ACIDENTE DE TRABALHO
AFERIÇÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL
REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012
EXTENSÃO DE COMPETÊNCIA/ ARTIGOS 26º E 28º DO REGULAMENTO
Sumário

I - Tendo em conta o disposto nos artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, do Código do Processo do Trabalho, desde que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas nesse Código, os tribunais do trabalho portugueses serão, por essa razão, internacionalmente competentes, mas sem prejuízo, porém, para além do mais, do que se encontre estabelecido em convenções internacionais, que lhes retirem essa competência.
II - O Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, regula também a competência internacional em matéria de acidentes de trabalho.
III - Independentemente das regras específicas previstas no referido Regulamento, contendo também esse, ainda, normas que regulam a extensão de competência e, também, o conhecimento oficioso da competência internacional por parte dos Estados-Membros, desde logo nos artigos 26.º da Secção 7 (Extensão de Competência) e 28.º da Secção 8 (Verificação da competência e da admissibilidade), da conjugação do regime aí previsto, extrai-se que o conhecimento oficioso em matéria de competência internacional, à luz das regras estabelecidas do Regulamento, nos casos em que o requerido domiciliado num Estado-Membro seja demandado no tribunal de outro Estado-Membro, apenas é permitido quando aquele não compareça em juízo ou quando comparecendo a sua intervenção no processo tenha tido como único objetivo a arguição da incompetência do Tribunal.

Texto Integral

Apelação / processo n.º 430/19.4T8PNF.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 1

Autor: AA

Rés: A...” e

B...., S.A.


______


Nélson Fernandes (relator)

Rui Penha

Eugénia Pedro

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. Nos presentes autos de processo especial, emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado AA, figurando como entidade responsável “A...”, pessoa coletiva de direito alemão e com sede na Alemanha, realizada na fase conciliatória, em 1 de abril de 2022, a tentativa de conciliação, resulta do respetivo auto nomeadamente o seguinte:

«(…) Sinistrado: AA, (…) Endereço: Rua ..., ..., ... ...

Entidade Responsável: A..., que se fez representar pelo mandatário o Exm. Sr. Dr. BB com procuração/substabelecimento a fls. 250.

Iniciada a diligência pelo:

SINISTRADO foi dito: Que no dia 30 de maio de 2017, cerca das 10:30 horas, na Alemanha, foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia as funções de pedreiro de 1ª sob as ordens, direção e fiscalização da entidade empregadora com a designação “B.... Lda”, domiciliada na Estrada ..., ... - ..., Edifício ..., ... ..., mediante a retribuição horária de €. 13,25, perfazendo o montante mensal de €. 3.498,00 x 12 (total anual de €. 41.976.00), cuja a responsabilidade estava transferida para a Seguradora “A...”.

O acidente ocorreu quando estava a cortar uma chapa metálica com uma rebarbadora e foi atingido pela mesma máquina na mão esquerda.

Submetido a exame médico no gabinete médico-legal de ..., foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 16,080% e fixada a data da alta em 28 de maio de 2018, cujo resultado declara aceitar.

Não lhe foram pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta.

Reclama a pensão anual e vitalícia de €4.724,82 devida a partir de 29 de maio de 2018, calculada com base na retribuição anual de €. 41.976,00 x 70% x IPP de 16,080%, nos termos do disposto no artº 48º, nº 3, alínea c) e 75º, nº 1, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, bem como a quantia de €. 20,00 relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de ... e a este Tribunal.

Reclama, ainda, a quantia de €. 3.635,55 de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporárias.

Não se opõe e requer o pagamento dos valores acima através de transferência bancária, indicando para o efeito - IBAN: (…)

Pelo legal representante da Companhia de Seguros foi dito: Admite que o sinistrado no dia 30 de maio de 2017, cerca das 10:30 horas, na Alemanha, sofreu um acidente quando exercia as funções de pedreiro de 1ª naquele país por força de destacamento pela empresa “B.... Ldª”.”

Aceita, assim, que o sinistrado sofreu um acidente e, bem assim a respetiva caraterização como acidente de trabalho.

Porém, entende que os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer dos factos em causa nestes autos.

Sem prescindir: Mais pugna e caso assim se não entenda, que o caso seja analisado à luz da lei alemã aplicável.

Ainda sem prescindir: Defende que a responsabilidade infortunística decorrente do sinistro em causa nos autos se encontrava transferida para o sistema de segurança social alemão e o sinistrado aceitou a reparação das consequências do sinistro ao abrigo desse mesmo regime.

Sempre sem prescindir: Caso se entenda aplicável a lei portuguesa em tribunal português, devem ser chamados à ação a entidade patronal e sua entidade seguradora portuguesa.

Também sem prescindir: Não aceita o resultado do exame pericial realizado no GML no que tange aos períodos de incapacidades temporárias assim como não aceita a atribuição de IPP ao sinistrado, o qual considera curado sem qualquer desvalorização.

Não aceita pagar qualquer valor ao sinistrado pelos períodos de incapacidade temporária identificados pelo sr. Perito médico-legal porquanto, ao abrigo do regime alemão aplicável pagou já valor superior ao devido quanto a tais períodos de incapacidade.

Assim, não aceita responsabilizar-se pelas consequências do sinistro e daí que não se concilia.

PELO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, FOI DITO: Dada a posição assumida pelas partes, dava-as por não conciliadas. (…)»

2. Desencadeou AA, com o patrocínio oficioso do Ministério Público, a fase contenciosa do processo, apresentando petição inicial, na qual indicou como Ré A..., pessoa coletiva de direito alemão e com sede na Alemanha.

2.1. Na contestação que apresentou, no que ao presente recurso importa, começou a Ré por excecionar a incompetência internacional dos tribunais portugueses, defendendo que a competência assiste aos tribunais alemães, concluindo a sua contestação nos termos seguintes:

«(…) A) deverá a exceção de incompetência Internacional dos tribunais portugueses ser julgada procedente por provada, e, em consequência, ser a mesma absolvida da instância;

Sem prescindir,

B) deverá ser aplicável a lei alemã;

Sem prescindir

C) deverá o pedido de intervenção principal provocada da B...., Lda. e de eventual entidade seguradora ser julgado procedente, sendo, tais entidades citadas, para os devidos e legais efeitos;

E

D) deverá a exceção de ilegitimidade passiva da R./seguradora ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser a mesma absolvida da instância;

Sem prescindir

E) deverá a exceção extintiva da obrigação de reparação do sinistro ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser a mesma absolvida dos pedidos;

Sem prescindir, em todos os casos

F) deverá a presente ação ser julgada improcedente por não provada e, em consequência ser a R. absolvida dos pedidos contra si deduzidos.»

2.2. Respondeu o Autor, pugnando, para além do mais, pela improcedência da alegada exceção.

2.3. Determinada nos autos a respetiva intervenção, apresentou-se B...., S.A., a contestar, excecionando também a incompetência internacional dos tribunais portugueses, para concluir, a afinal, do modo seguinte:

«Nestes termos, e nos demais de direito que doutamente se suprirão, deve a presente ação, no que à 2.ª Ré diz respeito, ser julgada integralmente improcedente, sendo a 2.ª Ré integralmente absolvida de todos os pedidos formulados contra si nos presentes autos.”

2.3.1. O Autor e a Ré apresentaram respostas.

3. Seguindo os autos os seus termos subsequentes, aquando do saneamento dos autos, em 1.ª instância, conhecendo da invocada exceção, foi proferida decisão de cujo dispositivo consta:

“Pelo exposto, julga-se procedente a excepção de falta de competência internacional dos Juízos do Trabalho Portugueses e:

1) Absolve-se a R. A... da instância;

2) Julga-se extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto à interveniente B...., Lda..

Custas a cargo do A., nos termos do disposto no artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.”

3.1. Notificado, apresentou o Autor requerimento de interposição de recurso, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1- Com o presente recurso pretende o Autor impugnar a decisão proferida quanto à matéria de direito, considerando incorretamente interpretado e aplicados os artigos 10º nº 2, 15º do CPT, artigos 2º e 3º do regulamento (CE) nº 44/2001;

2- Senão vejamos, o Autor é português, reside e sempre residiu em Portugal, mais concretamente no concelho ..., tendo celebrado um contrato de trabalho e um acordo de destacamento temporário de trabalhador a termo em Portugal, com uma empresa que tem sede em ..., mais concretamente na Estrada ..., ..., - ..., Edifício ...., ... ...;

3- Ocasionalmente, no exercício das suas funções, sob ordens, fiscalização e orientação da sua entidade empregadora, deslocava-se a outro País, nomeadamente a Alemanha, onde sofreu um acidente de trabalho;

4- Ora, não é pelo facto de ser destacado ocasionalmente para outro país, que signifique que a sua residência altere, para cada local diverso onde está contratualmente obrigado a prestar funções, não podendo entender como coincidentes os termos “local de exercício de funções” e “domicilio”;

5- O sinistrado nunca alterou a sua residência, para fora de Portugal.

6- Assim, tendo em consideração o supra exposto deve o Tribunal Português ser considerado internacionalmente competente para conhecer do mérito da causa;

7- A competência internacional é um pressuposto processual – uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa;

8- Afere-se pelos termos em que a ação é proposta, atendendo-se aos fundamentos invocados e ao pedido formulado, “pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida – pedido - e os respetivos fundamentos - causa de pedir”, sendo irrelevantes circunstâncias que venham a ocorrer posteriormente;

9- Tendo em consideração, os termos da acção delineados pelo autor na Petição inicial, impõem-se concluir que este tribunal é internacionalmente competente para a tramitação da presente ação, veja-se neste sentido o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10/12/2009, disponível em www.dgsi.pt,com o n.º de processo: 09S0470). E ainda o Acórdão da RP de 27 de setembro de 2017 (CJ, Coimbra, 1976-, ISSN 0870-7979. - A. 42, tomo 4, n.º 281 (agosto-outubro 2017) p. 222-225);

10 - O Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12 de dezembro relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, mais concretamente no ponto 18, que estabelece que no respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral;

11 - Na verdade, o artº 6º do RJAT (Lei º 98/2009, de 04/09) permite ao sinistrado optar pela aplicação da legislação portuguesa à reparação do sinistro de que foi vítima, tendo o mesmo realizado essa opção a 01/02/2019, quando apresentou, nos termos legais, a participação do presente acidente de trabalho no Juízo do Trabalho da sua área de residência (artº 15º, nº 2 CPT);

12 -É jurisprudência pacífica que “para a determinação do Tribunal competente, não releva o facto do acidente ter ocorrido no estrangeiro;

13 - Pelo exposto, deve a douta sentença ora recorrida, ser revogada, sendo declarada improcedente, por não provada, a excepção de incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho de Penafiel, devendo outrossim, ser declarada a competência internacional desse Tribunal no presente pleito emergente de acidente de trabalho, devendo o processo correr os seus termos, até final;

14 - Assim, ao decidir como decidiu, a douta sentença violou, entre outras, as normas contidas nos artigos 10º, 15º do CPT, 20 CRP e 6 do RGJT.”

3.1.1. Contra-alegou a Ré, concluindo do modo seguinte:

“1. O presente recurso não merece provimento, pois, salvo o devido respeito, bem o andou o Tribunal a quo ao considerar julgar procedente a exceção de falta de competência internacional dos Juízos do Trabalho Portugueses.

2. A Recorrente, nas Alegações a que se responde não faz qualquer reparo aos factos dados como provados supramencionados, mas apenas à aplicação subsumível aos factos dados como provados.

3. A Recorrida acompanha o entendimento do Tribunal a quo e entende que o presente recurso interposto pela Recorrente carece de fundamento e deverá ser totalmente julgado improcedente.

4. Resulta dos presentes autos que o local do acidente de trabalho do Recorrente foi na Alemanha, que o Recorrente estava, efetivamente, a residir na Alemanha, que tinha um seguro de acidentes de trabalho com a Recorrida, com sede na Alemanha, e estava abrangido pelo sistema de segurança social alemão.

5. Com efeito, a respeito do n.º 2 do artigo 15.º do CPT (sendo que o n.º 1 nunca seria aplicável), será de referir que, atento o período estimado de destacamento, e em face dos descontos a serem efetuados no país de destino, o Recorrente residia na Alemanha e não em Portugal, pelo que nenhum Tribunal Português poderia ser o eleito para a análise da contenda em apreço.

6. Seja como for, ainda que durante o período de destacamento, o Recorrente mantivesse o seu domicílio fiscal em Portugal, tal não seria, por si só, condição suficiente para determinar a competência internacional dos tribunais de trabalho portugueses.

7. A Douta Sentença não incorreu em qualquer erro de aplicação do direito, tendo valorado devidamente a prova carreada nos autos.

8. Assim, atendendo ao enquadramento legal quanto aos factos dados como provados, doutamente explanado no Despacho Saneador- Sentença, bem andou o Tribunal a quo, a considerar-se incompetente.”

3.1.2. Também a Interveniente / ré contra-alegou, concluindo nos termos que se seguem:

“A. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 1, que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência internacional, e, em consequência, absolveu a 1.ª Ré da instância e declarou extinta a instância também em relação à 2.ª Ré, ora Recorrida, por inutilidade superveniente da lide.

B. In casu, o Recorrente pretendeu, com a propositura da acção, que o acidente que sofreu fosse apreciado e julgado pelos Tribunais Portugueses, o que não é passível de enquadramento na legislação aplicável.

C. O destacamento tem como pressuposto prévio a existência de uma efectiva relação laboral anterior no momento do destacamento, constatando-se que, no caso concreto, o Recorrente e a Recorrida celebraram contrato de trabalho a termo certo, acordo de destacamento e aditamento a tal acordo em termos de alojamento precisamente para o período indicado no acordo de destacamento.

D. Sem prejuízo, e mesmo que se considere aplicável a figura do destacamento, a verdade é que no acordo celebrado entre o Recorrente e a Recorrida foi estipulado que são aplicáveis ao Recorrente as condições de trabalho previstas na legislação do país de destino, que o horário de trabalho será fixado de acordo com a legislação do país de destino, que o trabalhador terá direito a férias pagas nos termos estabelecidos pela legislação do país de destino e que auferirá a retribuição mínima aplicável no país de destino, ou seja, na Alemanha.

E. Acresce que, conforme acordo celebrado, as partes estabeleceram ainda que o alojamento, a alimentação na Alemanha e os custos de viagem ficavam a cargo do Recorrente. E que os cuidados de saúde ou seguro seriam directamente suportados pela segurança social alemã, podendo aí ser beneficiário de seguro de acidentes de trabalho, como efectivamente foi, sendo seguradora a 1.ª Ré.

F. Acresce que, é indiscutível que, no momento do acidente, o A. tinha residência em morada certa, em Estugarda, Alemanha, tendo aliás sido essa a morada indicada pela entidade empregadora e pelos serviços clínicos, para efeitos de participação do acidente de trabalho e assistência clínica ao Recorrente.

G. Por outro lado, era na Alemanha que o Recorrente tinha alojamento, trabalhava, auferia rendimentos de trabalho e procedia a descontos para efeitos de imposto sobre o rendimento e segurança social alemães.

H. Assim, nunca se poderia afirmar que o Recorrente tinha, à data do acidente, residência em Portugal, nem, consequentemente, considerar-se aplicável o disposto no artigo 15.º n.º 2 do CPT para efeitos de competência internacional dos tribunais Portugueses, como pretende o Recorrente.

I. Impõe-se, assim, concluir pela incompetência internacional dos Juízos do Trabalho Portugueses para a apreciação e julgamento dos pedidos formulados pelo A. e ora Recorrente, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao julgar procedente a excepção dilatória de incompetência internacional do Juízo do Trabalho de Penafiel e absolver a 1.ª Ré da instância e julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto à 2.ª Ré, ora Recorrida, pelo que deve a decisão ser recorrida ser mantida qua tale pelo Venerando Tribunal ad quem.”

3.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância, como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

4. Nesta Relação, aberta vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso, parecer esse que, notificado às partes, não foi objeto de pronúncia.

Respeitadas as formalidades legais, cumpre decidir:

II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso – artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável “ex vi” do artigo 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, as questões a decidir são as seguintes: (1) matéria de facto; (2) saber se o Tribunal a quo errou na aplicação da lei e do Direito, ao considerar incompetentes os tribunais portugueses.


***

III – Fundamentação

A) Fundamentação de facto

Da decisão recorrida fez-se constar:

“(…) no caso em apreço, resulta demonstrado que:

A) No dia 30/05/2017, cerca das 10h30m, na Alemanha, o A. sofreu um acidente quando prestava funções sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade B.... Lda., com sede na Estrada ..., ..., ..., Edifício ...., ..., sua entidade empregadora, exercendo as funções de pedreiro de 1ª, mediante a retribuição horária de € 13,25, perfazendo o montante mensal de € 3.498,00, no valor anual de € 41.976,00;

B) O acidente ocorreu na altura em que o A. se encontrava a cortar uma chapa metálica, utilizando para tanto uma rebarbadora, tendo o disco atingido a sua mão esquerda;

C) À data do acidente a entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho em que o A. fosse interveniente transferida para a ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...22;

D) O A. celebrou com a sociedade B.... Lda. um contrato de trabalho a termo certo, datado de 02/05/2017, com início em 10/05/2017 e termo a 31/12/2017, com a categoria profissional de pedreiro de 1ª, nos termos constantes de fls. 20 verso a 25 verso dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

E) O A. celebrou com a sociedade B.... Lda. um contrato de destacamento temporário de trabalhador a termo, datado de 02/05/2017, com início em 10/05/2017 e termo a 31/12/2017, para exercer funções de pedreiro de 1ª na Alemanha, nos termos constantes de fls. 26 a 29 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas, do qual consta:

1) Na cláusula 4ª nº 3 que “O Trabalhador terá direito às condições de trabalho previstas na legislação do país de destino”;

2) Na cláusula 5ª nº 1, que “O horário de trabalho a cumprir pelo Trabalhador será fixado de acordo com a legislação do país de destino, designadamente, caso exista, com o contrato colectivo de trabalho aplicável naquele país”;

3) Na cláusula 6ª nº 1 que “O Trabalhador terá direito a férias pagas nos termos estabelecidos pela legislação do país de destacamento”;

4) Na cláusula 7ª nº 1 que “O Trabalhador, durante o seu destacamento em Alemanha e enquanto essa situação se mantiver, auferirá a retribuição mínima aplicável no país de destino e disporá dos benefícios estabelecidos no Anexo I ao presente Acordo”;

5) Na cláusula 8ª, que “O alojamento e alimentação no país de destino ficarão a cargo do Trabalhador”;

6) Na cláusula 9ª nº 1, que “O Trabalhador custeará as viagens necessárias ao exercício das suas funções no país de destino, nomeadamente no início e no termo do destacamento, sem prejuízo de a Primeira Contraente lhe poder atribuir, como reembolso das inerentes despesas, um valor pago a título de subsídio de viagem”;

7) Na cláusula 4.1 do Anexo, que “Durante o período de destacamento, o trabalhador terá acesso aos cuidados de saúde no país de destacamento, como se estivesse em Portugal, na medida em que se encontra enquadrado como trabalhador destacado em país da União Europeia, (…) ou, estar seguro em termos de doença, directamente pela Segurança Social do país de destino”;

8) Na cláusula 4.3 do Anexo, que “O Segundo Outorgante, por imposição legal, poderá ser beneficiário do seguro de acidentes de trabalho, no país de destino;

F) Foi celebrado entre o A. e a sociedade B.... Lda. um aditamento a acordo de destacamento temporário (alojamento) datado de 02/05/2017, do qual consta na cláusula 1ª nº 1 que “Durante a prestação do serviço no país de destacamento, no período compreendido entre 10/05/2017 e 31/12/2017, a Empresa disponibiliza ao Trabalhador, mediante o pagamento do respectivo preço, alojamento em apartamento ou contentor perto do local de trabalho (…)”, na cláusula segunda que “O Trabalhador obriga-se a reembolsar a Empresa, até ao final de cada mês, dos custos com o respetivo alojamento, sendo o mesmo no valor diário de 8,00 €, com IVA incluído, em vigor no país de destacamento”;

G) Na cláusula terceira do aditamento indicado em F) são estabelecidas as obrigações do Trabalhador, da mesma constando que este é também responsável por danos causados por pessoas que o visitem;

H) Dos recibos de vencimento do A., emitidos pela sociedade B.... Lda., referentes aos meses de Maio a Julho e Dezembro de 2017 consta como morada do A. Estugarda e o desconto de quantias para a Segurança Social ... e imposto sobre o rendimento alemão, nos termos constantes de fls. 781 verso e 782 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

I) Dos recibos de vencimento do A., emitidos pela sociedade B.... Lda., referentes aos meses de Maio e Junho de 2017 consta o desconto de quantia referente a retenção de renda;

J) Relativamente ao ano de 2017 o A. entregou declaração anual modelo 3 para efeitos de IRS na qual declarou um rendimento auferido no estrangeiro no valor total de € 5.681,04 e imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro no valor de € 590,61;

K) Na data do acidente o A. apresentava como residência a morada ..., Alemanha, nos termos constantes do relatório do médico especialista em acidentes de trabalho datado de 30/05/2017 e do relatório de acidente elaborado pela sociedade B...., Lda. em 31/05/2017, juntos e traduzidos a fls. 89 verso, 117, 738 e 739 dos autos;

L) O A. foi contratado pela sociedade B...., Lda. para ser de imediato destacado para a Alemanha, não tendo sido inscrito na Segurança Social Portuguesa;

M) A retribuição mensal do A. era transferida para a conta bancária com o IBAN  ...20.”


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B) Discussão

1. Introito

Resultando, do que imediatamente antes transcrevemos, que na decisão recorrida ocorreu expressa pronúncia a respeito dos factos que se consideraram demonstrados, no entanto, porém, tal como aliás o salienta a Ré nas contra-alegações (assim conclusão 2.ª, dizendo que “nas Alegações a que se responde não faz qualquer reparo aos factos dados como provados supramencionados, mas apenas à aplicação subsumível aos factos dados como provados”), vendo-se o que o Recorrente fez constar das conclusões, que como o dissemos antes delimitam (salvo questões de conhecimento oficioso) o objeto do recurso, constata-se que, muito embora faça referências (assim nas conclusões 2.ª a 5.ª) que podem considerar-se relacionadas com tal factualidade, que como se disse se teve como demonstrada, no entanto, porém, caso a intenção tivesse sido a de dirigir o recurso à impugnação da matéria de facto, entendemos que que não está em condições de ser admitido nessa parte, como melhor esclareceremos de seguida.

Dispondo o n.º 1 do artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do CPT, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, aí se abrangendo, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.

Dispõe-se no artigo 640.º, do CPC, o seguinte:

“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”.

A respeito do cumprimento do ónus estabelecido na citada alínea c) do n.º 1, se pronunciou, muito recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 17 de outubro de 2023[1], uniformizando a Jurisprudência nos seguintes termos: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.

Muito embora apenas tenha sido fixada jurisprudência a respeito da referida alínea, resultam, porém, do mesmo Acórdão, assim da sua fundamentação, considerações que temos como claramente relevantes quanto às demais exigências que resultarão do mesmo preceito, nos termos que seguidamente se transcrevem:

«(…) Desse modo, impõe-se a respetiva harmonização com os mais ditames no que concerne à admissibilidade do recurso, legitimidade para recorrer, prazos para tanto, bem como as regras no que concerne ao modo de interposição, no que para aqui releva, os recursos interpõem-se por meio de requerimento, devendo conter obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade, artigo 637, n.º 1 e n.º 2, especificando o n.º 1, do artigo 639, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, artigo 639, n.º 1, preceito legal de cariz genérico, reportando-se assim aos recursos onde sejam apenas suscitadas questões de direito, mas também se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto(57), procedendo à delimitação do objeto do recurso, como avulta do previsto no artigo 635, n.º 3 e 4.

Em conformidade, não surpreende que no artigo 640 não se faça qualquer referência aos aspetos formais, antes enunciados, relevando sim, que sejam dadas essencialmente as indicações previstas na alínea a), na medida em que as mesmas delimitam a atividade de reapreciação junto do Tribunal da Relação, do julgado quanto à matéria de facto.

4 - Não pode, no entanto, ser esquecida a ratio legis, no atendimento dos princípios já enunciados na abordagem do histórico do preceito, que seria despiciendo repisar, mas também, e com eles necessariamente relacionados, os hodiernos vertidos no vigente Código de Processo Civil, caso do princípio da cooperação, enquanto responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, numa visão instrumental do processo para a obtenção da solução justa e atempada do litígio, bem como, com as devidas adaptações, o dever da gestão processual na vertente da respetiva adequação, sublinhando a prevalência da matéria em relação à forma, sempre pautados pelo dever de boa-fé, não esquecendo o ónus de alegação, numa pretendida colaboração ativa para a apreciação a realizar pelo Tribunal, inculcada com a inclusão do apontamento da decisão alternativa, e tendo presente a imprescindível consideração da proporcionalidade e razoabilidade que para a causa em concreto seja atendível e se justifique.

Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.

Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador(58), chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso(59), conforme o n.º 1, alínea c) (60) do artigo 640, apresentando algumas divergências ou em sentido não totalmente coincidente, vejam-se os Autores, Henrique Antunes(61), Rui Pinto(62), Abílio Neto(63).

5 - Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada. (…)»

Do que nos afigura resultar da citada fundamentação, consideramos adequado, em face do que resulta da lei, o entendimento de que, para cumprir os ónus legais, o recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões, sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, como estabelecido na alínea a) do n.º 1 do preceito citado, enquanto definição do objeto do recurso – noutros termos, já quando ao cumprimento do disposto nas alíneas b) e c) do mesmo número, desde que vertido no corpo das alegações, a respetiva não inclusão nas conclusões não determina tal rejeição do recurso –, sendo que, aplicando então tal entendimento ao caso, porque entendemos que não foi afinal expressamente cumprido tal ónus legal, então, o recurso não deverá ser admitido nesta parte, o que se decide.

2. Dizendo de Direito

Como resulta da decisão recorrida, nessa declarou-se procedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, sendo que, no recurso que interpôs, para ver afastado o decidido, apresentou o Apelante como argumentos, o que fez constar das conclusões que apresentou e que antes transcrevemos.

Pronunciam-se as Apeladas nas contra-alegações pela adequação do julgado.

Por sua vez, no parecer que emitiu, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto considera que o recurso deve proceder.

Tendo em vista a apreciação da questão que nos é colocada, constata-se que se fez constar da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«O CPC estabelece os factores que dependem da competência internacional dos tribunais.

Assim, o artigo 62º do CPC prevê que: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

Acrescentando o artigo 65º do CPC que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.”

Em matéria laboral, a competência internacional dos tribunais Portugueses encontra-se prevista no artigo 10º do CPT, de acordo com o qual:

“1 - Na competência internacional dos juízos do trabalho estão incluídos os casos em que a ação pode ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas neste Código, ou em que os factos que integram a causa de pedir na ação tenham sido praticados, no todo ou em parte, em território português.

2 - Incluem-se, igualmente, na competência internacional dos juízos do trabalho:

a) Os casos de destacamento para outros Estados de trabalhadores contratados por empresas estabelecidas em Portugal;

b) As questões relativas a conselhos de empresas europeus e procedimentos de informação e consulta em que a administração do grupo esteja sediada em Portugal ou que respeita a empresa do grupo sediada em Portugal”.

Sendo que, no que se refere aos acidentes de trabalho, estabelece o artigo 15º do CPT que:

“1 - As ações emergentes de acidentes de trabalho e de doença profissional devem ser propostas no juízo do trabalho do lugar onde o acidente ocorreu ou onde o doente trabalhou pela última vez em serviço suscetível de originar a doença.

2- Se o acidente ocorrer no estrangeiro, a ação deve ser proposta em Portugal, no juízo do trabalho do domicílio do sinistrado.

3- As participações exigidas por lei devem ser dirigidas ao juízo do trabalho a que se referem os números anteriores.

4- É também competente o juízo do trabalho do domicílio do sinistrado, doente ou beneficiário se ele o requerer até à fase contenciosa do processo ou se aí tiver apresentado a participação.

5- No caso de uma pluralidade de beneficiários exercer a faculdade prevista no número anterior, é territorialmente competente o juízo do trabalho da área de residência do maior número deles ou, em caso de ser igual o número de requerentes, o juízo do trabalho da área de residência do primeiro a requerer.

6- Se o sinistrado, doente ou beneficiário for inscrito marítimo ou tripulante de qualquer aeronave e o acidente ocorrer em viagem ou durante ela se verificar a doença, é ainda competente o juízo do trabalho da primeira localidade em território nacional a que chegar o barco ou aeronave ou o da sua matrícula.”

Quanto aos casos de destacamento, deve ter-se em conta a Directiva nº 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/12/1996 (alterada pela Directiva nº 2018/957/EU, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços, que no seu artigo 1º estabelece que “1. A presente directiva é aplicável às empresas estabelecidas num Estado-membro que, no âmbito de uma prestação transnacional de serviços e nos termos do nº 3, destaquem trabalhadores para o território de um Estado-membro. (…)

3. A presente directiva é aplicável sempre que as empresas mencionadas no nº 1 tomem uma das seguintes medidas transnacionais:

a) Destacar um trabalhador para o território de um Estado-membro, por sua conta e sob a sua direcção, no âmbito de um contrato celebrado entre a empresa destacadora e o destinatário da prestação de serviços que trabalha nesse Estado-membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre a empresa destacadora e o trabalhador; ou

b) Destacar um trabalhador para um estabelecimento ou uma empresa do grupo situados num Estado-membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre a empresa destacadora e o trabalhador; ou

c) Destacar, na qualidade de empresa de trabalho temporário ou de empresa que põe um trabalhador à disposição, um trabalhador para uma empresa utilizadora estabelecida no território de um Estado-membro ou que nele exerça a sua actividade, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre o trabalhador e a empresa de trabalho temporário ou a empresa que põe o trabalhador à disposição”.

Acrescentando o artigo 2º que “1. Para efeitos da presente directiva, entende-se por «trabalhador destacado» qualquer trabalhador que, por um período limitado, trabalhe no território de um Estado-membro diferente do Estado onde habitualmente exerce a sua actividade.

2. Para efeitos da presente directiva, a noção de «trabalhador» é a que se aplica no direito do Estado-membro em cujo território o trabalhador está destacado”.

Sendo que, quanto às condições de trabalho, prevê o artigo 3º nº 1, na parte que aqui interessa, que: “Os Estados-membros providenciarão no sentido de que, independentemente da lei aplicável à relação de trabalho, as empresas referidas no nº 1 do artigo 1º garantam aos trabalhadores destacados no seu território as condições de trabalho e de emprego relativas às matérias adiante referidas que, no território do Estado-membro onde o trabalho for executado, sejam fixadas:

- por disposições legislativas, regulamentares ou administrativas e/ou

- por convenções colectivas ou decisões arbitrais declaradas de aplicação geral na acepção do nº 8, na medida em que digam respeito às actividades referidas no anexo: (…) e) Segurança, saúde e higiene no trabalho”.

A Directiva nº 2014/67/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/05/2014, veio estabelecer um quadro comum de um conjunto de disposições, medidas e mecanismos de controlo necessários a uma melhor e mais uniforme transposição, execução e aplicação na prática da Diretiva 96/71/CE, incluindo medidas que visem prevenir e sancionar eventuais abusos e evasões às regras aplicáveis, sem prejuízo do âmbito de aplicação da Diretiva nº 96/71/CE (cfr. o seu artigo 1º nº 1), sendo que no seu artigo 4º se determina que:

“1. Para efeitos da transposição, execução e aplicação da Diretiva 96/71/CE, as autoridades competentes realizam uma avaliação global de todos os elementos factuais para tal considerados necessários, nomeadamente os referidos nos n.ºs 2 e 3 do presente artigo. Esses elementos destinam-se a assistir as autoridades competentes na realização de verificações e controlos e nos casos em que estas tenham razão para considerar que um trabalhador não pode ser qualificado como destacado nos termos da Diretiva 96/71/CE. Os elementos em questão têm um valor indicativo na avaliação global a efetuar, pelo que não podem ser considerados isoladamente.

2. Para determinar se uma empresa exerce efetivamente atividades substanciais que ultrapassem o âmbito da gestão interna e/ou administrativo, as autoridades competentes realizam, tendo em conta um prazo mais alargado, uma avaliação global de todos os elementos factuais que caracterizam essas atividades realizadas por uma empresa no EstadoMembro em que está estabelecida e, caso necessário, no Estado-Membro de acolhimento. Estes elementos podem incluir, nomeadamente:

a) O local onde estão situadas a sede social e a administração da empresa, onde esta tem escritórios, paga impostos e contribuições para a segurança social e, se for caso disso, nos termos do direito nacional, onde está autorizada a exercer a sua atividade ou está filiada em câmaras do comércio ou organismos profissionais;

b) O local de recrutamento dos trabalhadores destacados e a partir do qual os mesmos são destacados;

c) A legislação aplicável aos contratos celebrados pela empresa com os seus trabalhadores, por um lado, e com os seus clientes, por outro;

d) O local onde a empresa exerce o essencial da sua atividade comercial e onde emprega pessoal administrativo;

e) O número de contratos executados e/ou o montante do volume de negócios realizado no Estado-Membro de estabelecimento, tendo em conta a situação específica das empresas e PME recém-criadas, entre outras.

3. A fim de avaliar se um trabalhador temporariamente destacado realiza o seu trabalho num Estado-Membro que não aquele onde normalmente desempenha as suas funções, são analisados todos os elementos factuais que caracterizam esse trabalho e a situação do trabalhador. Estes elementos podem incluir, nomeadamente:
a) O trabalho é realizado por um período limitado noutro Estado-Membro;
b) A data em que tem início o destacamento;
c) O trabalhador é destacado para um Estado-Membro diferente daquele no qual ou a partir do qual desempenha habitualmente as suas funções, em conformidade com o Regulamento (CE) n.o 593/2008 («Roma I») e/ou a Convenção de Roma;
d) O trabalhador destacado regressa ou deve retomar a sua atividade no Estado-Membro a partir do qual foi destacado após a conclusão do trabalho ou da prestação de serviços na origem do destacamento;
e) A natureza das atividades;
f) As despesas de viagem, alimentação ou alojamento são asseguradas ou reembolsadas pelo empregador que destaca o trabalhador e, se aplicável, é incluído o modo como essas despesas são asseguradas ou o método de reembolso;
g) Quaisquer períodos anteriores durante os quais o cargo foi preenchido pelo mesmo ou por outro trabalhador (destacado).
4. A ausência de um ou mais elementos factuais previstos nos n.os 2 e 3 não impede automaticamente que uma situação seja caracterizada como uma situação de destacamento. A avaliação desses elementos é adaptada a cada caso concreto e atende às especificidades da situação.
5. Os elementos referidos no presente artigo que são utilizados pelas autoridades competentes na avaliação geral de uma situação para determinar se se trata de um verdadeiro destacamento podem igualmente ser considerados para determinar se um indivíduo se enquadra na definição aplicável de «trabalhador» em conformidade com o artigo 2.º, n.º 2, da Diretiva 96/71/CE. Os Estados-Membros devem, orientar-se, nomeadamente, pelos factos relacionados com a execução do trabalho, a subordinação e a remuneração do trabalhador, sem prejuízo do modo como a relação é caracterizada em qualquer disposição, seja ou não de natureza contratual, eventualmente acordada entre as partes”.

Quanto ao destacamento, a legislação interna prevê, no artigo 8º do CT, que:

“1 - O trabalhador contratado por uma empresa estabelecida em Portugal, que preste actividade no território de outro Estado em situação a que se refere o artigo 6.º, tem direito às condições de trabalho previstas no artigo anterior, sem prejuízo de regime mais favorável constante da lei aplicável ou do contrato.

2- O empregador deve comunicar, com cinco dias de antecedência, ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral a identidade dos trabalhadores a destacar para o estrangeiro, o utilizador, o local de trabalho, o início e o termo previsíveis da deslocação.

3- Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no número anterior.”

Já o artigo 6º estabelece no seu nº 1 que “Consideram-se submetidas ao regime de destacamento as seguintes situações, nas quais o trabalhador, contratado por empregador estabelecido noutro Estado, presta a sua actividade em território português:

a) Em execução de contrato entre o empregador e o beneficiário que exerce a actividade, desde que o trabalhador permaneça sob a autoridade e direcção daquele;

b) Em estabelecimento do mesmo empregador, ou empresa de outro empregador com o qual exista uma relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo;

c) Ao serviço de um utilizador, à disposição do qual foi colocado por empresa de trabalho temporário ou outra empresa.”

Em complemento a estas normas, convém ainda referir que Portugal transpôs a Diretiva nº 2014/67/EU através da Lei nº 29/2017, de 30/05, que entrou em vigor a 31/05/2017 (logo, em data posterior ao acidente em causa nos autos e não aplicável ao mesmo, não obstante se possa considerar os elementos caracterizadores do destacamento face à ausência da lei nacional à data do acidente quanto à definição de destacamento) em cujo artigo 2º alínea b) refere que é aplicável às situações de destacamento de trabalhadores para outro Estado membro, por prestadores de serviços estabelecidos em Portugal, abrangidas pelos artigos 6.º a 8.º do Código do Trabalho.

O artigo 4º nºs. 1 e 3 desta Lei prevê que:

“1 - Para verificar a situação de trabalhador temporariamente destacado em território português, a prestar a sua atividade nas condições previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do Código do Trabalho, a autoridade competente considera, nomeadamente, os seguintes elementos que caracterizam o trabalho e a situação do trabalhador:
a) O trabalho é realizado por um período limitado;
b) O trabalho é realizado a partir da data em que tem início o destacamento;
c) O trabalhador não desempenha habitualmente as suas funções em território português;
d) O trabalhador destacado regressa, ou deve retomar a sua atividade no Estado membro de que foi destacado, após a conclusão do trabalho ou da prestação de serviços na origem do destacamento;
e) As despesas de viagem, alimentação ou alojamento são asseguradas ou reembolsadas pelo empregador que destaca o trabalhador e, se aplicável, o modo como essas despesas são asseguradas ou o método de reembolso;
f) A natureza da atividade do trabalhador;
g) Os anteriores destacamentos daquele trabalhador ou outro para o mesmo posto de trabalho. (…)

3 - A ausência de um ou mais elementos previstos nos números anteriores não impede que uma situação seja caracterizada como destacamento”.

A R. e a Interveniente invocam ainda a aplicação do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

No entanto, este Regulamento foi revogado pelo Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12/12, em vigor desde 02/01/2013 e directamente aplicável em todos os Estados-Membros a partir de 10/01/2015, ou seja, em data anterior à celebração dos contratos em causa nos autos e respectivo acidente, pelo que se deverá atender ao teor deste regulamento.

De acordo com o disposto no artigo 1º nº 1 deste diploma “O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»)”.

Sendo que, pelo seu artigo 4º nº 1, “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro”.

Acrescentando o artigo 5º nº 1 que “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.

Ora, nos presentes autos o A. demandou apenas a R. seguradora, com sede na Alemanha, com base no contrato de seguro que a entidade empregadora celebrou com aquela para efeitos de acidentes de trabalho e que abrangia o ora A..

Assim, é aplicável ao caso concreto a secção 2 do Regulamento em causa, sendo que no artigo 7º nº 2 se estipula que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. Com efeito, tratando-se de um acidente de trabalho em que o A. demanda a R. em virtude de um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre esta e a entidade empregadora daquele, conclui-se que perante A. e R. inexiste qualquer contrato. Assim, não se pode considerar aplicável a secção 5 referente a competência em matéria de contratos individuais de trabalho.

Com efeito, como foi decidido pelo STJ no Acórdão de 24/10/2007-, proc. 07S2098, disp. in www.dgsi.pt, embora referente ao Regulamento (CE) nº 44/2001, “os conceitos de matéria civil e comercial não se encontram expressamente definidos no Regulamento; porém, como sublinha DÁRIO MOURA VICENTE (“Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001”, em Scientia Iuridica, Universidade do Minho, Tomo LI, n.º 293, Maio-Agosto 2002, p. 356), «o modo de defini-los foi precisado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades, ao abrigo da competência para interpretar a Convenção de Bruxelas que lhe foi atribuída pelos Estados contratantes no Protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, feito no Luxemburgo, em 3 de Junho de 1971(-). Assim, por “matéria civil e comercial” deve entender-se, segundo aquela jurisdição, não o que como tal é caracterizado pelo Direito interno dos Estados Contratantes da Convenção, mas antes “o que resulta dos objectivos e do sistema da Convenção”, bem como dos “princípios gerais que decorrem do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais”. O Tribunal manifestou desta forma a sua preferência por uma interpretação autónoma dos conceitos empregados na Convenção; o que se justifica inteiramente à luz da necessidade de assegurar a uniformidade dessa interpretação nos Estados membros e, reflexamente, a certeza do Direito convencional. O mesmo princípio metodológico deve valer na interpretação dos conceitos utilizados no Regulamento n.º 44/2001.»

Neste plano de consideração, note-se que o considerando n.º 7 do preâmbulo do Regulamento proclama que «[o] âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial com excepção de certas matérias bem definidas» e, doutro passo, que o considerando n.º 11 do mesmo preâmbulo consigna que «[a]s regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão».

Ora, a efectivação da responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho não foi expressamente excluída do âmbito de aplicação do Regulamento, e configura-se como um litígio entre particulares fundado em regras de Direito privado, especificamente, do domínio da responsabilidade civil.

Logo, porque se trata de matéria civil, à luz do conceito amplo acolhido no n.º 1 do artigo 1.º citado, a presente acção está abrangida no âmbito de aplicação do Regulamento, devendo salientar-se que, referindo-se a idêntica norma da Convenção de Bruxelas, este Supremo Tribunal, em recente acórdão, datado de 3 de Outubro de 2007, proferido no Processo n.º 922/07 (Agravo), da 4.ª Secção, pronunciou-se no sentido de que uma acção emergente de acidente de trabalho não pode deixar de se ter por compreendida no conceito de matéria civil.

Resta acrescentar que, nos termos dos artigos 2.º, 3.º e 60.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento, localizando-se a sede social da ré BB Limited («sede social» significa «registered Office», no Reino Unido — n.º 2 do artigo 60.º citado) no território de um Estado-Membro da Comunidade Europeia vinculado pelo Regulamento, no caso o Reino Unido, deve ser demandada perante os tribunais desse Estado, só podendo ser demandada perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do Capítulo II do Regulamento.

Em especial, não podem ser invocadas contra aquela ré, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento, «as regras de competência nacionais constantes do anexo I», entre as quais figura, relativamente a Portugal, «os artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil e o artigo 11.º do Código de Processo do Trabalho» (décimo travessão do Anexo I do Regulamento).

O mencionado artigo 11.º era a norma que regia a competência internacional dos tribunais do trabalho no Código de Processo do Trabalho de 1981, a ele correspondendo, com alterações, o artigo 10.º do actual Código de Processo do Trabalho, pelo que se justifica uma interpretação actualista do referido travessão do Anexo I do Regulamento, no sentido de aí se contemplar o artigo 10.º citado.

De facto, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).

Por conseguinte, ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, o referido artigo 9.º não deixa expressamente de considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, segmento que assume uma evidente conotação actualista (sobre a problemática da interpretação actualista, cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, revista, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, pp. 58-59; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 190191; JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 388-389; JOÃO DE CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa 1994, pp. 220-221).

Como sublinha BAPTISTA MACHADO (obra citada, p. 191), «[n]ão tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico” […]».

E não se diga que a norma do n.º 2 do artigo 15.º do Código de Processo do Trabalho não é directamente afastada pelo n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento, com referência ao décimo travessão do seu Anexo I.

Com efeito, se a aplicação do artigo 10.º do actual Código de Processo do Trabalho é afastada por vinculação ao Regulamento, perde qualquer relevância o que dispõe o n.º 2 do artigo 15.º citado, norma de competência territorial que se encontra indissociavelmente ligada àquele artigo 10.º para efeitos de definição da competência internacional dos tribunais do trabalho e para a qual este último preceito remete [cf., neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 16 de Maio de 2000, Processo n.º 3/2000 (Agravo), da 4.ª Secção, em Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VIII, 2000, tomo II, pp. 260-262, relativo à norma do artigo 3.º da Convenção de Lugano, e de 3 de Outubro de 2007, já citado supra, e que se reportou ao artigo 3.º da Convenção de Bruxelas].

Aliás, uma vez que as normas emanadas das instituições da União Europeia vigoram directamente na nossa ordem jurídica e não têm valor inferior à lei ordinária interna, obviamente que as normas do Regulamento derrogariam as normas de lei interna anterior, no caso, a norma do n.º 2 do artigo 15.º do Código de Processo do Trabalho, por aplicação directa do princípio de que a lei posterior derroga a anterior.

Tudo para concluir que a presente acção, na parte em que nela se deduzem pretensões de reparação de danos emergentes de alegado acidente de trabalho contra uma ré domiciliada num Estado-Membro da Comunidade Europeia vinculado pelo Regulamento, está submetida à disciplina deste acto comunitário, não lhe sendo aplicáveis os artigos 10.º e 15.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho. (…)

Além disso, a Secção 5 do Capítulo II do Regulamento estabelece regras quanto à competência em matéria de contratos individuais de trabalho (artigos 18.º a 21.º); no entanto, tal como já decidiu este Supremo Tribunal, no sobredito acórdão de 3 de Outubro de 2007, «[e]mbora seja discutida a natureza da responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, os termos da discussão não giram já em torno do eixo “responsabilidade contratual” versus “responsabilidade extracontratual”, mas do eixo “responsabilidade extracontratual” e “responsabilidade profissional, sujeita por razões de interesse público a regras exorbitantes”», sendo que «[d]e modo algum pode dizer-se que a obrigação reparadora que os autores pretendem fazer valer através da presente acção [reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho] resulte do não cumprimento (lato sensu) dos deveres próprios das obrigações, ou seja, emerge da violação de deveres contratuais».

Não havendo disposição específica atributiva de competência internacional no concernente à matéria da reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, entendese que o enquadramento correcto deste tipo de acções deve efectuar-se na regra geral do domicílio do réu (artigo 2.º, n.º 1) ou, porventura, na regra especial relativa à responsabilidade extracontratual (artigo 5.º, n.º 3).

Em qualquer dos casos, os factores de conexão acolhidos pelo Regulamento apontam para a competência de tribunais estrangeiros”.

Precisamente face ao exposto, considera o Tribunal inaplicável ao caso concreto o Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17/06/2008, relativo à lei aplicável às obrigações contratuais, ou o Regulamento (CE) nº 864/2007, de 11/07/2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais. Refira-se, aliás, que estes regulamentos se referem à lei aplicável, e não à competência judiciária para efeitos de demanda judicial, que são completamente distintos, já que os tribunais de um Estado-Membro podem ser internacionalmente incompetentes para apreciar e decidir um processo ou demanda e, ainda assim, ser aplicável a lei do respectivo Estado, pelo tribunal competente noutro Estado-Membro. O recurso à análise destes dois Regulamentos apenas se verificaria caso se concluísse pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para apreciação do presente caso.

Pode ainda discutir-se a aplicação ao caso concreto a secção 3 do Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12/12:

De acordo com o disposto nos artigos 11º e 12º do regulamento, referente a competência em matéria de seguros, o segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado: a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio; b) Noutro Estado-Membro, em caso de ações intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio. Pode ainda ser demandado no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil, como sucede no caso em apreço (cfr. artigo 13º nº 2).


*

Ora, no caso em apreço, resulta demonstrado que:

(…)

Ora, face ao supra exposto, cumpre antes de mais aferir se o A., no momento do acidente, se encontrava de facto em situação de destacamento nos termos legais.

Considera-se que um trabalhador é destacado quando a entidade empregadora o envia para outro país para aí realizar temporariamente o seu trabalho, em execução do contrato de trabalho celebrado com esta.

Sendo que, face ao já supra exposto, se tem como pressuposto prévio a existência de uma efectiva relação laboral anterior no momento do destacamento.

No caso em análise, no entanto, o que se constata é que, precisamente na mesma data o A. e a sociedade B...., Lda., celebraram contrato de trabalho a termo certo, acordo de destacamento e aditamento a tal acordo em termos de alojamento, a 02/05/2017, para início de relação laboral a 10/05/2017 e termo em 31/12/2017, precisamente o período indicado no acordo de destacamento. Ou seja, aquela sociedade não pretendeu destacar temporariamente um seu trabalhador, o ora A., para trabalhar na Alemanha, mas sim contratá-lo para, no período compreendido entre 17/05 e 31/12/2017 trabalhar na Alemanha, sob as suas ordens, direcção e autoridade, enquanto pedreiro de 1ª.

Para além disso, verifica-se que no acordo celebrado entre A. e entidade empregadora, é estipulado nas cláusulas 4ª a 6ª que ao A. se aplicarão as condições de trabalho, horário de trabalho, férias e retribuição mínima aplicáveis no país de destino, ou seja, Alemanha; que o alojamento e alimentação nesse país ficam a cargo do A. (tendo este suportado despesa de renda a pagar à entidade empregadora pelo alojamento), bem como os custos de viagem; que tem direito aos cuidados de saúde ou seguro em termos de doença directamente pela segurança social alemã, podendo aí ser beneficiário de seguro de acidentes de trabalho, como efectivamente foi, sendo seguradora a ora R..

Assim sendo, não se pode enquadrar esta situação num verdadeiro destacamento, pelo que não se considera aplicável ao caso em apreço o disposto nos artigos 6º a 8º do CT nem, consequentemente, a competência internacional prevista no artigo 10º nº 2 alínea a) do CPT.

Considerando agora o disposto no artigo 15º nº 2 do CPT, no sentido de a acção ser proposta em Portugal, no Juízo do Trabalho do domicílio do sinistrado, no caso de o acidente de trabalho ocorrer no estrangeiro, dir-se-á que no momento do acidente o A. tinha residência em morada certa, em Estugarda, Alemanha (cfr. morada indicada pela entidade empregadora e pelos serviços clínicos, para efeitos de participação do acidente de trabalho e assistência clínica ao A.), país onde tinha alojamento, constando do aditamento em termos de alojamento até a possibilidade de visitas, trabalhava; auferia rendimentos de trabalho e procedia a descontos para efeitos de imposto sobre o rendimento e segurança social alemãos. Com efeito, o A., no ano de 2017 apenas auferiu rendimentos de trabalho no estrangeiro e aí suportou os respectivos imposto e contribuições para a segurança social alemã, como se constata da declaração de rendimentos apresentada pelo próprio A. e junta aos autos.

Assim, não se pode afirmar que o A. tinha, àquela data, residência em Portugal, nem, consequentemente, considerar-se aplicável o disposto no artigo 15º nº 2 do CPT para efeitos de competência internacional dos tribunais Portugueses.

No entanto, ainda que assim não fosse, tendo em conta o Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12/12 que, como já se afirmou, é obrigatório e todos os seus elementos e directamente aplicável a todos os estados-Membros, com primazia sobre a legislação nacional, aplicável ao caso concreto, por força do disposto no seu artigo 1º nº 1, conclui-se pela aplicação ao caso em análise do disposto na secção 2 do Regulamento.

Sendo que, como foi já supra referido, o seu artigo 7º nº 2 estipula que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, facto danoso esse que, no caso concreto, ocorreu na Alemanha, e não em Portugal.

Por outro lado, ainda que se considerasse aplicável a secção 3 do aludido Regulamento, o segurador só poderia ser demandado nos tribunais do estado-Membro em que tiver domicílio, que no caso é na Alemanha; noutro Estado-Membro, em caso de acção intentada por um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio que, como vimos, era à data do acidente em Estugarda, Alemanha; ou no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil, que no caso em apreço ocorreu também na Alemanha.

Face a todo o supra exposto, conclui-se que os Juízos do Trabalho Portugueses não são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção judicial.

Tal excepção de incompetência internacional, para além de ter sido expressamente invocada pela R., é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso e que determina a abstenção de conhecer do pedido e absolvição da R. da instância, nos termos previstos no artigo 278º nº 1 alínea a) do CPC.

Assim, e atento o supra exposto, absolve-se a R. da instância.

Consequentemente, declara-se extinta a instância também quanto à Interveniente, por inutilidade superveniente da lide.

Face ao supra exposto, resultam prejudicadas as demais excepções invocadas nos autos.»

Cumprindo-nos decidir, desde já avançamos que, para além de não acompanharmos outras considerações avançadas pelo Tribunal recorrido, como melhor veremos de seguida, também esse não acompanhamos, diga-se, quanto à solução a que chegou, assim de que, no caso, os Juízos do Trabalho Portugueses não são internacionalmente competentes para conhecer da presente ação judicial.

A ressalva que antes começámos por fazer relaciona-se, desde logo, importa esclarecê-lo, com as considerações que são realizadas a propósito de o Autor / recorrente se encontrar, ou não, “em situação de destacamento nos termos legais”, concluindo-se que “não se pode enquadrar esta situação num verdadeiro destacamento, pelo que não se considera aplicável ao caso em apreço o disposto nos artigos 6º a 8º do CT nem, consequentemente, a competência internacional prevista no artigo 10º nº 2 alínea a) do CPT”. É que, salvo o devido respeito, dúvidas sérias se nos colocam, incluindo por referência ao quadro normativo que se invoca, quanto a exigir-se como pressuposto prévio de uma situação de destacamento a existência de uma efetiva relação laboral anterior ao momento do destacamento – noutros termos, não se nos afigura que assim tenha de ser, nada impedindo, designadamente, que um trabalhador possa ser contratado por uma empresa para de imediato ser destacado para exercer a atividade no estrangeiro (situação que resulta do que consta da alínea L) da factualidade provada).

Por outro lado, ainda, a propósito de qual deverá ser a residência do trabalhador a atender, elemento que foi também apreciado e considerado na decisão recorrida e que é invocado no presente recurso, pois que, sendo verdade que resulta da factualidade provada – alínea K) – que “na data do acidente o A. apresentava como residência a morada ..., Alemanha” –, facto este a que se deverá atender, no entanto, porém, sempre importará questionar se o conceito de domicílio se basta com esse facto, numa situação em que, como também resulta da factualidade provada, o trabalhador, de nacionalidade portuguesa, se encontra, ao abrigo de um contrato, celebrado também com entidade portuguesa, a exercer a sua atividade num país estrangeiro, no caso na Alemanha – aqui se lembrando, também, para além do demais resultante de outras fontes normativas, que o próprio Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12/12, a que aludiremos de seguida, contém normas a esse respeito.

Não obstante o que se referiu anteriormente, a relevância que possam ou não assumir tais aspetos acaba por ser no caso ultrapassada por outras razões, como melhor veremos de seguida.

Em primeiro lugar, teremos de esclarecer que, diversamente do que parece invocar o Recorrente, para efeitos de aferição da competência, ou não, em termos internacionais dos tribunais portugueses, a jurisprudência que é invocada no recurso interposto – como ainda, aliás, a que se refere no parecer emitido – não é propriamente relevante para o caso que se decide, desde logo porque, como fator que assume aqui especial e determinante importância, ainda que se considerasse que a competência internacional dos tribunais portugueses pudesse resultar aparentemente do disposto nos artigos 10.º, n.º 2, alínea a) – “2 - Incluem-se, igualmente, na competência internacional dos juízos do trabalho: a) Os casos de destacamento para outros Estados de trabalhadores contratados por empresas estabelecidas em Portugal;” – e 15.º, n.º 2 – “Se o acidente ocorrer no estrangeiro, a ação deve ser proposta em Portugal, no juízo do trabalho do domicílio do sinistrado” –, ambos do CPT, no entanto, porém, tal como aliás resulta do sumário do Acórdão desta Relação de 12 de julho de 2023 que é invocado no parecer emitido[2], tal regra, assim da competência internacional dos tribunais aí estabelecida, poderá valer mas sempre sem prejuízo do que se encontre estabelecido em convenções internacionais, sendo que, no caso, como veremos de seguida, e aliás resulta nesta parte da decisão recorrida, assume particular relevância, nesse âmbito, a necessária aplicação do que possa resultar do Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12/12, a que se alude na decisão recorrida, pois que diretamente aplicável em todos os Estados-Membros a partir de 10/01/2015 e, portanto, anterior à celebração do contrato em causa nos autos e acidente ocorrido.

Aliás, quanto a este específico aspeto – caso fossem apenas os pressupostos que indica, mas não o são, como mais tarde esclareceremos, com relevância para a decisão do caso –, poderíamos acompanhar a decisão recorrida, de resto alicerçada em jurisprudência que cita, quando nessa se fez constar o seguinte:

«Ora, nos presentes autos o A. demandou apenas a R. seguradora, com sede na Alemanha, com base no contrato de seguro que a entidade empregadora celebrou com aquela para efeitos de acidentes de trabalho e que abrangia o ora A..

Assim, é aplicável ao caso concreto a secção 2 do Regulamento em causa, sendo que no artigo 7º nº 2 se estipula que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. Com efeito, tratando-se de um acidente de trabalho em que o A. demanda a R. em virtude de um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre esta e a entidade empregadora daquele, conclui-se que perante A. e R. inexiste qualquer contrato. Assim, não se pode considerar aplicável a secção 5 referente a competência em matéria de contratos individuais de trabalho.

Com efeito, como foi decidido pelo STJ no Acórdão de 24/10/2007-, proc. 07S2098, disp. in www.dgsi.pt, embora referente ao Regulamento (CE) nº 44/2001, “os conceitos de matéria civil e comercial não se encontram expressamente definidos no Regulamento; porém, como sublinha DÁRIO MOURA VICENTE (“Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001”, em Scientia Iuridica, Universidade do Minho, Tomo LI, n.º 293, Maio-Agosto 2002, p. 356), «o modo de defini-los foi precisado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades, ao abrigo da competência para interpretar a Convenção de Bruxelas que lhe foi atribuída pelos Estados contratantes no Protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, feito no Luxemburgo, em 3 de Junho de 1971(-). Assim, por “matéria civil e comercial” deve entender-se, segundo aquela jurisdição, não o que como tal é caracterizado pelo Direito interno dos Estados Contratantes da Convenção, mas antes “o que resulta dos objectivos e do sistema da Convenção”, bem como dos “princípios gerais que decorrem do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais”. O Tribunal manifestou desta forma a sua preferência por uma interpretação autónoma dos conceitos empregados na Convenção; o que se justifica inteiramente à luz da necessidade de assegurar a uniformidade dessa interpretação nos Estados membros e, reflexamente, a certeza do Direito convencional. O mesmo princípio metodológico deve valer na interpretação dos conceitos utilizados no Regulamento n.º 44/2001.»

Neste plano de consideração, note-se que o considerando n.º 7 do preâmbulo do Regulamento proclama que «[o] âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial com excepção de certas matérias bem definidas» e, doutro passo, que o considerando n.º 11 do mesmo preâmbulo consigna que «[a]s regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão».

Ora, a efectivação da responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho não foi expressamente excluída do âmbito de aplicação do Regulamento, e configura-se como um litígio entre particulares fundado em regras de Direito privado, especificamente, do domínio da responsabilidade civil.

Logo, porque se trata de matéria civil, à luz do conceito amplo acolhido no n.º 1 do artigo 1.º citado, a presente acção está abrangida no âmbito de aplicação do Regulamento, devendo salientar-se que, referindo-se a idêntica norma da Convenção de Bruxelas, este Supremo Tribunal, em recente acórdão, datado de 3 de Outubro de 2007, proferido no Processo n.º 922/07 (Agravo), da 4.ª Secção, pronunciou-se no sentido de que uma acção emergente de acidente de trabalho não pode deixar de se ter por compreendida no conceito de matéria civil.

Resta acrescentar que, nos termos dos artigos 2.º, 3.º e 60.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento, localizando-se a sede social da ré BB Limited («sede social» significa «registered Office», no Reino Unido — n.º 2 do artigo 60.º citado) no território de um Estado-Membro da Comunidade Europeia vinculado pelo Regulamento, no caso o Reino Unido, deve ser demandada perante os tribunais desse Estado, só podendo ser demandada perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do Capítulo II do Regulamento.

Em especial, não podem ser invocadas contra aquela ré, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento, «as regras de competência nacionais constantes do anexo I», entre as quais figura, relativamente a Portugal, «os artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil e o artigo 11.º do Código de Processo do Trabalho» (décimo travessão do Anexo I do Regulamento).

O mencionado artigo 11.º era a norma que regia a competência internacional dos tribunais do trabalho no Código de Processo do Trabalho de 1981, a ele correspondendo, com alterações, o artigo 10.º do actual Código de Processo do Trabalho, pelo que se justifica uma interpretação actualista do referido travessão do Anexo I do Regulamento, no sentido de aí se contemplar o artigo 10.º citado.

De facto, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).

Por conseguinte, ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, o referido artigo 9.º não deixa expressamente de considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, segmento que assume uma evidente conotação actualista (sobre a problemática da interpretação actualista, cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, revista, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, pp. 58-59; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 190191; JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 388-389; JOÃO DE CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa 1994, pp. 220-221).

Como sublinha BAPTISTA MACHADO (obra citada, p. 191), «[n]ão tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico” […]». E não se diga que a norma do n.º 2 do artigo 15.º do Código de Processo do Trabalho não é directamente afastada pelo n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento, com referência ao décimo travessão do seu Anexo I.

Com efeito, se a aplicação do artigo 10.º do actual Código de Processo do Trabalho é afastada por vinculação ao Regulamento, perde qualquer relevância o que dispõe o n.º 2 do artigo 15.º citado, norma de competência territorial que se encontra indissociavelmente ligada àquele artigo 10.º para efeitos de definição da competência internacional dos tribunais do trabalho e para a qual este último preceito remete [cf., neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 16 de Maio de 2000, Processo n.º 3/2000 (Agravo), da 4.ª Secção, em Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VIII, 2000, tomo II, pp. 260-262, relativo à norma do artigo 3.º da Convenção de Lugano, e de 3 de Outubro de 2007, já citado supra, e que se reportou ao artigo 3.º da Convenção de Bruxelas].

Aliás, uma vez que as normas emanadas das instituições da União Europeia vigoram directamente na nossa ordem jurídica e não têm valor inferior à lei ordinária interna, obviamente que as normas do Regulamento derrogariam as normas de lei interna anterior, no caso, a norma do n.º 2 do artigo 15.º do Código de Processo do Trabalho, por aplicação directa do princípio de que a lei posterior derroga a anterior.

Tudo para concluir que a presente acção, na parte em que nela se deduzem pretensões de reparação de danos emergentes de alegado acidente de trabalho contra uma ré domiciliada num Estado-Membro da Comunidade Europeia vinculado pelo Regulamento, está submetida à disciplina deste acto comunitário, não lhe sendo aplicáveis os artigos 10.º e 15.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho. (…)

Além disso, a Secção 5 do Capítulo II do Regulamento estabelece regras quanto à competência em matéria de contratos individuais de trabalho (artigos 18.º a 21.º); no entanto, tal como já decidiu este Supremo Tribunal, no sobredito acórdão de 3 de Outubro de 2007, «[e]mbora seja discutida a natureza da responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, os termos da discussão não giram já em torno do eixo “responsabilidade contratual” versus “responsabilidade extracontratual”, mas do eixo “responsabilidade extracontratual” e “responsabilidade profissional, sujeita por razões de interesse público a regras exorbitantes”», sendo que «[d]e modo algum pode dizer-se que a obrigação reparadora que os autores pretendem fazer valer através da presente acção [reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho] resulte do não cumprimento (lato sensu) dos deveres próprios das obrigações, ou seja, emerge da violação de deveres contratuais».

Não havendo disposição específica atributiva de competência internacional no concernente à matéria da reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, entende-se que o enquadramento correcto deste tipo de acções deve efectuar-se na regra geral do domicílio do réu (artigo 2.º, n.º 1) ou, porventura, na regra especial relativa à responsabilidade extracontratual (artigo 5.º, n.º 3).

Em qualquer dos casos, os factores de conexão acolhidos pelo Regulamento apontam para a competência de tribunais estrangeiros”».

De resto, apontando também no sentido do entendimento constante do Acórdão citado na decisão recorrida, mas pronunciando-se, aliás, ainda, sobre outros argumentos avançados no presente recurso, muito embora proferido na vigência do Regulamento (CE) n.º 44/2001 (mas cujas considerações são aplicáveis em face do Regulamento que esse substituiu, que antes mencionámos), pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de janeiro de 2012[3], o seguinte:

«(…) No caso em apreço, a pretensão do recorrente consubstancia-se no pedido de revisão da incapacidade decorrente da verificação de um acidente de trabalho e funda-se em normas que preveem a reparação das consequências infortunísticas dele resultantes, recaindo a responsabilidade sobre a empregadora e a seguradora, para quem aquela tivesse transferido a respectiva responsabilidade.

Ora, atendendo apenas ao regime que emerge do direito processual interno, os tribunais do trabalho portugueses seriam internacionalmente competentes para a resolução do litígio, na medida em que se verifica o principal factor de atribuição da competência internacional: o da coincidência entre esta e a competência territorial interna (artigos 10.º e 15.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho).

Na verdade, tendo o alegado acidente ocorrido no estrangeiro e situando-se o domicílio do sinistrado na área de jurisdição do Tribunal do Trabalho de Penafiel, este teria competência territorial para a apreciação do litígio face ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º do Código de Processo do Trabalho, o que, só por si, conferia competência internacional aos tribunais do trabalho portugueses (artigo 10.º citado).

Porém, o pedido em causa, dirigido à ré seguradora, inscreve-se no âmbito temporal, material e espacial de aplicação do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 200, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Jornal Oficial, n.º L 12, de 16.1.2001, com a última redacção dada pelo Regulamento (CE) n.º 2245/2004 da Comissão, de 27.12.2004, Jornal Oficial, n.º L 381, de 28.12.2004) que, nos termos do n.º 1 do seu artigo 68.º, substituiu entre os Estados-Membros da Comunidade Europeia, excepto nas relações com a Dinamarca (artigo 1.º, n.º 3), a denominada Convenção de Bruxelas igualmente relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, e que se aplica na nossa ordem interna, por força do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição.

É, assim, aplicável o Regulamento referido ao caso concreto.

Na verdade, a efectivação da responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho não foi expressamente excluída do âmbito de aplicação do Regulamento, e configura-se como um litígio entre particulares fundado em regras de Direito privado, especificamente, do domínio da responsabilidade civil (vide Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, p. 735)..

Ora, deduzindo-se, no caso presente, uma pretensão que tem como escopo final a reparação de danos emergentes de alegado acidente de trabalho contra uma ré domiciliada num Estado-Membro da Comunidade Europeia vinculado pelo Regulamento, está submetida à disciplina deste acto comunitário, não lhe sendo aplicáveis os artigos 10.º e 15.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho.

Mas a questão a apreciar, no caso sub judice, coloca-se, precisamente, pela introdução, no Regulamento n.º 44/2001, de uma norma relativa a “Competência em matéria de seguros”.

A este respeito, refere o Artigo 9.º, n.ºl, alínea b) da Secção 3 (Competência em matéria de seguros) do Regulamento n.°44/2001 do Conselho, o seguinte: (…)

É nesta norma que o recorrente alicerça o seu entendimento, no sentido de que o tribunal português, neste caso o da área da sua residência, é competente para a apreciação da sua pretensão, já que o pedido é formulado contra a seguradora.

Ajuizando, o acórdão recorrido ancorou a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses, essencialmente, nas seguintes razões:

“[…] Em 1992-07-01 entrou em vigor, para Portugal, quer a Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, concluída em Lugano, em 1988-09-16, quer a Convenção Relativa à Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa à Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.

Porém, a partir de 2002-03-01, tais instrumentos encontram-se substituídos, entre os Estados-‑Membros, pelo Regulamento (CE) N.° 44/2001 do Conselho, de 2000-12-22, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que dispõe, na parte que ora interessa considerar, o seguinte:

Artigo 1º. 1. O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

Artigo 2º . 1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.

Artigo 3º.

1. As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.

2. Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do anexo I.

Anexo I - Regras de competência nacionais referidas no n.° 2 do artigo 3.º — em Portugal: os artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil e o artigo 11.° do Código de Processo do Trabalho".

Artigo 5.º O requerido com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandado num outro Estado-Membro:

3. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso.

Ora, do transcrito Art.º 3.º e Anexo I resulta que fica afastada a disposição constante do Art.° 10.º do Cód. Proc. do Trabalho [de 2010], que estabelece:

1. Na competência internacional dos tribunais do trabalho estão incluídos os casos em que a acção pode ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas neste Código, ou de terem sido praticados em território português, no todo ou em parte, os factos que integram a causa de pedir da acção.

Por seu turno, dispõe o mesmo Cód. Proc. do Trabalho [de 2010], no seu Art.° 15.º:

2. Se o acidente ocorrer no estrangeiro, a acção deve ser proposta em Portugal, no tribunal do domicílio do sinistrado.

4. É também competente o tribunal do domicilio do sinistrado, doente ou beneficiário se ele o requerer até à fase contenciosa do processo ou se aí tiver apresentado a participação.

Ora, in casu, tendo sido usado o foro do domicílio do sinistrado, em aplicação destas regras de competência territorial, as quais estão suportadas por aquela no plano da competência internacional dos tribunais portugueses, parece que o seu procedimento foi conforme a lei. No entanto, estando o Regulamento, então, em vigor, para Portugal, as normas do Cód. Proc. do Trabalho, porque em conflito com as daquele, não podem ser aplicadas.

Assim, atento o Art.º 2.° do Regulamento, prevalece o foro da R., da seguradora, que é em França ou até o forum delicti, que é em Andorra nos termos do Art.º 5.º, n.º 3 do mesmo diploma, assim afastando a competência internacional do tribunal do trabalho português. Na verdade, qualquer uma das conexões não conduz à competência internacional dos tribunais portugueses.

Verifica-se, destarte, a incompetência do tribunal em razão da nacionalidade, o que determina a incompetência absoluta do mesmo e integra excepção dilatória, a implicar a absolvição da instância da seguradora, atento o disposto nos Art.°s 101.º, 102.º, n.º 1, 105.º, n.º 1, 288.º, n.º 1, alínea a), 494.º, alínea a) e 495.º do Cód. Proc. Civil.

Nem se diga, como o apelante, na conclusão 17ª do recurso que "17. ... há lugar à aplicação do factor de conexão previsto no Artigo 9.º nº1, al. b), Secção 3 (Competência em Matéria de Seguros) do regulamento (CE) n.° 44/2001, de 22 de Dezembro, refere o seguinte:

"O segurador domiciliado no território de um estado-membro pode ser demandado: (...) b) noutro Estado-Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador do seguro, o segurado ou um beneficiário, perante o tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicilio.

Na verdade, pretendendo o sinistrado efectivar a revisão da sua incapacidade por acidente de trabalho contra a seguradora para a qual se encontra transferida a responsabilidade infortunística da empregadora, certo é que nenhum litígio existe quanto ao contrato de seguro. Pois, como se vê do relatório que antecede, a seguradora assumiu a sua responsabilidade, tendo tratado o sinistrado, pelo que a única responsabilidade aqui em causa é a derivada do acidente de trabalho. Daí que a matéria em discussão não seja de seguros, mas infortunístico-laboral, não sendo aplicável, por isso, a norma do invocado Art.º 9.º, n. 1, alínea b) do Regulamento referido.

Também não se vê que deva ser aplicado o disposto no Art.º 29.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001, como o apelante também pretende. Vejamos o que ele dispõe:

“Sempre que as acções forem da competência exclusiva de vários tribunais, qualquer tribunal a que a acção tenha sido submetida posteriormente deve declarar-se incompetente em favor daquele a que a acção tenha sido submetida em primeiro lugar."

Ora, pretende o sinistrado que o tribunal português também é competente, juntamente com outro ou outros pelo que, tendo o processo sido intentado primeiramente em Portugal, estava determinada a competência internacional dos tribunais portugueses.

Não podemos concordar.

Por força do Regulamento, a competência internacional radicou-se nos tribunais franceses ou, eventualmente, de Andorra, respectivamente, forum rei e fórum delicti, estando afastada a competência dos tribunais portugueses, pelo que a pretensão do apelante, também por este lado, deverá soçobrar. Aliás, o sinistrado nem sequer alega que o processo tenha sido intentado, ou não, perante tribunal de outro país.

Em síntese, a decisão recorrida deve ser confirmada, embora seja de corrigir que a incompetência dos tribunais portugueses é em razão da nacionalidade e, não, em razão do território”.

Sufraga-se, inteiramente, o expendido no acórdão da Relação, concluindo-se pela incompetência do tribunal em razão da nacionalidade, o que determina a incompetência absoluta do mesmo.

Importa dizer que a doutrina vertida nos Acórdãos deste STJ citados nas conclusões do recurso (18ª e 19ª) não tem aplicação no caso concreto.

Na verdade, a situação ali apreciada dizia respeito a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação ocorrido em França e em que intervinha condutor português.

Neste caso, face aos fundamentos da acção e ao pedido, os direitos que o recorrente pretende fazer valer decorrem de um acidente de trabalho e fundam-se em normas que prevêem a reparação das consequências infortunísticas dele resultantes, recaindo a responsabilidade sobre o empregador ou sobre a seguradora, para quem haja sido transferida a respectiva responsabilidade. (…)».
Ou seja, salvo o devido respeito, diversamente do que o Recorrente invoca – não valendo, aliás, para dar apoio à posição que sufraga, a jurisprudência a que apela, como ainda do mesmo modo a referenciada no parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pois que incidiu sobre situações diversas e que enquanto tais chamavam à aplicação regimes também diversos –, importa aplicar as regras estabelecidas no Regulamento (EU) n.º 1215/2012 que, pela sua natureza, afastam, o que vale aliás para o caso que se decide, a aplicação do que resultaria das normas do CPC e CPT que foram invocadas. Na verdade, como no Acórdão desta Secção de 13 de março de 2017[4], aí socorrendo-se do Acórdão do STJ de 10/12/2009[5], diremos que, fixando é certo o artigo 10.º do CPT os critérios legais de que depende o poder jurisdicional do Estado Português em confronto com os dos Estados de outros países, sendo eles, em primeiro lugar o da coincidência da competência internacional com a competência territorial – 1ª parte do preceito; e, em segundo lugar, o da causalidade – 2ª parte do mesmo preceito –, contudo “a competência internacional dos tribunais portugueses, para conhecer de determinado litígio de natureza laboral, só se afere em função daquela disposição, desde que não seja aplicável ao caso convenção de direito internacional”, sendo que, afinal, nos termos que antes se assinalaram, com recurso à jurisprudência que se mencionou, diversamente do defendido pelo Recorrente, é o que ocorre no caso que se aprecia, em face do que resulta da aplicação das normas do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012 – como se refere no mesmo Acórdão, «relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, aplicam-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (art.º 1.º), a partir de 10 de janeiro de 2015 (entenda-se, esta versão reformulada que substitui as anteriores já aplicáveis), sendo “obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável nos Estados-Membros nos termos dos Tratados aos Estados membros” [art.º 81.º].»

Não obstante o que antes se referiu, estando-se perante questão de conhecimento oficioso – artigos 577.º, alínea a) e 578.º, do CPC[6] –, sempre se nos imporá verificar, incluindo em sede recursiva, se, afinal, por direta aplicação das regras que resultam do mencionado Regulamento, ainda que outras não invocadas na decisão recorrida, se encontra adequado apoio à solução a que se chegou em 1.ª instância, assim de que ocorre a incompetência absoluta que esse afirmou, sendo que, já nesse âmbito, entendemos, com a natural salvaguarda do respeito devido, não ser esse o caso, pelas razões que seguidamente mencionaremos.
Em primeiro lugar, importa não esquecer que, aliás no seguimento de requerimento da Ré seguradora na contestação que apresentou, foi determinada a intervenção no processo, enquanto Ré, da entidade que celebrou o contrato com o Autor, a sociedade B...., S.A., pessoa coletiva de direito português e com domicílio em Portugal, razão pela qual, tanto mais que se discute nos autos, de resto até por direta decorrência da defesa que a Ré inicialmente demandada (sociedade alemã e domiciliada na Alemanha) apresentou na sua contestação, a quem caberá ou não a responsabilidade pela reparação que é pretendida na ação, se é certo que quanto a esta última as regras do Regulamento afastariam a competência dos tribunais nacionais, já assim não ocorrerá quanto à Ré interveniente – criando-se, assim, uma situação de atribuição de competência, dependente da consideração isolada de cada uma das Rés, a dois Estados-Membros.
Porém, nesse contexto, constata-se, afinal, quanto à 1.ª Ré, afinal a Entidade que poderia levar ao afastamento da competência dos tribunais nacionais, que se imporá também ter presente, por assumir relevância para o caso, o regime que resulta expressamente dos artigos 26.º e 28.º do Regulamento, quando aí se dispõe:
Artigo 26.º
1. Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º.
2. Nas matérias abrangidas pelas secções 3, 4 e 5, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, o beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador, o tribunal, antes de se declarar competente ao abrigo do n.º 1, deve assegurar que o requerido seja informado do seu direito de contestar a competência do tribunal e das consequências de comparecer ou não em juízo.
(…) Artigo 28.º
1. Caso o requerido domiciliado num Estado-Membro seja demandado no tribunal de outro Estado-Membro e não compareça em juízo, o juiz deve declarar-se oficiosamente incompetente, salvo se a sua competência resultar do disposto no presente regulamento.
2. O tribunal suspende a instância enquanto não se verificar que foi dada ao requerido a oportunidade de receber o documento que iniciou a instância, ou documento equivalente, em tempo útil para providenciar pela sua defesa, ou enquanto não se verificar que foram efetuadas todas as diligências necessárias para o efeito.
3. É aplicável o artigo 19.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros (citação e notificação de atos) (15), em vez do n.º 2 do presente artigo, se o documento que iniciou a instância, ou documento equivalente, tiver sido transmitido por um Estado-Membro a outro por força daquele regulamento.
4. Caso não seja aplicável o Regulamento (CE) n.º 1393/2007, aplica-se o artigo 15.º da Convenção da Haia, de 15 de novembro de 1965, relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial, se o documento que iniciou a instância, ou documento equivalente, tiver sido transmitido ao estrangeiro por força daquela convenção.
Ou seja, contém o Regulamento normas que regulam a extensão de competência e, também, que determinam o respetivo conhecimento oficioso por parte dos Estados-Membros, em concreto, no que aqui importa, os citados artigos 26.º da Secção 7 (Extensão de Competência) e 28.º da Secção 8 (Verificação da competência e da admissibilidade).
Como se refere no Acórdão desta Secção do Tribunal da Relação do Porto de 13 de março de 2017[7], citando-se: “(…) Têm aqui inteira aplicação o artigo 28.º, nomeadamente o seu n.º1, conjugado com o art.º 26.º n.º1, pelas razões que se referem no acórdão da Relação de Évora de 4-05-2006, [proc.º n.º 66/06-3, desembargador Bernardo Domingos, disponível em www.dgsi.pt], que embora reportando-se aos artigos 26.º/1 e 24.º/1 do Regulamento CE n.º 44/2001, são absolutamente transponíveis para o caso concreto. Melhor concretizando, aquele regulamento era igualmente relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial e, embora tenha sido revogado pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, a que nos vimos referindo, neste os artigos 28.º/1 e 26.º/1, têm inteira correspondência com aquelas normas a que se refere o Aresto.
Ora, a propósito do regime que aí está em causa, escreve-se naquele Acórdão o seguinte:
- « (..) O teor do art.º 26 é bem elucidativo quanto à necessidade de apreciação oficiosa por parte do tribunal dos diferentes critérios de conexão adoptados pelo Regulamento em matéria de competência internacional. Porém resulta absolutamente claro desse normativo que o conhecimento oficioso apenas é permitido nos casos em que o requerido/demandado não compareça (seja revel) ou quando comparecendo, a sua intervenção no processo tenha tido como único objectivo a arguição da incompetência do Tribunal – art.º 24º do Reg. E, no dizer de Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 371, «percebe-se que essa apreciação apenas seja oficiosa nos casos em que o requerido/demandado não compareça, porquanto o art.º 24 do Regulamento admite uma prorrogação ou extensão tácita da competência jurisdicional que o Direito português não prevê (cfr., e Conselheiro Neves Ribeiro, in (in "Processo Civil da União Europeia", pág. 94), preceituando que "para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 22.º".
Subscrevemos esta posição. Em suma, transpondo-a para o caso, da conjugação do artigo 28.º 1 com o art.º 26.º1, retira-se que o conhecimento oficioso em matéria de competência internacional, à luz das regras estabelecidas do Regulamento, nos casos em que o requerido domiciliado num Estado-Membro seja demandado no tribunal de outro Estado-Membro, apenas é permitido quando aquele não compareça em juízo ou quando comparecendo a sua intervenção no processo tenha tido como único objectivo a arguição da incompetência do Tribunal.(…)»
Pois bem, no caso, na consideração, então, do regime que antes se mencionou, como resulta do relatório que elaborámos, constata-se que a Ré, A..., aquando da realização da audiência de partes, nessa afinal compareceu, estando devidamente representada por Ilustre Advogado, sendo que, confrontada com a posição aí assumida pelo Sinistrado, não se pode dizer que, como resulta expressamente do n.º 1 do citado artigo 26.º do Regulamento, tal comparência tenha tido como único objetivo a arguição da incompetência do Tribunal, pois que, diversamente, começa por tomar posição no sentido de admitir que o Sinistrado “no dia 30 de maio de 2017, cerca das 10:30 horas, na Alemanha, sofreu um acidente quando exercia as funções de pedreiro de 1ª naquele país por força de destacamento pela empresa “B.... Ldª”, que “aceita, assim, que o sinistrado sofreu um acidente e, bem assim a respetiva caraterização como acidente de trabalho”, só referindo de seguida que entende, porém, “que os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer dos factos em causa nestes autos”. De resto nem sequer se queda por aí, já que, como resulta do mesmo auto, embora dizendo que “sem prescindir”, toma expressa posição sobre outros aspetos, como o foram: defender “que a responsabilidade infortunística decorrente do sinistro em causa nos autos se encontrava transferida para o sistema de segurança social alemão e o sinistrado aceitou a reparação das consequências do sinistro ao abrigo desse mesmo regime”; “caso se entenda aplicável a lei portuguesa em tribunal português, devem ser chamados à ação a entidade patronal e sua entidade seguradora portuguesa”; que “Não aceita o resultado do exame pericial realizado no GML no que tange aos períodos de incapacidades temporárias assim como não aceita a atribuição de IPP ao sinistrado, o qual considera curado sem qualquer desvalorização”; “Não aceita pagar qualquer valor ao sinistrado pelos períodos de incapacidade temporária identificados pelo sr. Perito médico-legal porquanto, ao abrigo do regime alemão aplicável pagou já valor superior ao devido quanto a tais períodos de incapacidade”; “Assim, não aceita responsabilizar-se pelas consequências do sinistro e daí que não se concilia”[8].
Em face do exposto, por decorrência do regime estabelecido n artigo 26.º/1 (bem como 28.º/1) do Regulamento, quanto à referida Ré, passando a ser também competentes os tribunais portugueses, daí decorre que a exceção invocada, diversamente do decidido em 1.ª instância, terá de improceder, razão pela qual, na procedência do recurso, se nos impõe revogar a decisão recorrida.

Por decaimento, a responsabilidade pelas custas impende sobre as Recorridas (artigo 527.º do CPC).


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Sumário – a que alude o artigo 663.º, n.º 7, do CPC, da responsabilidade exclusiva do relator:

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IV - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, a qual é substituída por este acórdão, em que se julga improcedente a exceção da incompetência internacional do tribunal, determinando-se, por decorrência, salvo se outra razão houver que o impeça, o posterior prosseguimento dos autos.

Custas pelas Recorridas.


Porto, 28 de junho de 2024

(assinado digitalmente)

Nélson Fernandes (relator)

Rui Penha

Eugénia Pedro


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[1] Relatora Conselheira Ana Resende – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 (Recurso para Uniformização de Jurisprudência), publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 - 65.
[2] Processo n.º 6620/22.5T8VNG.P1, que aliás foi relatado pelo também aqui relator.
[3] Relator Conselheiro Sampaio Gomes, disponível em www.gdsi.pt.
[4] Relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção como adjunto do aqui relator.
[5] Proc.º 09S0470, Conselheiro Sousa Peixoto, disponível em www.dgsi.pt]
[6] A incompetência absoluta decorrente da violação das regras de competência internacional [art.º 96.º al. a), do CPC] é uma exceção dilatória que o Tribunal aprecia oficiosamente, devendo abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância [art.º 278.º 1, al. a), do CPC)].
[7] Relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção enquanto adjunto do aqui relator – in www.dgsi.pt.
[8] De resto em conformidade no essencial com a posição que mais tarde, na contestação, veio a assumir.