, nas alíneas d) e e) do respectivo n.º 2, impõe ao autor o ónus de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e o de formular o pedido.
Ora, “[] o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-04-2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1[2].
O pedido corresponde ao efeito jurídico que se pretende obter com a acção e, como tal, circunscreve o âmbito da decisão final, pois que desenha “o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir” (cf. art. 609º, n.º 1 do CPC) – cf. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 201.
O pedido abrange dois elementos: uma pretensão material (afirmação de um interesse juridicamente tutelado, ou seja, de um direito subjectivo) e uma pretensão processual (solicitação de uma actuação judicial determinada) – cf. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, IIº vol., 1987, pág. 358.
O pedido corresponde ao objecto da acção e o autor deve enunciá-lo na conclusão da sua petição inicial, peticionando ao Tribunal uma concreta providência, na qual verterá o efeito jurídico que pretende obter. A pretensão tem de ser concreta e determinada e o autor deve indicar o tipo de tutela que visa alcançar - cf. João de Castro Mendes, op. cit., Iº vol., pág. 67.
Mas aquele que dirige uma pretensão ao Tribunal terá ainda de expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”, que assume uma função individualizadora do pedido e, como tal, do objecto do processo – cf. art. 581º, n.º 4 do CPC.
A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessários à procedência da acção ou apenas aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo. Por isso, há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido – cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, 1981, pág. 351.
O art.º 5º, n.º 1 do CPC impõe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.
Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
Distintos dos factos principais e dos complementares, são os factos instrumentais, que não integram a causa de pedir, ou seja, são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir, são meros factos probatórios, que, como tal, estão fora do ónus de alegação – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 48-54; Professor Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 70.[3]
E como se referiu no acórdão desta Relação de 22-01-2019, processo n.º 14021/17.0T8LSB.L1, “o Autor tem, assim, o ónus de alegar e provar aqueles factos que correspondem à situação de facto prevista na norma em que baseia a sua pretensão. Daqui resulta que a causa de pedir deverá ser estruturada de acordo com a interpretação do direito substantivo aplicável e em harmonia com a previsão normativa, o que significa que os factos constitutivos essenciais integradores da causa de pedir devem ser aferidos caso a caso, segundo um critério funcional que tenha em consideração o efeito pretendido pelo autor dentro da norma legal invocada. Isto é, o objecto da acção define-se através da harmonização entre pedido e causa de pedir, sendo este o efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção.”
Dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC: “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.”
De acordo com o seu n.º 2 “Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
Decorre do acima expendido, que a causa de pedir implica a alegação não de um facto jurídico em abstracto, mas sim “um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na qualificação legal” e é esse facto, ou esses factos, que a petição deve dar a conhecer - cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, pág. 370.
Antunes Varela, Bezerra e Sampaio e Nora definem a causa de pedir como o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, pelo que, se o autor não mencionar esse facto concreto, a petição será inepta, assim como o será se se limitar a uma indicação vaga e genérica dos factos – cf. art. 581º, n.º 4 do CPC; Manual de Processo Civil, pp. 234-235.
Uma petição inicial deficientemente elaborada poderá inquinar irremediavelmente o êxito da acção.
Dado que o pedido é um elemento fundamental da instância processual, a petição será inepta se, através dela, não for possível descortinar o tipo de providência que o autor visa alcançar ou o efeito jurídico que pretende obter.
Assim, o pedido deve ser formulado de tal modo que possa ser compreendido pelo réu e pelo juiz, pois que só assim a decisão judicial a proferir irá resolver aquele concreto conflito de interesses, daí que o pedido não possa ser deduzido em termos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros, pois que o réu e o tribunal não podem ser colocados perante uma situação em que terão de «adivinhar» a vontade real do autor.
Assim, como refere António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Volume I, 1997, pág. 111:
“Quanto ao réu, só pode exercer efectivamente o contraditório se for confrontado com uma pretensão cujos contornos e alcance resultem com imediatividade da petição inicial, sem necessidade de conjecturar acerca da verdadeira intenção do autor quando resolver solicitar a intervenção judicial; no que ao juiz concerne, a clareza e a inteligibilidade da tutela solicitada visam evitar, em todas as fases processuais, mas fundamentalmente na sentença final, incertezas quanto ao objecto da acção no que respeita à forma de tutela pretendida pelo autor (art. 661º).”
A ininteligibilidade do pedido que determina a ineptidão da petição é aquela que se apresenta de tal modo grave que impede que se identifique o direito invocado e o meio de tutela adequado, e não quando se está perante situações menos graves de um pedido meramente deficiente susceptível de ser cabalmente delineado através da leitura de petição inicial.
Tal como o pedido, a causa de pedir, para além de dever ser formulada, deve ser inteligível.
Haverá ineptidão da petição inicial por falta de indicação de causa de pedir, quando ocorre uma omissão do seu núcleo essencial, ou seja, quando não tenham sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa. Assim, os factos omitidos devem ter a qualidade da essencialidade – cf. Rui Pinto, op. cit., pág. 316.
Note-se que “a falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta do objecto do processo, constitui nulidade de todo ele, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido é formulado ou a causa de pedir é indicada de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos.” – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 353.
Estes autores alertam ainda para a necessidade de distinguir a ineptidão da petição da inviabilidade ou improcedência, ou seja, uma coisa é a contradição lógica entre o pedido claramente deduzido e a causa de pedir perfeitamente indicada e outra distinta é a inconcludência jurídica, isto é, a alegação de uma causa de pedir que não permite o efeito jurídico pretendido, por não preenchimento da previsão normativa, o que constitui causa de improcedência da acção – cf. op. cit., pp. 354-355.
Por outro lado, tem sido defendido que insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não torna, de imediato a petição inepta, podendo apenas contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-05-2017, processo n.º 5484/15.0T8FNC.L1-2:
“Já salientava ALBERTO DOS REIS […] que: “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente... Quando a petição, sendo suficiente quanto... à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga”.
É que, como refere este autor, “Podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”.
Entende-se nesta conformidade, que haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir […]
Este entendimento enquadra-se, é certo, com o estatuído no nº 3 do citado artigo 186º do CPC, já que mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa petendi – o que pode indiciar uma certa imperfeição, prolixidade, confusão ou incompletude da petição - tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante tais deficiências, compreendeu a pretensão do autor e as consequências que dela se pretende retirar.”
A idoneidade do objecto da acção implica a indicação e inteligibilidade da causa de pedir e do pedido, bem como a existência de um nexo lógico formal não excludente entre aqueles dois termos da pretensão, de modo a permitir um pronunciamento de mérito positivo ou negativo.
Não se verificará tal idoneidade quando:
“a) - não seja indicado qualquer efeito-prático jurídico pretendido;
b) - seja indicado um efeito pretendido em termos ininteligíveis ou tão vagos que, mesmo com o recurso aos fundamentos da acção, não permitam formular qualquer juízo de mérito positivo ou negativo;
c) - não sejam alegados os factos estruturantes da causa de pedir;
d) - sejam alegados meros conceitos de direito ou factualidades abstractas que não permitam sequer reconduzir o julgado a uma situação de facto real, em termos de evitar mais tarde a repetição de causas idênticas;
e) - seja alegada uma mole de factos sem qualquer leitura possível, positiva ou negativa, na óptica do pedido (ininteligibilidade de facto), ou que não permitam descortinar um quadro normativo aplicável (ininteligibilidade de direito), nomeadamente quando, tratando-se de causa de pedir complexa, esta se mostre de tal modo truncada que não se divise como dali possa decorrer o efeito pretendido;
f) - ocorra uma relação de exclusão formal recíproca entre a causa de pedir invocada e o pedido, entre duas causas de pedir ou entre vários pedidos cumulados, que se traduza num dizer ou desdizer simultâneos. Em qualquer das situações enunciadas, o objecto da acção será manifestamente inidóneo para uma apreciação de mérito []” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1-06-2010, processo n.º 405/07.6TVLSB.L1-7.
Verificada, pois, qualquer uma das situações enunciadas, nomeadamente a falta de alegação dos factos estruturantes da causa de pedir, o objecto da acção será manifestamente inidóneo para uma apreciação de mérito, implicando a ineptidão da petição inicial, reconduzível a uma nulidade insuprível de todo o processo, o que constitui excepção dilatória determinativa, mesmo oficiosamente, da absolvição do réu da instância.
Como tal, e em consonância com o acima expendido, a causa de pedir tem de ser concretizada mediante a alegação de factos ou circunstâncias concretas e individualizadas, e, embora o deva ser, não tem necessariamente de ser qualificada juridicamente, pois que esta caberá ao julgador efectuar.
Na primeira parte das suas alegações de recurso, o autor/apelante abordou a menção efectuada pelo tribunal recorrido quanto à falta de dedução de um pedido de nulidade da escritura com base no engano de que a compradora teria sido vítima e na falta de representação desta e por não ter sido demandada a compradora, argumentando que, tendo identificado ao longo da petição inicial quem interveio na escritura como vendedor e comprador, estava o Tribunal obrigado a convidar ao aperfeiçoamento do articulado ou a, oficiosamente, fazer intervir na acção quem nesta devesse estar presente; mais aponta a existência de contradição entre a afirmação de que não foi deduzido pedido de nulidade da escritura e de que a acção de impugnação pauliana não pode conduzir a anulação, quando aquele foi deduzido em primeiro lugar.
Importa ter presente que a decisão recorrida absolveu a ré da instância por verificação de ineptidão da petição inicial, por falta de indicação de causa de pedir, invocando expressamente a previsão normativa do art.º 186º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do CPC.
É sabido que, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão-só suscitar a reapreciação do decidido, ou seja, a pronúncia do tribunal ad quem apenas poderá incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo ser confrontado com questões novas - cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 139.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC) – de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608º, nº 2 do CPC, ex vi art. 663º, n.º 2, do mesmo diploma legal).
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
A decisão recorrida julgou verificada a nulidade de todo o processo, com base na ineptidão da petição inicial, análise a que procedeu depois de ter aferido positivamente a competência do Tribunal em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, em cumprimento da ordem de conhecimento das excepções deduzidas que emergem do art.º 278º do CPC.
Anulado todo o processo e absolvida a ré da instância, é evidente que a 1ª instância não abordou as demais excepções deduzidas, como sejam a de ilegitimidade passiva e caducidade do direito de acção.
Com a interposição do presente recurso o autor pretende alcançar a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos, para ser conhecida a sua pretensão de impugnação pauliana do acto jurídico – escritura pública de compra e venda -, como expressamente refere na motivação e nas conclusões do recurso[4].
O facto de na decisão recorrida se ter aludido a aspectos processuais atinentes a um pedido de declaração de nulidade da escritura, com base num «engano» que teria afectado a ré e a compradora e por falta de representação da sociedade adquirente – e que ali se afirmou não ter sido formulado - e se ter mencionado que, de todo o modo, sempre tal pretensão teria de ser dirigida contra o comprador e o vendedor, que aqui não foram demandados, caso em que a ré seria parte ilegítima, não significa que tal matéria tenha tido qualquer relevância para a decisão proferida.
A alusão a essa questão, no contexto da apreciação da excepção de ineptidão da petição inicial, constitui um aspecto inequivocamente marginal, periférico, e, em suma, totalmente dispensável, uma vez que não estava em discussão um pedido de nulidade da escritura de compra e venda – note-se que a pretensão formulada é a de anulação da escritura de compra e venda por preterição de formalidades essenciais, como o exercício do direito legal de preferência de arrendatária[5].
Além disso, aquilo que a esse propósito se exarou na decisão impugnada não assume relevo para a questão que foi, em concreto, tratada e que ditou a sorte do litígio, ou seja, para a verificação da falta de indicação de causa de pedir.
Tratou-se de segmento suplementar, ponderando a dedução de um pedido que não se mostra, concretamente, formulado, mas que não interferiu na resolução do ponto fulcral abordado, ou seja, não serviu para apontar a falta de indicação de causa de pedir numa acção que se pretende de impugnação pauliana.
Não tendo sido decisiva para a resolução do litígio, quer a ausência de formulação de pedido de nulidade da escritura de compra e venda, quer a falta de demanda dos intervenientes nessa escritura, aquele trecho da decisão corresponde, na realidade, a um obiter dictum que, sendo perfeitamente dispensável, poderia ter sido dispensado, sem que com isso ficasse prejudicada a solução que foi dada à suscitada excepção de ineptidão da petição inicial.
Ora, esta Relação deve ser chamada a intervir para solucionar conflitos reais e não para resolver questões de natureza doutrinária ou questões marginais ou periféricas que se revelem anódinas para a resolução do litígio.
Por essa razão, não há que apreciar a argumentação aduzida a esse propósito, sendo irrelevante para efeitos de verificação da nulidade de todo o processo, aferir da eventual necessidade de intervenção de outros sujeitos na acção.
Nada há, pois, a apreciar, quanto a esta matéria, por não constituir objecto do presente recurso.
A propósito da ineptidão da petição inicial sustenta o apelante, na tentativa de refutar a conclusão a que chegou a 1ª instância, que não há contradição entre pedidos e causa de pedir; que não se trata de pedidos subsidiários; não há vício insuperável na forma como a questão foi colocada, por se perceber claramente que aquele pretende valer-se da impugnação pauliana, podendo o pedido de anulação ser entendido sob a qualificação correcta do efeito de procedência da impugnação; mais refere que podia pedir, em exclusivo, a impugnação pauliana dirigida à venda do bem no processo de insolvência, mas isso não impede que o negócio seja também nulo, podendo deduzir também essa pretensão.
A ré/recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida por o autor não ter concretizado em que se funda a impugnação pauliana, retirando conclusões do nada, sendo que resulta dos autos que a ré interveio na escritura enquanto administradora da massa insolvente de A, não tendo agido em nome próprio, pelo que o autor teria de impugnar a venda no âmbito do processo de insolvência, sendo que da forma como o autor configura a acção e os efeitos pretendidos se verifica que a matéria de facto está em contradição com o pedido e as partes necessárias não estão identificadas.
O pedido principal formulado na petição inicial é, como parece evidente, o de anulação da escritura de compra e venda celebrada em 26 de Setembro de 2016, em que interveio a aqui ré, por preterição do exercício do direito legal de preferência da arrendatária, sendo que o pedido de anulação da inscrição da aquisição do direito de propriedade a favor da Tremel Investments LLC surge, ao que se depreende, como mera consequência dessa anulação e os restantes consistem apenas em comunicações ao Banco de Portugal e à Comissão de Acompanhamento dos Administradores Judiciais sobre a conduta dos intervenientes na escritura, sem qualquer relevo no que aqui cumpre decidir.
Tendo como ponto de partida tal pedido e os fundamentos de facto que lhe subjazem há que aferir se, tal como entendeu a 1ª instância, ocorre a apontada falta de indicação da causa de pedir.
Na interpretação das peças processuais (articulados e decisões judiciais) são aplicáveis, por força do disposto no art. 295º do Código Civil[6], os princípios da interpretação das declarações negociais (comuns à interpretação das leis), valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no art. 236.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes da peça processual, para o que se deve ainda lançar mão do princípio, aplicável aos negócios formais, do mínimo de correspondência verbal, isto é, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – cf. art. 238.º, n.º 1 do Código Civil.
É também entendimento pacífico que a interpretação deve orientar-se pela máxima da prevalência do fundo sobre a forma de modo a que se afira aquilo que é efectivamente pretendido pelas partes no processo apesar das eventuais incorrecções formais – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-10-2019, relatora Margarida Almeida Fernandes, processo n.º 4180/18.0T8BRG.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-10-2016, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 3822/12.6TBGDM.P1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2016, relator Francisco Rothes, processo n.º 0431/16, onde se refere que “os rigores formalistas nessa tarefa hermenêutica são vedados […] pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva [cfr. arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP)] – que impõem que o tribunal extraia dos requerimentos que lhe são apresentados o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão”.
Note-se que mesmo com recurso a um adequado esforço interpretativo, a conjugação do petitório com aquilo que foi articulado pelo demandante ao longo da sua petição inicial, não permite, como parece ser a pretensão do apelante, aceitar que expôs convenientemente os factos integradores dos requisitos da acção de impugnação pauliana e que, por essa razão, o pedido de anulação deve ser convolado para o efeito adequado à procedência daquela.
A impugnação pauliana traduz-se na “faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos actos válidos, ou mesmo nulos, celebrados pelos devedores em seu prejuízo” – cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 742.
Podem ser objecto de impugnação pauliana os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal, podendo tratar-se quer de actos que impliquem redução do activo, bem como aqueles que acarretem um aumento do passivo.
Os requisitos da impugnação pauliana no âmbito das relações imediatas (no quadro de uma primeira transmissão) são os seguintes:
a) anterioridade do crédito, isto é, o crédito deve ser anterior ao acto a impugnar, embora este possa ser anterior àquele quando se prove que esse acto foi efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito, pelo que não basta um qualquer interesse do credor sendo necessário que o acto agrave a impossibilidade de aquele conseguir a satisfação integral do seu crédito;
c) má fé por parte do devedor e do terceiro (art. 612º do Código Civil), só exigível quando se trate de acto oneroso, ou seja, a “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor” (art. 612º, n.º 2 do Código Civil).
Uma vez julgada procedente a impugnação pauliana o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (n.º 1 do art. 616º do Código Civil), de onde resulta que o acto em si não padece de qualquer vício que gere a sua nulidade, estando, tão-somente, sujeito a ser sacrificado na medida do interesse do credor.
O credor terá de fazer a prova do montante das dívidas, isto é, face ao estabelecido no art. 611º do Código Civil, cabe-lhe provar o montante da dívida, cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto, a prova de que o obrigado possui bens de igual ou maior valor. Provada pelo impugnante a existência e o montante do crédito, presume-se a impossibilidade a que alude a alínea b) do art. 610º ou o seu agravamento.
Logo no intróito da sua petição inicial, o autor identifica a acção que vem intentar como sendo uma acção de impugnação pauliana, que visa colocar em crise uma venda judicial.
Após discorrer sobre a propriedade incidente sobre o Ilhéu da ... e a sua integração ou não no território nacional e o uso que dele foi feito ao longo da História, o autor mencionou o facto de ter sido declarado insolvente em processo judicial, com apreensão do seu património, onde figura o prédio urbano que foi objecto de venda no âmbito daquele processo, sendo adquirente a sociedade Tremel Investments, LLC, e identificando diversas anomalias ocorridas, designadamente, quanto à identificação das partes outorgantes, domicílio do próprio autor, situação do prédio e incidência de ónus, que tornariam a venda «ilegítima» e nula.
Termina o seu arrazoado referindo o seguinte:
“44.º
Ambas as partes têm legitimidade e capacidades judiciárias.
45.º
São requisitos gerais da impugnação pauliana a existência de um crédito, a anterioridade deste face ao acto impugnado (escritura no âmbito do processo de insolvência), que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação de um direito.
46.º
Por outro lado, julgamos estar em presença do último requisito da impugnação pauliana que é o da má fé, requisito exigido se estivermos perante um ato oneroso, como é o caso pois a R. tinha consciência do prejuízo que o ato causava ao A..
Termos em que, deve a presente ação ser declarada procedente por provada […]”.
Configurado o pedido de anulação da escritura de compra e venda, mas admitindo-se que estaria aqui em causa um erro na qualificação jurídica do efeito pretendido – como, aliás, o recorrente vem sustentar nas suas alegações -, podendo o tribunal corrigir, oficiosamente, tal erro, e declarar a ineficácia do acto em relação ao autor (cf. art.º 5º, n.º 3 do CPC), em consonância com o acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/01[7], certo é que, como entendeu o tribunal recorrido, o autor não alegou quaisquer factos concretos passíveis de integrarem os requisitos desta específica acção de impugnação.
Com efeito, para além da identificação do acto visado – a escritura pública de compra e venda -, o autor não identificou:
- A sua qualidade de credor relativamente à demandada, com indicação de um qualquer crédito que detivesse sobre esta;
- Um qualquer acto que tenha sido celebrado pela ré, em seu nome, e que tenha a virtualidade de diminuir o património desta ou aumentar o seu passivo, assim colocando em crise a garantia patrimonial para satisfação do putativo crédito do autor;
- A anterioridade desse crédito relativamente ao acto impugnado;
- A impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito;
- A má-fé por parte da ré, enquanto sua eventual devedora e do terceiro que interveio no negócio a impugnar;
- O montante das dívidas da ré.
Tendo presente que quer na petição inicial, quer na motivação do seu recurso o autor afirma e reitera que pretende atacar o acto de venda do prédio em causa com recurso à acção de impugnação pauliana e pretendendo, ademais, que o Tribunal corrija o pedido formulado de modo a que corresponda ao efeito jurídico decorrente da procedência da acção pauliana, torna-se claro que o demandante não alegou um qualquer facto concreto que consubstancie a causa de pedir subjacente ao pedido deduzido.
E a situação configurada nos autos é de total falta de alegação de factos individualizadores da causa de pedir e não de deficiência da alegação, pois que nenhum foi invocado passível de fundamentar uma pretensão de ineficácia da compra e venda em relação ao autor, em virtude de colocar em crise a satisfação de um qualquer seu direito.
Além disso, do conteúdo do arrazoado vertido no articulado inicial não é possível retirar um qualquer sentido lógico conducente à pretensão formulada.
Na verdade, é esta a conclusão que se impõe, quer esta seja interpretada como um pedido de ineficácia do acto em contexto de impugnação pauliana, pois que, sob essa perspectiva, não foram alegados os factos estruturantes da causa de pedir, quer seja interpretada em função da sua estrita literalidade, isto é, como um pedido de “anulação da escritura de compra e venda, por preterição do exercício do direito de preferência”, direito que assistiria a uma alegada arrendatária do prédio objecto da venda, porquanto, sob essa veste, todo o conjunto de factos alegados, ainda que com menção, a dado passo, da existência de um contrato de arrendamento[8] – que sequer foi concretizado quanto à sua data de celebração e intervenientes no negócio -, não fornece um qualquer quadro factual passível de descortinar a aplicabilidade do quadro normativo correspondente a uma situação de exercício do direito de preferência, para além de ser inconciliável um pedido de anulação da compra e venda e simultaneamente o exercício do direito de preferência.
Note-se que da conjugação do disposto nos art.ºs 416.º, n.º 1 e 1410º, n.º 1 do Código Civil, a partir do momento em que o obrigado à preferência[9] decide realizar o negócio sujeito à preferência, e antes que aquele negócio se efective, deve comunicar ao titular do direito de preferência os termos essenciais do projecto de alienação.
Não obstante o autor não tenha caracterizado cabalmente o direito de preferência que estaria, em situação hipotética, subjacente a um pedido, depreende-se que existiria uma arrendatária, terceira em relação às partes nos presentes autos, a quem assistiria um direito de preferência, putativamente, um direito legal de preferência (cf. art. 1091º, n.º 4 do Código Civil).
Sucede que, tendo mencionado apenas que a venda judicial teria ocorrido sem ser concedido o exercício do direito de preferência, certo é que o autor não se apresenta como titular desse direito, nem, por outro lado, densifica a sua pretensão em termos de pretender, fosse para si ou para terceiro, o direito a haver o bem alienado, ou seja, os factos alegados não são congruentes com o pedido inerente a uma acção de preferência, nem o pedido de anulação corresponde ao efeito legalmente previsto com tal demanda (assim como um eventual erro sobre o objecto, a sustentar a anulação da venda, poderia coexistir com a preterição do direito de preferência).
Por força do disposto no art.º 165º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[10], os titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, encontram-se em situação idêntica àquela de que gozam no âmbito do processo executivo comum, ou seja, devem ser notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite, nos termos do art.º 819º do CPC, sendo certo que, não só o autor não concretizou os factos integradores de uma pretensa acção de preferência, nem, por outro lado, se posicionou como titular do direito alegadamente preterido.
Acresce que, a pretender uma anulação da venda judicial, tal pretensão sempre teria de ser deduzida no âmbito do processo de insolvência e não em acção autónoma, aplicando-se as regras do processo executivo – cf. art.º 17º, n.º 1 do CIRE e art.ºs 838º e 839º do CPC; cf. no sentido, de que a sindicância da legalidade/validade de acto realizado pelo AI no âmbito da actividade de liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente – venda do imóvel -, na falta ou insuficiência das o CIRE, são aplicáveis as disposições do CPC, quer gerais, quer as do processo executivo por este regulado face à idêntica natureza executiva do processo de insolvência que, em relação àquela acrescenta o cariz universal da liquidação do activo e do passivo do devedor, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2023, processo n.º 1591/19.8T8VFX-F.L1-1.
Seja como for, o apelante consignou expressamente que a sua pretensão é a de se valer da acção de impugnação pauliana, pelo que, devendo o pedido deduzido ser interpretado como o correspondente a tal acção, tal terá de conduzir à ineptidão da petição inicial por falta de indicação da causa de pedir, nos termos supra explanados.
Transcorrida a petição inicial e tendo presente o seu teor acima transcrito, resulta, mais do que uma ambiguidade ou equivocidade quanto aos factos integradores da pretensão deduzida, uma completa omissão dos factos estruturantes da causa de pedir, isto é, os concernentes à existência de um crédito, à prática de um acto pelo devedor que coloca em perigo a sua satisfação, a má-fé do devedor e do terceiro.
Note-se que não se trata de uma insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, pois que nada é aduzido que permita perceber em que assenta o autor a sua pretensão de ver reconhecido o direito a obter, em relação a si, a ineficácia da venda.
E como referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 679:
“O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do art. 590º, n.º 4, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar, ex novo, um quadro fáctico até então inexistente ou de todo imperceptível (o que, aqui, equivale ao mesmo), restrição que, aliás, também decorre do art. 590º, n.º 6.”
No mesmo sentido propende a essencialidade da doutrina e jurisprudência, ou seja, o juiz só pode convidar a parte a corrigir a exposição ou concretização da matéria de facto quando esta tenha a densidade suficiente para constituir uma causa de pedir inteligível – cf. Rui Pinto, op. cit., pág. 109.
No caso em apreço, não se trata de insuficiência da causa de pedir, por os factos, apesar de alegados, se revelarem insuficientes para determinar a procedência da acção, mas antes de, mais do que ambiguidade ou equivocidade na factualidade invocada, de uma total ausência de alegação da factualidade indispensável à caracterização da causa de pedir, o que deve ser reconhecido como nulidade insuprível de todo o processo, devendo determinar a absolvição da ré da instância, nos termos dos artigos 186º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 196º, primeira parte, 278º, nº 1, b), 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, b) e 578º, todos do CPC.
Em conformidade com o expendido, improcede a apelação, mantendo-se a absolvição da ré da instância constante da decisão recorrida.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O apelante decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo do apelante.
*
Lisboa, 11 de Julho de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Luís Filipe Pires de Sousa
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________
[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3] “[…] os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção e cuja falta determina a inviabilidade da acção ou da excepção; - os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos; - finalmente, os factos complementares ou concretizadores são aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção.”
[4] Cf. Conclusão I.
[5] A nulidade e a anulabilidade afectam de invalidade o negócio jurídico, mas diferem uma da outra em função dos respectivos regimes, desde logo, porque o negócio nulo não produz, ab initio, os efeitos a que tendia, por falta ou vício de um elemento interno ou formativo e o negócio anulável, não obstante a falta ou vício desse elemento, produz os seus efeitos e é tratado como válido, enquanto não for julgada procedente uma acção de anulação, para além de outros aspectos, como os atinentes ao prazo e legitimidade para a sua arguição, pelo que não é indiferente a pretensão de reconhecimento da nulidade do negócio e o pedido de declaração da sua anulação – cf. art.ºs 285º a 294º do Código Civil; cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, pág. 610.
[6]Aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente.”
[7] De 23 de Janeiro de 2001, publicado no DR I Série-A, de 9-01-2001, que firmou jurisprudência nestes termos: «Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil
[8] Cf. Artigo 36º, i) e j) da petição inicial.
[9] Nos termos do mencionado art.º 416º, n.º 1 do Código Civil, o pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa.
[10] Adiante designado pelo acrónimo CIRE.