INSOLVÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
ACTIVO SUPERIOR AO PASSIVO
FALTA DE LIQUIDEZ
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Sumário


1. A invocação da superioridade do ativo em relação ao passivo: é uma conclusão, impassível de prova por confissão; só pode extrair-se perante factos que tenham sido alegados e que possam julgar-se provados; não é suficiente, ainda que esteja demonstrada, para obstar ao decretamento da insolvência, instaurada nos termos do nº1 do art.3º do CIRE, quando foi alegada a falta de liquidez (por cessação da laboração do estabelecimento e falta de receitas) e a dificuldade de liquidar o ativo em tempo previsível e razoável (face à detenção do ativo por terceiro desde há dois anos e pendência de ação judicial a pedir a sua restituição)
2. A falta de cumprimento correto do ónus de alegação do art.23º/1 e 2 do CIRE (nomeadamente quanto à constituição e vencimento das dívidas invocadas como “dívidas vencidas” de lista de credores anexa) e a falta de junção dos documentos com os elementos do art.24º/1-a), b) e e) do CIRE (nomeadamente, por falta: de indicação das datas de vencimento das dívidas e das garantias; de junção da lista de ações contra a devedora/requerente; de junção de lista com identificação dos bens, dos seus valores de aquisição e dos seus valores atuais estimados), pode ser suprida mediante despacho de aperfeiçoamento do art.27º/1-b) do CIRE, que convide a requerente a suprir as faltas com a cominação de indeferimento liminar se o não fizer.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório:

Na presente ação de insolvência, instaurada por EMP01..., Unipessoal, Lda. a 06.02.2024:

1. A requerente, no seu requerimento inicial:
1.1. Apresentou-se à insolvência, pedindo o seu decretamento, mediante a seguinte alegação:
a) É uma sociedade constituída a 24.09.2019, com capital de € 5 000, 00 e objeto de atividade de café, pastelaria, croissanteria, comércio a retalho de pão, produtos de pastelaria e confeitaria e pequenas refeições no local (arts.1º a 5º), com contabilidade organizada, com atividade enquadrada em sede de IVA e IRC, com entrega de IES dos três últimos exercícios de 2020, 2021 e 2022 (arts.8º a 11º).
b) Para a instalação do estabelecimento comercial referido em a), através de um contrato de franquia, gastou mais de € 100 000, 00, em obras de remodelação e em recheio mobiliário que veio a ser montado e instalado no mesmo, recheio que lhe custou o valor de € 56 459, 15, nos termos das faturas a) a m) identificadas no art.18º da petição inicial (arts.12º a 23º).
c) Depois da abertura do estabelecimento a 17.12.2019, este sofreu as consequências da pandemia desde ../../2020, tendo caído as vendas e sendo os lucros inferiores aos esperados (arts.24º a 29º).
d) Gizou um plano para satisfazer o passivo e continuar em laboração, acordando com AA: que venderia a este a sua quota na sociedade requerente, pelo preço de € 1,00 (um euro) e este assumiria, a partir dessa cessão de quotas, todas as inerentes responsabilidades da requerente e inclusivamente a sua gerência; que esta cessão tinha dois pressupostos prévios, cumulativos e essenciais à sua concretização por AA- que este comprasse, por intermédio da sociedade EMP02... – UNIPESSOAL, LDA. (da qual era o único sócio e gerente), todo o ativo mobiliário da requerente identificado no artigo 18.º da petição inicial, pelo preço de € 41.205,00 (correspondente a € 33.500,00 + IVA à taxa de 23%), e que assumisse, por via de garantia pessoal, o pagamento do passivo da sociedade requerente que se mostrasse garantido, avalizado ou revertido sobre o único sócio e gerente da requerente BB, exonerando-o, assim, de todas e quaisquer dívidas relacionadas com a referida sociedade, nomeadamente bancárias e fiscais, condições estas aceites por AA (arts.29º a 34º).
e) Apesar do negócio ter sido fechado verbalmente (tendo ficado acordado que a sua formalização escrita, nomeadamente por via de contrato de compra e venda do recheio mobiliário a favor da sociedade EMP02... – UNIPESSOAL, LDA., e emissão da respetiva fatura de compra e venda, assim como o contrato de cessão de quotas, teriam lugar nos dias imediatamente a seguir, assim que aquele AA assegurasse as condições bancárias necessárias para a sua concretização) e todos os bens do art.18º da petição inicial terem sido levantados por AA nos finais de janeiro de 2022, a seu pedido para a abertura de uma nova pastelaria, e em excelente estado de conservação: este continuou a alegar dificuldades burocráticas para a concretização do negócio; o gerente da requerente informou-o que se o negócio não se viesse a formalizar nos termos acordados teria de pedir a restituição dos bens levantados das suas instalações, vindo a interpelá-lo depois para entregar os bens até ../../2023, sob pena de, não o fazendo, ser instaurada a competente ação judicial; a requerente instaurou a 04.09.2023, mediante a falta de entrega e de resposta deste, ação de processo comum, sob o nº2484/23...., no Juiz ... do Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca do ..., a reivindicar tais bens, uma vez que, não tendo sido celebrado contrato de compra e venda e não tendo sido pago o preço, não se transferiu a propriedade dos mesmos (arts.35º a 55º).
f) Encontra-se em situação de insolvência, com impossibilidade de pagar a generalidade das suas obrigações vencidas, por falta de liquidez, aos seus credores identificados na lista anexa à petição inicial. (arts.57º, 58º, 61º, 62º e 63º, 68º), tendo em conta:
f1) Que não tem no presente momento quaisquer trabalhadores, não se encontra em laboração, não é viável a sua continuação no mercado, não vislumbra possibilidade de gerar receitas para fazer face às suas obrigações vencidas (arts.6º e 7º, 59º, 64º a 66º).
f2) Que os seus únicos bens, com valor manifestamente superior ao passivo, encontram-se na posse de AA e EMP02...- Unipessoal, Lda., o que impossibilita de momento a sua imediata alienação para gerar liquidez que permita pagar as obrigações vencidas aos seus credores (arts.57º, 59º, 67º).
g) Defendeu e pediu que os bens indicados no art.18º da petição inicial fossem apreendidos em favor da massa para que, em sede de liquidação, se procedesse ao seu rateio pelos credores.         

1.2. Juntou documentos, entre os quais consta a identificação de 7 credores e dívidas no valor global de € 33 052, 82 (acompanhada de lista com a identificação, entre estes, dos 5 maiores credores):
- EMP03..., Unipessoal LDA, no valor de € 2 823,81.
_ Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de € 2 970,94.
_ Banco 1... S.A (Banco 1...), no valor de € 16 078,98.
_ EMP04..., Lda., no valor de € 784,00.
_ EMP05... Unipessoal, Lda., no valor de € 9 017,32.
_ EMP06... Unipessoal, Lda., no valor de € 626,37.
_ EMP07..., S.A., no valor de € 751,40.

2. A 28.02.2024 foi proferido despacho a indeferir liminarmente o decretamento da insolvência, com os seguintes fundamentos: 
«A única questão que nesta sede importa decidir é a de saber se deve ser ordenado o prosseguimento dos autos com vista à declaração de insolvência da requerida, questão que passa pela determinação da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas da requerente e/ou da existência de um passivo manifestamente superior ao ativo.
Prescreve o art. 3º nº 1 do CIRE que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. O nº 2 do mesmo preceito acrescenta que, no caso de o devedor ser uma pessoa coletiva, é também considerado insolvente “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
No presente caso a requerente alega ter um passivo de € 33.052,82 e titular de um activo mobiliário (bens que compunham o recheio do estabelecimento), no valor de € 56.459,15, correspondente ao seu valor de compra, não se encontrando tais bens na sua posse mas de terceiro, com quem terá feito um contrato de cessão de quotas, com aquisição de todo o ativo, assumindo as responsabilidades da requerente perante os credores, mediante o pagamento de um preço, que não chegou a cumprir-se, por falta de pagamento do preço à requerente, tendo esta já instaurado ação cível, através da qual reivindica a propriedade de tais bens móveis e a restituição dos mesmos. É este o único fundamento do pedido de declaração de insolvência, ou seja, a presente ação mostra-se intentada com fundamento na alegada incapacidade de pagar as obrigações vencidas.
Na verdade, resulta da alegação da requerente e dos documentos por si juntos, que a mesma é titular de um activo superior ao passivo, de onde resulta a sua capacidade de cumprir com as suas obrigações, cuja data de vencimento tão pouco foi alegada, sendo certo que a circunstância de não estar actualmente na disponibilidade dos bens móveis de que é titular, não significa que não venha a estar num futuro próximo, sendo certo que já instaurou a competente ação, nesse pressuposto e que está correr os seus termos.
A instauração da referida ação destinada à reivindicação dos bens à requerente, reforça que as dívidas que se encontrem vencidas, são-no não por impossibilidade de pagamento, mas antes por apropriação indevida de terceiro, dos bens que a ele deveriam estar afectos.
Por outro lado, o valor patrimonial da requerente, nitidamente superior ao montante do passivo por si relacionado, não permite concluir que a mesma se encontra numa situação de a tornar incapaz de, ainda que com dificuldades decorrentes do atraso da restituição dos bens de que é titular, cumprir os seus compromissos, até porque o seu património se apresenta suficiente para o cumprimento das obrigações.
Deste modo, o expressivo valor dos bens móveis de que é proprietária, por cuja reivindicação/restituição já diligenciou, estando pendente a respectiva ação instaurada pela requerente, não permite concluir pela impossibilidade de cumprimento das suas dívidas, já que possui património suficiente para o efeito.
Cremos, pois, que não basta estar temporariamente impossibilitado de cumprir com as obrigações, cuja data de vencimento aliás se desconhece – de montante que ronda os € 33.000, em virtude dos bens (móveis) se encontrarem na posse de terceiros e de valor que ascenderá a € 50.000 – para que se possa atingir a conclusão de que o devedor está impossibilitado de cumprir as suas obrigações.
A requerente nada mais alegou que possa ser valorado como circunstância do incumprimento.
Não temos, pois, factos concludentes que nos permitem concluir, mesmo perfunctoriamente, que a requerente se encontra em situação de impossibilidade de satisfazer a generalidade das suas obrigações, ao invés que possui capacidade para solver as suas dívidas.
A única coisa que podemos com segurança concluir é que existe o incumprimento de obrigações, cuja satisfação poderá ser obtida à custa do património da requerente e não, pelo menos no imediato, pelo processo de insolvência, que se não destina em primeira linha à recuperação de bens.
Assim, e porque a matéria alegada não logra preencher os requisitos necessários à declaração da situação da insolvência, previstos no art. 3º (20º nº1) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, por manifesta improcedência do pedido, impõe-se o indeferimento liminar da presente petição inicial.
Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 27º nº1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, indefiro liminarmente a petição inicial.
Custas pela requerente por lhes ter dado causa, sendo a taxa de justiça reduzida a um quarto (arts. 527º nº1 do Código de Processo Civil, 301º e 302º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa).».

3. O requerente interpôs recurso de apelação do despacho de I-2 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«A -
Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido no dia 28-02-2024, sob a ref.ª ...30, que indeferiu liminarmente a petição inicial.
- B -
Não pode a recorrente conformar-se com o teor de tal decisão, uma vez que sufraga o entendimento segundo o qual, inexiste fundamento para o indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido, pelo que, face à factualidade vertida nos autos, o tribunal a quo deveria, outrossim, ter declarado a insolvência da recorrente.
- C -
A recorrente já não se encontra a laborar e que não tem quaisquer trabalhadores a seu cargo, pelo que não está a gerar quaisquer receitas.
- D -
A situação financeira da recorrente tem vindo a agravar-se desde ../../2020.
- E -
Desde ../../2020 que as dívidas a fornecedores, à banca e ao estado têm vindo a aumentar de forma significativa.
- F -
Do ativo da recorrente fazem parte vários bens móveis, mas encontra-se desapossada dos mesmos desde finais de 2021, tendo inclusivamente instaurado ação judicial com vista à sua restituição.
- G -
O facto de se encontrar desapossada dos referidos bens (único ativo que tem) impede-a, por exemplo, de os alienar e com o produto dessa venda satisfazer as dívidas aos seus credores.
- H -
A recorrente reconheceu que esgotou a sua capacidade de conseguir pagar as suas obrigações vencidas, por manifesta falta de recursos para tal e justificou, por que motivo se encontra impossibilitada de o fazer.
- I -
A recorrente confessou na petição que se encontra irremediavelmente impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, pois sem capacidade de gerar receitas que lhe permitam a imediata liquidez e solvabilidade, a insuficiência de meios económicos e financeiros, só podia conduzir, como conduziu, à sua, inevitável asfixia, com um incumprimento generalizados das suas obrigações vencidas.
- J -
A não declaração de insolvência da recorrente perante este cenário, apenas servirá agravar, ainda mais, a já difícil situação financeira em que se encontra, mas sobretudo, e também, privar os seus credores da (legítima) satisfação dos seus créditos, ou pelo menos, a tentativa de satisfação.
- K -
A apresentação à insolvência, por parte do devedor, constitui, assim, uma verdadeira confissão, pelo que os factos que fundamentam o pedido de declaração de insolvência em situações de apresentação devem considerar-se confessados por serem desfavoráveis ao apresentante à luz do disposto nos art.ºs 352.°, 355.° n.ºs 1 e 2 e 356.° n.º 1 do Código Civil, tendo o devedor apenas tem de demonstrar os pressupostos de facto a que se referem as diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.
- L -

A matéria de facto vertida nos autos resultante da confissão expressa da devedora recorrente, preenche não um o que por si seria o bastante mas três requisitos para que a mesma DEVESSE ser declarada insolvente nestes autos: mais precisamente os referidos no art.º 20.º n.º 1 alíneas a), b) e g) ponto i) do CIRE. Ao contrário do sustentado pelo tribunal a quo, a lei não exige nestes casos que o passivo do devedor tenha de ser superior ao ativo para poder ser declarada a insolvência, tornando assim, naturalmente, inócua a questão suscitada pelo tribunal a quo de saber se o ativo da recorrente é superior ou inferior ao seu passivo.
- M -
O ativo da recorrente não lhe permite afastar a aplicação do disposto no art.º 20.º n.º 1 alíneas a), b) e g) ponto i) do CIRE, pois não é a pura e simples existência desse ativo – do qual se encontra desapossada e cuja restituição se encontra a ser judicialmente discutida -, que basta para a recorrente ser capaz de cumprir as suas obrigações: SERIA NECESSÁRIO QUE A MESMA FOSSE CAPAZ DE DISPOR DELE, e isso, como se demonstrou, nem sequer consegue fazê-lo.
- N -
Neste momento, para a recorrente, ter ativo ou não ter ativo algum é exatamente igual, pois não podendo dispor do mesmo, não consegue obstar à situação em que objetivamente se encontra de incumprimento generalizado de todas as suas obrigações vencidas.
- O -
A recorrente encontra-se objetivamente impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, independentemente de ser titular de qualquer ativo ou não.
- P -
O pedido formulado nos autos reconduz-se à declaração de insolvência da recorrente, sendo que tendo sido esta a apresentar-se isso implica o reconhecimento da sua situação de insolvência.
- Q -
A recorrente alegou (e confessou) factos que preenchem a previsão do disposto no art.º 20.º n.º 1 alíneas a), b) e g) ponto i) do CIRE capazes de permitirem concluir que se encontra objetivamente numa situação de insolvência.

- R -
Independentemente da existência ou não de ativo, a recorrente encontra-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, o que é o bastante para ser declarada insolvente.
- S -
Não se verifica, pois, manifesta improcedência do pedido passível de fundamentar o indeferimento liminar da petição de apresentação à insolvência nos exatos moldes em que foi feito no despacho recorrido, antes pelo contrário: a matéria de facto carreada para os autos justifica claramente a procedência do pedido formulado pela recorrente de declaração da sua insolvência.
- T -
Nestes termos, o despacho recorrido violou, assim, entre outros, o disposto nos att.ºs 1.º n.º 1, 3.º n.º 1, 18.º n.º 3, 20.º n.º 1 alíneas a), b) e g) ponto i) e 28.º do CIRE e art.ºs 352.°, 355.° n.ºs 1 e 2 e 356.° n.º 1 do Código Civil, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que assegure a prossecução dos autos.

TERMOS EM QUE, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que assegure o prosseguimento dos autos.
Assim,
Como sempre, farão Vossas Excelências, serena e objetiva
JUSTIÇA!».

4. Foi admitido o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
5. Recebido o recurso, nesta Relação, nos termos admitidos na 1ª instância, colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC.
Define-se como questão a decidir se o despacho de indeferimento liminar incorreu em erro de direito, por os factos alegados e confessados pela requerente preencherem os fatores presuntivos da insolvência do art.20º/1-a), b), g) e i) do CIRE e permitirem o decretamento da mesma.

III. Fundamentação:

1. Enquadramento do direito aplicável:
1.1. São considerados em situação de insolvência «1 – (…) o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. 2 - As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, (…) quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.» (art.3º/1 e 2 do CIRE).
Para este efeito, pode requerer a insolvência o próprio devedor, que tem a obrigação legal de apresentação à mesma, nos termos prescritos no art.18º do CIRE («1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la. 2 - Excetuam-se do dever de apresentação à insolvência: a) As empresas que se tenham apresentado a processo especial de revitalização durante o período de suspensão das medidas de execução previsto nos n.os 1 e 2 do artigo 17.º-E; b) As pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência. 3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência.») e no art.19º («Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores.»).
Por sua vez, pode requerer também a insolvência de um devedor «1 – (…)  qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda (…) Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; (…)
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) Tributárias; ii) De contribuições e quotizações para a segurança social; iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;» (art.20º/1-a), b), e), f) e g) do CIRE).
Neste contexto, cabe ao devedor o ónus de alegação e prova da « (…) sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no n.º3 do artigo 3.º». (arts.5º/1 do C. P. Civil, 342º/2 do C. Civil e 30º/4 do CIRE).
1.2. A apresentação à insolvência ou o requerimento oneram o requerente com um ónus de alegação dos factos integrativos dos pressupostos de decretamento da insolvência, com as identificações complementares definidas e junção de documentos, nos termos do art.23º do CIRE («1 - A apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido. 2 - Na petição, o requerente: a) Sendo o próprio devedor, indica se a situação de insolvência é actual ou apenas iminente, e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições do capítulo I do título XII; b) Identifica os administradores, de direito e de facto, do devedor e os seus cinco maiores credores, com exclusão do próprio requerente; c) Sendo o devedor casado, identifica o respectivo cônjuge e indica o regime de bens do casamento; d) Junta certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito. 3 - Não sendo possível ao requerente fazer as indicações e junções referidas no número anterior, solicita que sejam prestadas pelo próprio devedor.») e do art.24º do CIRE (nomeadamente os referidos em 24º/1-a), b) e e) do CIRE- «a) Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, nos termos do artigo 49.º; b) Relação e identificação de todas as acções e execuções que contra si estejam pendentes; (…) e) Relação de bens que o devedor detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor actual;»).
Apresentada a petição inicial, o juiz pode indeferi-la liminarmente ou proferir despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art.27º do CIRE («1 - No próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia útil subsequente, o juiz:
a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente;
b) Concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instrui-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada.
2 - Nos casos de apresentação à insolvência, o despacho de indeferimento liminar que não se baseie, total ou parcialmente, na falta de junção dos documentos exigida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 24.º é objeto de publicação no portal Citius, no prazo previsto no n.º 8 do artigo 38.º, devendo conter os elementos referidos no n.º 8 do artigo 37.º»).
Tendo sido o devedor a apresentar-se à insolvência, sem prejuízo do supra assinalado e da consideração de existência de pedido infundado, nos termos do art.22º do CIRE («A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo.»), o legislador prevê o decretamento imediato da insolvência no art.28º do CIRE («A apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento.»).
1.3. Neste quadro de III- 1.1. e 1.2. supra, a doutrina e a jurisprudência têm entendido:
1.3.1. Para haver falta de cumprimento de obrigações e impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas não é necessário que estas se reportem à totalidade das dívidas, bastando que se refiram à sua generalidade. A referida impossibilidade de satisfação de obrigações também não depende do seu valor, sem prejuízo da discussão da relevância ou irrelevância de atendimento de valores insignificantes para o decretamento da insolvência, matéria em que existe uma discordância doutrinária.
Maria do Rosário Epifânio refere que «a doutrina tem entendido desde logo que a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que a(s) dívida(s) pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor seja(m) reveladora(s) da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.»[i].
Catarina Serra defende que «para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor possa cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir).»[ii].
Alexandre de Soveral Martins refere que: «a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova imediata de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações. Basta a prova imediata que o devedor não consegue cumprir as obrigações vencidas que, por sua vez, permitam ao julgador presumir que o devedor também não tem possibilidade de cumprir as restantes. (…).Mas, por outro lado, não basta que não consiga cumprir pontualmente uma parte insignificante das suas obrigações vencidas»[iii].
1.3.2. A possibilidade ou a impossibilidade de solvência das obrigações não tem um significado jurídico no âmbito da extinção das obrigações (arts.790º ss do CC) mas tem um significado financeiro e afere-se, em particular, pela liquidez do ativo do devedor e pelas condições deste de acesso ao crédito para a satisfação das suas obrigações (de forma imediata ou em prazo julgado razoável).
Maria do Rosário Epifânio refere que «pode até acontecer que o passivo seja superior ao ativo mas não exista uma situação de insolvência, porque há facilidade de recurso ao crédito para satisfazer as dívidas excedentárias. E, por outro lado, pode acontecer que o ativo seja superior ao passivo vencido, mas o devedor se encontre em situação de insolvência por falta de liquidez do seu ativo (é dificilmente convertido em dinheiro).», anotando, em referência a Menezes Leitão, que «foi adotado o critério de fluxo de caixa, de acordo com o qual “o devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que elas se vencem”», em referência, v.g., a Abreu Coutinho, «que ativo líquido significa, por ex., dinheiro em caixa, depósitos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro»[iv].
Catarina Serra, assinalando que a insolvência decorrente da impossibilidade de cumprir não coincide necessariamente com uma situação patrimonial negativa, explica que «Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as suas obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado.»[v].
Alexandre de Soveral Martins refere que «Do que se trata, isso sim, é de não ter meios para cumprir as obrigações vencidas. Meios que o devedor não tem porque nem sequer consegue obtê-los junto de terceiros.»[vi].
O Ac. STJ de 24.01.2006, proferido no processo nº05A3958, relatado por Fernando Magalhães, conclui que:
«- É considerada em situação de insolvência a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível (art.º 3º CPEREF).
- O que verdadeiramente caracteriza a insolvência é a insuficiência do activo líquido face ao passivo exigível.
- O devedor pode ser titular de bens livres e disponíveis de valor superior ao activo, e mesmo assim, estar insolvente por esse activo não ser líquido e o devedor não conseguir com ele cumprir pontualmente as suas obrigações.»[vii].
O Ac. RL de 20.05.2010, proferido no processo nº2509/09.1TBPDL-2, relatado por Farinha Alves, sumariou:
«Deve ser considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas.
A situação de insolvência da ora apelante é evidenciada pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos, pela falta de informação em relação aos resultados da sua actividade, sabendo-se que não permitiram fazer face ao pagamento do passivo, e pela ausência de crédito, quer junto da banca, quer dos fornecedores.
E é particularmente evidenciada pela dimensão e antiguidade do crédito da ora apelada, pelo incumprimento quase total dos dois planos de pagamento da dívida que foram acordados entre as partes, sendo que o último já teve como contrapartida a extinção da instância em anterior processo de insolvência, e ainda pela inexistência de qualquer pagamento, ou proposta de pagamento deste crédito, posterior à instauração da presente acção.»[viii].

2. Apreciação da situação em análise:

O despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial, proferido imediatamente após a instauração da ação, baseou-se nos seguintes fundamentos centrais: o valor patrimonial do ativo do requerente (que entende que ascenderá ao valor de € 50 000, 00) é nitidamente superior ao do passivo (de cerca de € 33 000, 00); a impossibilidade temporária de cumprir obrigações (cujas datas de vencimento se desconhece) por o ativo, na posse de terceiro, estar a ser reivindicado em ação pendente, não corresponde a uma impossibilidade geral de solver as suas dívidas pois as mesmas podem ser satisfeitas à custa do património da requerente e por o processo de insolvência não se destinar em primeira linha à recuperação do património do devedor.
A recorrente defendeu o erro do despacho, por estarem preenchidas presunções de insolvabilidade e a requerente não ter qualquer liquidez para satisfazer as dívidas vencidas.
Impõe-se apreciar o recurso de acordo com o direito aplicável referido em III-2.1. supra.

Por um lado, a superioridade do ativo em relação ao passivo de cerca de € 33 000, 00, invocada conclusivamente no requerimento inicial e considerada pelo tribunal como obstativa da consideração da insolvência:

a) Não pode julgar-se reconhecida confessoriamente, nos termos dos arts.352º ss do CC, uma vez que se trata de afirmação conclusiva e apenas podem ser reconhecidos confessoriamente factos concretos e desfavoráveis ao interesse da confitente.
b) Não há elementos que permitam conhecer o valor dos bens móveis do ativo da requerente na data da instauração da ação de insolvência a 06.02.2024 (por confissão de valor alegado que seja desfavorável ou por presunção de factos decorrente de outros factos alegados e provados, nos termos dos arts.349º e 351º do CC), de forma a poder afirmar na apreciação jurídica que este é superior ao passivo, tendo em conta, que no requerimento inicial a insolvente:
b1) Alegou: que o ativo móvel indicado custou em 2019 o valor global € 56 459, 15, o que corresponde a 4 anos antes da instauração da presente ação de insolvência; que no final de 2021 foi acordada a venda do ativo móvel pelo valor já reduzido de € 41 205, 00 (€ 33 500, 00 + IVA), o que corresponde ao período superior a 2 anos antes da instauração da presente ação e a uma redução de mais de € 15 000, 00 do valor inicial; que em janeiro de 2022 o referido ativo móvel foi transferido para o estabelecimento comercial de pastelaria de AA, o que permite constatar que passaram 2 anos até à instauração da ação e presumir que o ativo esteve a uso, ficando sujeito a natural e notório desgaste e desvalorização (arts.351º do CC e 412º do CPC).
b2) Não alegou o valor estimado atual dos bens móveis (nomeadamente atendendo ao tempo decorrido e desgaste referidos em b1) supra), nomeadamente por indicação na relação de bens a que se refere o art.24º/1-e)-2ª parte do CIRE.

Por outro lado, a superioridade do ativo em relação ao passivo, ainda que existisse (e que, como se referiu no parágrafo antecedente, não pode ser concluída): apenas é relevante para obstar ao preenchimento da previsão especial de insolvência do nº2 do art.3º, nos termos da al. a) do nº3 do art.3º do CIRE; mas já não tem relevo essencial para obstar à insolvência com o fundamento no nº1 do art.3º do CIRE (para a qual o art.20º indica factos índice), uma vez que pode existir impossibilidade de satisfação das dívidas vencidas, mesmo quando o ativo é superior ao passivo, quando não existe liquidez ou possibilidade de obtenção da mesma em tempo razoável (como decorre dos factos alegados- de inexistência de atividade geradora de receitas e do facto dos únicos bens de que se requerente se arroga titular serem bens móveis, em posse de terceiro e objeto de uma ação litigiosa).
Por fim, não se pode afirmar que o pedido de apreensão dos bens na insolvência (que a requerente considera que ainda integram o seu património, face à falta de formalização do contrato, apesar dos pressupostos do mesmo terem sido já acordados), para liquidar e pagar aos sete credores identificados, corresponda ao uso do processo de insolvência para obter a restituição do património própria de um processo de reivindicação.
Assim, verifica-se que os fundamentos da decisão não permitem por si só, obstar ao decretamento da insolvência.
Aqui chegados, importa apreciar se os factos alegados e os documentos juntos permitem o decretamento da insolvência, como pretende a recorrente.

Examinando a petição inicial e os documentos juntos, verifica-se que a requerente/recorrente:

a) No seu requerimento inicial: não alegou os factos constitutivos das dívidas e as suas datas de vencimento, invocando simplesmente a existência de dívidas vencidas e não pagas (em relação às quais alegou os factos com os quais pretende fundamentar a impossibilidade de as pagar) e referindo juntar uma lista das mesmas (referida em b1) infra); não fez a indicação expressa se a sua situação é de insolvência atual ou apenas iminente, nos termos do art.23º/2-a)- 1ª parte do CIRE.
b) Nos documentos juntos com o requerimento inicial (para os efeitos do art.24º do CIRE):
b1) Apresentou lista de credores, na qual: foram indicados e identificados 7 (sete) credores e o valor do crédito de cada um (nos termos relatados em I-1.2. supra, no valor global de cerca de € 33 000, 00), mas sem qualquer identificação das datas de vencimento de cada um destes 7 (sete) créditos, nem da existência ou não de garantias dos mesmos, conforme o exige a referida norma do art.24º/ 1-a) do CIRE (que exige que os créditos sejam indicados não apenas com valores, mas com as datas de vencimento e com a indicação da natureza e garantias que beneficiem).
b2) Não apresentou a relação de ações e execuções pendentes contra a requerente, nos termos do art.24º/1-b) do CIRE (ou informação de inexistência das mesmas).
b3) Não apresentou a lista de bens do ativo do art.24º/ 1-e) (ainda que possa apenas relevar a 2ª parte) do CIRE, com indicação não só dos valores individuais de aquisição mas dos valores estimados dos bens móveis na atualidade (nomeadamente, tendo em conta o tempo decorrido e o tempo de uso dos mesmos).
Desta forma, o processo não dispõe de elementos que permitam decidir sobre o pedido de decretamento da insolvência.
Assim, proferir-se-á despacho de aperfeiçoamento a convidar a requerente a suprir as deficiências identificadas, nos termos do art.27º/1-b) do CIRE), com a cominação de indeferimento do requerimento inicial, se os mesmos não forem cumpridos.
Após, caberá ao Tribunal a quo apreciar o pedido de insolvência, face à totalidade dos elementos que dispuser e ao regime legal aplicável (e explicado nesta decisão).

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, julgando procedente o recurso de apelação, acordam em:

1. Revogar a decisão recorrida.
2. Convidar a requerente, no prazo de 5 dias (após o trânsito em julgado deste acórdão), e com a cominação de indeferimento se não cumprir:
2.1. A juntar petição inicial aperfeiçoada, nos termos do art.23º/1 e 2-a) do CIRE, na qual: supra a conclusividade da invocação das “dívidas vencidas”, alegando os factos essenciais constitutivos das mesmas e do vencimento de cada uma; indique expressamente se a sua situação é de insolvência atual ou apenas iminente.
2.2. A juntar:
a) Uma lista corrigida de credores, nos termos do art.24º/ 1-a) do CIRE, de forma a que sejam identificadas as datas de vencimento de cada um destes 7 (sete) créditos e indicadas a natureza e as garantias dos mesmos.
b) A lista discriminada prevista no art.24º/ 1-b) do CIRE (ou a informação de inexistência das ações).
c) A lista discriminada de bens do art.24º/ 1-e) do CIRE (na qual, quanto aos valores, sejam indicados não só os valores individuais de aquisição mas também os valores estimados dos bens móveis na atualidade).
3. Relegar para o Tribunal a quo a apreciação do pedido, após IV-2 supra.

*
Custas pela recorrente, pois, apesar de não ter ficado vencida, obteve proveito com a decisão do recurso (art.527º do CPC).
Guimarães, 11 de julho de 2024
Assinado eletronicamente pelo coletivo de Juízes

Alexandra Viana Lopes (Juiz Desembargadora Relatora)
Rosália Cunha (Juiz Desembargadora 1ª Adjunta)
Lígia Venade  (Juiz Desembargadora 2ª Adjunta)


[i] Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, Outubro de 2020, pág.27.
[ii] Catarina Serra, in Lições da Insolvência, Almedina, 2019, Reimpressão, pág.58.
[iii] Alexandre de Soveral Martins, in «Um Curso de Direito da Insolvência», Almedina, 3ª Edição revista e atualizada,, pág.62.
[iv] Maria do Rosário Epifânio, in obra citada, pág.28, notas 41 e 42.
[v] Catarina Serra, in obra citada, pág.58.
[vi] Alexandre de Soveral Martins, in obra citada, pág.62.
[vii] Disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/884925eff030b91d8025711800489f3d?OpenDocument
[viii] O Ac. RL de 20.05.2010, proferido no processo nº2509/09.1TBPDL-2, encontra-se disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a413b150db6237988025778f0052936d?OpenDocument