ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO DE JULGAMENTO
ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I. O erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
II. O erro de julgamento ocorre quando há uma errada apreciação da prova e esta deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
III. A letra do nº 7 do art. 105º do RGIT afirma que os valores a considerar para efeitos do nº 1 e nº 5 do artigo, são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, não sendo possível uma interpretação que aceite a soma dos valores que constem de cada declaração. A referência expressa a cada declaração só pode significar que se pretendeu atender a declarações individualmente consideradas, e não ao seu conjunto, ainda que estejamos perante a prática de um único crime que teve na sua base uma única resolução criminosa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular e nº 1298/19.6T9FNC, que corre termos no Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foram os arguidos,
AA, casado, nascido em ........1976, na freguesia de ..., concelho de ..., filho de BB e de CC, residente na ...; e
DD, casado, nascido em ........1967, em ..., filho de EE e de FF, residente na ...,
condenados, pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos arts. 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nºs 1, 4 e 7 do RGIT, o primeiro na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo um total de 1250 (mil duzentos e cinquenta) euros e, o segundo, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5 (cinco) euros e 50 (cinquenta) cêntimos, perfazendo um total de 660 (seiscentos e sessenta) euros, absolvendo-se o primeiro da forma agravada deste crime, prevista no nº 5 do art. 105º do RGIT.
A sentença recorrida ainda:
- indeferiu a requerida perda de vantagens a favor do Estado/condenação dos arguidos a devolverem ao Estado as quantias de, respectivamente, 230.873,25 euros e 31.431,09 euros
- julgou totalmente procedente o pedido de indemnização deduzido e condenou os demandados AA e DD a pagarem ao demandante “lnstituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM” as quantias de, respectivamente, 230,973,25 euros (duzentos e trinta mil oitocentos e setenta e três euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal das dívidas ao Estado, até integral pagamento e de 31.431,09 euros (trinta e um mil quatrocentos e trinta e um euros e nove cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal das dívidas ao Estado, até integral pagamento.
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Sem se conformar com a decisão, o Ministério Público recorreu pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que dê como provado o facto não provado nº 2, condenando o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social qualificado, p. e p. pelo art. 107º, nºs 1 e 2, por referência ao art. 105º, nºs 1, 4, 5 e 7 do RGIT.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1- O presente recurso vem interposto da sentença proferida nestes autos no dia 06-02-2024, na qual o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º, n.º 1 e 2, 105.º, n.º 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), mas absolvido da prática do tipo qualificado do mesmo crime.
2- No essencial, o objeto do presente recurso incide sobre matéria de direito e, de forma muito circunscrita, de facto, nos termos dos artigos 410.º, n.º 2, al. c) e 412.º, do Código de Processo Penal.
3- Quanto à matéria de direito, o recurso tem por base a interpretação que o Tribunal a quo fez do artigo 105.º, n.º 7 do RGIT, e que redundou na absolvição do referido arguido do tipo qualificado do crime de abuso de confiança contra a segurança social e a sua condenação, meramente, pela forma simples do crime em causa.
4- O arguido AA foi acusado e pronunciado pela prática de um único crime de abuso de confiança contra a segurança social, de trato sucessivo ou execução fracionada, qualificado pelo valor, tendo o Ministério Público entendido que estamos perante uma única resolução criminosa protelada no tempo, à qual o Tribunal a quo aderiu.
5- Sucede que, embora tenha seguido o entendimento do Ministério Público quanto ao crime de trato sucessivo, o Tribunal a quo entendeu que não poderia haver lugar à qualificação daquele crime, conforme consta do despacho de acusação e da decisão instrutória, argumentando que tal está vedado atenta a redação do artigo 105.º, n.º 7, do RGIT e de acordo com a interpretação que fez daquela norma.
6- A nosso ver, a interpretação que o Tribunal faz daquela norma, salvo melhor opinião, não é a correta.
7- Considera-se que o legislador, ao incluir aquela norma, quis apenas esclarecer definitivamente que, em geral, para efeitos daquele crime, os valores a atender são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar, e não necessariamente aqueles que o arguido fez constar, o que é importante nas situações em que existe omissão de valores nas declarações.
8- Se dúvidas houvesse, a interpretação sistemática daquela norma também levaria à conclusão de que não se trata de uma norma que vise resolver a questão da qualificação ou não do crime (como entendeu a decisão recorrida).
9- É que, atentando na norma descrita, a mesma é clara ao estatuir que o seu âmbito serve “para efeitos do disposto nos números anteriores” e não, especificamente, para efeitos do disposto no n.º 5 (qualificação).
10- Ademais, comparativamente, no crime de fraude fiscal o legislador optou por definir o crime simples no artigo 103.º e incluir a modalidade qualificada do crime num artigo à parte, o 104.º tendo utilizado uma norma semelhante no n.º 3 do artigo 103.º, que reproduz ipsis verbis o artigo 105.º, n.º 7, do RGIT, sendo certo que tal norma não tem de todo o escopo de definir os termos da qualificação do crime, sendo interpretada nos termos que acima foram explicitados.
11- Por outro lado, se se assumir que o legislador pretendeu dar àquela norma o significado que a sentença recorrida lhe dá, então o legislador teve a minúcia de criar uma norma cujo único âmbito de aplicação são situações de crime de trato sucessivo, o que, além do mais, constituiria uma situação inusitada, pois não é comum o legislador regular esta figura, que não tem consagração legal e resulta da uma construção teórica de origem jurisprudencial.
12- Na verdade, existindo vários crimes (pluralidade ou em crime continuado) a questão da soma dos valores não se coloca nem sequer em abstrato, de acordo com as regras gerais do direito penal, sendo, por isso, a interpretação dada pelo Tribunal ao n.º 7 do artigo 105.º, inócua para este efeito.
13- Ora, tal situação é, no mínimo, inusitada, pois ao estabelecer que o valor a atender é o de cada declaração (sem que se possam somar), o legislador estaria, ao mesmo tempo, a apontar o caminho da pluralidade de crimes e a afastar a possibilidade de aplicar a figura do crime de trato sucessivo, pois não pode considerar-se a possibilidade de um crime de execução fracionada se o legislador determina que se atenda ao valor de cada um dos atos de execução e proíbe que estes se cumulem.
14- Havendo uma única resolução criminosa que persistiu ao longo de toda a atuação do agente e, por via disso, um só crime, impõe-se, necessariamente, a soma dos valores, sob pena de subversão das regras basilares do direito penal, porquanto na unicidade criminal não há fracionamento das condutas do agente, sendo considerada como um todo.
15- Por isso, ou bem que o Tribunal considerava a existência de vários crimes e condenava o por tantos crimes quantas as declarações ou num só crime na forma continuada, ou bem que entende que há um só crime e, nessa medida, tem necessariamente que somar todos os valores em causa, como ocorre, em situações similares, no furto ou burla qualificada.
16- Pelo que, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 105.º, n.ºs 1, 5 e 7 do RGIT.
17- Quanto ao recurso da matéria de facto, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo tomou aqui uma decisão contraditória, pois não parece admissível que se dê como provado o facto 11 dos factos provados e ao mesmo tempo, não se dê como provado o facto 2 dos factos não provados.
18- De facto, não se afigura que o Tribunal a quo possa considerar e dar como provado que o arguido AA tomou a decisão de deixar de entregar à Segurança Social as prestações devidas, (passando a fazê-lo só se e quando a sua situação financeira o permitisse) e, ao mesmo tempo, sustentar que ao tomar tal decisão, ele não tenha, pelo menos, assumido como possível que o valor em dívida, pudesse vir a ultrapassar os € 50.000,00, considerando, inclusive, o valor elevado em dívida que gerava em cada mês.
19- Parece-nos ser razoavelmente evidente que se um arguido decide deixar de entregar prestações tributárias à Segurança Social, desconhecendo o valor a que tais prestações poderão ascender no futuro, ele não pode deixar de, no mínimo, assumir como possível que esse valor, no final, venha a ser superior a € 50.000,00, a menos que algum meio de prova ponha em causa aquilo que resulta das regras da experiência comum.
20- O Tribunal a quo na sua fundamentação apenas excluiu a existência de um dolo direto do arguido, porém em nenhum momento exclui que o arguido possa ter agido com dolo eventual, conforme vem acusado.
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Também sem se conformarem com a decisão, ambos os arguidos interpuseram recurso onde pedem que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida no sentido da sua absolvição.
Para tanto formulam as conclusões que se transcrevem:
ÂMBITO DO RECURSO
1. Os Recorrentes não se conformam com a sentença a quo que condenou o arguido AA, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nºs 1, 4 e 7 do RGIT, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 5,00, num total de € 1.250,00, e no pagamento ao demandante “Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM” da quantia de € 230.873,25 e o arguido DD pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nºs 1, 4 e 7 do RGIT, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,50, num total de € 660,00, e no pagamento ao demandante “Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM” da quantia de € 31.431,09;
2. O presente recurso vem interposto da decisão proferida sobre a matéria de facto e, por isso, tem por objeto a reapreciação da prova gravada, bem como sobre a matéria de direito!
DA MATÉRIA DE FACTO DO ENQUADRAMENTO
3. A matéria de facto consubstanciada Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19, dos FACTOS PROVADOS e Pontos 3 e 4, dos FACTOS NÃO PROVADOS da sentença a quo, está mal julgada, pelo que, para efeitos do disposto no artigo 640.º do CPC vai impugnada, pugnando, ora, os recorrentes que a mesma deve constar do elenco dos factos não provados e factos provados, respetivamente;
4. Merece censura a sentença sub recurso ao não ter ponderado de forma crítica os depoimentos da testemunha GG, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 11h52m e fim às 12h35m, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada 15-11-2023, do minuto 00:15:34 ao minuto 00:19:22 e do minuto 00:34:56 ao minuto 00:36:46 e da testemunha HH, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15h28m e fim às 16h27m, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada 06-12-2023, do minuto 00:26:13 ao minuto 00:30:14, do minuto 00:32:55 ao minuto 00:33:03, do minuto 00:53:08 ao minuto 00:55:44;
5. Os referidos depoimentos impunham dar na sentença como NÃO PROVADA a matéria dos Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19, dos FACTOS PROVADOS e por PROVADA a matéria dos Pontos 3 e 4, dos FACTOS NÃO PROVADOS;
6. Os depoimentos referidos no ponto anterior provam à saciedade que o arguido, ora, recorrente DD não exerceu na “...” uma gerência efetiva, não praticou quaisquer atos de gestão consentâneos com as decisões que constituem a matéria dos Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados;
7. Os depoimentos referidos em 5 supra provam que a apresentação da sociedade ao PER era uma decisão já negociada e decidida pelo arguido AA com o próprio Instituto da Segurança Social, em momento muito anterior à nomeação de gerente do arguido DD;
8. Os depoimentos referidos em 5 supra provam que o arguido DD nunca teve acesso às contas bancárias da empresa e que a gerência da mesma sempre foi exercida pelo arguido AA;
9. O facto que a sentença a quo elege para qualificar a gerência do arguido DD como de facto – apresentação da empresa ao PER – não tem sustentáculo na prova produzida, tal ato não foi negociado, decidido pelo arguido DD, antes, pelo arguido AA que sempre decidiu o destino da empresa;
10. Nega-se, pois, a resposta positiva dada a tal matéria na sentença em crise, impondo a Lei e o Direito, a alteração da resposta dada nos Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados, que deve passar a fazer parte do elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS na sentença a quo, no que ao arguido DD concerne! Outrossim, impõe-se resposta positiva os factos que consubstanciam os Pontos 3 e 4 dos FACTOS NÃO PROVADOS, que concomitantemente devem passar a fazer parte do elenco dos FACTOS PROVADOS; Ademais,
11. Não se encontra nos autos depoimento testemunhal ou documento que sustente as respostas dadas quanto à matéria, aqui sindicada;
12. A sentença a quo incorre em erro recorrente na apreciação e valoração da prova, ou mesmo, por ausência total de prova; Ainda,
13. justifica a alteração da matéria de facto acima preconizada a absoluta contradição entre a matéria dos Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados e a matéria dos Pontos 20 a 28 dos factos provados na sentença a quo;
14. A matéria assim dada por provada em 20 a 28 dos factos provados na sentença a quo afasta qualquer ato de predita vontade, intenção ou culpa por parte dos arguidos do crime em que vêm condenados;
15. A matéria dada por provada em 20 a 28 dos factos provados e o depoimento prestado pela testemunha HH, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15h28m e fim às 16h27m, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada 06-12- 2023, do minuto 00:12:54 ao minuto 00:14:42, do minuto 00:16:13 ao minuto 00:20:05, do minuto 00:22:14 ao minuto 00:22:40, do minuto 00:39:29 ao minuto 00:43:01, impunham resposta negativa aos Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos FACTOS PROVADOS;
16. Sem afastar a tese da falta de gerência de facto do arguido DD, é míster concluir que da matéria dada como provada em 20 a 28 dos factos provados, resulta que a vontade e decisão dos arguidos resultou condicionada pela ação, melhor, inação do “Instituto da Segurança Social da Madeira, IP - RAM”, que, inelutavelmente conduziu à não entrega das quotizações objeto dos presentes autos;
17. Os depoimentos das testemunhas supra referidos confirmam do calvário sofrido pelo arguido AA na tentativa de obter os A1 e as negociações frustradas pelo Instituto de Segurança Social que, contra todas as expectativas e promessas votou contra o PER, inviabilizando a resolução da questão das quotizações;
18. Repete-se, também aqui, que sem prova conducente à resposta dada, vem a sentença a quo, na apreciação e valoração da prova ou mesmo por ausência total de prova, incorrer em erro recorrente na resposta dada a tal matéria;
19. Impunha-se e impõe-se decisão sobre a matéria de facto consentânea com prova produzida e a matéria dada por provada em 20 a 28 dos factos provados na sentença a quo e concomitantemente a negação do decidido nos Pontos da matéria de facto dada por provada em 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados e a afirmação dos Pontos 3 e 4, dos factos não provados, aqui sindicada e, levando-se ao elenco dos factos não provados e factos provados, respectivamente; IPSO FACTO,
20. na sentença a quo, o Tribunal valora e faz dos factos – Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos FACTOS PROVADOS e Pontos 3 e 4 dos FACTOS NÃO PROVADOS – alicerce da sua decisão, renegando do enquadramento em que os factos ocorreram e, que necessariamente conduzem à conclusão da falta de intenção/ culpa dos arguidos, aqui recorrentes, na omissão de entrega das quotizações – que, de todo, negam da prática do crime de abuso de confiança à Segurança Social, em que vêm condenados;
21. A matéria factual dada como provada e não provada, sub apreciação, e que é fundamento material da sentença, não resulta de uma análise atenta, crítica e objetiva por parte do Mmo. Juiz a quo dos elementos carreados para os autos, incluindo o depoimento prestado pelas testemunhas, bem como os demais elementos documentais probatórios carreados para os autos;
22. Andou mal a sentença em crise na apreciação e valoração da prova produzida e, dessa forma, incorreu, em erro de julgamento;
23. Não pode a sentença a quo, manter-se por válida no ordenamento jurídico!
DA MATÉRIA DE DIREITO DO ERRO DE JULGAMENTO
24. Alterando-se a matéria de facto dada por provada e sub impugnação no presente recurso e sendo o exercício de funções de gerente, a intenção e culpa os pressupostos de punibilidade, a falta de tal elemento, importa, in casu, a falta de preenchimento dos requisitos que a Lei impõe para ocorrer a punibilidade pela prática do crimes de abuso de confiança contra a segurança social em que vêm condenados os arguidos, aqui recorrentes, o que importa a despenalização da sua conduta, em consequência a sua absolvição;
25. Impõe-se, assim, a revogação da sentença recorrida e, consequentemente, serem os arguidos absolvidos da prática dos crimes em que vêm condenados;
26. Viola a sentença em recurso o disposto no artigo 412º, nº 3 do CPP e art. 127º, ambos do CPP;
27. Sem prescindir, sempre se dirá que in casu o Tribunal a quo excedeu os limites da livre convicção do Tribunal.
DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA DA SEGURANÇA SOCIAL
28. Repete-se da falta de prova produzida nos autos capaz ao preenchimento dos elementos integrantes do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, pelo que se nega a verificação dos pressupostos da punição dos arguidos, ora, recorrentes, na sentença sub recurso;
29. In casu, da prova produzida nos autos, não resulta e, por isso, não podia ter sido valorado na sentença em recurso - de modo a que se mostre insuperável - de que os arguidos, aqui recorrentes, agiram com a predita intenção de se apropriarem a favor da empresa dos valores das quotizações, antes tal resultou dos condicionalismos e inação do Instituto da Segurança Social, IP-RAM que, como se impunha, não emitiu os A1 requeridos pela sociedade “...”;
30. Sem culpa não há crime! Sem crime não há pena;
31. Não se mostra, pois, preenchido o imprescindível elemento objectivo do crime e subjetivo da ilicitude legalmente previstos, pelo que, no mínimo e no limite, sempre na douta sentença em recurso, se impunha observar o princípio do in dubio pro reo, ou seja, “O princípio in dubio pro reo dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.” Ainda,
DA MERA GERÊNCIA DE DIREITO
32. “O preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança contra a segurança social pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efectiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária. II) Daí que a qualidade de "gerente" no sentido formal, mesmo que com um conhecimento da situação de incumprimento, seja insuficiente para a imputação do referido tipo de crime e se torne necessário demonstrar que esse gerente ou administrador de direito tinha o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa.” (Ac. TRG de 11-05-2015, in www.dgsi.pt);
33. Transmutando para o caso sub judicie, diga-se que, da prova produzida não resulta qualquer referência, nem permite qualquer ilação, quanto ao comportamento do Recorrente DD relativamente à decisão de a sociedade não entregar as quotizações em causa;
34. Vingou na sentença sub judicie a presunção judicial, que Jurisprudência dos Tribunais, supra referida, vem a afastar como possível, ou seja, a consideração de culpa igual numa administração de Direito e numa administração de facto;
35. A mera administração de Direito não é suscetível de diminuir patrimónios, nem de praticar crimes, em representação da sociedade administrada;
36. Ora, a sentença em crise, com base numa gerência meramente de Direito e face à prova produzida, tinha, no mínimo que se situar no campo da dúvida razoável e, não tendo sido apurados quaisquer factos relativamente à atuação do Recorrente, DD, não podia ter feito um juízo individualizado sobre a culpa, por forma à condenação, nela plasmada;
37. Há na sentença em recurso uma presunção de culpa do administrador de Direito, inadmissível no nosso ordenamento jurídico;
38. A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 107º, nº 1 e 2 e 105º, nºs 1, 4 e 7 do RGIT, porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos intrínsecos do referido tipo legal de crime em que vêm condenados os arguidos, aqui recorrentes;
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
39. O direito à indemnização depende, além do mais, da existência de culpa e da prática do crime!
40. Tais elementos e/ou requisitos constitutivos do direito à indemnização, como supra se alega, não se verificam ou ocorrem no caso sub judicie!
41. A prova produzida nos autos e/ou a ausência de prova quanto à matéria de facto sub análise – a intenção de apropriação, de não entrega e também da administração efectiva ou de facto do arguido DD – a absolvição dos arguidos, ora, recorrentes do crime de abuso de confiança contra a segurança social e, consequentemente do pedido de indemnização cível em que vêm condenados;
42. Viola, assim, a sentença a quo, além, do mais, o disposto no art. 483º do C. Civil;
43. Impõe-se, por justiça e em nome da verdade material, a revogação da sentença em recurso, em conformidade com a absolvição aqui preconizada!
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos arguidos, apresentando as seguintes conclusões:
1- Por sentença proferida no dia 06 de fevereiro de 2024 foram os arguidos AA e DD condenados, cada um, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o primeiro na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo um total de 1250 (mil duzentos e cinquenta) euros e, o segundo, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5 (cinco) euros e 50 (cinquenta) cêntimos, perfazendo um total de 660 (seiscentos e sessenta) euros.
2- Inconformados com a decisão recorrida, os arguidos vêm peticionar a sua absolvição, colocando, em crise, os seguintes pontos: a gerência de facto do arguido DD e a prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social por ambos os arguidos.
3- Veio o arguido DD impugnar, em suma, os factos provados que determinaram a sua condenação pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
4- Para tanto, procede a transcrições, parciais, dos depoimentos das testemunhas GG e HH para concluir que de tais depoimentos resulta inequivocamente que não exerceu na sociedade comercial “...” uma gerência de facto efetiva.
5- O arguido, no seu recurso, transcreve, apenas, parte do depoimento das testemunhas omitindo, por exemplo, que ambas as testemunhas referiram que o arguido DD veio para a referida empresa para a tentar resgatar do difícil momento financeiro em que se encontrava, ou seja, que em finais de outubro de 2018 houve uma “transmissão de testemunho” do arguido AA para o arguido DD.
6- Ademais, a testemunha HH, apesar de não ter lidado com o arguido DD, uma vez que deixou de ser ... precisamente na altura em que a empresa passou do arguido AA para DD, não deixou de frisar que este último entrou para a empresa por causa da sua experiência profissional.
7- Na verdade, foi o arguido DD quem mandatou ... para, em representação da sociedade comercial, apresentar Processo Especial de Revitalização confiando que a aprovação do PER seria a melhor solução para a empresa e que tal solução iria merecer a aprovação da Segurança Social, o que não veio a suceder.
8- O recorrente fez uma análise fragmentária dos depoimentos das referidas testemunhas, desconsiderando, por um lado, estes depoimentos no seu todo, e por outro lado, todas as demais provas produzidas em julgamento.
9- Face à prova produzida e dentro dos limites e condicionalismos acima referidos, a decisão do Tribunal a quo, fundada na sua livre convicção, está devidamente fundamentada, sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum e a mais acertada a nosso ver.
10- Quanto ao segundo ponto, alegam os recorrentes que não se provaram todos os elementos integrantes do crime de abuso de confiança contra a segurança social, designadamente, a seu ver, não se demonstrou que os arguidos agiram com a predita intenção de se apropriarem a favor da empresa dos valores das quotizações, antes resultou dos condicionalismos e inação do Instituto da Segurança Social que não emitiu atempadamente os modelos A1 requeridos pela sociedade .... Assim, entende que os arguidos agiram sem culpa, e “sem culpa não há crime”.
11- Como sabemos, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime de omissão pura, que se consuma com a não entrega, no prazo legal, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais (cfr. artigo 107º, n.º 1, do RGIT). Como tal, a “não entrega da prestação” é que constitui elemento objetivo do tipo e não a “apropriação”.
12- Do mesmo modo, o elemento subjetivo do ilícito não tem que abarcar qualquer intenção de apropriação, pois, quanto a este, o agente tem, apenas, de representar os elementos do tipo, designadamente, a violação da entrega dos valores das prestações deduzidas à Segurança Social que a lei lhe impõe e, sendo conhecedor de ter de entregar tal quantia dentro de determinado prazo, o não faça, o que no presente caso ficou abundantemente demostrado.
13- Ainda que se compreenda a situação financeira em que a ... ficou decorrente de uma eventual inação da segurança social, a verdade é que as dificuldades financeiras e económicas invocadas não permitem afastar a ilicitude ou a culpa.
14- Conforme disse o Tribunal a quo a situação acima descrita pode ser uma circunstância atenuante, a considerar em sede de medida concreta da punição, mas não retira natureza criminal a essa conduta omissiva.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer onde, em relação ao recurso interposto pelos arguidos, aderiu à fundamentação das contra-alegações apresentadas pelo MP; e em relação ao recurso interposto pelo MP, aderiu ao mesmo.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1 - A “...” foi uma sociedade comercial constituída no dia ... de ... de 2008 que, a .../.../2018, alterou a sua designação social para "...” (...), (doravante, e por economia de exposição, designada apenas por “...”), matriculada no Registo Comercial com o número de pessoa coletiva ..., com o número de identificação da Segurança Social …, com o capital social de 250.000 €, sediada à ..., nesta comarca da Madeira, e que se dedicava à atividade de cedência temporária de trabalhadores para ocupação por utilizadores, podendo, ainda, desenvolver atividades de seleção, orientação e formação profissional, consultadoria e gestão de recursos humanos.
2 - O arguido DD, nomeado gerente da ... em .../.../2018, agindo em nome, representação e no interesse da ..., outorgou procuração forense, a… /…/18, a fim de que os mandatários nela instituídos representassem a sociedade, mormente para efeitos de apresentação da ... a plano Especial de Revitalização, o que, de facto, viria a acontecer, a …/…/2018, tendo, a …/…/2018, sido nomeado um administrador judicial provisório, com os poderes expressos no art. 17º-E do CIRE e o direito de acesso previsto no art. 33º desse diploma.
3 - A não aprovação desse Plano Especial de Revitalização, atento o voto negativo da Segurança Social, principal credora da ..., viria a culminar com a declaração de insolvência desta, por sentença de …/…/2019, tendo, a …/…/22, sido lavrado registo do cancelamento da sua matrícula no registo comercial.
4 - Entre o dia 2 de janeiro de 2015 e o dia 25 de outubro de 2018, o arguido AA exerceu as funções de gerente dessa sociedade, tendo a sua designação sido inscrita no Registo Comercial.
5 - No dia 25 de outubro de 2018, o arguido AA apresentou à ... a sua renúncia à respetiva gerência, que se tomou eficaz, nos termos da legislação societária no dia 2 de novembro de 2018.
6 - No dia 25 de outubro de 2018, o arguido DD foi designado gerente da ..., facto que foi inscrito no Registo Comercial, tendo, desde então, exercido tais funções.
7 - Enquanto gerentes da ..., nos respectivos períodos em que exerceram funções, os arguidos AA e DD agiram em nome, por conta e no interesse daquela sociedade, representando-a, controlando a sua atuação e decidindo sobre todos os aspetos relativos ao cumprimento das suas obrigações tributárias conexas com a atividade social, designadamente o pagamento de contribuições e de quotizações devidas ao Instituto de Segurança Social da Madeira IP-RAM.
8 - No âmbito da atividade que desenvolvia, a ... teve ao seu serviço diversos trabalhadores, a quem, por decisão dos arguidos, nos respectivos períodos de gerência, tomada em nome, por conta e no interesse daquela, enquanto seus gerentes, pagou as remunerações que lhes eram devidas, incumbindo-lhe, também, as tarefas de deduzir dessas remunerações as quantias correspondentes às quotizações devidas pelos mesmos ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, apuradas pela incidência das percentagens fixadas na lei sobre essas remunerações, de enviar as relações mensais alusivas a tais descontos/retenções a esse instituto público e de entregar os respetivos montantes aos cofres daquela entidade.
9 - De igual modo, no âmbito da atividade que desenvolvia, a ..., por decisão dos arguidos nos respectivos períodos de gerência tomada em nome, por conta e no interesse daquela enquanto seus gerentes, pagou a estes as remunerações que lhes eram devidas, nessa qualidade, incumbindo-lhe, ademais, as tarefas de deduzir dessas remunerações as quantias correspondentes às quotizações devidas por eles ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, apuradas pela incidência das percentagens fixadas na lei sobre essas remunerações e de enviar as relações mensais alusivas a tais descontos/retenções a esse instituto público e de entregar os respetivos montantes aos cofres daquela entidade.
10 - Os arguidos, agindo em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seus gerentes, sempre deduziram, nas remunerações que lhes eram pagas e que eram pagas aos trabalhadores que essa sociedade teve ao seu serviço, os montantes correspondentes às quotizações por eles devidas ao Instituto de Segurança Social da Madeira IP-RAM, apuradas mediante a incidência da percentagem de 11%, tendo remetido a esse instituto público as correspondentes folhas mensais de remunerações.
11 - Sucede, porém, que, no mês de julho de 2017, o arguido AA, agindo em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seu gerente, decidiu deixar de entregar ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM as quotizações devidas por si e pelos trabalhadores dessa sociedade à Segurança Social.
12 - Assim, em concretização dessa decisão, o arguido AA, em nome, por conta e no interesse da ..., não entregou ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM os montantes correspondentes às quotizações devidas por si e pelos trabalhadores dessa sociedade a este instituto público, que deduzira das remunerações que lhes foram mensalmente pagas, nos termos infra discriminados, apesar de ter remetido a essa entidade as correspondentes folhas de remunerações:
Mês e ano de referência Dívida de quotizações
2017/07 2.636,29 €
2017/08 9.655,24 €
2017/09 12.451,23 €
2017/10 13.461,18 €
2017/11 17.022,53 €
2017/12 12.673,27 €
2018/01 17.617,50 €
2018/02 20.207,44 €
2018/03 17.968,34 €
2018/04 20.694,09 €
2018/05 21.734,90 €
2018/06 21.494,61 €
2018/07 19.629,95 €
2018/08 12.417,81 €
2018/09 10.711,98 €
Total – 230.873,25 €
13 - De igual modo, em data não concretamente determinada, mas seguramente após o dia 25 de outubro de 2018, o arguido DD, ao iniciar funções como gerente da ..., tomou conhecimento da decisão referida no parágrafo anterior e, em nome, por conta e no interesse dessa sociedade, decidiu continuar tal procedimento, tendo também determinado a não entrega ao Instituto de Segurança social da Madeira, IP-RAM das quotizações devidas por si e pelos trabalhadores da mencionada empresa à segurança social.
14 - Deste modo, em concretização dessa decisão, o arguido DD, em nome, por conta e no interesse da ..., não entregou ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, os montantes correspondentes às quotizações devidas por si e pelos trabalhadores dessa sociedade a este instituto público, que deduzira das remunerações que lhes foram mensalmente pagas, nos termos infra discriminados, apesar de ter remetido a essa entidade as correspondentes folhas de remunerações:
Mês e ano de referência Dívida de quotizações
2018/10 10.669,55 €
2018/11 9.549,79 €
2018/12 7.495,83 €
2019/01 3.436,13 €
2019/02 281,80 €
Total – 31.431,09 €
15 - Os arguidos AA e DD, em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seus gerentes, não entregaram ao Instituto de Segurança Social da Madeira IP-RAM os montantes correspondentes às quotizações acima discriminadas, até ao vigésimo dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 (noventa) dias subsequentes.
16 - O arguido AA foi notificado, no dia 29 de janeiro de 2020, para, no prazo de 30 (trinta) dias, pagar ao Instituto de segurança Social da Madeira, IP-RAM, o montante mencionado no primeiro quadro supra acrescido dos respetivos juros de mora do valor da coima eventualmente aplicável e dos demais encargos, o que não fez.
17 - O arguido DD foi notificado, no dia 20 de fevereiro de 2020, para, no prazo de 30 (trinta) dias, pagar ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, o montante mencionado no segundo quadro supra, acrescido dos respetivos juros de mora, do valor da coima eventualmente aplicável e dos demais encargos, o que não fez.
18 - Os arguidos AA e DD, agindo em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seus gerentes, previram, quiseram e lograram não entregar ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, os valores correspondentes às quotizações deduzidas das remunerações que essa sociedade lhes pagou e que pagou aos seus trabalhadores, acima discriminadas, apesar de bem saberem que os mesmos não pertenciam a essa sociedade, que esta não tinha qualquer direito a eles e que aquela sociedade estava obrigada a entregá-los ao referido instituto público, por apenas ter estado na sua posse na qualidade de intermediária entre, de um lado, os seus gerentes e trabalhadores e, do outro, o mencionado instituto público.
19 - Os arguidos AA e DD agindo em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seus gerentes, atuaram sempre livre, deliberada e conscientemente, com plena capacidade de determinação segundo as legais prescrições, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
20 - A ..., empresa de trabalho temporário, tinha um âmbito de actividade societária com uma abrangência internacional, deslocalizando uma percentagem não concretamente apurada, mas muito elevada dos seus trabalhadores, para exercerem as funções profissionais em empresas suas clientes no estrangeiro, designadamente em ....
21 - Para que esses trabalhadores não sejam obrigados a suportar o pagamento de quotizações para a segurança social francesa, a segurança social portuguesa, a requerimento da ..., deveria emitir, cumpridos certos requisitos legais, uma declaração denominada "modelo A1" que, uma vez apresentada perante a Segurança Social francesa, comprova a esta entidade que as obrigações desses trabalhadores destacados para trabalharem temporariamente nesse país cumprem as suas obrigações perante a Segurança Social Portuguesa e ficam dispensados, por isso, de as cumprir perante a Segurança Social francesa.
22 - Ao tempo em que a ... tinha a sua sede no continente do território nacional, sempre foram tempestivamente emitidos, pelo departamento da Segurança Social da área da sua sede social, a esmagadora maioria dos modelos A1 requeridos pela ..., pelo que essa sociedade efectuava em Portugal as contribuições devidas à Segurança Social portuguesa por esses trabalhadores destacados em ..., o que era comprovável perante a Segurança Social francesa, pelo envio desses modelos A1 às empresas onde esses trabalhadores prestavam serviço no estrangeiro.
23 - Quando a ... transferiu a sua sede para a zona franca da Madeira, o mesmo fizeram muitas outras empresas de trabalho temporário, aproveitando uma mudança legal que o passou a permitir e assim alcançando elevados benefícios a nível fiscal.
24 - Tal mudança fez com que os serviços da Segurança Social da Madeira ficassem subitamente assoberbados de milhares de pedidos de emissão de modelos A1, que não mostrou capacidade para emitir, mas que também não indeferia, impasse que, mesmo perante a contemporização e sucessivas insistência da ..., ao longo de meses, não se alterou.
25 - Esta incapacidade de resposta da segurança social da Madeira impossibilitou a... (ou as empresas em ... onde laboravam os trabalhadores da ... de comprovar, perante a Segurança Social francesa, que os seus trabalhadores a trabalharem nesse país estavam vinculados perante a Segurança Social portuguesa e não no país onde se encontravam a trabalhar, o que motivou a tentativa de cobrança, pela Segurança Social francesa, desses valores.
26 - Na medida em que as empresas clientes da ... onde os seus trabalhadores prestavam serviço eram solidariamente responsáveis pelo pagamento que viesse a ser devido por esses trabalhadores à Segurança Social francesa, essa empresas clientes da ... no estrangeiro, passaram a reter os pagamentos que a esta eram contratualmente devidos, para "garantirem" a eventualidade de virem, no futuro, a ter de suportar supletivamente essas contribuições à Segurança Social francesa, sendo que a ... estava contratualmente vinculada a entregar esses modelos A1 a essas empresas suas clientes.
27 - Esta retenção de pagamentos pelas empresas cientes da ... motivou uma deterioração significativa da sua capacidade financeira, com perda de liquidez e dificuldades de tesouraria que perdurou durante todos os períodos mencionados na acusação, precipitando a sua situação de insolvência.
28 - A falta de apresentação desses modelos A1 levou mesmo à pretensão, a dada altura, pela Segurança Social francesa, de cobrança de contribuições devidas pelos trabalhadores da ... a prestarem trabalho nesse país.
29 - O arguido DD não tem antecedentes criminais.
30 - O arguido AA já foi condenado pela autoria de um crime de fraude fiscal qualificada, cometido a 19/04/1999 e punido, por sentença transitada em julgado a 09/03/2017, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
31 - O arguido AA cresceu em ..., concelho de ... integrado em agregado familiar constituído pelos progenitores e pelos dois irmãos mais novos, residente em moradia própria, de tipologia T5, com condições de habitabilidade e conforto. Os progenitores, o pai, com carreira … e a mãe, ... , eram quem suportava financeiramente o agregado. O arguido frequentou o sistema de ensino até à conclusão do 12º ano de escolaridade, na ... em .... Posteriormente inscreveu-se no curso de … na ..., mas não concluiu a licenciatura acabando por se dedicar ao mercado laboral. Dos 19 aos 21 anos, trabalhou numa empresa de … de um amigo. Aos 23/24 anos criou o próprio negócio na área do …. Aos 25 anos abriu uma empresa de … que manteve até ao ano de 2019/2020. Simultaneamente comprou uma empresa de … em 2006/2007, com insolvência em 2019. Desde 2020, que trabalha como consultor … na empresa "..." nos escritórios da .... Aos 23 anos, depois do divórcio dos progenitores, sai de casa e aluga um apartamento em .... Em 2009, contrai matrimónio e dessa união, tem 3 filhos de 7, 10 e 12 anos. o agregado residia numa moradia de tipologia T2 com condições de conforto em .... O divórcio acontece 10 anos depois, por conflitos entre o casal muito relacionados com o processo judicial. Mantém uma relação cordial com a ex-mulher. Atualmente reside com o pai na morada dos autos. Para ocupação dos tempos livres, pratica desporto (…) e convive com os amigos e com os familiares mais próximos. À data dos factos e atualmente, AA, mantém residência em habitação arrendada onde reside com o pai. Trata-se de um imóvel de tipologia T2 com condições de habitabilidade e conforto, situado na freguesia de ... no município de .... Em termos económicos, AA aufere o salário de 860 euros mensais. Os gastos mensais rondam os 400€, para os quais, o pai com quem coabita contribui. No meio residencial, mantém um relacionamento circunstancial com a comunidade vicinal. O seu quotidiano é passado maioritariamente em convívio com os familiares mais próximos, alguns amigos e na prática de desporto. O arguido beneficia de um suporte familiar estável, tendo uma boa relação com o seu pai, mantem contacto regular com os descendentes.
32 -O arguido DD é casado com II e reside, desde o ano 2000, em moradia de tipologia T3, adquirida mediante empréstimo bancário, na freguesia de ..., em zona eminentemente residencial, sem registo de problemáticas sociais. O agregado familiar é composto pelo arguido, esposa deste e dois filhos do casal, estudantes, de 26 e 19 anos de idade, cujos vínculos afetivos são descritos como positivos. Está habilitado com o 11º ano de escolaridade, tendo frequentado o 12º ano, não o tendo concluído. Logo após a saída da escola, teve início a sua atividade laboral, na área do …, em empresa de familiares, local onde permaneceu até 2009, cessando estas funções devido a desentendimentos do foro familiar. Consequentemente, inscreveu-se no ..., tendo neste seguimento criado a sua empresa, de nome “...”, desenvolvendo atividade no ramo do comércio …, sendo o arguido, o único sócio-gerente da mesma. A subsistência do agregado familiar é assegurada pelos proventos que o mesmo aufere, como sócio-gerente da empresa "...", perfazendo a média mensal de 1100€ (mil e cem euros) e 700€ (setecentos euros) mensais, relativos ao salário que a esposa aufere como …. Como despesas, tem os gastos de 800 € (oitocentos euros) relativos à amortização do empréstimo bancário da habitação, 150€ (cento e cinquenta euros) em gastos com os serviços de fornecimento de eletricidade, água e telecomunicações, 100€ (cem euros) em gastos com medicação e 200€ (duzentos euros) em gastos em explicações em educação. O arguido conta com apoio familiar da sua sogra.
Na sentença recorrida considerou-se serem factos não provados:
1 - Na execução das condutas provadas, os arguidos agiram por si e no seu próprio interesse.
2 - o arguido AA, quando, no mês de julho de 2017, decidiu deixar de pagar as quotizações devidas pela “...” (zona Franca da Madeira) não representou como possível que o valor de quotizações retidas das remunerações pagas a si e aos trabalhadores dessa sociedade e não entregues ao Instituto de segurança social da Madeira, IP RAM, viesse a ser superior a 50.000 euros, conformando-se com isso.
3 - Desde ... de ... de 2019, data em que a ... se apresentou ao Processo Especial de Revitalização, e da posterior nomeação de administrador judicial provisório, no âmbito desse PER, que o arguido DD ficou inibido de efectuar qualquer pagamento a qualquer credor da ..., no decurso desse PER.
4 - Este arguido nunca chegou a ter acesso às contas bancárias da sociedade.
E a sentença recorrida motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:
Começando pela prova testemunhal, deve salientar-se que, do depoimento das testemunhas JJ e KK não resultaram fundamentos probatórios particularmente expressivos: ambas se declararam ex-trabalhadores da "...(que, como resulta da certidão do Registo Comercial de fls. 727 e ss., era até.../.../2018, a designação da "...), desconhecerem quem seriam os seus gerentes e nunca terem trabalhado fora de Portugal para aquela empresa. O primeiro reconheceu, no entanto, ouvir dizer que a empresa em causa deslocava trabalhadores para .... A segunda declarou que as quotizações para a Segurança Social eram deduzidas do seu salário, tal como constava dos respectivos recibos de vencimento.
Passando já para os depoimentos das testemunhas LL e MM contabilistas que, até final do ano de 2018, se encarregavam da contabilidade da "..., deles resulta, desde logo, expressa e inequivocamente, que o arguido AA  era o gerente "de facto" dessa sociedade (era ele quem decidia e comandava os destinos da empresa) até à altura a partir de finais de 2018, em que "transmitiu/vendeu" a empresa ao arguido DD aquisição que este fez com o intuito de a recuperar financeiramente. Se é certo que estas testemunhas declaram não ter lidado pessoalmente, na sua qualidade de contabilistas da empresa, com o DD, esse facto pode ser facilmente explicado pela circunstância de este ter passado a representá-la praticamente no final do período em que eles foram contabilistas: um estava de entrada e eles estavam de saída. No entanto, importa salientar que ele "veio para a empresa" - na percepção dos mencionados contabilistas, exposta em audiência - para a tentar resgatar do difícil momento financeiro em que se encontrava (o que o arguido AA não estaria a conseguir). Ora se o DD veio tentar “salvar a empresa” foi inscrito no registo comercial como o novo gerente da empresa, se foi ele quem, mal designado seu gerente, a 25/10/18 (como resulta da certidão do registo comercial), requereu o PER da empresa (a 08/11/2018 - como referiu a testemunha MM “ele meteu o PER mas não resultou”), poucas duvidas razoáveis podem existir que este arguido sucedeu na gerência de direito e de facto, ao arguido AA. Note-se que o simples facto de ter sido inscrito no registo comercial como gerente da ..., em finais de outubro de 2018, concomitantemente com a renúncia à gerência do arguido AA, indicia e constitui presunção que passou, nessa altura a comandar os destinos da empresa. Esta conclusão não se apoia, no entanto, nessa mera inscrição formal, mas obtém todo o conforto do contexto e que ele "entrou" de facto na empresa. O AA, por volta dessa altura, transmitiu a sua relevante quota na sociedade (como também resulta do registo comercial). Ora se ele renunciou à sua gerência se ele pretendeu que o arguido DD assumisse o comando da empresa precisamente, porque já não se sentia capaz dessa tarefa (conforme depoimento expresso da testemunha LL, à data ... da empresa), que sentido faz afirmar que o DD nunca assumiu a gerência de facto da empresa? Quem teria assumiu essa gerência, então, a partir da renúncia do AA? Ficou a empresa sem liderança? A conclusão lógica que subjaz aos depoimentos dos mencionados contabilistas da empresa e, já agora também da testemunha HH, é que se verificou, em finais de outubro de 2018, uma "transmissão de testemunho", de um arguido, o AA que já se sentia incapaz de a levar a bom porto, para um arguido, o DD, que se sentia capaz de empreender tal tarefa. Esta última testemunha menciona, inclusivamente, que, apesar de não chegar a ter lidado com o arguido DD (apenas porque deixou de ser seu mandatário precisamente na altura em que a empresa passou do AA para o DD) este entrou na empresa aproveitando a sua experiência empresarial, motivado por já ter conseguido reabilitar uma outra empresa em situação financeira difícil e convencido que a aprovação do PER, a submeter, mereceria a aprovação da Segurança Social (o que não viria a suceder). Foi, como já salientado, o DD quem viria a mandatar ..., em representação da ..., tal como foi ele, gerente, quem determinou a empresa a essa apresentação (embora as negociações com a Segurança Social já viessem a decorrer há algum tempo, ainda no período de gerência do arguido AA). Que sentido faz dizer que o DD assumiu a empresa para a tentar recuperar, como é depoimento unânime destas últimas três testemunhas, mas não a tenha comandado, não tenha decidido nada por ela? Há, isso sim, fortes indícios que confirmam que a admissão do arguido DD a gerente de direito correspondeu à sua investidura de facto e assunção e exercício dos poderes fácticos que lhe correspondem (facto provado 7). Nem se diga que, por ter sido nomeado um gestor provisório, no âmbito do PER o impedia de entregar à Segurança Social as quotizações que lhe eram devidas. De facto, essa nomeação apenas impede a gerência sem anuência do administrador, de praticar actos de especial relevo, tal como definidos no art. 161º do CIRE, sendo que do catálogo de tais actos não consta o impedimento das obrigações da empresa que resultam de imperativos legais, como é a entrega das quotizações a trabalhadores, que nem sequer é um pagamento a credor, mas uma entrega de quantia que é património da Segurança Social e de que a empresa é mera detentora precária (facto não provado 3). Também não comprovou este arguido, apesar de o ter alegado, que nunca teve acesso às contas bancárias da sociedade (facto não provado 4).
Ambas as mencionadas testemunhas contabilistas salientaram que a periclitante situação financeira da empresa resultou da incapacidade da ora demandante Segurança Social em emitir tempestivamente os modelos A1, de que a empresa necessitava para comprovar, perante a Segurança Social francesa, que os trabalhadores portugueses aí deslocados estavam a cumprir em Portugal com as suas obrigações perante a Segurança Social e, por isso, estavam dispensados de as cumprir em .... A Segurança Social nem emitia esses documentos nem recusava a sua emissão, insistem as testemunhas. Isso tinha como consequência que as empresas francesas onde os trabalhadores estavam colocados pela ..., impossibilitadas de comprovar, perante a Segurança Social francesa que esses trabalhadores não tinham que deduzir nesse país as quotizações e sendo elas solidariamente responsáveis pelo pagamento de tais quotizações eventualmente devidas em ..., começaram a reter, nos pagamentos à ..., os montantes correspondentes às quotizações que pudessem vir a ser devidas nesse país (caso os modelos A1 nunca fossem aí exibidos perante a Segurança Social francesa). Isso causou uma diminuição dos fluxos financeiros que eram devidos à ....
Perante esta específica matéria a testemunha NN, técnica da segurança social, declarou ter apurado, junto de uma colega responsável pelo departamento em apreço, que não é o dela, que a Segurança Social apenas não emitia os modelos A1, porque a ... não cumpria com as exigências documentais que lhe eram feitas, para cumprir os requisitos legais de emissão desses documentos, designadamente, entre outras, a comprovação de que os trabalhadores no estrangeiro estavam segurados. As testemunhas LL e MM negam esta afirmação, ainda mais assertivamente o segundo, afirmando que todas as exigências colocadas pela Segurança Social da Madeira eram cumpridas e que seria apenas a incapacidade de resposta desta entidade, motivada pelo súbito afluxo de pedidos em face dos escassos meios humanos, que motivou a não entrega dos documentos A1 pedidos. O Tribunal, vista a assertividade do depoimento dos mencionados contabilistas já tinha considerado o seu depoimento, neste específico ponto, muito mais credível do que o da testemunha NN. Se dúvidas tivessem sobrestado, as mesmas ficaram desfeitas pela audição do depoimento da já mencionada testemunha HH, ..., que detalhou, de forma cristalina assertiva e coerente, toda matéria de facto provada nos pontos 20 a 28.
O Tribunal ficou amplamente convencido de que a não entrega dos documentos de autorização de destacamento A1, pela ora demandante, prejudicou gravemente a situação financeira da ..., conforme por esta alegado, pois que não os conseguia entregar às empresas do estrangeiro para onde enviava trabalhadores, empresas que, a dada altura passaram a reter parte dos pagamentos que eram àquela devidos, para, na falta dos A1, se garantirem pela sua eventual responsabilidade perante a Segurança Social francesa. Algo deve, no entanto, ser destacado: se as mencionadas empresas retinham esses valores, fica por saber se, de facto, alguma vez os entregaram à Segurança Social francesa - tal como a testemunha MM admitiu ignorar.
Uma última nota se deve destacar, do depoimento do LL, a saber, a sua afirmação que, ainda que sem os A1, a obrigação da empresa era declarar e pagar as contribuições em Portugal. Se o ... tinha esta convicção, nenhuma razão existe para considerar que diversa seria a percepção dos gerentes.
A prova dos factos da acusação relativos aos períodos e valores das quotizações em dívida assentou na conjugação de toda a prova documental junta aos autos, com o depoimento da testemunha NN, técnica da Segurança Social, que mencionou ao Tribunal todos os concretos valores das quotizações não pagas, em cada um dos períodos em causa na acusação, confirmou que a arguida pessoa colectiva enviou à Segurança Social as declarações de remunerações mensais de cada um dos meses em causa, confirmou ainda que esses valores não foram pagos nas datas em que o pagamento era devido nem 90 dias após nem mesmo no prazo de 30 dias após os arguidos terem sido notificados nos termos previstos no art. 105º, nº 4, al. b) do RGIT, bem como confirmou que os valores das quotizações de todos esses períodos estão integralmente por pagar (sendo certo que esta matéria em face da extensa contestação apresentada pelos arguidos, nem sequer é controvertida pelo que não carece de extensa fundamentação - factos provados 8 a 19).
Quanto ao facto não provado 2, considera o Tribunal que se trata de uma mera conjectura do Ministério Público que, além de não suportada probatoriamente, até conflitua com as regras da experiência comum. De facto, quando o arguido toma a resolução de, a partir de um certo momento, deixar de entregar as quotizações à Segurança Social, que possibilidades tem ele de saber ou de representar que a soma dos pagamentos que virá a omitir ultrapassará os 50.000 euros? O arguido está a tomar uma opção gestionária que, manifestamente, não poderá saber se irá durar 3 meses, 1 ano, 3 anos ou o resto da existência da empresa, se irão ficar por pagar 20, 40 ou mais de 50.000 euros. O Ministério Público introduz tal facto na acusação para, eventualmente, “escorar” a sua imputação penal de crime qualificado, mas o mesmo afigura-se meramente especulativo.
A situação dos arguidos quanto a antecedentes criminais foi comprovada pela consulta dos seus certificados de registo criminal, juntos aos autos.
A situação social dos arguidos teve como fundamento os relatórios sociais juntos aos autos.
Nada mais, da extensa contestação dos arguidos, foi considerado relevante para a boa decisão da causa.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, os arguidos/recorrentes invocam erro de julgamento, pretendendo a alteração da matéria de facto provada e não provada e, obtida tal alteração, invocam o não preenchimento dos elementos integrantes do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal (quer objectivos quer subjectivos), que a mera gerência de direito exercida pelo recorrente DD não pode levar a uma condenação e que, não havendo culpa, nem crime, não há direito a indemnização.
- o Recorrente Ministério Público invoca a existência do vício de erro notório na apreciação da prova e incorrecta interpretação do disposto no nº 7 do art. 105º do RGIT.
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Do erro notório na apreciação da prova
O Recorrente Ministério Público alega a existência de erro notório na apreciação da prova na medida em que o facto dado como provado no ponto 11 dos factos provados não é compatível com o ponto 2 dos factos não provados, dizendo que o Tribunal a quo não podia dar como provado que o arguido AA tomou a decisão de deixar de entregar à Segurança Social as prestações devidas, desconhecendo o valor a que tais prestações poderiam ascender no futuro, sem assumir como possível que esse valor pudesse vir a ser superior a € 50.000,00. Alega que o Tribunal a quo, na motivação, excluiu a existência de dolo direto, sem excluir o dolo eventual imputado na acusação.
O erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
Analisando a questão colocada vemos que a sentença recorrida deu como provado que: “11 - Sucede, porém, que, no mês de julho de 2017, o arguido AA, agindo em nome, por conta e no interesse da ..., enquanto seu gerente, decidiu deixar de entregar ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM as quotizações devidas por si e pelos trabalhadores dessa sociedade à Segurança Social”.
E a mesma sentença deu como não provado que: “2 - o arguido AA, quando, no mês de julho de 2017, decidiu deixar de pagar as quotizações devidas pela “...” (zona Franca da Madeira) não representou como possível que o valor de quotizações retidas das remunerações pagas a si e aos trabalhadores dessa sociedade e não entregues ao Instituto de segurança social da Madeira, IP RAM, viesse a ser superior a 50.000 euros, conformando-se com isso”, motivando esta decisão da seguinte forma: “Quanto ao facto não provado 2, considera o Tribunal que se trata de uma mera conjectura do Ministério Público que, além de não suportada probatoriamente, até conflitua com as regras da experiência comum. De facto, quando o arguido toma a resolução de, a partir de um certo momento, deixar de entregar as quotizações à Segurança Social, que possibilidades tem ele de saber ou de representar que a soma dos pagamentos que virá a omitir ultrapassará os 50.000 euros? O arguido está a tomar uma opção gestionária que, manifestamente, não poderá saber se irá durar 3 meses, 1 ano, 3 anos ou o resto da existência da empresa, se irão ficar por pagar 20, 40 ou mais de 50.000 euros. O Ministério Público introduz tal facto na acusação para, eventualmente, “escorar” a sua imputação penal de crime qualificado, mas o mesmo afigura-se meramente especulativo”.
Diga-se, desde já, que não se vê qualquer conflito entre o facto dado como provado em 11) e o facto dado como não provado em 2). O gerente de uma sociedade pode perfeitamente decidir deixar de entregar ao Instituto de Segurança Social as quotizações devidas por si e pelos trabalhadores dessa sociedade à Segurança Social e, mesmo assim, não representar como possível que o valor de quotizações retidas das remunerações pagas a si e aos trabalhadores dessa sociedade e não entregues ao Instituto de segurança social, viesse a ser superior a 50.000 euros, conformando-se com isso. Basta pensar que esse mesmo gerente poderia ter assumido como possível resolver a situação em 4 ou 6 meses. No limite, poderia até esse mesmo gerente representar como possível que o valor de quotizações retidas das remunerações pagas a si e aos trabalhadores dessa sociedade e não entregues ao Instituto de segurança social, viesse a ser superior a 50.000 euros, mas não se conformar com tal possibilidade.
E ao contrário do que alega o Recorrente Ministério Público, o Tribunal a quo, na motivação, não se limitou a excluir a existência de dolo direto, excluindo claramente o dolo eventual imputado na acusação ao pronunciar-se sobre a “representação como possível” do resultado “conformando-se com isso”.
Pelo que não existe o alegado vício.
Do erro de julgamento…
Os arguidos/recorrentes AA e DD alegam erro de julgamento dizendo que, em face da prova produzida em audiência de julgamento, foram erradamente dados como provados os pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19, dos factos provados e erradamente dados como não provados os pontos 3 e 4, dos factos não provados.
Apesar da impugnação em bloco, o que os recorrentes pretendem, em síntese, é que se considere não provado que o recorrente DD exerceu na “...” uma gerência efetiva; e, não obstante, que ambos agiram sem culpa.
Em favor da sua tese referem que os depoimentos das testemunhas GG e HH, provam que o arguido, ora, recorrente DD não exerceu na “...” uma gerência efetiva (não praticou quaisquer atos de gestão consentâneos com as decisões que constituem a matéria dos Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados), na medida em que disseram que a apresentação da sociedade ao PER era uma decisão já negociada e decidida pelo arguido AA com o próprio Instituto da Segurança Social, em momento muito anterior à nomeação de gerente do arguido DD; aditando ainda que o arguido DD nunca teve acesso às contas bancárias da empresa e que a gerência da mesma sempre foi exercida pelo arguido AA. Em consequência dos referidos depoimentos, os factos tidos como não provados nos Pontos 3 e 4 devem ser considerados provados.
Quanto à actuação sem culpa dos recorrentes, fundam a conclusão no depoimento da testemunha HH e numa alegada contradição entre a matéria dos Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados e a matéria dos Pontos 20 a 28, na medida em que a vontade e decisão dos arguidos resultou condicionada pela inacção do “Instituto da Segurança Social da Madeira, IP - RAM”, que, inelutavelmente conduziu à não entrega das quotizações objeto dos presentes autos.
O erro de julgamento ocorre quando há uma errada apreciação da prova.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos arts. 125º e 126º do mesmo Cód. (não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos) ou em outras disposições legais, é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova – directa ou indirecta – estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do Julgador que, sendo embora pessoal, tem que ser sempre motivada e objectivável. Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
Contudo, lembra o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Ora o princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo Julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o Julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.
Como salienta o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p.233 e 234) “só os princípios da oralidade e imediação… permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.
Os meios de que o Tribunal de primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o Tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que o julgador percepciona as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer.
Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando, para a credibilidade do testemunho, foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, mas pode controlar a convicção do Julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Tendo em consideração o supra exposto, vejamos se assiste razão aos recorrentes.
Afirma o recorrente DD que os depoimentos das testemunhas GG e HH, provam que ele não exerceu na “...” uma gerência efetiva, a qual foi sempre exercida pelo arguido AA, que já tinha negociado e decidido a apresentação da sociedade ao PER, referindo ainda que o arguido DD nunca teve acesso às contas bancárias da empresa.
Relativamente a estas testemunhas (... e jurista) diremos que os respectivos depoimentos se cingiram ao conhecimento que tiveram do que se passou na Apa até finais de 2018, altura em que ambos deixaram de prestar serviços para a sociedade.
Certo é que, em causa, estão actos de gestão até Fevereiro de 2019 – ou seja, as testemunhas GG e HH não depuseram sobre o que sucedeu em Janeiro e Fevereiro de 2019.
Ora ainda que estas testemunhas tenham dito que até final de 2018 foi sempre o arguido AA a decidir e, segundo LL, a mover as contas da sociedade, admitimos que tenham lavrado nalgum equívoco uma vez que, dado o contexto dos factos, tal não tem correspondência com o normal acontecer das coisas.
Como refere o Tribunal a quo na sua motivação “as testemunhas LL e MM (disseram) que o arguido AA era o gerente "de facto" dessa sociedade até à altura a partir de finais de 2018, em que "transmitiu/vendeu" a empresa ao arguido DD aquisição que este fez com o intuito de a recuperar financeiramente. Se é certo que estas testemunhas declaram não ter lidado pessoalmente, na sua qualidade de contabilistas da empresa, com o DD, esse facto pode ser facilmente explicado pela circunstância de este ter passado a representá-la praticamente no final do período em que eles foram contabilistas: um estava de entrada e eles estavam de saída. No entanto, importa salientar que ele "veio para a empresa" - na percepção dos mencionados contabilistas, exposta em audiência - para a tentar resgatar do difícil momento financeiro em que se encontrava (o que o arguido AA não estaria a conseguir). Ora se o DD veio tentar “salvar a empresa” foi inscrito no registo comercial como o novo gerente da empresa, se foi ele quem, mal designado seu gerente, a 25/10/18 (como resulta da certidão do registo comercial), requereu o PER da empresa (a 08/11/2018 - como referiu a testemunha MM “ele meteu o PER mas não resultou”), poucas duvidas razoáveis podem existir que este arguido sucedeu na gerência de direito e de facto, ao arguido AA. Note-se que o simples facto de ter sido inscrito no registo comercial como gerente da ..., em finais de outubro de 2018, concomitantemente com a renúncia à gerência do arguido AA, indicia e constitui presunção que passou, nessa altura a comandar os destinos da empresa. Esta conclusão não se apoia, no entanto, nessa mera inscrição formal, mas obtém todo o conforto do contexto e que ele "entrou" de facto na empresa. O AA, por volta dessa altura, transmitiu a sua relevante quota na sociedade (como também resulta do registo comercial). Ora se ele renunciou à sua gerência se ele pretendeu que o arguido DD assumisse o comando da empresa precisamente, porque já não se sentia capaz dessa tarefa (conforme depoimento expresso da testemunha LL, à data ... da empresa), que sentido faz afirmar que o DD nunca assumiu a gerência de facto da empresa? Quem teria assumiu essa gerência, então, a partir da renúncia do AA? Ficou a empresa sem liderança? A conclusão lógica que subjaz aos depoimentos dos mencionados contabilistas da empresa e, já agora também da testemunha HH, é que se verificou, em finais de outubro de 2018, uma "transmissão de testemunho", de um arguido, o AA que já se sentia incapaz de a levar a bom porto, para um arguido, o DD, que se sentia capaz de empreender tal tarefa. Esta última testemunha menciona, inclusivamente, que, apesar de não chegar a ter lidado com o arguido DD (apenas porque deixou de ser seu mandatário precisamente na altura em que a empresa passou do AA para o DD) este entrou na empresa aproveitando a sua experiência empresarial, motivado por já ter conseguido reabilitar uma outra empresa em situação financeira difícil e convencido que a aprovação do PER, a submeter, mereceria a aprovação da Segurança Social (o que não viria a suceder).
Acrescenta ainda o Tribunal a quo que foi “o DD quem viria a mandatar ..., em representação da ..., tal como foi ele, gerente, quem determinou a empresa a essa apresentação (embora as negociações com a Segurança Social já viessem a decorrer há algum tempo, ainda no período de gerência do arguido AA). Que sentido faz dizer que o DD assumiu a empresa para a tentar recuperar, como é depoimento unânime destas últimas três testemunhas, mas não a tenha comandado, não tenha decidido nada por ela? Há, isso sim, fortes indícios que confirmam que a admissão do arguido DD a gerente de direito correspondeu à sua investidura de facto e assunção e exercício dos poderes fácticos que lhe correspondem (facto provado 7). Nem se diga que, por ter sido nomeado um gestor provisório, no âmbito do PER o impedia de entregar à Segurança Social as quotizações que lhe eram devidas. De facto, essa nomeação apenas impede a gerência sem anuência do administrador, de praticar actos de especial relevo, tal como definidos no art. 161º do CIRE, sendo que do catálogo de tais actos não consta o impedimento das obrigações da empresa que resultam de imperativos legais, como é a entrega das quotizações a trabalhadores, que nem sequer é um pagamento a credor, mas uma entrega de quantia que é património da Segurança Social e de que a empresa é mera detentora precária (facto não provado 3). Também não comprovou este arguido, apesar de o ter alegado, que nunca teve acesso às contas bancárias da sociedade (facto não provado 4).
Não podemos deixar de concordar com a apreciação realizada na sentença recorrida.
Ou seja, para além da prova directa, documental, de que no dia ........2018, o arguido DD foi designado gerente da ... (facto que foi inscrito no Registo Comercial) e que lhe conferiu a gerência de direito, a gerência de facto decorre da análise global dos depoimentos ouvidos em audiência, apreciados de acordo com as regras da experiência. O arguido DD é uma pessoa com experiência empresarial que “adquiriu” a empresa para a “salvar”, não sendo crível que assuma uma gerência apenas de direito, de uma empresa em situação difícil, e depois se conforme com a gestão de quem não conseguiu tirar a empresa dessa situação.
Por outro lado, há que não esquecer que se tem vindo a entender que a ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art. 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum.
O que significa que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção (neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 25.03.2010, Proc. 427/08.0TBSTB. E1.S1, pesquisado em www.dgsi.pt ). Não é o caso.
Tudo visto, não podemos deixar de aceitar a posição do Julgador a quo, não havendo motivo para alterar a decisão sobre a matéria de facto no que se refere à gestão, também de facto, da sociedade ... pelo recorrente DD.
Quanto à actuação sem culpa dos recorrentes, fundam a conclusão no depoimento da testemunha HH e numa alegada contradição entre a matéria dos Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 dos factos provados e a matéria dos Pontos 20 a 28, na medida em que a vontade e decisão dos arguidos resultou condicionada pela inacção do “Instituto da Segurança Social da Madeira, IP - RAM”, que, inelutavelmente conduziu à não entrega das quotizações objeto dos presentes autos.
Expressou o Tribunal recorrido, na motivação da decisão de facto, que:
“Ambas as mencionadas testemunhas contabilistas salientaram que a periclitante situação financeira da empresa resultou da incapacidade da ora demandante Segurança Social em emitir tempestivamente os modelos A1, de que a empresa necessitava para comprovar, perante a Segurança Social francesa, que os trabalhadores portugueses aí deslocados estavam a cumprir em Portugal com as suas obrigações perante a Segurança Social e, por isso, estavam dispensados de as cumprir em .... A Segurança Social nem emitia esses documentos nem recusava a sua emissão, insistem as testemunhas. Isso tinha como consequência que as empresas francesas onde os trabalhadores estavam colocados pela ..., impossibilitadas de comprovar, perante a Segurança Social francesa que esses trabalhadores não tinham que deduzir nesse país as quotizações e sendo elas solidariamente responsáveis pelo pagamento de tais quotizações eventualmente devidas em ..., começaram a reter, nos pagamentos à ..., os montantes correspondentes às quotizações que pudessem vir a ser devidas nesse país (caso os modelos A1 nunca fossem aí exibidos perante a Segurança Social francesa). Isso causou uma diminuição dos fluxos financeiros que eram devidos à ....
Perante esta específica matéria a testemunha NN, técnica da segurança social, declarou ter apurado, junto de uma colega responsável pelo departamento em apreço, que não é o dela, que a Segurança Social apenas não emitia os modelos A1, porque a ... não cumpria com as exigências documentais que lhe eram feitas, para cumprir os requisitos legais de emissão desses documentos, designadamente, entre outras, a comprovação de que os trabalhadores no estrangeiro estavam segurados. As testemunhas LL e MM negam esta afirmação, ainda mais assertivamente o segundo, afirmando que todas as exigências colocadas pela Segurança Social da Madeira eram cumpridas e que seria apenas a incapacidade de resposta desta entidade, motivada pelo súbito afluxo de pedidos em face dos escassos meios humanos, que motivou a não entrega dos documentos A1 pedidos. O Tribunal, vista a assertividade do depoimento dos mencionados contabilistas já tinha considerado o seu depoimento, neste específico ponto, muito mais credível do que o da testemunha NN. Se dúvidas tivessem sobrestado, as mesmas ficaram desfeitas pela audição do depoimento da já mencionada testemunha HH, ..., que detalhou, de forma cristalina assertiva e coerente, toda matéria de facto provada nos pontos 20 a 28.
O Tribunal ficou amplamente convencido de que a não entrega dos documentos de autorização de destacamento A1, pela ora demandante, prejudicou gravemente a situação financeira da ..., conforme por esta alegado, pois que não os conseguia entregar às empresas do estrangeiro para onde enviava trabalhadores, empresas que, a dada altura passaram a reter parte dos pagamentos que eram àquela devidos, para, na falta dos A1, se garantirem pela sua eventual responsabilidade perante a Segurança Social francesa. Algo deve, no entanto, ser destacado: se as mencionadas empresas retinham esses valores, fica por saber se, de facto, alguma vez os entregaram à Segurança Social francesa - tal como a testemunha MM admitiu ignorar.
Uma última nota se deve destacar, do depoimento do LL, a saber, a sua afirmação que, ainda que sem os A1, a obrigação da empresa era declarar e pagar as contribuições em Portugal. Se o ... tinha esta convicção, nenhuma razão existe para considerar que diversa seria a percepção dos gerentes.”
O depoimento da testemunha HH foi um dos esteios para se dar como provada a matéria constante dos Pontos 20 a 28 da sentença recorrida.
De acordo com tal matéria, a ..., empresa de trabalho temporário, deslocalizava uma percentagem elevada dos seus trabalhadores para exercerem as funções profissionais em empresas suas clientes no estrangeiro, designadamente em ... e, para que esses trabalhadores não fossem obrigados a suportar o pagamento de quotizações para a segurança social francesa, a segurança social portuguesa, a requerimento da ..., deveria emitir, cumpridos certos requisitos legais, uma declaração denominada "modelo A1" que, uma vez apresentada perante a Segurança Social francesa, comprovaria a esta entidade que as obrigações desses trabalhadores eram cumpridas perante a Segurança Social Portuguesa, ficando dispensados de as cumprir perante a Segurança Social francesa. Mas, quando a ... transferiu a sua sede para a zona franca da Madeira, os serviços da Segurança Social da Madeira não tinham capacidade para emitir as declarações "modelo A1", o que impossibilitou a ... de comprovar, perante a Segurança Social francesa, que os seus trabalhadores a trabalharem nesse país estavam vinculados perante a Segurança Social portuguesa e as empresas clientes da ... no estrangeiro, passaram a reter os pagamentos que a esta eram contratualmente devidos, para "garantirem" a eventualidade de virem, no futuro, a ter de suportar supletivamente essas contribuições à Segurança Social francesa, o que motivou uma deterioração significativa da capacidade financeira da ..., com perda de liquidez e dificuldades de tesouraria que perdurou durante todos os períodos mencionados na acusação, precipitando a sua situação de insolvência.
Ora não obstante esta matéria provada, ou seja, não obstante as dificuldades financeiras da ... terem sido potenciadas pela falta de resposta da Segurança Social da Madeira, o certo é que os gerentes da ... decidiram não entregar à Segurança Social as deduções que faziam nos salários dos seus trabalhadores com vista à sua entrega àquela entidade.
Com efeito, dispõe o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social que as pessoas singulares ou colectivas que tenham ao seu serviço trabalhadores, devem efectuar uma dedução e retenção, no valor de 11%, dos respectivos salários, e entregar tal quantia nos serviços da Segurança Social, até ao dia 20 do mês seguinte a que a contribuição respeita (cfr. os arts. 6º, nºs 1 e 2, 10º, 11º, nº 1, 12º, 24º, 33º, nº 1, 37º, 43º e 53º).
Ora o que está em causa no crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social é a referida quotização retida aos vencimentos dos trabalhadores da empresa (ou dos órgãos sociais da empresa) mas não entregue à Segurança Social, redundando numa situação em que a empresa se apropria de montantes de terceiros [montantes que não lhe pertencem porque são dos trabalhadores (ou dos órgãos sociais beneficiários de salários), que desconta na respectiva remuneração], que retém para entregar a outrem, não o fazendo.
O dinheiro em falta, constituindo remuneração, não era da empresa para gerir, era dos trabalhadores e a empresa tinha apenas a incumbência, legal, de o entregar à Segurança Social.
Como refere a sentença recorrida “o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é um crime de omissão pura, que se consuma com a não entrega, no prazo legal, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais (cfr. artigo 107º, n.º 1, do RGIT). Daqui resulta que se abstrai das causas dessa omissão, ou seja, das opções de gestão que a motivaram. (…) Se as quotizações foram deduzidas ao vencimento colocado à disposição dos trabalhadores da ..., têm de ser entregues à Segurança Social. A falta dos modelos A1 ou a diminuição da liquidez que ela tenha comportado para a ... não legitima que os arguidos possam tomar a decisão de deixar de pagar as quotizações devidas à segurança social, tornando lícita essa opção. Pode ser uma circunstância atenuante, a considerar em sede de medida concreta da punição, mas não retira natureza criminal a essa conduta omissiva. Os arguidos, na sua contestação, estão a confundir dois planos. Um é o plano da eventual responsabilidade da Segurança Social pelos danos que possa ter causado à empresa que geriram, outro, é o da sua obrigação de suportar o pagamento das quotizações que deduziram nos vencimentos dos seus trabalhadores. Esse pagamento é devido, tenha ou não a Segurança Social emitido os A1 e tenha ou não a Segurança Social francesa, em face dessa não emissão, cobrado, por sua vez, tal contribuição”.
Pelo que, não existe qualquer contradição entre a matéria dos Pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18 e 19 e a matéria dos Pontos 20 a 28, todos dos factos provados e também não se verifica qualquer exclusão da culpa dos arguidos/recorrentes.
Assim, também nesta sede não há motivo para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
Resta acrescentar que, ao invés do alegado, não foi violado o princípio in dubio pro reo.
O referido princípio resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Ou seja, o princípio em questão só se aplica perante uma situação de non liquet, uma dúvida insanável.
No caso, lida a motivação da decisão de facto, verificamos que o Tribunal recorrido não ficou com qualquer dúvida sobre a prova (nem havia razão para susciter-se uma dúvida, pelo que não pode pôr-se a questão de violação do princípio in dubio pro reo. Como se refere no sumário do Ac. do STJ de 27.05.2010, no Proc. 18/07.2GAAMT.P1.S1, “a eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida…quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida ‘patentemente insuperável’ e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido”. Posto que uma tal referida evidência não se verifica no caso, é impossível concluir pela violação daquele princípio com protecção constitucional.
Da interpretação do disposto no nº 7 do art. 105º do RGIT
Alega o Recorrente Ministério Público que o Tribunal a quo interpretou erradamente o disposto nos nºs 1, 5 e 7 do art. 105º, do RGIT.
Afirma que o arguido AA foi condenado pela prática de um único crime de abuso de confiança contra a segurança social (de trato sucessivo ou execução fracionada, por estar em causa uma única resolução criminosa protelada no tempo), sem atender à qualificação daquele crime, com base em interpretação incorrecta do art. 105º, nº 7, do RGIT.
Defende que o referido nº 7 pretende apenas esclarecer que os valores a atender, para efeitos de preenchimento do crime, são os que, nos termos da legislação aplicável devam constar, e não necessariamente aqueles que o arguido fez constar (o que é importante nas situações em que existe omissão de valores nas declarações) e que a interpretação sistemática da norma também leva à conclusão de que não se visa resolver a questão da qualificação, ou não, do crime (como entendeu a decisão recorrida), já que ali se diz que o seu âmbito serve “para efeitos do disposto nos números anteriores” e não, especificamente, para efeitos do disposto no nº 5 (qualificação).
Em abono da sua tese, aduz ainda que, no crime de fraude fiscal o legislador optou por definir o crime simples no art. 103º do RGIT e incluir a modalidade qualificada no art. 104º seguinte, tendo utilizado no nº 3 do art. 103º expressão que reproduz ipsis verbis o art. 105º, nº 7, do RGIT, sem que aqui se entenda que tal norma vise definir os termos da qualificação do crime, antes sendo interpretada nos termos que acima foram explicitados.
Conclui que a interpretação assumida na sentença recorrida significa que o legislador teve a minúcia de criar uma norma cujo único âmbito de aplicação são situações de crime de trato sucessivo (o que constituiria uma situação inusitada), e diz que: ou o Tribunal considerava a existência de vários crimes e condenava por tantos crimes quantas as declarações, ou num só crime na forma continuada, ou se entende que há um só crime tem necessariamente que somar todos os valores em causa, como ocorre, em situações similares, no furto ou burla qualificada.
Sobre a concreta questão disse o Tribunal a quo:
De facto, muitos eventos geradores de obrigações tributárias - de que é exemplo o pagamento de salários - tendem a ocorrer de forma temporalmente ritmada. Em conformidade, também os crimes tributários acabam por se estruturar em torno desses ciclos contributivos, gerando, cada um dos períodos contributivos, um novo potencial autónomo de infracção.
O Ac. RP de 14/07/20, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes (in www.dgsi.pt), sintetiza uma resposta a esta questão da unidade ou pluralidade criminosa que, pela sua simplicidade, é interessante reter: "A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido a resolução inicial, um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer à mesma resolução criminosa mas as várias resoluções criminosas estiverem interligadas por um factor externo que arrasta o agente para a reiteração de condutas, e um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores".
Concorda-se com a perspectiva deste acórdão que se funda, aliás, na posição de Eduardo Correia segundo o qual o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas. A persistência da resolução criminosa ao longo de todas as reiterações é, então, erigido a critério da sua unificação. Cometeram os arguidos, por isso, um único crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social.
Onde o Tribunal discorda da Juiz da pronúncia é na imputação de um crime agravado ao arguido AA. Notoriamente, a agravação imputada advém da circunstância de a soma dos valores em causa nos diversos períodos contributivos exceder o montante de 50.000 euros. A alegação - que viria a ser dada como não provada - que o arguido AA quando tomou a resolução de deixar de pagar à Segurança Social, admitiu que a soma dos valores sucessivamente omitidos poderia exceder o montante de 50.000 euros, conformando-se com essa possibilidade - aponta a perspectiva de que, para o Ministério Público, se a resolução criminosa que funda a condenação admitir e se conformar com o facto de que acabará por deixar de pagar um valor global superior a 50.000 euros, permitiria considerar esse montante global para efeitos de agravação do crime. Deve salientar-se que a prova desse facto não alteraria em nossa perspectiva rigorosamente em nada os dados deste problema, ou seja, a conjectura que o arguido fizesse e com que se conformasse da omissão de pagamento de um valor global superior a 50.000 euros, resultante da soma de diversos períodos contributivos, em nada alteraria ou afastaria a regra ínsita no nº 7 do art. 105º do RGIT, aplicável ao crime em apreço ex vi art. 107º, nº 2 do RGIT. Da conjugação dessas normas resulta que, para efeitos de agravação do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, o valor de 50.000 euros a considerar deve constar de uma única das declarações que, nos termos da lei, deva ser enviada à Segurança Social. Essa lei é, para estes efeitos, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, Lei nº 110/99, de 16/09, designadamente o artigo 40º de cuja conjugação dos respectivos nºs 1 e 2 resulta que a obrigação declarativa em causa é mensal. Ou seja, todos os meses nasce um novo dever de apresentar uma declaração contributiva. Do mencionado nº 1 do artigo 40º (“as entidades contribuintes são obrigadas a declarar à segurança social, em relação a cada um dos trabalhadores ao seu serviço, o valor da remuneração que constitui a base de incidência contributiva, os tempos de trabalho que lhe corresponde e a taxa contributiva aplicável”) não decorre que deva ser apresentada uma declaração por cada um dos trabalhadores da entidade patronal, mas um agregado do conjunto dos trabalhadores ao seu serviço, o que aliás, transparece do art. 38º do mencionado diploma quando este estatui que, no seu nº 1, que "a obrigação contributiva compreende a declaração dos tempos de trabalho, das remunerações devidas aos trabalhadores e o pagamento das contribuições e das quotizações" (sublinhado nosso).
Assim, a soma dos valores dos vários períodos contributivos para a qualificação deste crime, seja em situação de múltiplos crimes (tantos quantos os períodos em causa), seja numa situação de unidade criminosa, como é o caso dos autos, desrespeita frontalmente a regra constante do mencionado nº 7 do art. 105º do RGIT, contrariando, não só a letra da lei como a intenção legislativa. A regra hermenêutica ínsita no nº 2 do art. 9º do C. Civil ("não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso") tem um valor acrescido quando a letra da lei, não só não contém um mínimo de correspondência com a tese do Ministério Público propugnada nesta acusação, como corresponde, claramente, ao sentido contrário a tal interpretação.
No sentido da posição sufragada nesta sentença já se pronunciaram, expressamente, diversos acórdãos dos tribunais superiores, representando, se não jurisprudência praticamente unânime, pelo menos largamente maioritária. É relevante exemplo disso o Ac. do STJ de 04/02/10, relatado pelo Conselheiro Raul Borges, disponível para leitura integral em www.dgsi.pt, de onde se transcrevem os seguintes pontos do seu sumário:
"XXXVI - Neste sentido, o art. 107.º contém uma norma em branco, sendo preenchido em aspectos normativos em função da remissão para o art. 105.º, que tipifica o crime congénere, com a mesma matriz, de abuso de confiança fiscal.
XXXVII - Essa dependência do tipo do art. 107.º só pode significar que a sua completude apenas será atingida se reportada a todos os elementos normativos do "tipo integrador", incluindo os valores mínimos determinativos da qualificação - o que já era - e agora da própria incriminação.
XXXVIII - A remissão para o n.º 5 não é apenas para a pena pois aquela pena mais agravada só faz sentido, só se justifica, só se equacionará a sua aplicação, se o valor da não entrega de uma determinada declaração (de cada declaração nos termos do n.º 7) for superior a € 50 000. (sublinhado nosso). O valor não entregue, quando superior a € 50 000, funciona como circunstância agravante do tipo fundamental.
XLII - No n.º 1 do art. 107º há efectivamente uma remissão para os n.ºs 1 e 5 do art. 105.º, tratando-se de uma remissão feita para o regime de punição, para as molduras penais abstractas, as penalidades cabíveis ao crime simples ou qualificado, mas que não se cinge apenas a molduras penais aplicáveis, até porque no mínimo a qualificação traz ínsita a consideração da presença de um determinado valor das prestações (de cada prestação), o que significa que em última análise o valor dirá se o crime é simples ou qualificado." (sublinhados nossos).
Esta posição é também perfilhada no Ac. Relação de Lisboa de 03/02/04, relatado pelo Desembargador Cabral Amaral (in www.dgsi.pt), de cujo sumário consta, "o crime de abuso de confiança fiscal, quando praticado na forma continuada, deve ser qualificado em função do valor de cada uma das prestações retidas e não do valor total dos valores retidos indevidamente e não entregues à administração fiscal".
É também seguida no Ac. da mesma Relação de Lisboa de 04/02/09, relatado pelo Desembargador Nuno Garcia (in www.dgsi.pt), de cuja fundamentação se extrai a seguinte passagem: "Só que o RGIT veio dispor no nº 7 do art. 105º que para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. Está assente que o arguido estava obrigado a enviar declarações trimestralmente. Então, se assim é, e tendo em conta o disposto no indicado nº 7 do artº 105º do RGIT, deve ter-se em conta o valor de cada uma dessas declarações que deveria ter sido apresentada e não foi (e com cada uma das quais deveria ter sido remetido o valor correspondente) e não o valor total da prestação tributária em dívida. (sublinhado nosso). Ora, compulsadas as quantias que eram devidas em cada trimestre (correspondente a cada declaração), nenhuma delas excede o valor de € 50.000,00 previsto no nº 5 do art. 105º do RGIT."
Ainda neste sentido, também de forma expressa o Ac. R. L. de 04/12/08, in https://www.pgdlisboa.ptjurel/jur-mostra-doc.php?nid=4577&codarea=57: "Embora o Mmo juiz não o diga expressamente, somou o valor de todas as declarações e integrou as condutas no tipo agravado, na medida em que a prestação em dívida é superior a 50.000 euros. Ao fazê-lo, ignorou o disposto no n.º 7, do citado dispositivo onde expressamente se diz, "Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. Significa isto que para a subsunção de determinado comportamento ao tipo simples descrito no seu n.º 1 ou, ao tipo agravado descrito no seu n.º 5, o valor a ter em conta é o que consta de cada declaração, não podendo funcionar para a qualificação a soma de todas elas, porque a lei não o permite. (sublinhado nosso).
Ainda no mesmo sentido, o Ac. R. C. de 21/09/11, relatado pela Desembargadora Maria Pilar de Oliveira, in https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/11767-2011-93271575: "No n.º 7, o legislador opta claramente pelo critério da declaração individualizada, assente que o delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período, tal se retirando do enunciado do n.º 1 dos artigo 105º do RGIT. Nesse normativo, deixa-se escrito o seguinte: «7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária». Ora, no caso dos autos, a prestação mais elevada, não entregue, é de €70,100,15 euros (superior a € 50,000,00) com respeito ao mês de julho de 2003, pelo que a conduta dos arguidos deve ser subsumida ao tipo agravado, pelo que a moldura penal abstracta se situa em pena de prisão de um a cinco anos.
Também noutras Relações do país este entendimento é seguido, como se constata pela leitura do Ac. da Relação de Évora de 10/09/13, relatado pelo Desembargador João Latas (ibidem) e onde a opção aparece profusamente fundamentada, transcrevendo-se o seguinte (longo) excerto: “Assim, sendo o valor da soma superior a € 50 000, entendeu o tribunal a quo que a conduta omissiva relativa aos meses de julho e agosto de 2006 integra a prática de um crime de Abuso de confiança agravado em razão do valor pelo nº 5 do art. 105º do RGIT. Entendendo nós, como melhor veremos, que o valor relevante para efeitos de qualificação do crime é o que consta de cada uma das declarações e não a soma das mesmas, a qualificação do crime que eventualmente venha a ser considerado relativamente a julho e agosto de 2006, na sequência do reenvio, não se manterá no caso de o valor a considerar no mês de agosto de2006 ser inferior a 50 000, como aludido, tal como sucede já relativamente ao crime integrado pelas declarações de 2007 e 2008, pois nenhuma delas se aproxima sequer dos 50 000. (...) Em face do nº7 do artigo 105º não é o valor total abrangido pela conduta ilícita punível do agente - ou o valor do prejuízo causado pelo crime a que se refere o art. 13º do RGIT a propósito da medida concreta da pena - que determina aquela conformação, mas um valor especial de referência que o legislador fez coincidir com o valor de cada declaração periódica, por razões que terão mais que ver com opções de política fiscal que estritas razões de ordem criminal. Sendo configuráveis as hipóteses de crime único e de crime continuado não obstantes a pluralidade de declarações periódicas abrangidas, entendemos, pois, que nestes casos o montante ale 50 000 euros para além do qual o crime é qualificado, refere-se ao valor das declarações periódicas individualmente consideradas e não ao valor global das mesmas. Assim, a qualificação prevista no nº5 do art. 105º somente opera no caso de pelo menos uma das declarações respeitar a valor superior a 50 000 euros. atendendo-se ao valor global das diversas declarações para efeitos de determinação da medida da pena nos termos do art. 13º do RGIT, para além da responsabilidade civil a que possa haver lugar." (sublinhado nosso).
Também na Relação do Porto já se proferiram diversos acórdãos neste sentido, com fundamentação assertiva, dos quais se têm de destacar dois, a saber, o Ac. de 12/12/07,relatado pela Desembargadora Olga Maurício e o Ac. de 27/04/05, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso (ibidem). Deste último, consta a seguinte passagem: "A redacção deste nº 7 afigura-se inequívoca: a qualificação do crime de abuso de confiança fiscal só ocorre quando de alguma declaração a apresentar à administração tributária dever constar um valor superior a € 50.000. Sob pena de violação do princípio da legalidade, não se pode considerar, como a magistrada do MP na sua resposta, que "o nº 7 do art. 105 do RGIT só tem aplicação quando se verifique a prática de vários crimes ou de um crime na forma continuada". Esta argumentação esquece que a questão da unidade ou pluralidade de infracções é resolvida pela teoria geral das formas do crime (cfr. art. 30º do Cód. Penal), enquanto a determinação do crime concreto cometido é do campo da tipicidade. (sublinhado nosso). As normas acima transcritas do art. 105º do RGIT apenas delimitam os tipos do crime do abuso de confiança fiscal, sendo que o texto do nº 7 não permite qualquer excepção ou ressalva quando for caso de aplicação da norma do nº 5, ou, por outras palavras, no RGIT o valor global não entregue à administração fiscal, resultante da soma dos valores das diversas declarações, nunca pode ser tomado em consideração para efeito da qualificação do crime de abuso de confiança fiscal, embora não seja irrelevante, nomeadamente para a aferição da ilicitude do comportamento [A ilicitude afere-se pelo grau de negação dos específicos valores jurídico-criminais tutelados pela norma violada, o que releva para a determinação da medida concreta da pena dentro da moldura penal abstracta cominada para o tipo de crime cometido - cfr. art.70º nº 2 al. a) do cód. Penal]. Não decorrendo dos factos provados que alguma declaração a apresentar devesse ser de valor superior a € 50.000, ou o equivalente em escudos, à luz do RGIT cometeram os arguidos o crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo seu art. 105º nº 1."
Este último acórdão destaca a ideia de que a literalidade do mencionado nº 7 do art. 105º do RGIT é tão clara que a interpretação sustentada no despacho de acusação proferido nestes autos viola o princípio da legalidade, ao imputar um crime qualificado onde a lei, manifestamente, o não permite, onde a lei prevê um crime simples, não pode o intérprete, criativamente, impor ao arguido um crime qualificado.
Além dos já mencionados, existem ainda, literalmente, dezenas de acórdãos de Tribunais superiores que chancelam condenações de arguidos por crimes de abuso de confiança fiscal (ou contra a Segurança Social) simples em situações em que a soma dos valores dos períodos contributivos em causa ultrapassa o montante de 50.000 euros, mas em que nenhum valor parcelar atinge essa soma e onde esta questão não é aflorada pela simples razão de que não, sequer, controvertida.
Também na doutrina mais autorizada se propugna a boa orientação (cfr. susana Aires de Sousa, in "Os Crimes fiscais", pág.143/4, onde, a propósito do n.º 5 do artigo 105.º do RGIT, se refere que podendo o valor das prestações não entregues à administração tributária funcionar como uma circunstância modificativa agravante do crime de abuso de confiança fiscal, a punição deste crime na forma continuada deve atender não ao valor total de todas as prestações que integram a continuação criminosa mas ao valor de cada uma daquelas prestações.
Um raro aresto que já se pronunciou em sentido contrário rematou tal opção (salvo o devido respeito, que é muito) com rarefeita fundamentação ou mesmo de forma axiomática sem sequer considerar expressamente a norma do nº 7 do art. 105º do RGIT (Ac. R. de Évora de 22/11/18, relatado pela Desembargadora Ana Bacelar).
Não atingindo o valor das quotizações de nenhum dos períodos em causa no despacho de pronúncia o montante de 50.000 euros, a conduta imputada ao arguido AA mesmo estando em causa um único crime que abarca o espaço temporal de todos os períodos em causa nos factos provados, não poderia ser considerada como crime qualificado.
Estamos, por isso, na perspectiva deste Tribunal, perante crime de abuso de confiança contra a Segurança Social simples, para ambos os arguidos, punível com a pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Nos termos do nº 1 do art. 107º do RGIT, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º”, acrescenta o nº 2 que “é aplicável o disposto nos nºs 4 e 7 do artigo 105º”.
Por seu turno, preceitua o art. 105º do RGIT que:
“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
O que está agora em causa é saber se: quando o agente é punido pela prática de um único crime de abuso de confiança à Segurança Social, com execução prolongada no tempo, abrangendo a omissão de entrega sucessiva de prestações devidas à Segurança Social, o valor para subsumir a conduta do agente à prática do crime simples ou qualificado deve ter em conta o valor que deve constar de cada declaração a apresentar – como decidiu o Tribunal recorrido – ou, antes, o somatório do valor das várias declarações – como pretende o Recorrente.
Entendemos que o valor para subsumir a conduta do agente à prática do crime simples ou qualificado tem que atender ao valor que deve constar de cada declaração a apresentar. É o que resulta da redacção do nº 7 do art. 105º citado, que não permite excepções ou ressalvas, sob pena de violação do princípio da legalidade consagrado no art. 29º da Constituição da República Portuguesa e no art. 1º do Cód. Penal.
No plano da interpretação da lei rege o art. 9º do Cód. Civil, que estabelece que:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Destaca-se, desde logo, que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e que o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora a letra do nº 7 do art. 105º do RGIT afirma que os valores a considerar para efeitos do nº 1 e nº 5 do artigo, são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, não sendo possível uma interpretação que aceite a soma dos valores que constem de cada declaração.
A referência expressa a cada declaração só pode significar que se pretendeu atender a declarações individualmente consideradas, e não ao seu conjunto.
Este entendimento é, aliás, maioritário na jurisprudência (ainda que alguns dos acórdãos citados na sentença recorrida não tenham aplicação, por se referirem a crime continuado) veja-se a título de exemplo o Acórdão da Relação do Porto de 27.04.2005 (Proc. nº 0511393), o Acórdão da Relação de Lisboa de 4.02.2009 (Proc. 11036/2008-3) e o Acórdão da Relação de Évora de 10.09.2013 (Proc. 346/09.2IDSTB.E1) – todos pesquisáveis em www.dgsi.pt.
A alegação do Recorrente de que o referido nº 7 pretende esclarecer que os valores a atender, para efeitos de preenchimento do crime, são os que, nos termos da legislação aplicável devam constar, e não necessariamente aqueles que o arguido fez constar, não tem lógica. Efectivamente, se houver uma omissão de valores nas declarações, ou se estas forem preenchidas de forma incorrecta, o crime em causa deixa de ser o de abuso de confiança para passar a ser o de fraude.
Por outro lado, a alegação de que o nº 7 remete “para efeitos do disposto nos números anteriores” e não, especificamente, para efeitos do disposto no nº 5 (qualificação) não é um argumento válido, pois pode perfeitamente entender-se que a remissão é feita para o nº 1 e para o nº 5 daquele art. 105º, não perdendo ênfase a remissão para o nº 5.
Alega ainda o Recorrente que no crime de fraude fiscal o legislador optou por definir o crime simples no art. 103º do RGIT e incluir a modalidade qualificada no art. 104º, seguinte, tendo utilizado no nº 3 do art. 103º expressão que reproduz ipsis verbis o art. 105º, nº 7, do RGIT, sem que aqui se entenda que tal norma visa definir os termos da qualificação do crime, antes sendo interpretada por referência aos valores que deveriam constar das declarações se elas tivessem sido correctas.
É verdade que o nº 3 do art. 103º do RGIT estabelece que “para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”, mas os valores a considerar nos “números anteriores”, tem que ser interpretado apenas como remissão para o nº 2 (único que menciona “valores”) e este encerra a despenalização da conduta. Contudo, o que nos parece que se impõe reter é que, também aqui, o valor a ter em conta para eventual despenalização é o que deva constar de cada declaração. E para qualificar o crime de fraude fiscal (no art. 104º do RGIT), tendo em conta o valor, o legislador optou pelo critério da “vantagem patrimonial”, conceito que não utilizou no abuso de confiança, como poderia ter feito se quisesse considerar globalmente o valor em dívida para efeitos de qualificação da conduta.
Finalmente alega o Recorrente que não é crível que o legislador tenha querido criar uma norma cujo único âmbito de aplicação são situações de crime de trato sucessivo.
Cremos, porém, que o nº 7 do art. 105º do RGIT visa precisamente um desvio às regras gerais, tal como resulta do Acórdão da Relação de Évora de 10.09.2013 (citado supra e na sentença recorrida) considerando-se o valor relevante “um valor especial de referência que o legislador fez coincidir com o valor de cada declaração periódica, por razões que terão mais que ver com opções de política fiscal que estritas razões de ordem criminal”.
E percebe-se a intenção. Sendo o crime de abuso de confiança (seja contra a segurança social, ou fiscal), um tipo de crime que normalmente encerra a realização plúrima do mesmo tipo de crime – em face da pluralidade de declarações periódicas abrangidas – erigido num só crime (se ao longo de toda a actuação tiver persistido a resolução inicial) ou num só crime, na forma continuada (se a actuação reiterada surgir devido a várias resoluções criminosas potenciadas por um factor externo que arrasta o agente para a repetição de condutas), optou o legislador por erigir um valor especial de referência, coincidente com o valor de cada declaração periódica, de modo a não distinguir qualquer das situações.
Termos em que não procede a interpretação do Ministério Público em relação ao nº 7 do art. 105º do RGIT.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento a ambos os recursos, confirmando a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos recorrentes AA e DD, fixando-se a taxa de justiça, devida por cada um, em 3 (três) Ucs; e não sendo devidas custas pelo Ministério Público por delas estar isento.

Lisboa, 11.07.2024
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Sandra Oliveira Pinto
Sara Reis Marques