EXTINÇÃO
FASE ADMINISTRATIVA
FASE JUDICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
1. A fase administrativa do processo de extradição, traduzindo a decisão político-administrativa do Estado Português de admissibilidade ou não do pedido formal de extradição apresentado por um outro Estado, é um pressuposto prévio do processo judicial de extradição.
2. O processo judicial nem sequer se inicia em caso de indeferimento do pedido pelo Ministro da Justiça - n.º 3 do artigo 48.º da LCJIMP - e só no caso de o Ministro da Justiça decidir pela admissibilidade do pedido é que se dá início ao processo judicial de extradição, junto do Tribunal da Relação, nos termos previstos no artigo 50.º e ss., da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (LCJIMP).
3. Não cabe ao tribunal substituir-se ao Ministro da Justiça na decisão sobre a admissibilidade ou não do pedido de extradição, nos termos em que o mesmo é formulado pelo Estado Requisitante, já que se trata de uma decisão política e administrativa do próprio Estado Português, que permite dar início ao processo judicial de extradição, mas tão só, decidir, na fase judicial do processo se a extradição, nos termos em que a mesma foi considerada admissível, pelo Estado Português, deve ser executada ou recusada, de acordo com o direito interno e as Convenções a que Portugal esteja vinculado.
4. Tendo sido solicitado pela República … um pedido de extradição para execução, pelo extraditando, de uma pena de 3 anos de prisão com trabalhos forçados, em que aquele foi condenado por um tribunal egípcio, a pronúncia na fase administrativa sobre tal pedido de extradição, mas apenas relativamente a uma pena de 3 anos de prisão, não pode deixar de equivaler a falta de pronúncia quanto à pena efectiva para a qual é pedida a extradição e, consequentemente, determinar a anulação de todo o processo judicial de extradição, por falta de um pressuposto essencial, que obsta ao conhecimento do mérito da oposição deduzida pelo extraditando.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. Na sequência da detenção em Lisboa, no dia … de … de 2024, de AA, de nacionalidade... nascido em ... de ... de 1992, no ..., filho de BB e de CC, em cumprimento de mandado de detenção internacional emitido pelas autoridades judiciais do ..., conforme notícia vermelha inserido no sistema Interpol com o n.º A-4096/4-2024, foi formalizado pedido de extradição daquele, pelas autoridades da ..., para efeito de cumprimento da pena de 3 (três) anos de prisão com trabalhos forçados, em que o mesmo foi condenado pela prática do crime de fraude e apropriação ilegítima, previsto no artigo 336.º do Código Penal …, no âmbito do processo n.º4458 do Tribunal de ..., por sentença de …  de 2024.
2. Teve lugar a fase administrativa do processo, que culminou com um despacho de sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, de 24 de Junho de 2024, que declarou admissível o pedido de extradição apresentado pela ..., ao abrigo do disposto nos artigos 4.º, 6.º a 8.º a contrario, 31.º, 32.º a contrario e 48.º, n.º2 da LCJMP e tendo em conta o parecer favorável apresentado pela Procuradoria-Geral da República.
3. Foi ouvido o extraditando, nos termos do disposto no artigo 54.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (LCJIMP), sendo-lhe dado conhecimento dos fundamentos de facto e de direito do pedido de extradição formulado pela ..., tendo o mesmo declarado não renunciar à regra da especialidade e opor-se à extradição.
4. Na oposição escrita que apresentou veio o Extraditando pedir que seja recusada a extradição, alegando para tanto, em síntese, o seguinte:
- a sua integração em Portugal, onde pretende exercer as funções de ..., tendo já uma candidatura em curso nesse sentido, e onde vive com uma companheira de nacionalidade brasileira que se encontra grávida;
- a injustiça da decisão …, ainda não transitada em julgado, porquanto não praticou qualquer crime e as consequências que da mesma resultam para a sua vida e integridade física;
- a circunstância de a pena aplicada, de prisão com trabalhos forçados, ofender a ordem jurídica portuguesa e outros textos internacionais que vinculam Portugal.
5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se em sentido desfavorável à extradição por entender, em síntese, depois de se debruçar sobre o Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, as Regras Penitenciárias Europeias, as Regras Mínimas das Nações Unidas (Regras Mandela), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que vinculam Portugal, bem como a Lei no 144/99 (LCJIMP) que uma pena de prisão que inclua trabalhos forçados, executados tão arduamente quanto possível, equivale a uma pena desumana e degradante.
6. Por despacho de 8 de Julho de 2024, foi dispensado o cumprimento do disposto no artigo 56.º, n.º2 da Lei n.º 144/99 e, após exame do processo, foram os autos aos vistos legais, após o que se realizou a conferência, cumprindo agora decidir.
II – Fundamentação
Questão prévia
A extradição é um instrumento de cooperação judiciária internacional entre Estados que, em Portugal, se subordina à Constituição da República Portuguesa (artigo 33.º), ao direito internacional, designadamente às convenções internacionais relativas à extradição a que Portugal está vinculado e ao direito interno que actualmente está previsto na Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Lei nº 144/99, de 31 de Agosto.
De acordo com o artigo 3.º da LCJIMP prevalece o direito internacional convencional sobre o direito interno aí se dispondo que as formas de cooperação nela contempladas, entre as quais a extradição (artigo 1.º), se regulam, em primeira linha, pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas normas previstas na LCJIMP e, subsidiariamente pelas normas do Código de Processo Penal.
Não existe qualquer Convenção de Extradição entre Portugal e a ..., tendo o pedido de extradição em causa sido apresentado ao abrigo do princípio da reciprocidade previsto como base de cooperação judiciária em matéria penal no artigo 4.º da LCJIMP, diploma aqui aplicável e à luz do qual importa aferir da legalidade do pedido, em termos procedimentais, antes ainda de entrar no conhecimento do seu mérito.
A extradição surge na Constituição da República Portuguesa no capítulo dos Direitos, Liberdade e Garantias, como uma competência política do próprio Estado garante desses direitos, um dos quais é o de que a extradição só pode ser determinada por autoridade judicial.
Não obstante a decisão de extradição estar atribuída aos tribunais, tratando-se de uma matéria que envolve a cooperação politica e judiciária entre Estados, ela pressupõe uma fase administrativa do processo que é prévia à decisão judicial do pedido de extradição, que se destina à apreciação do pedido por parte de quem tem competência para vincular o Estado Português a nível internacional, no caso o(a) Ministro(a) da Justiça.
Essa fase serve para o Ministro da Justiça decidir, tendo em conta, nomeadamente as garantias a que haja lugar, se o pedido de extradição pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência- artigo 46.º, n.º1 da LCJIMP.
A fase administrativa do processo de extradição, traduzindo a decisão político-administrativa do Estado Português de admissibilidade ou não do pedido formal de extradição apresentado por um outro Estado, é, assim, um pressuposto prévio do processo judicial de extradição.
Quem dá início ao processo administrativo é a Procuradoria-Geral da República que, após receber um pedido de extradição e verificar a sua regularidade formal, quando o considere devidamente instruído, elabora informação no prazo máximo de 20 dias e submete-o à apreciação do Ministro da Justiça – n.º1 do referido artigo 48.º.
O processo judicial nem sequer se inicia em caso de indeferimento do pedido pelo Ministro da Justiça – n.º 3 do artigo 48.º da LCJIMP e só no caso de o Ministro da Justiça decidir pela admissibilidade do pedido é que se dá início ao processo judicial de extradição, junto do Tribunal da Relação, nos termos previstos no artigo 50.º e ss., da LCJIMP.
No caso em análise, está em causa a apreciação de um pedido de extradição apresentado pela ... para efeito de cumprimento de uma pena de 3 (três) anos prisão com trabalhos forçados (negrito nosso), em que o extraditando foi condenado, na sua ausência, por sentença de 18 de Abril de 2024, pela prática do crime de fraude e apropriação ilegítima, previsto no artigo 336.º do Código Penal Egípcio, no âmbito do processo n.º4458 do Tribunal de 1ª instância de ....
Constata-se que, na fase administrativa do processo, que culminou com uma decisão de admissibilidade do pedido de extradição, de S. Exa. a Sra. Ministra da Justiça, o que foi apresentado perante esta foi um pedido de extradição para cumprimento, por parte do extraditando, da pena de 3 anos de prisão em que o mesmo foi condenado no âmbito do referido processo, sem se fazer qualquer referência, certamente por lapso, a que essa pena de prisão era com trabalhos forçados, pena essa que não existe no ordenamento jurídico português.
Verifica-se, assim, que não houve qualquer pronúncia na fase administrativa do processo, por parte da autoridade política para o efeito competente, a Exma. Ministra da Justiça, sobre a pena efetiva – 3 anos de prisão com trabalhos forçados -, que foi aplicada ao extraditando pelas autoridades judiciais … e para cujo cumprimento foi formulado o pedido de extradição. Aliás, nem a Procuradoria-Geral da República, na informação que elaborou e juntou ao pedido de extradição que apresentou perante S. Excelência a Senhora Ministra da Justiça se refere à pena de trabalhos forçados.
A inexistência dessa fase administrativa quanto ao pedido de extradição relativamente à pena efetiva cujo cumprimento, por parte do extraditando, a ... visa executar com o pedido de extradição, não pode deixar de ter como consequência a anulação de todo o processo judicial de extradição, por falta de um pressuposto essencial, que obsta ao conhecimento do mérito da oposição deduzida pelo extraditando.
Com efeito, não cabe ao tribunal substituir-se ao Ministro da Justiça na decisão sobre a admissibilidade ou não do pedido de extradição, nos termos em que o mesmo foi formulado pelo Estado ... (Requisitante), já que se trata de uma decisão política e administrativa do próprio Estado Português, que permite dar início ao processo judicial de extradição, mas tão só, decidir, na fase judicial do processo se a extradição, nos termos em que a mesma foi considerada admissível, pelo Estado Português, deve ser executada ou recusada, de acordo com o direito interno e as Convenções a que Portugal esteja vinculado.
Ora, o que foi objecto de decisão de admissibilidade pelo Estado Português foi um pedido de extradição para cumprimento pelo extraditando de uma pena de 3 (três) anos de prisão) e não o pedido de extradição para cumprimento de uma pena de 3 anos de prisão com trabalhos forçados, sobre a qual não houve qualquer pronúncia na fase administrativa do processo, omissão que é absolutamente essencial para que o pedido possa ser apreciado na fase judicial.

III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam, os Juízes, na 5ª Secção deste Tribunal da Relação, em:
a) Anular todo o processo judicial de extradição apresentado pelo Ministério Público, relativamente ao extraditando AA, por falta de um pressuposto prévio essencial que é o de não ter havido pronúncia administrativa quanto ao pedido de extradição formulado pela ..., para cumprimento por parte do extraditando de uma pena de prisão de 3 (três) anos com trabalhos forçados, em que o mesmo foi condenado pelas autoridades judiciais …, por sentença de 18 de Abril de 2024;
b) Não conhecer, em consequência, do pedido judicial de extradição;
c) Determinar que os autos vão com vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto às medidas de coacção aplicadas ou a aplicar ao extraditando (artigo 41.º da LCJIMP).
Sem custas (artigo 73.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31/08).
*
Proceda-se de imediato às necessárias notificações e comunicações.

Lisboa, 11 de Julho de 2024
(Texto processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n. º 2 do C.P.P.)
Maria José Costa Machado
João Ferreira
Ana Cláudia Nogueira