INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE BENS
RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE DA CLÁUSULA
TERCEIRO
Sumário

I.–Não obsta à apreensão para a massa insolvente de um veículo automóvel cuja propriedade esteja registada a favor do insolvente, o facto de sobre o mesmo se encontrar inscrita uma reserva de propriedade a favor da entidade mutuante, que não foi alienante (a qual apenas financiou a aquisição desse veículo, sendo que a vendedora nenhuma reserva de propriedade estipulou em seu favor).

II.–A cláusula assim estipulada padece de nulidade, porquanto juridicamente impossível (já que o mutuante nunca foi proprietário do veículo, não o tendo vendido, e apenas o alienante pode suspender os efeitos translactivos do bem de que era proprietário).

Texto Integral

Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


António … e mulher Carla … apresentaram-se conjuntamente à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.
Indicaram na respectiva relação de bens (Anexo IV) uma única verba: “Veículo automóvel de matrícula xxxx, marca RENAULT, modelo R, cor cinzenta e outras, com a primeira matrícula datada de 2015-01-29, com 1461 de cilindrada (cc)”.
Por sentença proferida em 13/02/2023, já transitada em julgado, foi a insolvência declarada (sendo que o pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido por despacho de 16/05/2023).
Em 18/04/2023, o AI apresentou o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, no qual se consignou: “(…) 6 – Inventário (artº 24º, nº1. al. e) do CIRE) // Bens do Insolvente // Como declarado na PI, considera uma Verba única – veículo matrícula xxxx, marca RENAULT – modelo Captur, matriculado em 29-01-2015; // Com contrato de reserva de propriedade nº …147, com Livrança em branco; // Valor em conta bancária, que se aguarda confirmação do banco.
Ao relatório foi anexada, para além do mais, a relação de credores para efeitos do artigo 154.º do mesmo código, na qual surge identificada como credora (n.º 2): B… - Sociedade Financeira de Crédito, S.A. (como sendo detentora de um crédito comum no valor de 23.187,26€, com relação ao qual foram efectuadas observações, designadamente: “Valor imputado ao Consumidor acordado com os insolventes – Contrato de Crédito nº 1113547”).
Igualmente foi junta certidão da 2.ª Conservatória do Registo Predial e Automóvel de Leiria, da qual resulta com relação ao veículo de matrícula xxxx: a) registo de propriedade a favor de António… n.º 03274, em 26/09/2022; b) anterior proprietária: Tarefa Secular, Lda., registo de propriedade n.º 08581, de 21/09/2022; c) registo de propriedade a favor de Banco …, SA n.º 02621, de 26/09/2022; d) reserva n.º ordem 00000, em 26/09/2022, a favor de Banco …, SA.
Em 24/04/2023 vieram os insolventes requerer:
1.ºO Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, solicitou informações sobre o paradeiro da viatura a que fez referência no Relatório, elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE e indicou ainda que iria proceder à venda do veículo, cfr doc. 1. // 2.º Em comunicação, os ora insolventes, através dos seus Mandatários, informaram o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência sobre a situação da viatura, tendo ficado com fiel depositário o ora insolvente António …. // 3.º A viatura, marca Renault, modelo Captur 1.5 DCI Sport, apresenta 5 lugares e tem a matrícula xxxx. // Com efeito, a viatura com a matrícula xxxx, têm uma reserva de propriedade a favor do Banco … S.A, conforme já resulta do Relatório elaborado pela Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, nos termos do artigo 155.º do CIRE. // Vejamos o teor do artigo 409.º, n.º 1 do Código Civil: (…)” // Ora, em obediência ao desiderato do processo de insolvência, decorre da lei que, integra a massa insolvente “todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.”, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (cf. artigo 46.º, 36.º, n.º 1, alínea g), e 149.º, todos do CIRE). // Assim, os bens que integram a massa insolvente são, como não poderia deixar de ser, os bens do Devedor. // Por inerência, o veículo automóvel que têm reserva de propriedade, não sendo bens dos Devedores, não poderão integrar a massa insolvente, nem ser objeto de apreensão para a mesma cfr apenso 354/23.0T8BRR-B. // Ora, as competências do Administrador de Insolvência cingem-se à administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE: (…) // 10º Assim, o Exma. Sr. Administrador de Insolvência está a extravasar as competências que lhe são atribuídas pela lei, quando requer que lhe sejam prestadas informações quanto ao paradeiro do veículo que não integra a massa insolvente e ainda enviando um e-mail em como irá prosseguir com a venda do mesmo cfr. Doc. 1 // (…) // Nestes termos, requer-se a V. Exa. se digne notificar o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, das informações prestadas pelos ora Insolventes.”
Notificado deste requerimento, em 02/11/2023 veio o AI pronunciar-se nos seguintes termos:
“(…) a reclamação de créditos em causa – B… – Soc. Financeira de Crédito, S.A. é bem explicita, crédito para garantia de contrato de mútuo, com o valor de empréstimo de 12.830,00€ (…) como determinado, e corretamente, com a classificação do próprio crédito – Comum; // 2 – O AI, como sua obrigação, apresentou com o relatório a lista provisória de acordo com o artº 154º do CIRE, com as devidas classificações e mais tarde - 03-05-2023, por não ter havido qualquer reparo/reclamação, procedeu ao envio a todos os credores e insolventes, da lista final – artº 129º, nº 1 do mesmo código, sem qualquer impugnação, e onde salienta – emerge – o referido contrato de mútuo – nº 1113547. O próprio relatório já indiciava que “a insolvência deverá seguir para liquidação, …...., sobre o veículo, ou outro”; // 3 – O bem foi apreendido já com algum atraso, dado que os Exmos. Srs. Insolventes, por várias vezes, através das suas mandatárias, foram dizendo estarem em negociações com o credor, a ponto de surgir despacho do(a) Meritíssimo(a) Dr(a). Juiz, para proceder à apreensão, encontrando-se o mesmo com “registo provisório”; // Do exposto o AI, entende: (…) No caso em análise, o crédito não beneficia de qualquer garantia especial das obrigações – privilégio creditório, ou direito de retenção, como previsto nos artºs. 623º a 761º do Código Civil. // A reserva de propriedade, (artª 409º do C. Civil), não constitui um direito real de garantia, apenas de gozo. Tal reserva não tem qualquer preferência de pagamento pelo valor de certa coisa; // 5 – O nº 3 do artº 6º do Dec. Lei 359/91, de 21/9, que regula o regime jurídico do crédito ao consumo, prevê “que o acordo de reserva de propriedade” – não “legaliza” a sua estipulação a favor da entidade financeira, quando ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação; // 6 – Quanto à referencia do artº 119º do Registo Predial, não foi levada em consideração pois o subscritor assim o entendeu, dado que o bem não goza de reserva de propriedade do mesmo, mas sim de gozo. (…)//Face ao exposto, o subscritor, para além da clarificação/resposta, deu conhecimento aos insolventes através de “e-mail” datado de 18-10-2023, da colocação em venda do bem apreendido, pelo que requer ao(à) Meritíssimo(a) Dr(a). Juiz despacho de acordo com o exposto e assim dar prosseguimento ao processo. (…)
Em 06/11/2023, foi proferido o seguinte despacho:
(…) A fim de se esclarecer a factualidade em litígio, notifique o Banco ..., S.A. e sociedade B… – Soc. Financeira de Crédito, S.A., com cópia dos requerimentos dos Insolventes e do Administrador de Insolvência, para, no prazo de 10 dias, dizerem ou requererem o que tiverem por conveniente.
Em 17/11/2023, veio a credora B… – Sociedade Financeira de Crédito, SA requerer: a) que se declare que o veículo da marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, não constitui propriedade dos insolventes e, como tal, não integra o património da massa insolvente; b) que se declare ilegal a apreensão do veículo por recair sobre um bem que não integra a massa insolvente e, consequentemente, ordenar o cancelamento do registo de apreensão; c) que se ordene que o Administrador de Insolvência venha aos autos declarar se pretende a execução do cumprimento do contrato de crédito e, em caso negativo, ordenar a sua entrega à Credora;”
Para tanto alegou: 1º. A Credora é titular de um crédito sobre os insolventes (…) //. O supramencionado crédito resulta da celebração de um contrato de crédito tendo em vista a aquisição da viatura com marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx. // 3º. Para garantia do cumprimento do contrato de crédito, foi celebrado a favor do Banco reserva de propriedade do veículo adquirido com o crédito contraído. // 4º. Acontece que, esta viatura sobre a qual recaí a reserva de propriedade a favor do Banco é a mesma que pretende, agora, o Administrador de Insolvência proceder à venda a favor da massa insolvente. // 5º. Ora, salvo o devido respeito por entendimento diverso, não pode o Administrador de Insolvência praticar esse ato por sua própria iniciativa. (…) // decorrente da aquisição do veículo, a titularidade da propriedade não se transferiu, de forma imediata, para os insolventes. (…) não existe o direito de propriedade sobre o veículo in casu. // 9º. Decorrente da reserva de propriedade, a transferência do direito de propriedade só ocorrerá com o cumprimento do contrato de crédito, uma vez que a verificar-se haverá lugar ao cancelamento da reserva de propriedade. // 10º. Porém, conforme resulta evidente dos próprios autos, nunca houve lugar ao cumprimento integral do contrato de crédito a favor da Credora. // (…) 12º. Relembrando o preceito do CIRE – art. 46.º - resulta claro que o veículo da marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, não integra a massa insolvente. // (…) 15º. No direito, não se pode confundir a transmissão da propriedade com a tradição imediata da coisa. // (…) (…) Quanto a esta matéria, a acompanhar o nosso entendimento, pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão datado de 13-03-2006, relatado por Abílio Costa, em que nos diz que: “ (…) é inequívoco que o veículo automóvel não integra a massa insolvente. Na verdade, tendo a alienação do mesmo sido efectuada com cláusula de reserva de propriedade a favor da requerente até ao pagamento integral do contrato de mútuo por parte da requerida, a transferência da propriedade, ao contrário do que acontece normalmente, dada a eficácia real “quoad effectum” daquele contrato- art.s 408º, nº1, e 879º, nº1, al. a), do C.Civil- dá-se apenas quando estiverem pagas as 60 prestações mensais acordadas- art.409º do C.Civil.”. // (…) não integrando o veículo da marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx a massa insolvente, por maioria de razão, não podia ser apreendido. // Mais, // 20º. Nos termos do art. 5.º n.º 1 al. b), art. 29.º ambos do Cod. Reg. Automóvel e art. 119.º Cód. Reg. Predial, o veículo em discussão nunca podia ser apreendido para a massa insolvente sem se dar cumprimento ao previsto no art. 119.º n.º 1 Cód. Reg. Predial. // 21º. Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15/10/2013, relatado por M. Pinto dos Santos: “(…) perante o registo definitivo da reserva de propriedade a favor da ora recorrente e o registo provisório da apreensão do veículo nos autos apensos ao processo de insolvência, estava o Tribunal «a quo» obrigado, em primeira linha, ao cumprimento do nº 1 do art. 119º do C.Reg.Pred., «ex vi» do art. 29º do C.Reg.Autom. (…)”. // 22º. Aliás, a impossibilidade de apreensão do veículo foi por nós alegada em sede própria, no articulado de reclamação de créditos, no seu art. 20.º e 21.º (…) // 24º. Pelo exposto, verifica-se que a apreensão do veículo ocorreu de forma irregular e ilegal, pelo que deverá haver lugar ao competente cancelamento do registo de apreensão. // (…) não pode o Administrador de Insolvência proceder à venda do referido veículo, uma vez que tal iria extravasar as suas competências. (…) sob pena de a concretizar-se a venda estar-se a realizar uma venda de bens alheios. // Ademais, // 28º. Sempre se terá de dizer que à data da declaração de insolvência, o contrato de crédito ainda não se encontrava totalmente cumprido, pelo que, previamente ao supra e à apreensão do veículo para a massa insolvente, devia o Administrador de Insolvência ter vindo aos autos declarar se pretendia a execução do cumprimento do contrato, nos termos do art. 104.º n.º 3 e 102.º CIRE. // 29º. Não o tendo feito, deverá, agora, vir fazê-lo, sendo que se não pretender o cumprimento do contrato, terá de proceder há entrega do veículo à Credora, face ao incumprimento do contrato de crédito.”
Com este requerimento juntou a reclamação de créditos que dirigiu ao AI.
Notificado deste requerimento, o AI pronunciou-se em 06/12/2023, requerendo “que seja declarada improcedente o pedido da credora e, em consequência, seja proferido despacho que declare o cancelamento do registo da reserva de propriedade por a mesma ser nula e/ou incompatível com a situação substantiva do bem e da declaração de insolvência dos mutuários.
Para tanto alegou: “(…) Resulta de facto indiscutível que a ora requerente não é a alienante/vendedora do veículo e não é nem nunca foi sua fornecedora e proprietária do mesmo, mas tão só a mutuante que no âmbito do contrato de mútuo aceitou financiar os Devedores para aquisição do mesmo. // Não estamos, por isso, perante uma apreensão/ venda de bens alheios, nem tal faria sentido, atendendo que o Insolvente não celebrou qualquer contrato de compra e venda com a ora requerente, mas um contrato de mútuo, pelo que o direito de propriedade do Insolvente resulta desse contrato de compra e venda e da presunção decorrente do registo dessa titularidade. // Não detendo a requerente nem a posse nem a propriedade do veículo, não tem legitimidade para requerer a restituição do mesmo e o cancelamento da apreensão e registo a favor da massa insolvente, desde logo porque não pode o financiador pôr de parte o bem que nunca teve (vide acórdão da Relação de Coimbra de 08.03.2016, processo 934/15.8T8LMG.C1). // Acresce que (…), não sendo admitida a reserva de propriedade como garantia real da obrigação pelo Código Civil, não poderá ser o seu crédito graduado no âmbito da declaração de insolvência dos mutuários senão como crédito comum, tal como o graduou o ora signatário e própria reclamação de créditos. // Estabelece o artigo 409.º do Código Civil (…) // Estamos, assim, perante uma norma imperativa que mesmo numa interpretação atualista “A letra da Lei não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação … o texto funciona também como limite da busca do espírito” (in Acórdão da Relação de Lisboa de 04.03.2010, processo 4614/07.0TVLSB.L1-2). // Com tal, “a cláusula contratual em que o financiador reserve para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária uma disposição de natureza imperativa, é assim nula, nos termos do artigo 294º do Código Civil.(ibidem) // No seguimento do mesmo entendimento, sumaria o acórdão da Relação do Porto de 14.05.2020, proferido no âmbito do processo 1497/14.7TBSTS-F.P1: «I- No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, o mutuante/financiador não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade sobre um bem que não tem. II-Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado. III-Daí que a consideração de uma relação tripolar, brigue com a essência da previsão do artigo 409º do Código Civil. IV-E não vinga aqui a figura da sub-rogação, nomeadamente o disposto nos artigos 589º e 591º, pois que tais preceitos têm a ver com a transmissão de créditos, sendo certo, que após o contrato de financiamento, o vendedor não podia transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento. V. Como também não vinga o recurso ao princípio da liberdade contratual ou autonomia da vontade ínsito, no art. 405º nº 1 do código Civil, pois, como decorre desta disposição, esse princípio não é ilimitado, já que a fixação pelas partes do conteúdo contratual tem como balizas os “limites da lei” impostos no artigo 280º do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objeto. VI Sendo legalmente impossível o objeto da estipulação em análise (reserva de propriedade a favor do financiador), a mesma é nula por contrária, a uma disposição de natureza imperativa (artigo 280º, nº 1, do CC).» // Em todo o caso sempre teria de se entender que a declaração de insolvência dos mutuários opera a resolução do contrato de mútuo e como tal constituiu o “evento” previsto no artigo 409º do CC. // Na verdade, por força do disposto no artigo 81º do CIRE, os mutuários ora insolventes deixaram de poder dispor dos bens integrantes da Massa Insolvente, não podendo tão pouco os credores prosseguir com execuções ou providencias que atinjam os bens integrantes da Massa Insolvente, pelo que, de modo evidente, as disposições legais previstas no CIRE e a própria finalidade do processo de insolvência e a salvaguarda do principio da igualdade entre credores, são inconciliáveis com o pedido da ora credora.”
Finalmente, por despacho proferido em 21/12/2023, o tribunal a quo indeferiu a pretensão da credora, determinando que os autos prosseguissem para liquidação do veículo apreendido. Igualmente foi declarada a nulidade da cláusula de reserva de propriedade inscrita a favor do Banco ..., SA, com o consequente cancelamento.
Para tanto consignou-se:
“(…) a questão a decidir prende-se em saber se o veículo apreendido para a massa insolvente, mais precisamente o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Renault, com a matrícula xxxx, cf. auto de apreensão junto ao apenso B, se deverá assim manter, face à cláusula de reserva de propriedade inscrita a favor de terceiro. // Vejamos. // De acordo com os elementos constantes dos autos, verifico que os Insolventes adquiriram o referido veículo com recurso a crédito, tendo o montante da aquisição sido mutuado pela credora B…, S.A., que não foi a alienante do veículo. // Com efeito, a propriedade do veículo mostra-se registada a favor do Insolvente, (em 26 de setembro de 2022), sendo a anterior proprietária a empresa T…, Lda. // Mais verifico que sobre o veículo em questão impende uma reserva de propriedade a favor do Banco ..., S.A., relatada em 26 de setembro de 2022 (que, com vimos, também não foi a alienante do veículo), que cedeu o crédito à B…, S.A. // O conceito de reserva de propriedade está plasmado no artigo 409.º do Código Civil, que dispõe que (nos contratos de alienação) é “lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.”. // Em suma, a reserva de propriedade permite ao vendedor manter a propriedade do bem, até que este seja pago total ou parcialmente, ou até à verificação de qualquer outro evento. // Estamos perante uma excepção ao princípio geral do efeito translativo da propriedade (consequência imediata do contrato, de acordo com o n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil), se este tiver efeitos reais. // Segundo Fernando Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, Editora Almedina, 2007, pág. 301, a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, é inadmissível. // E tal acontece porque no contrato de mútuo com a finalidade de financiar a aquisição de um determinado bem, o mutuante/financiador não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, porque nunca dele foi proprietário. // Conforme já referido, no caso em análise o Banco ..., S.A. não alienou o veiculo, tendo-se limitando a conceder o crédito para a sua aquisição. // Assim sendo, não estamos no âmbito do circunstancialismo previsto na letra do citado artigo 409.º do Código Civil, segundo o qual só o vendedor, o titular do direito de propriedade sobre o veículo, poderia manter na sua esfera jurídica a propriedade daquilo que vendera (para efeito de poder resolver o contrato e obter a restituição do veículo, nos termos do artigo 934.º do Código Civil). // Em face do exposto e do preceituado no também já citado artigo 408.º do Código Civil, a transferência do direito real sobre o veículo com a matrícula xxxx deu-se, por mero efeito do contrato, do vendedor para o Insolvente, sendo nula a cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco ..., S.A., por legalmente impossível. // Por tudo o que ficou dito, indefiro o pedido da credora B…- Sociedade Financeira de Crédito, S.A., devendo os autos, em consequência, prosseguir para liquidação quanto ao identificado veículo, mantendo-se a inscrição da sua apreensão para a massa insolvente. // E tal como peticionado pelo Administrador de Insolvência, declaro, porque legalmente impossível, a nulidade da cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo automóvel inscrita a favor do Banco ..., S.A., nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil, ordenando o respectivo cancelamento. // Uma vez que a apreensão do veículo foi efectuada no âmbito deste processo de insolvência, a matéria relativa à validade da reserva de propriedade, que poderia levar a que o veículo apreendido não integrasse a massa insolvente, é do conhecimento deste tribunal (cf. artigo 141.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa). // Notifique.”
Não se conformando com este último despacho, quanto ao segmento que “declarou, porque legalmente impossível, a nulidade da cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo inscrita a favor do Banco ..., S.A., ordenando o respetivo cancelamento”, dele veio a credora B... interpor RECURSO, tendo para tanto formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
1-O Banco Recorrente celebrou com os insolventes um contrato de crédito, destinado à aquisição da viatura marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx.
2-Foi fixado que o valor global mutuado seria reembolsado em 120 prestações mensais e sucessivas de capital, juros e demais encargos contratualmente estabelecidos, no valor unitário de 167,51€, com vencimento ao dia 8 de cada mês.
3-Para garantia do cumprimento do contrato de mútuo, a venda da aludida viatura foi feita com reserva de propriedade a favor do Banco Reclamante, tendo a mesma sido aceite pelos Insolventes.
4-Para o efeito o Banco cumulou a posição de fornecedor e financiador do identificado veículo.
5-Pelo que foi efetuado o registo de aquisição a favor do Banco aqui Recorrente e posteriormente a favor do Insolvente, conforme resulta das ap. 02621 de 26/09/2022 e 03274 de 26/09/2022, constantes do registo da matrícula do veículo junto pelo Sr. Administrador da Insolvência ao relatório elaborado nos termos do 155.º do CIRE.
6-Resulta nítido e evidente do alegado em sede de Reclamação de Créditos que os contratos de crédito e de compra e venda do veículo estão intrinsecamente ligados – aqueles são causa-efeito destes.
7-Além do mais, os contratos coligados têm influência entre si, tanto no momento da sua constituição (no que concerne à sua validade), como no momento da execução (o momento do cumprimento), conforme resulta do art. 18.º do DL n.º 133/2009, de 02/06.
8-É, portanto, evidente que o contrato celebrado pelo adquirente com o financiador, aqui recorrente, e com o vendedor, apesar de conservarem a sua autonomia, se encontram ligados por um nexo funcional que acaba por influir no seu regime.
9-Mais se dirá que, essa ligação funcional é, desde logo, evidente, uma vez que o mútuo celebrado teve por objeto o preço a pagar pelo mutuário ao vendedor do veículo.
10-Destarte, foi o Mutuante, aqui recorrente, ao pagar o preço ao vendedor, que permitiu ao Mutuário, aqui insolvente, adquirir o identificado veículo.
11-Estamos, pois, em presença de um contrato de compra e venda conexo com um contrato de crédito ao consumo, articulados entre si. Na verdade, para além do contrato de compra e venda que teve por objeto a viatura em causa, foi celebrado entre a apelante e o apelado um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, destinando-se o respectivo capital ao pagamento do preço do veículo.
12-Neste sentido, dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31-01-2008, relativo ao processo n.º 405/2008-6, relatado por Olindo Geraldes: “É admissível a cláusula da reserva da propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, nomeadamente quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda. Reconhecida a resolução do contrato de mútuo, por incumprimento do mutuário, justifica-se a entrega do respectivo bem ao mutuante”.
13-Mais perfilha que: “Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591º do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor”.
Dir-se-á, ainda, o seguinte,
14-A reserva de propriedade é um instituto previsto na lei e que, ao abrigo da liberdade contratual, tem assumido, na prática comercial, uma função de garantia do crédito, resultante do pagamento diferido do preço por parte do comprador e de um objetivo geral de facilitar aos consumidores a aquisição de bens a crédito, funcionando como um complemento do quadro tradicional de garantias reais.
15-Trata-se de uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar o pagamento do preço.
16-O direito em causa não é, assim, um verdadeiro direito de propriedade com o conteúdo do artigo 1305.º do Código Civil e sujeito às regras rígidas dos direitos reais, mas um direito que se define pelo seu conteúdo e função – a garantia de um crédito – e que em comum com a propriedade tem apenas o nomen iuris, critério que não é decisivo para o equiparar a um direito de propriedade, na medida em que o nome ou termo escolhido pelo legislador não é vinculativo para o intérprete, devendo, antes atender-se ao regime jurídico da figura e à sua finalidade.
17-Assim, apesar de o preceito contido no artigo 409.º do CC, parecer indicar que o vendedor permanece proprietário pleno da coisa até ao cumprimento das obrigações por parte do adquirente, na verdade, trata-se de uma propriedade limitada à função de garantia ou de uma figura sui generis de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais.
18-A reserva de propriedade é assim uma figura que, devido à função assumida no tráfico negocial, pode ser designada como “uma propriedade com função de garantia”, a qual não atribui ao titular os direitos de um proprietário pleno, mas uma posição jurídica que lhe permite realizar, à custa do valor da coisa, o respetivo crédito.
19-A titularidade da propriedade reservada até ao pagamento do preço impede os credores do comprador de executarem o bem e visa essencialmente funções de garantia do pagamento do preço, permitindo que, em caso de não cumprimento pelo comprador, haja lugar à resolução do contrato e restituição da coisa.
20-Em suma, a reserva de propriedade aparece na esfera jurídica do financiador em consequência da sua sub-rogação nos direitos do vendedor que, recebendo o preço, “desaparece” do triângulo contratual que inicialmente existe.
21-Posto o que, a reserva de propriedade em conjugação com a figura jurídica da sub-rogação, permite ao mutuante assumir a posição do credor primitivo, porquanto cumpriu a principal obrigação contraída pelo devedor: o pagamento do preço.
22-Assim, não sendo a cláusula proibida por lei e correspondendo à realização de um interesse legítimo do financiador, a mesma é admissível, podendo ser estipulada por vontade das partes.
23-Neste sentido, veja-se o douto Acórdão do STJ, de 30.09.2014, relativo ao processo n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1, relatado por Maria Clara Sottomayor, que considera “válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador”.
24-No mesmo sentido, pronunciou-se Isabel Menéres Campos, in “A reserva de propriedade…”, pp. 382-383: “… a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada.
Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não corresponde a nenhum princípio de natureza imperativa e inderrogável. As partes podem convencionar o afastamento dessa regra, colocando, convencionalmente, o momento da transferência do contrato. A letra da lei, ao admitir a possibilidade de as partes nos contratos de alienação subordinarem a transferência do direito real ao pagamento do preço ou à verificação de um qualquer outro evento, comporta, a nosso ver, a possibilidade de a posição do vendedor resultante da cláusula de reserva de propriedade se transmitir ao financiador que, no âmbito de um contrato de compra e venda financiada por terceiro, empresta os fundos necessários ao pagamento do preço dessa aquisição”.
25-Assim, não sendo a cláusula proibida por lei e correspondendo à realização de um interesse legítimo do financiador, a mesma é admissível, podendo ser estipulada por vontade das partes, o que ocorreu no contrato celebrado entre o Recorrente e os insolventes.
26-Por último, diga-se que conforme consta, e bem, douto Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de janeiro de 2009, relativo ao processo n.º 2007/08.0TBFIG.C1, “A cláusula da reserva de propriedade, admissível nos termos daquele art. 409.º, tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respetivo contrato. Por isso, a propriedade da coisa apenas se transmite para o respectivo adquirente quando este tiver cumprido as obrigações a que se vinculou e que determinaram a reserva da propriedade. E, não obstante a cláusula da reserva de propriedade não ter sido concebida para o contrato de mútuo, vem sendo admitida a sua fixação, nomeadamente quando aquele contrato está intensamente conexionado com o de compra e venda, cujo preço é pago mediante o capital obtido através do contrato de mútuo.”.
27-A não ser assim, a cláusula da reserva de propriedade sobre veículos automóveis perderia a sua utilidade prática, dada a predominância atual da sua aquisição através do financiamento.
28-Pelo que, se mostra claro que a reserva de propriedade constituída sobre a viatura de marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx é plenamente válida e eficaz.
29-Por todo o exposto, é manifesto que o aliás Douto despacho proferido nos autos que julgou nula a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do Banco ..., S. A., atualmente B..., Sociedade Financeira de Crédito, S.A, sobre o veículo de marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, por legalmente impossível e ordenou o prosseguimento para liquidação quanto ao identificado veículo, mantendo-se a inscrição da sua apreensão para a massa insolvente, deve ser totalmente revogado e substituído por outro que ordene a sua entrega ao Banco aqui Recorrente, mantendo-se a cláusula de reserve de propriedade registada.
Termos em que, nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando o despacho proferido pelo Tribunal a quo, farão a costumada JUSTIÇA!”
Foram apresentadas contra-alegações pela massa insolvente, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Como conclusões exarou-se:
i.-Os Insolventes adquiriram o veículo matrícula xxxx com recurso a crédito, tendo o montante da aquisição sido mutuado pelo Banco ..., S.A, que cedeu o crédito à credora reclamante e ora recorrente, ambos não alienantes do veículo.
ii.-A propriedade do referido veículo encontra-se registada a favor do Insolvente, (em 26 de setembro de 2022), sendo a anterior proprietária e vendedora a empresa Tarefa Secular, Lda.
iii.-Sobre o veículo em questão impende uma reserva de propriedade a favor do financiador da aquisição, Banco ..., S.A.
iv.-Encontrando-se o veículo na titularidade do Insolvente, porquanto foi transferida a propriedade e entregue a coisa ao Insolvente pelo vendedor, não poderia o administrador da Insolvência por força do disposto do artigo 149º do CIRE a 151º do CIRE, deixar de apreender o veículo a favor da massa Insolvente, para com o produto da venda satisfazer os créditos de acordo com a graduação prevista no CIRE.
v.-O direito de propriedade do Insolvente e como tal o direito/dever legal de apreensão por parte do Administrador da Insolvência, resulta do contrato de compra e venda celebrado entre o Insolvente e o anterior proprietário/vendedor e da presunção decorrente do registo dessa titularidade.
vi.-Nos termos do previsto no artigo 886º do Código Civil, transmitida a propriedade da coisa, ou do direito sobre ela e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento.
vii.-Ora, o preço fora pago ao vendedor por recurso a financiamento contratado pelo comprador/Insolvente, o que significa que o vendedor deixou de manter na sua esfera jurídica a propriedade do bem, transmitindo esse direito ao Insolvente, nos termos do previsto no artigo 408 º do CC e 874º do CC.
viii.-Por força do cumprimento desse contrato de compra e venda e ao contrário do alegado pela recorrente, o vendedor do veículo deixou de poder transferir ou ceder ao financiador o direito de propriedade que já não se encontrava na sua esfera jurídica.
ix.-Resulta, portanto, que não estamos no caso em apreço perante uma apreensão/venda de bens alheios, pois a recorrente não celebrou com o insolvente qualquer contrato de alienação para usar a faculdade de suspender os efeitos translativos da propriedade, nos termos do previsto nos artigo 409º e 934º, do CC, limitando-se a financiar a aquisição.
x.-Decisão contrária ao douto despacho recorrido e como tal considerar legalmente admissível à recorrente munida de mero contrato de mútuo “poder por de parte” o veículo apreendido a favor da Massa Insolvente, constitui, salvo melhor entendimento, grave e ofensa às disposições legais do CIRE e à própria finalidade do processo de insolvência e ao princípio da igualdade de credores.
xi.-Ademais, não tendo a mutante e ora recorrente, por sua própria decisão e responsabilidade, assegurado o pagamento do seu crédito com qualquer garantia real, o crédito que reclamou nos presentes autos não pode deixar de ser considerado, como a próprio o reconhece, como crédito comum.
xii.-Conforme entendimento maioritário da jurisprudência e doutrina e partilhado pelo douto despacho recorrido, o direito atribuído pelo artigo 409º do CC, pela sua natureza e finalidade, só pode ser atribuído a quem é proprietário do bem em causa, ou seja, a quem é atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, não podendo ser atribuído a quem não tenha essa qualidade.
xiii.-Conforme bem fundamentou o douto despacho recorrido, a reserva da propriedade a favor da entidade financiadora é inadmissível por impossibilidade jurídica quanto ao objeto e como tal nula.
xiv.-Ora, os negócios jurídicos celebrados contra a lei, são nulos de acordo com o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil.
xv.-A contradição é insuperável: O mutuante/financiador não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, porque nunca dele foi proprietário, sendo, por isso legalmente impossível.
xvi.-Ao aceitar-se o esquema alegado pela recorrente que o contrato de compra e venda, já cumprido, não terá por efeito transmitir a propriedade, sempre que o incumprimento do mútuo for definitivo, estar-se-ia a admitir que o nosso ordenamento jurídico admite uma venda meramente obrigacional.
xvii.-Ora, o contrato de mútuo não é um contrato de alienação, mas sim um contrato de concessão de crédito e, portanto, não é reconduzível à previsão das normas contidas nos artigos 409.º e 934º do CC.
xviii.-Padece de fundamento para alegar a validade da reserva de propriedade o invocado princípio da liberdade contratual, pois este move-se necessariamente dentro dos limites da lei, conforme preceituado no artigo 405º do CC. (vide neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 07.11.2013, proc. 558/13.4TBTVR.L1-6).
xix.-Com efeito, atento o disposto nos Artºs 409º nº1 do C.C. e 5º nº1 b) do D.L. 54/75, só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/ proprietário clausular a reserva de propriedade não nos contratos de mútuo.
xx.-Mesmo numa interpretação atualista, não existe na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, no sentido que o financiador pode reservar para si a propriedade de algo que nunca foi seu, ainda que imperfeitamente expresso (Artº 9º nº 2 do C.C.).
xxi.-Com efeito, “A letra da Lei não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação … o texto funciona também como limite da busca do espírito” (in Acórdão da Relação de Lisboa de 04.03.2010, processo 4614/07.0TVLSB.L1-2).
xxii.-No mesmo sentido, entende o Acórdão STJ de 10/07/2008 (SANTOS BERNARDINO), in Revista Julgar Online de Fevereiro de 2020: «a interpretação atualista deverá ser aplicada com a necessária prudência, estando logo à partida condicionada pelos fatores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma e pelos elementos gramatical e sistemático. (…) Ora, no artigo 409.º n.º 1, logo o elemento gramatical constitui um sério obstáculo à pretendida interpretação atualista. (…) Crê-se também – perscrutando agora o espírito da norma – que o escopo ou a finalidade por ela visados “não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição em seu favor de uma reserva de domínio sobre esse objeto – que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fracionamento das prestações”
xxiii.-Porque contrária a uma norma de natureza imperativa, a cláusula contratual em que o financiador reserve para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor é nula, nos termos do preceituado no artigo 294º do Código Civil.
xxiv.-Atendendo ao princípio da separação de poderes e salvaguarda da segurança jurídica e da confiança que assenta qualquer Estado Democrático, transcrevemos o que nos parece ser evidente, salvo o devido respeito por entendimento contrário:
“Assim, por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação, traduzir-se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete.” cfr. voto de vencido no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2014.
xxv.-Em conformidade, “não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como o da “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva da propriedade a favor da financeira (que não seja, simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo. “- (ibidem)
xxvi.-Ademais, como dá conta José Menezes Sanhudo na já referida Revista Julgar Online de Fevereiro de 2020, “a revogação do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de junho, tornou-se logicamente impossível qualquer raciocínio interpretativo da lei no sentido da admissibilidade de reservas de propriedade em favor do financiador. Esta interpretação baseava-se no artigo 6.º, n.º 3, alínea f) do primeiro diploma, que com a sua redação ambígua e inconclusiva, permitia facilmente a defesa da validade das cláusulas em questão. Porém, o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de junho não contempla nenhuma norma análoga ao revogado artigo 6.º, n.º 3, alínea f) e, logo, perde força a tese da admissibilidade da reserva da propriedade pelo financiador, que, portanto, não se funda na letra de qualquer preceito legal. Existe, portanto, desde logo, o «argumento literal» em favor da tese da inadmissibilidade.”
xxvii.-Por outro lado, tendo o referido Decreto-Lei n.º 13/2009 como origem a Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, de harmonização máxima, necessário é concluir que também o legislador comunitário não teve qualquer intenção de permitir que o financiador reservasse para si a propriedade do bem em contratos de crédito ao consumo, pois, não existe na diretiva, qualquer referência a este tipo de operações.
xxviii.-Inexistem quaisquer dúvidas que estamos perante dois negócios distintos, juridicamente autónomos ou independentes e substancialmente separados, sujeitos a cada um deles ao seu regime jurídico correspondente, produzindo efeitos jurídicos próprios.
xxix.-Pelo que se impõe rejeitar a alegada admissibilidade da reserva de propriedade ao financiador por estarmos perante um contrato coligado, nos termos do artigo 4º, nº 1, al. o) do Decreto Lei nº 133/2009 de 02/06, e como tal perante um único contrato trilateral, celebrado entre financiador, consumidor e vendedor.
xxx.-Com efeito, este argumento é desprovido de fundamento jurídico, atendendo que “não espelha, nem respeita, o significado negocial inferível das declarações emitidas pelos sujeitos intervenientes (...) para que de um contrato trilateral se tratasse seria preciso que cada uma das partes dirigisse a sua declaração às outras duas, e que daí se pudesse concluir que todos os sujeitos se queriam vincular perante o conjunto que todos comporiam”. (PAULO DUARTE, A sensibilidade do Mútuo às excepções do Contrato de Aquisição na Compra e Venda Financiada, no Quadro do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo, in Revista Sub Iudice, nº 24, Janeiro-Março, 2003, pp. 44 e ss.
xxxi.-Quanto à invocada pela recorrente figura da sub-rogação como fundamento da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, nomeadamente nos termos do disposto no artigo 589º e 591º, não tem, de igual modo, qualquer fundamento legal, desde logo, porque após o contrato de financiamento, o vendedor não podia transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento. (vide Acórdão da Relação do Porto de 14.05.2020, proferido no âmbito do processo 1497/14.7TBSTS-F.P1.)
xxxii.-Além de que, estes preceitos legais referem-se à transmissão de créditos, nunca podendo e como já referido, estar incluído nessa esfera obrigacional, o direito de propriedade, que tem natureza real.
xxxiii.-Com efeito, o direito de propriedade obedece a pressupostos específicos para a sua transmissão, só o podendo ser conforme resulta do artigo 1316º, do CC.
xxxiv.-Qualquer restrição de natureza real ao direito de propriedade é expressamente proibida pelo disposto no art. 1306º , quando se funde em situações que a lei não prevê especificamente, tratando-se do princípio do numerus clausus às restrições do direito de propriedade.
xxxv.-Impõe-se, pois, confirmar o douto despacho recorrido.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser negado provimento ao Recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a douta decisão proferida pelo Douto Despacho Recorrido.”
O recurso foi admitido por despacho de 06/02/2024 “Por ser legalmente admissível (artigo 14.º, 1, a contrario, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, diploma a que pertencem as normas legais doravante citadas sem menção de origem), ter sido interposto tempestivamente (artigo 638.º do Código de Processo Civil), e ter sido interposto por quem tem legitimidade (artigo 631.º, 1, do Código de Processo Civil), admito, ao abrigo do artigo 641.º, 1 e 2, a contrario, do Código de Processo Civil, o recurso interposto por B..., Sociedade Financeira de Crédito, S.A, que é de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (artigo 14.º, 5). (…)”.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II–DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes- artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex viartigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, a questão a decidir consiste em aferir da validade/nulidade da cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo apreendido, cláusula essa inscrita a favor da entidade que financiou a aquisição (Banco ..., S.A., entretanto substituído nos autos pela recorrente), aquisição essa efectuada pelos insolventes a terceiro.
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III–FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido, bem como os que a seguir se descrevem:
Em 15/06/2023, o AI juntou o auto de apreensão/arrolamento cuja verba única é o veículo automóvel de matrícula xxxx – Apenso B.
Tal apreensão foi registada a favor da massa insolvente em 12/09/2023.
O apenso mostra-se encerrado desde 06/10/2023.
Os autos prosseguiram para liquidação - Apenso D.
Em 03/05/2023, pelo AI foi apresentada a lista de créditos reconhecidos a que alude o artigo 129.º do CIRE (da qual nenhuma alteração resultou quanto ao crédito detido pela credora B..., mantendo o que já constava da lista anteriormente apresentada para efeitos do disposto no artigo 154.º, com excepção da observação quanto ao mesmo consignada, a qual tem agora o seguinte teor: “Contrato de crédito nº - …547 – veículo matrícula xxxx – “Renault – Captur a Diesel”, com reserva de propriedade e livrança subscrita, em branco; Vai ser enviada comunicação ao credor para procederem ao levantamento do veículo. Insolvente constituído – “Fiel depositário”)” – Apenso A.
Não consta que à lista tenha sido deduzida alguma impugnação.
Nesse apenso, por despacho de 06/11/2023, o tribunal recorrido determinou que se aguardasse a prolação de “decisão nos autos de insolvência sobre a manutenção da apreensão e eventual venda do veículo apreendido.”
Da reclamação de créditos apresentada pela credora B... – Sociedade Financeira de Crédito, consta:
“O Banco ..., S.A. e a B...- Sociedade Financeira de Crédito, S.A. celebraram no dia 02/01/2023 um contrato de cessão de créditos através do qual, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 577.º e ss. e 582.º do Código Civil, o Banco ..., S.A. cedeu vários créditos à B... - Sociedade Financeira de Crédito, S.A. // A referida cessão incluiu a transmissão para o cessionário de todas as garantias e outros acessórios do direito transmitido, conforme estabelece o artigo 582.º do Código Civil. (…)
1.º- O Banco Reclamante é uma instituição bancária, cuja atividade consiste na realização de operações bancárias e financeiras com a latitude consentida por lei aos bancos de investimento. // 2.º No âmbito da sua atividade bancária, a 17 de agosto de 2022, o Banco Reclamante celebrou com António … e com Carla …, um contrato de crédito, ao qual foi atribuído o n.º …547, destinado à aquisição da viatura marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, pelo valor global de 12.830,00€ (…), reduzido a escrito, de que aqueles se confessaram devedores (cfr. doc. n.º 1, que ora se junta (…)) // (…) 5.º Para garantia do cumprimento do contrato de mútuo, a venda da aludida viatura foi feita com reserva de propriedade a favor do Banco Reclamante. // 6.º Para o efeito, o Banco Reclamante cumulou a posição de fornecedor e financiador de tal bem, adquirindo a propriedade da viatura e transferindo-a posteriormente para o mutuário. // 7.º Sobre tal bem, foi registada cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco Reclamante, condição sem a qual não contrataria. // 8.º Tal cláusula, registada ao abrigo do n.º 2 do artigo 409.º do Código Civil, visou constituir, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, uma verdadeira garantia, porquanto em situação de incumprimento, não se verificaria o efeito translativo do contrato de compra e venda, ou seja, deixaria de ocorrer a situação de domínio. // 9.º O ora Reclamante cumpriu, então, a sua prestação, tendo sido a viatura entregue aos mutuários. // 10.º Reserva que se mantém válida até que seja pago ao Banco Reclamante tudo quanto lhe é devido por força do respetivo financiamento. // 11.º Os juros de mora, por sua vez, poderão ser capitalizados nos termos da Lei, nos termos da Cláusula 11.4 das “Condições Gerais” do contrato. // 12.º Também se convencionou, que em caso de mora no pagamento de qualquer prestação acordada, determinaria para o Reclamante o direito de exigir a totalidade da dívida, juros de mora à taxa máxima contratual acrescida de uma sobretaxa anual máxima permitida por lei, atualmente de 3% (cfr. Cláusula 16. do contrato) // (…) 18.º Assim, à data da declaração de insolvência, encontra-se em dívida o montante de 23.187,26€ (…), ao abrigo do contrato n.º 1113547 (respeitante ao somatório das prestações vencidas e não pagas, de 8 de fevereiro de 2023– e, das prestações vincendas a partir de 8 de fevereiro de 2023). // (…) 20.º Segundo o disposto no artigo 141.º do CIRE, não deve ser apreendido para a massa insolvente o veículo de marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, porquanto é propriedade do Reclamante. // 21.º Caso o veículo em causa já tenha sido apreendido para a massa insolvente, deve ser ordenada a sua separação, o que desde já se requer, com todas as consequências legais. // 22.º Pretende, assim, o Reclamante, em conformidade com o supra exposto, obter dos Insolventes o pagamento dos aludidos 23.187,26€ (…), acrescido dos respetivos juros de mora vincendos e demais encargos, até integral e efetivo pagamento – crédito que é comum.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o crédito do Banco Reclamante sobre o Insolvente, na quantia de 23.187,26€ (…), ser considerado verificado e graduado no lugar que, por lei lhe competir, seguindo-se os demais termos da lei até final. // Mais deverá ser ordenada a separação da Massa insolvente a viatura automóvel de marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, na eventualidade de a mesma ter sido apreendida.”
Anexou, como doc. nº1 as condições particulares e as condições gerais do contrato de crédito nº 1113547:













Entre outros elementos, integra igualmente tal anexo, com substituição por ambos os insolventes, uma declaração no sentido de aceitarem o clausulado e uma outra denominada "Pacto de Preenchimento da Livrança"

Bem como um documento denominado "declaração de Autorização Incumprimento contratual" com o seguinte teor:

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Tendo subjacente a factualidade constante dos autos e a que anteriormente se aludiu, importa realçar os seguintes aspectos:
- A propriedade do veículo de matrícula xxxx mostra-se inscrita a favor do insolvente marido desde 26/09/2022 (registo n.º 03274);
- Tal veículo foi apreendido para a massa insolvente;
- O veículo foi adquirido com crédito contraído junto do Banco ...;
- Em 21/09/2022, a propriedade encontrava-se inscrita a favor da sociedade T… Lda (registo n.º ....1);
- Em 26/09/2022 foi registada a favor do Banco ... (registo n.º 0...1), nessa data tendo sido inscrita cláusula de reserva de propriedade a favor desta entidade;
- Entre o Banco ... e a recorrente foi celebrada uma cessão de créditos, no qual se insere o crédito decorrente do referido financiamento[1].
Acresce que:
Como resulta do documento junto à reclamação de créditos e denominado contrato de crédito n.º …547 condições particulares, o mesmo identifica apenas como partes o financiador Banco ... e os insolventes – estando a sociedade T… Lda identificada enquanto intermediária de crédito –, e descreve o veículo em causa como correspondendo ao bem e/ou serviço financiado.
Para além da reserva de propriedade sobre o bem, os insolventes subscreveram ainda uma livrança em branco.
Já no documento referente às condições gerais, com identificação das mesmas partes, pode ler-se: “Contrato: o presente contrato constituído (i) pelas Condições Particulares, (ii) pelas Condições Gerais e (iii) pelo Preçario. // Contrato Coligado: o contrato de compra e venda do bem indicado nas Condições Particulares pelo preço aí especificado que constitui com o presente Contrato, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Julho, uma unidade económica.”, bem como: “Fornecedor: vendedor do bem/serviço indicado nas Condições Particulares, que é adquirido pelo(s) cliente(s)” (…) “Intermediário de Crédito: pessoa, singular ou coletiva, identificada como tal nas Condições Particulares, que no exercício da sua atividade comercial ou profissional apresenta ou propõe o Contrato ao(s) Cliente(s) e presta assistência relativa a outros atos preparatórios.”.
E, ainda: “7.2. A utilização do crédito é utilizada mediante transferência bancária ordenada pelo Banco – em nome e por conta do(s) Cliente(s) – a favor do Fornecedor do Bem, a qual servirá para pagamento do preço do bem/serviço indicado nas Condições Particulares. Em alternativa, o(s) Cliente(s) poderá indicar ao Banco uma conta bancária para transferência do valor do crédito”,assim como que, em caso de resolução do contrato pelos clientes os mesmos ficarão obrigados “10.2. (…) a restituir ao Banco ... o capital e a pagar os juros vencidos desde o momento da entrega do montante do crédito (…) nada mais sendo devido, com exceção de uma indemnização correspondente às eventuais despesas não reembolsáveis pagas pelo Banco ... a qualquer entidade da Administração Pública.”  
Também aí se consignou: “17.6. Caso a reserva de propriedade esteja prevista nas Condições Particulares, o(s) Cliente(s) declara(m) expressamente, que a quantia mutuada através do Contrato se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas Condições Particulares ao Fornecedor e que o Banco ... fica sub-rogado nos direitos do Fornecedor, transmitindo-se para o Banco ... todas as garantias e acessórios do crédito do Fornecedor, designadamente a reserva de propriedade estipulada sobre o bem alienado até o integral cumprimento do Contrato Coligado, adquirindo dessa forma o Banco ..., todos os poderes que competiam ao Fornecedor.”
Por fim, no documento denominado Declaração de Autorização Incumprimento Contratual, os aqui insolventes autorizaram que, em caso de resolução do contrato por incumprimento definitivo das respectivas obrigações contratuais, autorizavam o Banco ... a “Retomar a posse física do veículo objeto do financiamento (…)”, mais se tendo consignado que, para operacionalizar o processo de venda, os mesmos entregaram ao banco um requerimento de registo automóvel a ordenar a mesma (devidamente preenchido e assinado).
Isto posto, cumpre apreciar da questão objecto do presente recurso.
O nosso ordenamento jurídico consagra o princípio da liberdade contratual das partes (autonomia privada) pelo que lhes é lícito fixar o conteúdo dos contratos que celebram como lhes aprouver (neles inserindo as cláusulas que bem entenderem), mais lhes sendo permitido escolher o tipo de negócio que melhor satisfaça os objectivos a alcançar, isto é, os interesses a satisfazer (que pode ser um dos contratos tipicamente previstos, um contrato atípico ou, até, um contrato que reúna regras de dois ou mais negócios). Tal liberdade, no entanto, não se assume como absoluta, porquanto sempre terá que ser exercida dentro dos limites da lei[2].
É o que resulta do artigo 405.º do CC – “1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
Estando em causa contratos com eficácia real, estatui o n.º 1 do artigo 408.º do CC que “[a] constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei” – cfr., ainda, o artigo 1317.º, al. a), quanto ao momento da aquisição da propriedade.
Tratando-se de um negócio de compra e venda, a regra é a propriedade do bem ser transferida por mero efeito do contrato – cfr. artigos 874.º e 879.º, al. a), ambos do CC (o efeito translativo produz-se entre as partes, independentemente de existir ou não entrega do bem e de se ter procedido ou não à inscrição em registo)[3].
Sucede que podem as partes diferir a transmissão da propriedade para um momento ulterior ao da celebração do contrato, faculdade expressamente prevista no artigo 409.º do CC (reserva de propriedade).
Segundo este preceito, nos contratos de alienação, “é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento” (n.º 1), acrescentando que, tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, “só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros” (n.º 2)Visa-se com esta estipulação assegurar o direito de crédito do alienante (por norma, em virtude de se estar perante uma obrigação de pagamento diferido do preço pelo comprador – cfr. artigo 934.º do CC), o qual continua (na pendência da cláusula) a ser o proprietário. Assim, ocorrendo incumprimento do contrato de compra e venda, existindo tal reserva (que impede a imediata aquisição do direito de propriedade), pode o alienante optar pelo cumprimento coercivo ou pela resolução do mesmo, sendo que, no segundo caso, terá direito à restituição do bem[4].
No caso, é inquestionável que foi celebrado um contrato de compra e venda de um veículo automóvel e que se mostra registada uma reserva de propriedade.
Sucede que tal reserva não foi estipulada a favor do alienante, mas antes do financiador (posição aqui assumida pela recorrente), enquanto garantia de cumprimento do contrato de mútuo (mais se invocando que, sem tal condição, não teria o contrato de mútuo sido celebrado).
O cerne do objecto do presente recurso prende-se com a (in)admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador, ou seja, quando não estamos perante uma relação jurídica bilateral (mantida apenas entre o vendedor e o comprador), mas antes em face de uma relação trilateral (vendedor, comprador/consumidor e financiador).
Não se tratando de questão que se mostre isenta de controvérsia, passaremos a reproduzir o que, nesta matéria, Isabel Menéres Campos[5] sintetizou:
“Alguns autores defendem a invalidade do pacto, sustentando que o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem porque não é nem nunca foi seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem. Argumentam que o texto do artigo 409.º circunscreve a aplicação da cláusula de reserva de propriedade aos contratos de alienação e, não sendo o contrato de mútuo um contrato de alienação, o texto da lei não comporta a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador. Além disso, o financiador tem ao seu dispor um vasto conjunto de opções para assegurar o cumprimento do contrato pelo consumidor e para obstar à alienação da coisa, designadamente as garantias pessoais e as garantias reais. Por isso, a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é, pois, contrária a uma norma de natureza imperativa, sendo nula ao abrigo do artigo 294.º e não produzindo qualquer efeito, não podendo o artigo 409.º ser aplicado, por analogia, à situação de venda financiada por uma terceira entidade. Advoga-se também que, no caso de incumprimento da condição a que as partes subordinaram a transferência do domínio, abre-se a possibilidade ao vendedor de resolver o contrato e, consequentemente, obter a restituição do bem alienado. Se a entidade financiadora nada aliena, limitando-se a conceder crédito ao consumidor para lhe possibilitar a compra de um bem vendido por um terceiro, não pode reservar para si o direito de propriedade desse bem, por tal direito não existir na sua esfera jurídica (…).
Quanto à tese validade do pacto de reserva de propriedade a favor do financiador, os seus defensores entendem que o artigo 409.º, não sendo uma norma imperativa mas dispositiva, limita-se a atribuir à parte a faculdade de diferir o momento da produção do efeito real, pelo que não colhe o argumento de que a cláusula é nula por ser contrária à lei, uma vez que o princípio geral do direito civil português é o da liberdade contratual. Rejeitam também o argumento de que o artigo 409.º se refere apenas a contratos de alienação, pois o mútuo para aquisição de um bem é afinal, do ponto de vista finalístico, um contrato de alienação – a aquisição financiada. O sentido da reserva de propriedade a favor do financiador não é o de o alienante reservar a propriedade de uma coisa de que é titular: é o de as partes (financiador e financiado) pretenderem que a propriedade reservada seja atribuída ao financiador para garantia do seu crédito, sendo as posições jurídicas das partes, de natureza real, idênticas às do comprador e do vendedor com reserva de propriedade. A finalidade de garantia é a causa do negócio, da aquisição da propriedade pelo credor financiador e essa aquisição dá-se por mero consenso de todas as partes, sendo que a reserva de propriedade a favor do financiador e as situações jurídico-reais em que as partes estão ...idas, correspondente, do ponto de vista do conteúdo jurídico, ao modelo do artigo 409.º. A reserva de propriedade garante não o preço devido pela aquisição mas o montante do crédito concedido no quadro da mesma. O comprador fica adstrito ao cumprimento, isto é, à restituição da quantia mutuada, de acordo com o convencionado, garantindo-se o financiador contra o não cumprimento através da cláusula de reserva de propriedade a seu favor. Perante o incumprimento, o financiador pode desencadear a resolução do contrato de mútuo, tendo direito à recuperação da coisa, ou exigir o seu cumprimento coercivo, isto é, o pagamento da quantia ainda em falta.Cabe mencionar ainda, sobre este tema, as posições mitigadas acerca da interpretação do artigo 409.º, que sustentam que a norma não consente que a reserva de propriedade se possa desligar, em absoluto, do contrato translativo e, por conseguinte, da faculdade de o alienante resolver o contrato. A mudança da titularidade do direito (da posição no contrato) não é um evento suscetível de conformar uma alteração da configuração da própria reserva, nem tão pouco de a transfigurar numa garantia acessória das obrigações. Todavia, no que respeita à questão da validade da cláusula, cabe indagar se não estaremos perante um negócio de alienação em garantia em benefício do financiador, ainda que sob a errónea aparência de uma venda com reserva de propriedade, podendo porventura o financiador, em resultado do acordo prévio celebrado, ter-se por sub-rogado nos direitos do vendedor perante o comprador mutuário. Sendo a reserva de propriedade transmissível, ao abrigo do princípio da autonomia privada, a necessária resolução do contrato só pode ser exercida no âmbito da cessão da posição contratual (…)”.
Ao nível da doutrina, refutando a admissibilidade da cláusula a favor de entidade financiadora poder-se-ão citar, entre outros, Fernando Gravato Morais (Contratos de Crédito ao Consumo, Coimbra, 2007, págs. 297 e ss., e Reserva de propriedade a favor do financiador, em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/02/2002, Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril/Junho de 2004, págs. 49 a 53), Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, Coimbra, 11.ª edição, 2016, pág. 53, nota 97) e Paulo Duarte (Contratos de concessão de crédito ao consumidor: em particular as relações trilaterais resultantes da intervenção de um terceiro financiador, Coimbra, 2000, págs. 193 e ss.).
Já a favor da sua estipulação surgem Isabel Menéres Campos (Algumas reflexões em torno da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, Estudos em comemoração do décimo aniversário da licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, 2003, págs. 631-649 e A Reserva de Propriedade: do Vendedor ao Financiador, Coimbra, 2013, págs. 372/373) e Nuno Manuel Pinto Oliveira (Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 56/57)[6].
Por seu turno, ao nível da jurisprudência, no sentido de uma e outra posição, existem inúmeros acórdãos, que, pela sua extensão e fácil pesquisa (porquanto disponíveis na base de dados www.dgsi.pt) nos abstemos de citar.
Não obstante a relevância dos argumentos invocados para defesa de tais posições, julgamos que se assumem como mais consentâneos com a lei e com o espírito do legislador os que sustentam a tese da inadmissibilidade da estipulação da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador.
Com efeito, tendo este último celebrado com o adquirente do veículo apenas um contrato de crédito destinado a tal aquisição (e já não qualquer contrato de compra e venda), nunca o mesmo foi proprietário do veículo em apreço.
É certo que se mostra registado a favor do Banco a propriedade do veículo (em data anterior à do registo a favor do insolvente marido), mas tal facto deve-se única e exclusivamente à circunstância de constituir tal registo pressuposto necessário à subsequente inscrição da cláusula de reserva de propriedade (aliás, as três inscrições datam, todas elas, de 26/09/2022).
Quem alienou o veículo foi, na verdade, a sociedade T…, Lda[7].Ora, visando a reserva de propriedade a suspensão dos efeitos translativos que resultam do contrato de compra e venda[8], carece de fundamento a sua estipulação no âmbito de um contrato de mútuo, pelo qual se visa apenas o financiamento dessa aquisição.
A propriedade do veículo encontra-se registada em nome do insolvente marido e a anterior proprietária era a sociedade que o alienou.
Sucede que, a favor desta última, não foi constituída qualquer reserva de propriedade[9], pelo que sequer se poderá cogitar a possibilidade de ter ocorrido uma transferência da propriedade reservada da vendedora para a entidade mutuante/financiadora, situação sobre a qual versa o acórdão do STJ de 30/09/2014, invocado nas alegações e no qual se sustenta a apelante (Proc. n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, no qual havia sido constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora no âmbito do contrato de compra e venda do veículo, a qual foi depois cedida à financiadora, com o consentimento da devedora).
No caso aqui em apreciação, a reserva de propriedade foi estipulada ab inicio a favor do Banco ..., no âmbito do contrato de crédito, e sem que a primitiva proprietária e alienante do veículo tenha tido qualquer participação no mesmo (contrato esse apenas outorgado pelo banco e pelos insolventes, como resulta da documentação junta ao processo e que não se mostra questionado). A reserva foi, no caso, estipulada para garantia do cumprimento das prestações pecuniárias decorrentes do contrato de mútuo e não para garantia do pagamento do preço devido pelo contrato de compra e venda (sendo que, com relação a este, a entidade financiadora é terceira).
Como defende Gravato Morais, só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda, é lícita a estipulação de reserva de propriedade, sendo que “a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto – que não produziu nem forneceu — apenas em razão do fraccionamento das prestações”, tanto mais que sempre o financiador se poderá munir de garantias pessoais (fiança ou aval) ou reais (hipoteca ou, não se tratando de veículo automóvel, penhor[10]) para instar ao cumprimento do contrato, para além de que lhe teria ainda sido possível recorrer a negócios jurídicos distintos do mútuo (como, por exemplo, o contrato de locação financeira)[11]. Consequentemente, como defende a posição que aqui se subscreve, mostra-se juridicamente impossível que o financiador reserve um direito de propriedade que não tem, não podendo tal obstáculo ser ultrapassado em nome do princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do CC), o qual sempre estará sujeito aos limites da lei, desde logo os previstos pelo artigo 1306.º do CC (em face do princípio da tipicidade dos direitos reais não é lícita a criação de novas figuras jurídico-reais mediante convenção das partes, para além das que se mostram previstas na lei civil, razão pela qual não é admissível que, de um contrato de mútuo, possa resultar um direito real de propriedade, tanto mais que a propriedade do veículo foi transmitida para os insolventes aquando do negócio celebrado com a vendedora, tendo esta última, inclusive, recebido já o seu preço). Permitir que assim sucedesse seria pactuar com a violação deste artigo 1306.º, assim como não se estaria a salvaguardar o respeito pela regra consignada no artigo 408.º, n.º 1, do CC, já que a situação não cai na alçada do artigo 409.º do mesmo código (que constituiu excepção a essa regra). Para além de a designação atribuída pelas partes a uma estipulação negocial não ser decisiva para a sua qualificação jurídica, pelo que daí não se pode concluir estamos em face de uma situação enquadrável no artigo 409.º, n.º 1 do CC.
Nessa sequência, a cláusula assim estipulada será nula – artigo 280.º, n.º 1 do CC (por incidir sobre objecto legalmente impossível). Acresce que, como tem vindo a ser entendido, sequer é defensável “pretender-se, neste caso, que, apesar da terminologia utilizada, tal cláusula possa ser interpretada – art.º 236º, nº 1, do C.Civil -, ou convertida – art.º 293º do C. Civil – numa alienação fiduciária em garantia, cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é defendida por alguns” – cfr., entre muitos, os acórdãos da Relação de Coimbra de 08/03/2016 (Proc. n.º 934/15.8T8LMG.C1, relatora Sílvia Pires), da Relação do Porto de 14/11/2022 (Proc. n.º 741/22.1T8VLG.P1, relator Manuel Domingos Fernandes) e de 14/05/2020 (Proc. n.º 1497/14.7TBSTS-F.P1, relator Fernando Baptista).
Em reforço da posição defendida, cumpre ainda tecer as seguintes considerações.
E, se é certo que os insolventes assinaram uma declaração através da qual autorizavam, em caso de incumprimento do contrato, que a entidade financiadora retomasse a posse física do veículo, nunca se poderia concretizar qualquer retoma[12] (já que o veículo nunca à mesma pertenceu e sequer poderia a mesma fazer uso do direito de resolver o negócio de compra e venda – cfr. artigo 886.º do CC -, sendo no âmbito de tal resolução que a restituição poderia ter lugar).
Com a aquisição do veículo e o pagamento do respectivo preço à vendedora (a qual, reitera-se, nenhuma reserva de propriedade constituiu em seu favor), a propriedade efectivou-se na esfera jurídica dos insolventes – cfr. artigo 879.º, al. a), do CC.
Aliás, como clausulado, independentemente do financiamento se destinar à aquisição do veículo, sempre o preço deste foi pago pelos insolventes (o montante mutuado destinou-se ao pagamento em nome e por conta dos insolventes), razão pela qual o valor correspondente ao crédito tanto podia ser transferido para a vendedora, como para uma qualquer outra conta bancária (que os insolventes indicassem – cfr. ponto 7.2 das Cláusulas Gerais).
Acresce que, para o caso de resolução do contrato pelos insolventes, ficou consignado que os mesmos apenas ficariam obrigados a restituir ao banco “o capital e a pagar os juros vencidos desde o momento da entrega do montante do crédito (…) nada mais sendo devido” (cfr. ponto 10.2 das Cláusulas Gerais).
Por pertinente, não se poderá deixar de referir que, como resulta da reclamação de créditos apresentada pela recorrente junto do AI, não obstante na mesma se tenha solicitado a separação da massa insolvente do veículo apreendido, já não foi requerida a sua restituição, tendo antes sido peticionada a verificação e graduação do crédito reclamado (no montante de 23.187,26€ e que classificou como crédito comum). Ora, mesmo que se aceitasse a admissibilidade da reserva de propriedade nos moldes aqui em discussão, uma vez reclamado o crédito e sendo o mesmo um crédito comum, mostra-se destituído de justificação o pedido de separação do veículo da massa insolvente - até porque, por um lado, não poderia a apelante ficar com o veículo e, simultaneamente, ser paga pelo montante reclamado (mas apenas pelo valor correspondente à diferença entre o montante das prestações em dívida até ao termo do contrato e o valor da coisa na data da recusa do cumprimento do contrato, nos termos previstos pelo artigo 104.º, n.º 5 do CIRE) e, por outro lado, também não poderia a mesma obter qualquer pagamento preferencial pelo produto da venda do veículo em sede de liquidação[13].
Igualmente não melindra a posição defendida o facto de a estipulação deste tipo de cláusulas ser permitida pelo anterior regime jurídico dos créditos ao consumo que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09, porquanto a então al. f) do n.º 3 do seu artigo 6.º se reportava a situações nas quais o beneficiário da reserva de propriedade era o próprio vendedor.
E, mais ainda, quando o actual regime, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02/06 (o qual revogou o anterior diploma e também ele foi já sujeito a sucessivas alterações), não contém qualquer disposição análoga.
Como se escreveu no acórdão desta Relação de Lisboa de 09/03/2021[14], “Percorrendo o diploma, com as respetivas alterações decorrente do DL n.º72-A/2010, de 17.06, DL 42-A/2013, de 28/03, DL 74-A/2017, de 23.06, e Lei 57/2020, de 28/08, não se descortina qualquer referência ao estabelecimento de reserva de propriedade a favor do mutuante, pese embora o minucioso e abrangente enunciado de informações e requisitos do contrato de crédito, sendo certo que também do mesmo não resulta uma assimilação com o contrato de alienação, mas tão só uma unidade económica, art.º 4.º, j), sem prejuízo da repercussão de eventuais vicissitudes ocorridas relativamente a cada um desses contratos que possam afetar essa unidade, art.º 18, sendo certo que o disposto no art.º 409, continua inalterado.
Caso o legislador tivesse intenção de permitir que o financiador reservasse para si a propriedade do bem em contratos de crédito ao consumo, certamente não teria deixado de o prever.[15] [16]
Para além do mais, o regime jurídico em causa visa a protecção do consumidor e, com a estipulação de uma reserva de propriedade a favor do financiador, serão os interesses deste último que estarão a ser protegidos (não se podendo deixar de referir que, se é certo que o consumidor está a adquirir um veículo quando não dispõe de fundos imediatos para o pagar, ou quando não pretende fazer de imediato o pagamento integral, não se poderá ignorar que, recorrendo ao mútuo, sempre o valor que terá de suportar será superior, quanto mais não seja pelo vencimento de juros sobre a quantia mutuada).
Igualmente não poderá proceder o argumento de ter ficado a entidade financiadora sub-rogado nos direitos do vendedor.
Desde logo em virtude de os artigos 589.º a 591º[17] do CC estarem conexionados com a transmissão de direitos de crédito, ficando o sub-rogado na posição jurídica do credor originário, não obstante passar a beneficiar das garantias especiais de que goza o crédito.Acresce que, para além de o direito do alienante já estar extinto pelo pagamento – sendo que tal pagamento foi efectuado pelo insolvente/adquirente e não por terceiro (não obstante o ter feito com recurso a financiamento)[18] -, uma vez mais há que trazer à colação que, no caso, inexiste qualquer reserva de propriedade que tivesse sido estipulada a favor da sociedade Tarefa Secular Lda. (nem é alegado que o tenha sido), a qual, diga-se, tão pouco teve intervenção no contrato que apenas foi outorgado pelos insolventes e pelo Banco ... (assim como este último não interveio no contrato de alienação).
Não obstante o ponto 17.6 das Cláusulas Gerais estipular que o banco ficava “sub-rogado nos direitos do Fornecedor”, o certo é que, através desta cláusula, o que se transmitiu para o Banco ... foram “as garantias e acessórios do crédito do Fornecedor, designadamente a reserva de propriedade estipulada sobre o bem alienado até o integral cumprimento do Contrato Coligado, adquirindo dessa forma o Banco ..., todos os poderes que competiam ao Fornecedor”. Ora, como já referido, nenhuma reserva de propriedade havia sido estipulada a favor da sociedade vendedora, pelo que nenhuma transmissão ocorreu que permitisse considerar ter o banco ficado sub-rogado para esse efeito (de reserva de propriedade).
E, em reforço de assim ser, importa atender ao obstáculo que sempre existiria pelo estatuído no artigo 1316.º do CC (porquanto se estariam a constituir direitos reais  - direito de propriedade – por via da sub-rogação, o que não é admissível, como consignado no voto de vencido de Moreira Alves ao já citado acórdão do STJ de 30/09/2014)[19], ao que acresce que, perante o incumprimento dos insolventes, nunca ao financiador seria possível resolver o contrato de compra e venda (fim último visado pela cláusula de reserva de propriedade), tanto mais que o vendedor mostra-se já integralmente pago pelo preço do veículo. Como previsto no ponto 17.3 das Condições Gerais, em caso de incumprimento definitivo do contrato de mútuo, apenas seria lícito ao mutuante proceder ao preenchimento da livrança que foi entregue.
Citando Paulo Ramos Faria[20], “(…) à financiadora falece qualquer vontade de aquisição da propriedade do bem financiado. (…) Sendo o solvens uma instituição de crédito, é seguro que o montante a pagar em cumprimento do mútuo é superior ao valor financiado empregue no pagamento do preço. Perante uma situação de incumprimento, entre exercer o direito ao valor do preço da compra, saldado com recurso ao financiamento, e exercer o direito à total execução do contrato de mútuo, de valor bastante superior, não será difícil adivinhar qual será a opção da financiadora. Ao fazer inserir no contrato uma declaração da contraparte subrogando-a nos direitos do credor, a financiadora não ambiciona a titularidade do crédito ao preço; deseja, sim, as suas garantias acessórias. E aqui se revela a distorção que este expediente provoca no funcionamento do instituto da sub-rogação. Embora a reserva de propriedade esteja umbilicalmente ligada ao contrato de alienação, a financeira cobiça-a para servir de garantia da pontual execução do mútuo, isto é, da amortização do valor do empréstimo, e não da satisfação do valor do preço. Estas sociedades já protegem os seus créditos com um vasto arsenal de garantias, pelo que a sub-rogação se destina a obter a única garantia de que não podem beneficiar: a titularidade da propriedade. Evidencia-se, assim, que, nesta suposta sub-rogação no crédito (e na propriedade reservada), estamos perante uma conduta que visa defraudar o numerus clausus previsto nos arts. 604/2 e 1306, proibida por força do disposto no art. 294.”
Na sequência do anteriormente exposto, dir-se-á que, para além de não ser possível aplicar, por analogia, o artigo 409.º, n.º 1, do CC ao mutuante que apenas financia a aquisição (já que este detém uma posição distinta da que é assumida por quem aliena um bem do qual é proprietário e que, nessa medida, poderá suspender os efeitos translativos desse contrato de alienação[21]), também não se subscreve que desta norma possa ser efectuada uma interpretação actualista (legitimada pelo artigo 9.º do CC), designadamente no que concerne à expressão contrato de alienação (na mesma se incluindo a compra e venda financiada por terceiro).
Não se questiona que tal cláusula foi pensada para as situações nas quais ocorre uma compra e venda a prestações para aquisição de bens de consumo, designadamente de veículos automóveis, nas quais o vendedor concede o crédito por via do protelamento do pagamento do preço (mantendo a propriedade do bem para o caso de o contrato ser incumprido), sendo que a realidade actual demonstra que a concessão do crédito para tal aquisição passou a ser efectuada por um terceiro (com quem o adquirente do bem celebra um contrato de mútuo com tal finalidade).
Mas nem assim se poderá interpretar o preceito em causa como abrangendo as situações em que apenas existe financiamento para a aquisição pois, reitera-se, não se mostra admissível que alguém que nunca foi proprietário do bem possa reservar para si tal propriedade, o que constituiria manifesta violação ao princípio nemo plus iuris ad alium transferre postest, quam ipse habet[22], segundo o qual ninguém pode transferir mais direitos do que ele próprio tem (aliás, o mutuante Banco ... não tem como objecto social a compra e venda e/ou revenda de veículos automóveis, mas sim a realização de operações bancárias e a prestação de serviços financeiros conexos[23]).
Para além de tal interpretação não ter assento no texto da norma, também não terá sido essa a finalidade visada com a mesma.
E, como se pode ler no acórdão da Relação de Guimarães de 11/05/2023[24], “Cremos que não basta que tenha ocorrido uma alteração no campo das relações socioeconómicas para que o sentido a dar à norma possa sofrer uma evolução. É necessário perceber o sentido dessa alteração. // E essa alteração em nada mais consiste que no exponencial crescimento da concessão de crédito ao consumo, levando as empresas financeiras a desenvolverem expedientes mais simples, céleres e eficazes, incompatíveis com a morosidade das diligências e os custos próprios de uma negociação cautelosa, na forma exigida pelo regime dos contratos de crédito a consumidores (art. 10.º do DL n.º 133/2009, de 02 de Junho) como o dever de avaliar a solvabilidade da contraparte. // Todavia, introduzindo estas novas ferramentas uma maior agilização e informalismo no processo negocial, acaba na verdade por contrariar o equilíbrio existente na lei positiva entre os diversos interesses em jogo, predisposto e desejado pelo legislador, dando lugar a uma relação negocial assimétrica e impositiva de interesses, conseguindo ainda obter uma garantia mais forte do que as que já se encontram consagradas na lei. // Aceitando que as transformações sociais, produtivas e principalmente económicas alteraram uma certa conceção contratual individualista deve essa transformação determinar-se por se manter paritária. Assim se compreende que não podendo, nem querendo, enjeitar novos instrumentos de facilitação negocial as mais recentes orientações de política legislativa sejam fortemente protetoras do consumidor. // À luz dos valores que informam a ordem jurídica, não tem substrato jusfundamentante a concessão de uma tutela alargada a uma das partes da relação contratual com a extensão de uma nova e mais forte garantia da sua posição.”
Já Paulo Ramos de Faria invoca estarmos em face de uma realidade que já existia, nessa medida não se podendo dizer que ocorreu alterações das circunstâncias jurídico-sociais que estiveram presentes aquando da elaboração da norma e que sejam susceptíveis de permitir uma interpretação actualista[25].
Por seu turno, José Menezes Sanhudo[26], refutando igualmente a possibilidade de ser efectuada uma interpretação actualista, vai mais longe, defendendo que assim sucede, não por ter existido uma alteração da realidade social existente à data da feitura do artigo 409.º, mas antes por não se estar em face da mesma realidade, para tanto escrevendo: “(…) o fenómeno em causa nos contratos de financiamento «modernos» é outro, que não o previsto no artigo 409.º do CC. Dado que os contratos coligados referidos, em rigor, não se subordinam inteiramente ao regime do Código Civil, ou seja, ao regime geral das relações entre as pessoas humanas enquanto entes situados num plano de igualdade, mas antes estão abrangidos por um regime especial funcionalizado à tutela da parte mais fraca na relação contratual (o consumidor), não pode dizer-se que se está perante a mesma situação, a mesma factualidade, mas alterada. Estamos, na verdade, perante situações diversas e, por esse motivo, não há qualquer legitimidade para uma interpretação atualista no sentido mencionado.”
Por fim, sendo certo que entre os dois contratos  existe uma forte conexão, designadamente por existir entre ambos um vínculo de natureza económica  (estando o contrato de mútuo funcionalmente subordinado à aquisição por compra e venda do veículo)[27], é igualmente facto incontroverso que ambos mantêm a respectiva individualidade e autonomia jurídica, não se confundindo, pelo que nunca se poderá entender o contrato de mútuo como correspondendo a um contrato de alienação, para os efeitos previstos pelo artigo 409.º, n.º 1 do CC (por todas as razões já anteriormente enunciadas). Diferente poderia ser se estivéssemos em face de um contrato outorgado entre os três sujeitos – vendedor, consumidor e financiador (o que, no caso, não aconteceu).[28]
Concluímos, assim, ser a cláusula em apreço nula por legalmente impossível – como rege o artigo 280.º, n.º 1, do CC é nulo “o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”, devendo entender-se que tal impossibilidade não se reporta à coisa ou prestação a realizar, mas antes aos efeitos jurídicos que o contrato pretende pôr em vigor[29].
E, sendo a propriedade do veículo dos insolventes, nada obstava a que o mesmo fosse apreendido (como foi) para a massa insolvente. Como defende José Menezes Sanhudo[30], “Em caso de declaração de insolvência do comprador, o financiador da compra, como credor que é daquele, deve reclamar o seu crédito, para que o mesmo seja verificado, reconhecido e graduado (artigos 128.º e ss. do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, doravante CIRE). Daí em diante, o processo de insolvência seguirá o seu curso e o financiador nele figurará como qualquer outro credor. Com efeito, visto que a reserva de propriedade em seu favor é nula, não produzindo qualquer efeito, o financiador da compra não poderá, em caso algum, beneficiar do regime que o artigo 104.º do CIRE estatui, dado que este, claramente, só se aplica ao reservatário-alienante. Qualquer interpretação diversa não encontra fundamento na letra da lei e, aliás, é-lhe indubitavelmente contrária. O contrato deverá então ficar sujeito ao regime estabelecido no artigo 102.º. Segundo este, o administrador de insolvência opta pela execução do contrato, ou pela recusa do cumprimento do mesmo. No primeiro caso, deve promover o pagamento das prestações que, entretanto, vão vencendo. No segundo caso, produzir-se-ão os efeitos do n.º 3, do artigo 102.º, do CIRE, tendo o credor, designadamente, o «direito a exigir, como crédito à insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada». Nenhuma das partes do direito à restituição do que prestou (artigo 102.º, n.º 3, alíneas a) e c), CIRE). Em consequência do que foi dito, o bem adquirido deve integrar a massa insolvente, não podendo dela ser retirado. Devem também improceder quaisquer ações de restituição e separação do bem intentadas pelo financiador (artigos 141.º e ss. do CIRE).”
Termos em que bem andou a 1.ª instância quando decidiu pela inadmissibilidade da reserva de propriedade a favor da recorrente, mais tendo declarado a nulidade da mesma.
Consequentemente, terá a presente apelação de improceder.

***

IVDECISÃO


Perante o exposto, acordam as Juízas da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Lisboa, 11 de Julho de 2024 (acórdão assinado digitalmente)


Renata Linhares de Castro
Teresa de Sousa Henriques
Amélia Sofia Rebelo


[1]Nessa medida, tendo ocorrido entre ambos uma cessão de créditos – artigos 577.º e ss. do CC (o que não é questionado nos autos), sempre a recorrente será tida como parte do negócio em causa (em substituição do contraente original Banco ...).
[2]Como refere ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 54, “O respeito pela ordem jurídica configura, assim, um limite imperativo, que pode fundamentar, no caso de ser ultrapassado, a ineficácia (em sentido lato) do contrato.
[3]Como refere ANA AFONSO, Comentário ao Código Civil, …págs. 68/69, “O efeito constitutivo ou translativo do direito real resulta do próprio ato pelo qual é proferida a vontade de constituir ou transmitir o direito. Desvela também este artigo 408.º um princípio de unidade – o mesmo negócio produz simultaneamente efeitos obrigacionais e efeitos reais (…).”
[4]Veja-se que, como realça ISABEL MENÉRES CAMPOS, Comentário ao Código Civil, …págs. 75/76, ocorrendo insolvência do comprador e estando o negócio em curso, “o administrador da insolvência tem a faculdade de optar pelo cumprimento do contrato ou pela sua recusa, caso em que a coisa também não pode ser apreendida para a massa insolvente”, mais esclarecendo que “o vendedor permanece proprietário da coisa reservada com a função de garantia, tendo o comprador um direito de expectativa de aquisição.”
[5]Obra citada, págs. 76/77.
[6]Porém, como referido no acórdão da Relação de Lisboa de 07/12/2011 (Proc. n.º 2164/11.9TBGMR.L1-2, relator Pedro Martins), as posições destes dois últimos autores, “no sentido da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro, tem que ser lida tendo em conta os termos das conclusões a que chegam: ou seja, não se trata da validade da constituição da cláusula de reserva a favor de terceiro que não seja proprietário, mas sim da admissibilidade da validade da situação resultante da transmissão desta cláusula a favor de terceiro. Daí que falem em transmissão e em sub-rogação. A cláusula é constituída a favor do proprietário alienante e depois transmitida para o terceiro. É também esta a posição de Luís A. Carvalho Fernandes (Notas breves sobre a cláusula de reserva de propriedade, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor CFA, Vol. II, Almedina, 2011 (…) págs. 331/332)”.  Igualmente defendendo que o mutuante poderá beneficiar da reserva de propriedade se a mesma tiver sido constituída em favor do vendedor e depois transmitida para aquele (e só nessa hipótese), vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 12/08/2013 (Proc. n.º 3225/12.2YXLSB.L1-2, relator Pedro Martins), da Relação do Porto de 26/04/2010 (Proc. n.º 1710/09.2TBVCD-P1, relatora Anabela Luna de Carvalho, este com um voto de vencido).
[7]Consultada a página do Banco de Portugal, constata-se que esta empresa presta serviços de intermediação de crédito (mantendo contrato de vinculação com a recorrente B...) e, da respectiva racius (informação empresarial), consta ter por actividade “Comércio, importação e exportação de veículos automóveis, peças e seus acessórios, material informático, computadores e telemóveis. Intermediação de crédito. Consultoria para os negócios e a gestão a empresas e particulares e outras entidades”, tendo-lhe sido atribuídos os CAE 45110 (automóveis ligeiros) e 66190 (outras actividades auxiliares de serviços financeiros, excepto seguros e fundos de pensões).
[8]Como refere JOÃO CARLOS GONÇALVES GODINHO, Da admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro financiador, Universidade Católica, 2019, pág. 22, consultável online, “a lei confere ao vendedor uma posição bastante sólida, sendo a cláusula de reserva de propriedade uma mais valia na sua esfera jurídica precisamente porque o bem nunca sai da sua titularidade, o que nos permite afirmar que o instituto de reserva de propriedade tem na sua essência, primordialmente, o direito de propriedade com função de garantia, sem prejuízo de poder ter outras utilidades.”
[9]No caso, a vendedora não reservou a propriedade, sequer sob a égide de ficar a transferência da propriedade dependente do cumprimento do mútuo, o que poderia levar a que se cogitasse estarmos em face da verificação de um “outro evento” nos moldes referidos no n.º 1 do artigo 409.º. Sucede de, para além de tal hipótese configurar uma venda meramente obrigacional, também não se vislumbraria que utilidade prática daí poderia resultar (porquanto a vendedora não teria fundamento para resolver a compra e venda e a financiadora não poderia executar o bem para satisfação do seu crédito).
[10]Cfr. Artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/02, segundo o qual “Os veículos automóveis não podem ser objecto de penhor”.
[11]Cfr. Cadernos … , pág. 52, e Contratos …págs. 304/305 (já citados).
[12]O que terá levado, dir-se-á, a que os mesmos insolventes tenham igualmente entregue um requerimento de registo automóvel a ordenar a venda (devidamente preenchido e assinado). Ora, se a propriedade não lhes pertencesse, a entrega de tal requerimento não se justificava.
[13]Como refere JOÃO GODINHO, obra citada, pág. 25, “não se deve confundir a função que o instituto desempenha com a sua qualificação (…) sendo certo que ao beneficiário da reserva não é concedida nenhuma situação de preferência para realização do seu crédito, como é característico dos direitos reais de garantia” (o autor invoca para tanto ANA PERALTA, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Coimbra, Almedina, 1990, pág. 334).
[14]Proc. n.º 3208/19.1T8OER.L1-7, relatora Ana Resende.
[15]Como escreve MARIANA BRANCO CAMPOS, O Regime Jurídico dos Contratos de Crédito ao Consumo, Coimbra, Novembro de 2013, págs. 135/136, “para que fosse possível a reserva de propriedade a favor do financiador, isto deveria estar expressamente previsto na legislação especial, ou seja, no DL nº. 133/2009. Isto porque (…) a regra geral constante do art. 409, nº. 1, do CC, apenas se aplica ao alienante, no âmbito de um contrato de compra e venda. Assim, para que se pudesse estipular a reserva de propriedade a favor do financiador, tal permissão deveria constar do regime jurídico dos contratos de crédito ao consumo. Como não há, neste diploma, nenhuma menção à reserva de propriedade como garantia do crédito, não há que se cogitar de sua admissibilidade.” Mais contrapondo à tese que defende a admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador: “Nem mesmo no âmbito do antigo regime havia tal previsão. O argumento adotado pelos defensores da primeira tese - de que o art. 6º, nº. 3, al. f), do DL nº. 359/91 prevê expressamente a possibilidade de constituição de reserva de propriedade a favor do financiador - é absolutamente incorreto. Com efeito, o aludido dispositivo, ao referir a constituição de reserva de propriedade sobre o bem, está a falar apenas dos casos em que o vendedor é também o financiador da aquisição, ou seja, refere-se tão somente aos casos de venda a prestações, não já aos casos de crédito concedido por uma terceira pessoa. // Como se não bastasse, o argumento de ordem prática utilizado pelos adeptos da primeira corrente, qual seja, de que os interesses do financiador precisam ser tutelados, também não merece prosperar. Isto porque, como visto, o credor possui ao seu dispor diversas outras opções para assegurar o cumprimento do contrato pelo consumidor, de modo que a inadmissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a seu favor, em nada prejudicaria seu direito de crédito. Tal conclusão é ainda mais evidente quando verificamos que mesmo havendo reserva de propriedade inscrita em seu nome, o financiador opta, na maioria das vezes, por ajuizar ação executiva ao invés de instaurar o procedimento cautelar de apreensão do veículo. Se a reserva de propriedade fosse mesmo o meio mais adequado e efetivo para garantir os interesses do financiador, por que ele optaria pela penhora e posterior venda do bem ao invés de optar pela sua restituição? A verdade é que o financiador não possui interesse na recuperação do bem em si, mas no pagamento do montante do empréstimo, de modo que nem mesmo razões de ordem prática podem justificar a reserva de propriedade a seu favor.”[16]JOSÉ MENEZES SANHUDO, Cláusulas de reserva de propriedade a favor do financiador em contratos de crédito ao consumo, Julgar Online, Fevereiro de 2020, pág. 15, acrescenta que sequer o legislador comunitário permite tal operação, relembrando que o actual regime transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva  2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23/04/2008, sendo esta “de harmonização máxima, ao contrário da diretiva que originou o diploma hoje revogado, que era de harmonização mínima”, como resulta do previsto no seu considerando 9: “[a] harmonização plena é necessária para garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para instituir um verdadeiro mercado interno. Por conseguinte, os Estados-Membros não deverão ser autorizados a manter nem a introduzir outras disposições para além das estabelecidas na presente diretiva (…)”.
[17]Prescreve o n.º 1 do artigo 591.º: “O devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor.”, acrescentando no seu n.º 2 que “A sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.”
[18]Cfr. ponto 7.2 das Cláusulas Gerais do contrato junto aos autos.
[19]No mesmo sentido, vide, entre muitos, o acórdão da Relação do Porto de 10/10/2016 e os que no mesmo são citados.
Cfr., também, PEDRO GODINHO, obra citada, pág. 41: “encontrando-se o instituto da sub-rogação no capítulo das transmissões de crédito e de dívidas e, atendendo ainda ao conteúdo do art. 1316º que consagra os modos de aquisição da propriedade, não parece resultar que pelo cumprimento o sub-rogado adquira a propriedade do bem para que possa beneficiar da cláusula. Ainda que se considerasse a propriedade do vendedor como uma propriedade em garantia (…) e nos levasse a admitir que o financiador a adquiriria como acessório do crédito, nos termos do art. 582º, parece dúbio que a propriedade possa ser entendida como uma garantia propriamente dita suscetível de ser transmissível como acessório. Em boa verdade, se esta consideração permite, por um lado, que o financiador adquira a propriedade do bem e beneficie consequentemente da reserva, estaríamos, por outro lado, a conceber a propriedade como acessório do crédito, o que parece não ser legalmente possível. Uma coisa é a função que a propriedade neste esquema contratual desempenha, outra coisa, completamente diferente, é a natureza da propriedade que não é de todo de garantia. Como bem esclarece VAZ SERRA “A sub-rogação serve para a transferência de direitos de crédito e dos acessórios destes, e não para a transferência da propriedade””
[20]A Reserva de Propriedade constituída a favor de terceiro financiador, Revista Julgar, n.º 16, 2012, págs. 41/42.
[21]Uma coisa é a transferência da propriedade do veículo, ainda que diferida para o momento do pagamento do seu preço (resultante do contrato de alienação) e outra a transferência da quantia entregue (contrato de mútuo). E, na segunda hipótese, a resolução do contrato tem como efeito o vencimento imediato das prestações convencionadas (não a restituição do bem).
[22]Como sumariado no acórdão do STJ de 31/03/2011 (Proc. n.º 4849/05.0TVLSB.L1.S1, relator Álvaro Rodrigues): «I – Só quando o vendedor do bem em prestações (alienante) é simultaneamente o financiador da sua aquisição por outrem faz sentido que no respetivo contrato de crédito ou mútuo se inclua e mencione a cláusula da reserva de propriedade, se acordada pelos contraentes. De contrário, se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir (“nemo plus iuris ad alium transferre postest quam ipse habet”), e também, por nada ter e nada poder transmitir, nada poderá reservar sob condição. II – É sempre o efeito de uma aquisição derivada de quem é dono e aliena que permite a este subordinar a transferência do direito de propriedade (que normalmente se dá por simples efeito do contrato – artigo 408.º, n.º1) do bem à verificação da condição suspensiva do pagamento integral do preço, pela inserção da cláusula da reserva de propriedade, que representa para si uma garantia de cumprimento. III – A situação do mutuante/financiador quanto a possíveis garantias do seu crédito, é idêntica, aliás (ressalvadas as diferenças que decorrem de uma mais rápida degradação, tanto do valor dos bens como da sua conservação material), à das entidades bancárias que concedem crédito à habitação; não incluem a seu favor cláusulas de reserva de propriedade nos respetivos contratos de mútuo porque não são as alienantes do imóvel financiado, mas constituem outras garantias do seu crédito, reais ou pessoais (hipoteca, fiança, etc.), que também se podem usar no crédito para aquisição de veículo automóvel (…).” No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 08/03/2016 (Proc. n.º 2032/14.2TBVNG-C.P1, relatora Isabel São Pedro Soeiro).
[23]Como defende PAULO RAMOS DE FARIA, obra citada, pág. 34: “As instituições de crédito têm por exclusivo objecto o exercício das actividades elencadas nos arts. 4 e 14/1/c do DL n.º 298/92, de 31-12. Ora, neste rol não consta a compra para revenda de viaturas ou outros equipamentos, compreendendo esta operação a percepção de uma remuneração pela intermediação, ou de uma margem de lucro com a venda do bem. (…) As instituições de crédito não são, nem podem ser, revendedoras de bens de consumo, nos termos em que esta operação é realizada no contrato financiado”, podendo, todavia, colaborar com outros agentes económicos no sentido que tal colaboração apenas vise “exclusiva e inequivocamente o financiamento da aquisição de tais produtos”. Assim, nunca as mesmas adquirem o bem. O autor, a fls. 37/38, equipara mesmo a estipulação da reserva de propriedade a favor do financiador à figura do pacto comissório, porquanto se estará a estipular uma “garantia real dissimulada (arts. 240/1 e 241/1), assente em pressupostos e sujeita a condições proibidos por lei. (…) O pacto comissório, por natureza, exerce uma função de garantia especial do crédito. (…). Estamos, pois, perante uma proibição comum a todo o direito das garantias reais de fonte negocial, o mesmo é dizer, comum a todo o direito civil.” (cfr. artigo 694.º do CC). Assim também o defende o acórdão da Relação de Guimarães de 11/05/2023 (Proc. n.º 1683/23.9T8BRG.G1, relatora Conceição Sampaio).
[24]Cfr., também, o acórdão da Relação de Lisboa de 19/11/2019 (Proc. n.º 13914/19.5T8LSB.L1-7, relatora Amélia Alves Ribeiro), o qual refere, ainda, extensa identificação jurisprudencial referente à questão de que se trata no presente acórdão.
[25]Obra citada, fls. 32/33.
[26]Obra citada, pág. 17.
[27]Cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. o), do Decreto-Lei n.º 133/2009 - “«Contrato de crédito coligado» considera-se que o contrato de crédito está coligado a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços específico, se: i) O crédito concedido servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos; e ii) Ambos os contratos constituírem objetivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor for financiado pelo fornecedor ou pelo prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorrer ao fornecedor ou ao prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou o serviço específico estiverem expressamente previstos no contrato de crédito.” -, bem como o seu artigo 18.º (o qual prevê um regime especial para os contratos coligados).
[28]A forma de eventualmente ultrapassar e resolver a questão/problema atinente à estipulação de reserva de propriedade a favor do mutuante passará, assim, por uma intervenção legislativa (permitindo o alargamento da tutela prevista no artigo 409.º, n.º 1 do CC a estes casos).
[29]Nesse sentido, cfr. ELSA VAZ DE SEQUEIRA, Comentário ao Código Civil, …págs. 837.
[30]Obra citada, págs. 24/25.