INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULA DE CONVENÇÃO COLETIVA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Na interpretação, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes de cláusula de convenção coletiva deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, a que acresce que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, muito embora a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (art.º 236.º do CC).
II - Impende sobre o trabalhador / autor o ónus da prova dos factos que estejam na base dos direitos que invoca.

Texto Integral

Apelação / processo n.º 4050/23.0T8VLG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Valongo - Juiz 1

Autor: AA

Ré: A..., Lda.


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Nélson Fernandes (relator)

Teresa Sá Lopes

Germana Ferreira Lopes

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. AA intentou a presente ação com processo comum emergente de contrato individual de trabalho contra A..., Lda., para apreciação do pedido formulado contra a mesma da sua condenação a pagar-lhe a importância de €14.804,49, acrescida dos juros vencidos desde a data de vencimento das prestações em dívida até efetivo e integral pagamento.

Citada a Ré, tendo-se frustrado a conciliação entre as partes na audiência de partes realizada, apresentou aquela contestação, pugnando pela improcedência da presente ação.

2. Aquando da realização da audiência prévia, com saneamento dos autos, em que foi fixado o valor da ação em €14.804,49, depois de afirmar que o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da causa, foi de seguida proferida sentença, de cujo dispositivo consta (transcrição):

“DECISÃO

Deste modo, e sem necessidade de ulteriores considerações, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência:

a) Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de €887,04, acrescida dos juros vencidos desde a data de vencimento das prestações em dívida até efectivo e integral pagamento;

b) Absolvo a Ré do demais contra si peticionado pelo Autor.

Custas a cargo do Autor e da Ré, (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC), na proporção do respectivo decaimento de 94% e de 6%, respectivamente, sem prejuízo da isenção de que beneficia o Autor.

Registe e Notifique.”

2.1. Não se conformando com o assim decidido, apresentou o Autor requerimento de interposição de recurso, formulando as conclusões seguintes:

“1.º Carece de fundamento, salvo o devido respeito, a interpretação feita pelo Meritíssimo Juiz à cláusula 54ª da Convenção Coletiva Aplicável.

2. Aquela cláusula prevê o pagamento de ajudas de custo aos trabalhadores deslocados nas viagens de serviço.

3. O Recorrente invocou que realizava aquelas viagens de serviço fora do seu local de trabalho, no desempenho das suas funções de motorista na condução de veículos pesados.

4. Sendo, por isso, legítima, a sua pretensão ao reclamar da Recorrida o pagamento daquelas refeições ao longo do período em que efetuou aquele trabalho de serviço externo.

5. A sentença recorrida violou o disposto na cláusula 54º, nº 1, 2 e 5 da Convenção Coletiva aplicável.”

2.1.1. Contra-alegou a Ré, sem formular conclusões, invocando em síntese que ao Autor não é aplicável a cláusula que invoca, para concluir pela improcedência do recurso.

2.2. O recurso veio a ser admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

3. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se pela improcedência do recurso, fazendo constar designadamente o seguinte: “(…) Adere-se à tese do despacho saneador sentença e às contra-alegações da recorrida, pelo rigor argumentativo para indeferimento da pretensão do apelante. A aludida prestação, no caso em apreço, está excluída do conceito de retribuição, nos termos do artº. 260.º n.º 1, alínea a) do Código do Trabalho. Não lhe é aplicável o nº. 1 da cláusula 54.º do CCT, mas sim o seu n.º 5, atenta a sua concreta prestação laboral.”

3.1. Notificadas as partes do aludido parecer, não ocorreu pronuncia.


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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II – Questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639., n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir passa por saber se a sentença errou na aplicação da lei e do direito.

III – Fundamentação

A. De facto

Na sentença considerou-se como factos provados o seguinte (transcrição):

“1º- A Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio por grosso não especializado de produtos alimentares, bebidas e tabaco.

2º O A. foi admitido ao serviço da Ré por força de um contrato de trabalho celebrado em 1 de Abril de 2014.

3º- Assim, a partir dessa data, o A. passou a exercer a sua actividade profissional remunerada, por conta e sob a direcção e fiscalização da Ré.

4.º O A. estava classificado profissionalmente pela Ré como Motorista de Pesados.

5º. À relação laboral sub judice aplica-se o CCTV publicado no BTE n.º 19 de 22/05/2011 (Portaria de extensão 126/2012, publicada no BTE nº19 de 22/5/2012), no BTE n.º 21 de 8/6/2015 (Portaria de extensão publicada no BTE nº41, de 8/11/2015) e no BTE nº 19 de 22/05/2016 (Portaria 336/2016 publicada no BTE nº1 de 8/1/2017) e posteriores alterações.

6º O Autor é associado do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos do Norte – STRUN, signatário da Convenção Coletiva supra referida,

7º A Ré é uma empresa armazenista de Distribuição de Produtos Alimentares e outros.

8º Ao serviço da Ré,, auferiu o A., o vencimento de:

Entre 01.07.2014 e 28.02.2015….……………………..1.000,00 €

Entre 01.03.2015 e 31.01.2016…………………………1.020,00 €

Entre 01.02.2016 e 30.04.2016…………………………1.035,30 €

Entre 01.05.2016 e 31.12.2016…………………………1.037,54 €

Entre 01.01.2017 e 31.12.2017…………………………1.058,29 €

Entre 01.01.2018 e 31.12.2018…………………………1.079,46 €

A partir de 01.01.2019……………………………………1.101,05 €

9º- O A. prestou serviço para a Ré de Segunda a Sexta Feira com Isenção de Horário de Trabalho.

10º- Os dias de descanso eram o sábado (descanso complementar) e o domingo (descanso semanal).

11º- O A. esteve na situação de baixa médica por doença desde 02.11.2020, a 31.12.2020 e de 19.07.2021 até à data em que passou à situação de reforma por invalidez em 05.12.2022.

12º A Ré nunca efetuou o pagamento de qualquer diuturnidade até á data de passagem do A. à situação de reforma.

13º Para além da remuneração base referida, auferiu o A. uma prestação mensal fixa no montante de 221,76 € a título de “ISENÇÃO HORARIO DE TRABALHO”, durante os meses de Julho a Dezembro de 2014, de Janeiro a Novembro de 2015, de Janeiro a Junho e de Agosto a Dezembro de 2016, de Janeiro a Abril e de Junho a Dezembro de 2017, de Janeiro a Dezembro de 2018 e de Janeiro de 2019 e de Maio a Dezembro de 2019.

14º A prestação respeitante à isenção de horário de trabalho não foi integrada nas férias e no subsídio de férias dos anos de 2015 a 2018.

15º O A. tinha isenção de horário de trabalho efectuando a refeição de almoço fora da empresa ou da sua delegação.

16º Desde a data de admissão até 30.04.2019, a Ré nunca efectuou o pagamento ao A. das refeições, almoços de acordo com a cláusula 53ª do CCTV aplicável.

17º A partir de Maio de 2019 a Ré começou a efectuar o pagamento do subsídio de alimentação no valor diário de 3,20€.”

B. Discussão

Não sendo o recurso dirigido à impugnação da matéria de facto, sendo assim a base factual a atender, para dizermos o direito, aquela que foi firmada em 1.ª instância, constata-se que o Recorrente, em face das conclusões que apresentou, se limita a afirmar que carece de fundamento a interpretação feita à cláusula 54ª da Convenção Coletiva Aplicável, que prevê o pagamento de ajudas de custo aos trabalhadores deslocados nas viagens de serviço, e que, tendo invocado que realizava aquelas viagens de serviço fora do seu local de trabalho, no desempenho das suas funções de motorista na condução de veículos pesados, é por isso legítima a sua pretensão ao reclamar da Recorrida o pagamento daquelas refeições ao longo do período em que efetuou aquele trabalho de serviço externo.

Pugnando a Recorrida pela adequação do julgado, no que é acompanhada pelo Ministério Público junto desta Relação, constata-se que resulta da sentença nomeadamente o seguinte (transcrição):

«III- Se o autor tem direito ao pagamento das refeições por deslocações em serviço externo.

Peticiona ainda o Autor a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €12.718,09 relativamente ao pagamento de ajudas de custo no período entre Julho de 2014 e Dezembro de 2019 que considera estar em falta.

Em causa está a cláusula 54ª do CCT 2011 (cláusula 53ª do CCT 2016), mormente o estatuído no seu nº5, nos termos do qual aos trabalhadores no desempenho de serviço externo, isto é, fora da empresa ou sua delegação serão pagas as refeições que as deslocações em serviço impliquem.

Sustenta o Autor ser-lhe devido tal pagamento.

Contrapõe a Ré que, desempenhando o A. as funções de motorista de pesados, tratando-se como tal de um trabalhador móvel não tem direito a refeições por deslocações em serviço externo, por não lhe ser aplicável esse regime, pois o mesmo não faz serviço externo por o seu local de trabalho ser no exterior e ser móvel, não estando abrangido pelo regime de ajudas de custo aplicável a pessoa que se desloca em viagem de serviço.

Com efeito, importa atentar que a aludida cláusula do CCT prevê ajudas de custo aos trabalhadores que se desloquem em viagem de serviço.

Ora, conforme bem sublinha a Ré na sua contestação o motorista de pesados é um trabalhador móvel.

O que significa que estamos perante um trabalhador que não se desloca apenas em viagem de serviço, mas em que a viagem e respectiva deslocação constitui o próprio serviço.

Com efeito, e como é sabido, o núcleo essencial de funções do motorista consiste, na sua actividade de condução, sendo esse, essencialmente, o seu tempo e prestação de trabalho.

Veja-se a definição da categoria de motorista no CCT de 2016:

Motorista (pesados e ligeiros) - Trabalhador/a que possuindo a adequada carta de condução, tem a seu cargo a condução de veículos automóveis, competindo-lhe ainda zelar pela boa manutenção, conservação e limpeza decorrentes do uso normal do veículo, pela carga que transporta e pelas operações de carga e descarga.

Deste modo, relembrando-se o entendimento de que a interpretação das cláusulas de conteúdo regulativo das convenções coletivas de trabalho deve obedecer às regras próprias da interpretação da lei, devendo partir-se do enunciado linguístico da norma, ou seja, da letra da lei, por ser o ponto de partida da atividade interpretativa uma vez que através dela se procura reconstituir o pensamento das partes outorgantes dessa Convenção Coletiva, tendo presente que o enunciado da cláusula funciona igualmente como limite interpretativo pois não pode ser considerada uma interpretação que não tenha o mínimo de correspondência verbal, importa concluir que nos trabalhadores que se desloquem em viagem de serviço a que a aludida cláusula 54ª CCT 2011 (cláusula 53ª CCT 2016) não se incluem os motoristas (pesados e ligeiros) por, conforme já referido, o cerne da sua prestação de trabalho ser a condução dos veículos e consequentemente o seu tempo de trabalho equivaler, praticamente, ás suas deslocações.

Daí que se tenha de julgar improcedente a presente acção quanto ao pedido formulado a título de ajudas de custo.»

Em face da citada fundamentação, na consideração, também, de que é no quadro factual provado que deve assentar a aplicação do direito no caso, desde já diremos que, não obstante não acompanharmos o Tribunal recorrido quanto à interpretação que faz do n.º 5 da cláusula do CCT aplicável, ainda assim, como melhor explicaremos de seguida, a pretensão do Autor / aqui recorrente terá de improceder.

Explicando, a afirmação anterior, diremos o seguinte:

A cláusula em causa tem a redação que seguidamente se transcreve:

«Ajudas de custo

1- Aos trabalhadores que se desloquem em viagem de serviço será abonada a importância diária mínima de 49,64 € para despesas de alimentação e alojamento, tendo os trabalhadores direito de opção pelo pagamento destas despesas contra a apresentação de documento comprovativo, com a devida justificação.

2- Sempre que a deslocação não implique uma diária completa, serão abonadas as seguintes quantias, com o direito de opção referido no número anterior.

Alojamento ......................................................... 30,36 €;

Almoço ou Jantar ................................................ 10,45 €;

Pequeno-almoço ................................................... 2,10 €.

Nota - O pequeno-almoço será devido quando o trabalhador se ache deslocado ou inicie o serviço antes do seu horário de trabalho.

3- Se o trabalhador utilizar a sua viatura ao serviço da entidade patronal, esta pagar-lhe-á o produto do coeficiente 0,25 sobre o litro da gasolina sem chumbo 95, por cada quilómetro percorrido, além de um seguro contra todos os riscos, incluindo responsabilidade civil ilimitada, compreendendo passageiros transportados gratuitamente.

4- O pessoal deslocado em serviço será seguro pela empresa contra acidentes de trabalho por todo o tempo de deslocação, entendendo-se por tempo de deslocação o que medeia entre a data da saída e a do regresso do trabalhador.

5- Aos trabalhadores no desempenho de serviço externo, isto é, fora da empresa ou sua delegação, serão pagas as deslocações que não sejam efetuadas em viatura da entidade patronal e bem assim as refeições que as deslocações em serviço impliquem.

6- Todas as empresas que não possuam refeitórios e tenham mais de 150 trabalhadores terão de pôr à sua disposição um local condigno, arejado e asseado, com mesas e cadeiras suficientes, água canalizada, meios para aquecimento de refeições e lava-louça, onde os trabalhadores possam tomar ou aquecer as suas refeições.»

Ora, importando interpretar a cláusula citada, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2019[1], após prévia referência aos quadro legal e da contratação coletiva aplicáveis, chamando depois à aplicação o regime que resulta do artigo 236º, do Código Civil, sobre interpretação da declaração:

«(…) Como ensina Mota Pinto[4], «a declaração deve valer com o sentido que um declaratário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efetivamente, mais os que uma “pessoa razoável”, quer dizer, normalmente esclarecida e sagaz, teria conhecido, e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário normal».

Ora, o Código Civil, no artigo 236º, n.º 1, consagra a teoria da impressão do destinatário.

Assim sendo, “[r]eleva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer.[5]

Contudo, a prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário, tem na nossa lei uma limitação, pois, para que tal sentido possa relevar, torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (artigo 236º, n.º 1, in fine).

Para Heinrich Ewald Hörster[6] “a normalidade do declaratário que a lei toma com padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante (Antunes Varela). Portanto, o declaratário não pode colocar a sua razoabilidade no lugar da do declarante. Decisiva é a vontade deste, se ao declaratário for possível conhecê-la”.

Ora, a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável (homem médio), colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria, salvo se a conclusão a que este chegar não possa ser, razoavelmente, atribuída ao declarante, ou seja, não vale o sentido fixado através do declaratário normal quando o mesmo ficar fora do âmbito de previsibilidade do declarante.

A jurisprudência também segue esta teoria.

Com efeito, assim decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 05.07.2012, no processo n.º 1028/09.0TVLSB.L12.S1[7].

O seu sumário é o seguinte:

1. Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo.

2. Em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (art.º 236.º do CC).

3. No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida.

Em idêntico sentido, também o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 2012, proferido no processo n.º 14/06.7TBCMG.G1.S1[8], decidiu:

1. As regras constantes dos artigos 236.º a 238.º do CC constituem diretrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela atividade interpretativa, e o que basicamente se retira do artigo. 236.º é que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (recetor). No entanto, a lei não se basta com o sentido realmente compreendido pelo declaratário (entendimento subjetivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objetivo para o declaratário).

2. Em termos práticos, o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição do declaratário real.

3. Se não se afigurar viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio jurídico, pois tanto a 1.ª como a 2.ª instâncias, raciocinando sobre os mesmos dados de facto e aplicando-lhes idênticas regras de direito, tiraram consequências opostas - sendo certo que de nenhuma delas se pode dizer, com segurança, não ter captado o sentido objetivo correspondente à impressão do destinatário - há que lançar mão do art.º 237º do CC, que dispõe para os casos duvidosos.(…)»

Na sentença, aderindo-se ao invocado pela Ré, refere-se que na cláusula invocada se prevê ajudas de custo aos trabalhadores que se desloquem em viagem de serviço e, porque um motorista de pesados é um trabalhador móvel, tal significa que estamos perante um trabalhador que não se desloca apenas em viagem de serviço, mas em que a viagem e respetiva deslocação constitui o próprio serviço, e, dizendo-se que se estará a efetuar a interpretação da cláusula, concluiu-se que “nos trabalhadores que se desloquem em viagem de serviço a que a aludida cláusula 54ª CCT 2011 (cláusula 53ª CCT 2016) não se incluem os motoristas (pesados e ligeiros) por, conforme já referido, o cerne da sua prestação de trabalho ser a condução dos veículos e consequentemente o seu tempo de trabalho equivaler, praticamente, ás suas deslocações”.

Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a interpretação que é feita na sentença, em particular do n.º 5 da cláusula aplicável, é demasiado redutora, pois que, salvo o devido respeito, não obstante na cláusula em que se insere estar em causa o modo de pagamento das ajudas de custo devidas aos trabalhadores, no entanto, porém, extrai-se que são reguladas situações diversas, assim por um lado os casos de deslocações em viagem de serviço por parte dos trabalhadores cujo local de trabalho seja desde logo a empresa (ou a sua delegação) – que caem em particular na previsão dos seus n.ºs 1 a 3 – e, por outro, aqueles que, nos termos do n.º 5 da cláusula, não se questionando que desempenhem as suas funções do modo aliás como na sentença se refere, pela natureza das funções que exercem, essas se possam integrar no conceito, aí previsto, de «desempenho de serviço externo», este aí definido como desempenho de serviço «fora da empresa ou sua delegação», em que estarão incluídos os motoristas, na definição que para esta categoria consta do CCT, até porque, pela natureza dessas funções, será até natural que desempenhem regularmente o serviço fora da empresa.

Aliás, bem elucidativo de que se trata de situações diversas é a circunstância de, diversamente do que ocorre com aqueles que se integrem na previsão dos n.ºs 1 a 3, em que estão previstos os valores a abonar em face das circunstâncias, mas dando-se o direito de opção aos trabalhadores “pelo pagamento destas despesas contra a apresentação de documento comprovativo, com a devida justificação”, já nos casos previstos no n.º 5 apenas se prevê que sejam pagas, no que ao caso importa, “as refeições que as deslocações em serviço impliquem”, ou seja, o pagamento destas, não tendo por referência quaisquer valores aí estipulados (e sem que se aplique aqui, pois, o direito de opção aplicável nas situações previstas nos n.ºs 1 e 2), diversamente aliás do que sustenta o Autor na petição inicial, deverá sê-lo, por decorrência, necessariamente, pelo valor que venha a ser efetivamente despendido pelo trabalhador – desde logo em face dos documentos comprovativos referentes a tais pagamentos.

Relembrando-se que, como antes dito, na interpretação, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, a que acresce que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, muito embora a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (art.º 236.º do CC), no caso, em face do sentido que pode ser extraído da vontade das partes plasmada no texto, evidenciando-se na nossa ótica uma clara intenção de regular o modo de pagamento do que na epígrafe da cláusula se designa como ajudas de custo, especificamente as despesas que o trabalhador possa ter de suportar com deslocações, dormidas e refeições, mal se compreenderia, até porque tal interpretação não tem adequado suporte do texto, criando aliás uma situação de diversidade de tratamento entre os trabalhadores sem adequado fundamento e justificação, que os trabalhadores, com a categoria de motoristas, quando fizessem serviço externo, o que aliás até será neste caso normal, não tivessem direito a ser reembolsados, no que ao caso importa, do valor que tivessem despendido em refeições que as deslocações em serviço implicaram.

Porém, sendo no nosso entendimento a interpretação antes referida aquela que deve valer, constata-se que o Autor, na presente ação, diversamente do que se imporia, não invoca, como causa de pedir, factos relacionados com o ter efetuado quaisquer despesas com refeições no desempenho de serviço externo, com o objetivo de que lhe fossem pagas pela Ré, sendo esse o direito que, como o dissemos, lhe assistiria, nos termos previstos no n.º 5 da cláusula aplicável, limitando-se antes a peticionar, direito este que, no entanto, não lhe assiste, os valores que se encontram previstos no n.º 2 da cláusula.

Porque assim é, importa ter presente que, em face do que resulta do regime estabelecido no artigo 342.º do Código Civil (CC) – ou seja: “1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.” – sem prejuízo, para além do mais, do que resulta do artigo 346.º, assim que, “Salvo o disposto no artigo seguinte, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova” –, enquanto constitutivo do seu eventual direito, impendia sobre o Autor o ónus de alegar (e depois provar) de todos os elementos de facto necessários para que lhe fosse reconhecido o direito, ou seja, no caso, que tivesse tido/suportado efetivamente quaisquer despesas concretas (e nesse caso, quais e quando) com refeições, no desempenho de serviço externo, que não lhe tivessem sido pagas pela Ré, sendo que apenas estas, e não pois o que peticiona, lhe seria devido.

Deste modo, muito embora com fundamento diverso daquele que foi sufragado na sentença, resta-nos concluir pela improcedência do seu pedido, no que à questão objeto do presente recurso se refere.

Em face da improcedência do recurso, o Recorrente responde pelas respetivas custas (artigo 527.º do CPC)


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Sumário – artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

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IV - DECISÃO

Acordam os juízes que integram a Secção social do Tribunal da Relação do Porto, na improcedência do recurso, muito embora com fundamento não propriamente coincidente com o afirmado na sentença recorrida, em manter o nessa decidido.

Custas pelo Recorrente.


Porto, 28 de junho de 2024

(acórdão assinado digitalmente)

Nélson Fernandes (relator)

Teresa Sá Lopes

Germana Ferreira Lopes


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[1] Conselheiro Ferreira Pinto, in www.dgsi.pt, que esclareça-se incidiu sobre acórdão relatado pelo também aqui Relator.