TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I- A atividade regular, quase diária, de venda de heoina e cocaína sintética (alfa PHP) ao consumidor final, feita a porta de casa, durante meses, é uma situação de facto correspondente a uma “normal” atividade típica de tráfico, nas suas ramificações finais de distribuição e abastecimento para satisfação da procura de consumidores habituais, o que requer, evidentemente, meios, planeamento e organização adequados.
II- A cocaína Alfa – PHP é uma droga sintética, do grupo da catinona (consultável em https://www.unodc.org/LSS/Substance/Details/dad53ec7-df 79-4139-bbe57680308db28), incluída na tabela II-A anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. As drogas sintéticas, cuja produção é de baixo custo, fácil e rápida, são especialmente aditivas, transformaram radicalmente muitos mercados de drogas ilícitas e são socialmente muito danosas
III- Ainda que a atividade desenvolvida se possa inserir no chamado tráfico de rua, apresenta uma organização e repetição que não se pode considerar como suscetível de apontar para uma acentuada diminuição de ilicitude com potencialidade para integrar o artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93
IV- Tratando-se de uma atividade praticada em co-autoria , considerando que os arguidos vivem na mesma casa, que a venda se realizava à porta de casa e que nenhum é consumidor de estupefacientes.
V- A venda de heroina e cocaína sintética é geradora de muita criminalidade secundária, nomeadamente roubos e furtos, o que contribui para a insegurança das populações. Em casos como o presente, em que as vendas se fizeram na rua, à porta de casa, o tráfico de estupefacientes, gera-se um particular sentimento de insegurança, de desconforto e de inquietação nas pessoas que a ele assistem, exigindo das autoridades medidas que a previnam e impeçam. A aplicação de tais medidas por parte do julgador poderá evitar atitudes irracionais da comunidade, como ondas de medo coletivo ou vontade de fazer justiça pelas próprias mãos. Há por conseguinte perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I – Relatório:
Nos presentes autos de inquérito, que correm termos nos serviços do Ministério Público junto da comarca de Loures, por despacho de 10 de abril de 2024, a Mm.ª Juíza de Instrução determinou que o arguido detido AA aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
- T.I.R. já prestado:
- prisão preventiva;
tudo conforme registado no auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ao abrigo do disposto nos arts. 191° a 194°, 196.°, 198.°, 200°/ 1/d), 202.° e 204°/ b) e c), todos do CPP e por se encontrar indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (Tráfico e outras atividades ilícitas), p. e p. pelo art. 21.°, n°1 do DL n°15/93, de 22 de Janeiro e existir perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação do decurso do inquérito e perigo de perturbação da ordem pública.
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-» Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
I. Desde 30 de março de 2024 que o recorrente está preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ..., por suspeita da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22.01.
II. O presente recurso tem como objeto toda a matéria do despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
III. No entanto, não se verificam os requisitos gerais previstos no artigo 204.°, n.° 1, alíneas b) e c) do CPP para aplicação de medida tão gravosa ao recorrente.
IV. Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, o despacho recorrido alicerçou a sua fundamentação, vaga e imprecisa, na aparente precariedade da situação profissional do recorrente, na mesma medida que o fez em relação aos outros três arguidos.
V. Além disso, enfatizou o caso específico de BB, que não se trata do recorrente, por terem apurados factos que remontam a setembro passado, que se encontra a cumprir a medida de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica.
VI. O que torna a aplicação da prisão preventiva ao recorrente ainda mais injusta e desproporcionada, do ponto de vista da sua cadência e período (temporal) de dedicação à atividade ilícita conforme vem relatada, que, para todos os efeitos, é menos grave do que a que vem descrita em referência ao arguido mencionado no ponto V., não obstante também este gozar do princípio de presunção da inocência.
VII. Voltando um pouco mais atrás, a situação profissional do recorrente não é precária, ao ponto de, por esse motivo, ter que se socorrer de tal atividade ilícita como modo de subsistência, o que fica desde já provado cfr.: pontos 9 a 24 do presente Recurso para que se remete.
VIII. Este ponto não foi corretamente analisado pelo tribunal.
IX. A situação profissional do recorrente não ocasiona o perigo na continuação da atividade criminosa.
X. A interpretação errada daquele pressuposto levou à aplicação da medida de prisão preventiva.
XI. Além do mais, os factos descritos não demonstram que o crime em questão proporciona enorme e fácil lucro no caso sub judice, conforme vem relatada a atividade que aparenta ser de menor gravidade (Cfr.: Ac. n.° 135/2005 do Tribunal Constitucional, através de uma interpretação a contrario sensu).
XII. Não obstante o tráfico de estupefacientes tratar-se de um flagelo social, o caso concreto não desencadeou qualquer alarido social.
XIII. O despacho considerou existir o perigo de perturbação do inquérito face à natureza de alguma prova testemunhal.
XIV. No entanto, não clarifica de que modo a não reclusão do recorrente constituirá uma ameaça ao decurso do inquérito.
XV. Não é feita uma análise crítica e rigorosa para que se alcançasse tal juízo, nem se apuraram quaisquer circunstâncias que fizessem crer que o recorrente conseguisse manipular a prova testemunhal, à qual já foram, efetivamente, recolhidas declarações.
XVI. No caso vertente, em primeiro lugar, verifica-se que, o recorrente não falou, logo da ausência das suas declarações não resultam fortemente indiciado o perigo na conservação e veracidade da prova.
XVII. Assim, já não se afigurava, caso o recorrente tivesse negado a prática dos factos, quando o tribunal a quo está a considerar fortemente indiciada a sua prática, sem prejuízo do princípio da presunção da inocência e in dúbio pro reo (cfr.: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2012 - processo n.° 131/11.1YFLSB vide in www.dgsi.pt, ), de acordo com uma interpretação a contrario sensu: "No caso vertente, verifica-se que, não tendo a recorrente assumido a autoria dos factos delituosos que se mostram fortemente indiciados, factos cometidos reiteradamente ao longo de vários anos, e tendo-se servido do seu cargo para os perpetrar, é de temer que tente condicionar os depoimentos das testemunhas, o que, obviamente, constitui um perigo concreto para a aquisição; a conservação e a veracidade da prova.”
XVIII. Em segundo lugar, não podia o tribunal a quo ter considerado o perigo para a conservação da prova, se durante o interrogatório judicial o recorrente não foi conhecedor das declarações das testemunhas, de modo a poder exercer pressão sobre as mesmas (Cfr.: Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.03.2023 - processo n.° 508/20.4GDALM-AL.1-5, através de uma interpretação a contrario sensu: “Háperigo para a conservação da prova quando o arguido, conhecedor das declarações da vítima, puder exercer sobre a mesma pressão ou retaliação, a fim de minorar a sua responsabilidade na prática dos factos.”
XIX. Mesmo em relação a outros elementos de prova recolhidos, o recorrente não ia lograr a contaminação dos objetos já apreendidos, sobretudo por esse motivo, que se encontram à guarda da polícia desde 28 de março de 2024, após operação de busca e apreensão.
XX. O perigo, nos termos das alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 204.° do CPP, deve ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção ou assente em meros juízos abstratos, não concretizados em factos.
XXI. Concomitantemente, a personalidade do arguido, a que numa avaliação conjunta às suas condições sociais, económicas e familiares, não indicia o perigo na continuação da atividade criminosa.
XXII. O recorrente tem 48 anos e tem um comportamento pacífico e humilde.
XXIII. Não tem antecedentes familiares, trabalha, tem um núcleo familiar coeso e é bem visto pela sociedade.
XXIV. É o principal “pilar” de sustento económico do seu agregado familiar.
XXV. Está integrado a todos os níveis.
XXVI. O seu suporte familiar é uma mais valia para o afastar de qualquer prática ilícita, contrariamente ao que acontece na prisão em que pode contactar com outros presos indiciados pela prática do mesmo crime.
XXVII. Porque também apresenta várias patologias físicas e um quadro depressivo, estar perto da sua família será sempre uma mais valia para se abster da prática de qualquer crime.
XXVIII. Depois do impacto sofrido com a detenção e prisão, o recorrente não prosseguiria com qualquer atividade criminosa, também alicerçado num juízo de prognose a partir dos factos indiciados e personalidade do arguido.
XXIX. Previsivelmente, a sanção a ser aplicada ao recorrente não passará pela pena de prisão, analisadas a personalidade do arguido, a ausência de antecedentes criminais, o facto de estar perfeitamente inserido na sociedade, a nível familiar e laboral, a que acresce a pouca gravidade dos indícios do crime conforme relatado.
XXX. Por esse motivo, as necessidades cautelares podem perfeitamente ser satisfeitas através de outras medidas de coação menos gravosas (artigos 198.°, 200.°, 201.° ex vi 193.° CPP).
XXXI. Não foram mencionados os motivos que revelam a insuficiência de qualquer outra medida de coação não privativa da liberdade, nem foram referidos os motivos que revelam a insuficiência da medida de coação de obrigação de permanência na habitação (artigos 193.°, n.° 2 e 3 CPP), em violação destes preceitos legais.
XXXII. A prisão preventiva não pode ser uma medida de coação regra e no caso sub judice é desproporcionada e excessiva ao caso específico do recorrente.
XXXIII. Sem prejuízo do que até agora se disse, os autos não estão dotados de fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do DL n.° 15/93, de 22 de janeiro.
XXXIV. O despacho recorrido refere-se a diferentes graus de participação de cada um dos arguidos, de modo muito vago e impreciso, no entanto, conforme vem descrito, podemos com um grande grau de razão concluir que a atividade ilícita não assume uma grande dimensão.
XXXV. O tribunal a quo não ponderou esta zona cinzenta e aplicou a medida de coação mais gravosa que não tem aplicação, por imperativo legal do disposto no artigo 202.°, n.° 1, al. a) do CPP, no crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.° do DL n.° 15/93, de 22 de janeiro.
XXXVI. Ou seja, nunca o tribunal a quo teria aplicado tal medida tão gravosa e privativa da liberdade, se tivesse equacionado a ilicitude consideravelmente diminuída, à luz de uma objetividade de critérios (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 19.01.2022 - processo n.° 771/20.8PAESP.P1).
XXXVII. Não existe nenhum elemento que revele que o recorrente agia como grande traficante.
XXXVIII. Conforme descrito, o tráfico era (alegadamente) feito por contacto direto com os consumidores, as quantidades apreendidas são reduzidas, o período de atividade nem um ano tem, as operações de embalagem são rudimentares, não existem operações de cultivo e a atividade ilícita é circunscrita a determinada zona.
XXXIX. O tribunal a quo também considerou que o recorrente tem um nível de vida modesto, logo do exercício de tal atividade não podiam surgir grandes proventos económicos.
XL. Acresce o facto de nenhum dos valores monetários apreendidos pertencer ao recorrente, como bem explica o douto despacho que aplica a medida de coação de prisão preventiva, sendo que o valor mais alto foi apreendido a um outro arguido no processo que não foi sujeito ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
XLI. Atendendo ao grau de participação que ainda falta concretamente apurar, mas que certamente não assume uma grande dimensão, à ausência de antecedentes criminais, à sua personalidade, ao amadorismo associado à prática da atividade, sem prejuízo do princípio da presunção da inocência, é pouco provável que ao recorrente seja aplicada a pena de prisão efetiva.
XLII. A idade do recorrente (o mais velho) não será motivo para aplicação de medida tão gravosa.
XLIII. A prisão preventiva aplicada ao recorrente deve ser substituída por outra, por não observar os princípios e regras que são subjacentes à primeira (artigos 18.°, n.° 2, 28.°, n.° 2 e 32.°, n.° 2 da CRP e artigos 191.°, n.° 1, 192.°, n.° 2, 193.°, 202.° e 204.° do CPP e artigo 25.° do DL n.° 15/93 de 22 de janeiro.
XLIV. A medida de apresentação periódica com a proibição de contactos com determinadas pessoas conotadas com o consumo de estupefacientes permite que o recorrente prossiga com a sua vida profissional (continuando a ser o principal pilar da sua família) e mantém a sua inserção profissional, familiar e social já existente (artigos 191.°, 193.°, 196.°, 198.°, 200.°, § 1.°, als. a), c), d), e) e 204.°, alínea c), do CPP).
XLV. Deste modo também se impede a prática de qualquer atividade ilícita..
XLVI. Se V.as Ex.as assim não entenderem, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, responde às necessidades cautelares do caso e, desde já o recorrente dá o seu consentimento para a mesma ser cumprida na sua residência, nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 3, do artigo 4.°, da Lei n.° 33/2010, de 02.09.
Termos em que se requer, mui respeitosamente, a V.as Ex.as seja dado provimento ao presente Recurso e consequentemente:
a) Decida-se pela revogação da medida de prisão preventiva por outra menos gravosa, nomeadamente a medida de coação de obrigação de apresentação periódica, três vez por semana, no posto policial mais próximo da sua residência, com a proibição de contactar pessoas conotadas com consumo e tráfico de estupefacientes e de permanência em locais conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes;
b) não deter na sua residência ou portar objetos relacionados com a atividade ilícita em causa.
c) não sendo aquelas medidas suficientes para acautelar as necessidade do caso, deve a prisão preventiva ser substituída pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
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O Mº P.º respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):
“1- Por despacho proferido a 30 de março de 2024, o douto Tribunal decidiu aplicar ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva para além do TIR já prestado, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 191.°, n.° 1, 193.°, n.° 1, 2 e 3, 194.°, n.° 1, 4, 6 e 7, 202.°, n.° 1, al. b) por reporte ao artigo 204.°, al. b) e c), todos do Código de Processo Penal.
2- O recorrente não se conformando com a decisão proferida nos presentes autos, veio dela interpor recurso, pugnando pela substituição da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido pelas medidas de coação de apresentação periódica, com proibição de contatos com pessoas conotadas com o consumo de estupefacientes
3- O tribunal a quo fundamentou a sua decisão de aplicação da medida de prisão preventiva porque o arguido praticou factos que consubstanciaram a prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, por referência às tabelas anexas I-A e II-C, anexas àquele diploma.
4- Com efeito, somos do entender que tendo em conta o período de tempo da atividade levada a cabo pelos arguidos, os meios humanos envolvidos e sua organização, o número de pessoas envolvidas (quatro), a qualidade/pureza e a quantidade substâncias, o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição e volume das vendas e/ou cedências, a circunstância de nenhum dos arguidos ser consumidor de produtos estupefacientes, os montantes pecuniários envolvidos no negócio, considerando as especificidades da ..., e a ..., onde foram praticados os factos, afastam desde logo a subsunção da conduta dos arguidos ao tráfico de menor gravidade, respaldado no artigo 25.°, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro.
5- O Mmo. Juiz a quo considerou ainda as fortíssimas exigências cautelares, por ser intenso o perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem pública.
6- O Tribunal a quo situação profissional do recorrente, para sustentação dos perigos verificados teve em consideração a situação profissional do recorrente, e dos demais arguidos.
7- Realça-se que os factos foram praticados no interior da residência dos arguidos, que vêm, assim, auferindo, por via dessa descrita atividade, vantagem pecuniária estimável, que utilizam em seu benefício (de que não quererão de leve ânimo, verse privados, uma vez que constitui a sua fonte de rendimento) e que foi, com toda a certeza, animando e mantendo a intenção de se dedicar à venda de substâncias estupefacientes.
8- Cremos que existe um sério perigo de perturbação do inquérito por parte dos arguidos, designadamente porque os mesmos podem condicionar eventuais testemunhas a inquirir, que possam corroborar a sua atividade delituosa. 
9- Deste modo, atendendo aos fundamentos que resultam da douta decisão, verifica-se que o Tribunal a quo procedeu à sua acertada aplicação da medida de coação da prisão preventiva, não violou qualquer preceito e não merece reparo.
10- Face ao que antecede, consideramos que deve o recurso improceder, mantendo- se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Termos em que, e nos mais que V. Excelências doutamente suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pelo arguido, assim se fazendo Justiça” *
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-» Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Escreve:
Aditamos, porém, que o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas é muito concreto e elevado, pois que os fortes indícios da prática do crime de tráfico estupefaciente incidem sobre a venda de heroína e de cocaína sintética, substância denominada Alpha PHP, também conhecida por bloom.
Esta substância sintética, do grupo da catinona, devido ao seu baixo preço e efeito alienante, tornou-se popular entre os consumidores na Região Autónoma dos Açores, à semelhança do que igualmente sucedeu, e sucede na Região Autónoma da Madeira e tornou-se um sério problema de saúde pública nas duas Regiões.
O consumo desta substância produz nos consumidores alucinações, medo e paranoia, gerador de danos irreversíveis no sistema nervoso central.
A perigosidade, para a saúde, desta substância levou à sua inserção na Tabela II-A anexa ao DL. 15/93, de 22/01, através do art. 3.° da Lei 25/2021, de 11/05.
A atividade de traficar esta substância é, pois, perturbadora da ordem e tranquilidade públicas.
Termos em que entendemos que o arguido se deve manter sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada, por se configurar como a única apta a prevenir os perigos de continuação da atividade delituosa, de perturbação do decurso do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, adequada às exigências cautelares que o caso requer, proporcional à gravidade do crime e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada, sendo de negar provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, tendo o recorrente respondido dizendo que “entende que a sua sujeição à medida de coação de obrigação de apresentação periódica cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas e abster-se de frequentar determinados locais conotados com a traficância ou, ainda, a sua sujeição à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica cumulável com a proibição de contactar determinadas pessoas não serão geradoras de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e é suficiente a evitar a prática e continuação do crime de que vem indiciado.
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Realizou-se a conferência.
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II – Objeto do recurso:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões (já supra mencionadas) da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância – artigos 403º e 412º, nº 1, do Código do Processo Penal.
Assim, deve neste recurso ser apreciado o seguinte:
- saber se há indícios fortes da prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados;
-qualificação jurídica dos factos indiciados;
- saber se deve ser revogada a medida de coação de prisão preventiva, por ser desproporcional e desadequada, violando os princípios da proporcionalidade, da adequação e da reinserção social do arguido.
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III – Transcrição da decisão recorrida:
“Valido a detenção dos arguidos, porquanto foi efetuada em flagrante delito pela autoridade policial, nas circunstâncias narradas no auto de notícia por detenção, com observância do disposto nos arts. 254°/ 1/ a), 255°/ 1/ a) e 256°/ 1, todos do Código de Processo Penal (CPP), tendo sido respeitado o prazo de apresentação a interrogatório judicial a que alude a primeira indicada disposição legal.
Sem prejuízo de ulteriores diligências de investigação, a partir dos elementos probatórios já recolhidos nos autos, resultam fortemente indiciados os seguintes factos:
Autos principais e NUIPC 609/23.4PCRGR
1. O Arguido CC é filho do Arguido AA.
2. Os Arguidos CC, AA, DD e CC residem na mesma habitação sita na ..., a partir da qual, se dedicam, pelo menos desde Agosto de 2023 à venda de produtos estupefacientes.
3. Assim, desde então até final de Março de 2024, com uma cadência quase diária, os Arguidos AA, BB e DD, têm vindo a vender estupefaciente heroína e cocaína sintética (ALFA PHP) ao EE, toxicodependente, 2 pacotes de cada um daquelas substâncias por €5,00 cada um.
4. Naquele lapso temporal, por um número indeterminado de vezes, mas certamente no dia 18-2-2024, os Arguidos AA, BB e DD venderam estupefaciente sintético (ALFA PHP) ao consumidor FF, por €5,00 cada dose.
5. Mais uma vez naquele lapso temporal aqueles três Arguidos venderam ao consumidor GG, com uma cadência quase diária, 1 pacote de estupefaciente cocaína sintética (ALFA PHP) por €5,00 cada um
6. Ainda naquele lapso temporal, aqueles Arguidos venderam ao consumidor HH, com cadência quase diária, na qual se inclui o dia 23-2-2024, 1 dose de estupefaciente cocaína sintética (ALFA PHP) por €5,00.
7. No dia 28 de março de 2024, no seguimento de uma busca efetuada à residência dos arguidos, a PSP logrou surpreender o arguido AA, no interior de um anexo, localizado na parte traseira do quintal, piso superior, a efetuar a preparação das doses individuais de estupefaciente para venda.
8. O arguido CC, foi localizado no quarto existente no 1° piso da residência, à esquerda, encontrando-se a dormir;
9. Seguiu-se o arguido BB, no mesmo piso, no quarto ao cimo das escadas, em frente; num quarto existente num anexo, localizado nas traseiras do quintal, rés-do-chão da residência, encontrava-se o arguido DD, juntamente com a sua companheira e dois filhos menores;
10. Quanto ao arguido II, identificado nos autos e também indiciado no ilícito de tráfico de estupefacientes, apurou-se que o mesmo não se encontrava na residência aqui alvo de busca porque havia pernoitado na residência da sua namorada.
11. A PSP logrou apreender 9 pacotes, contendo uma substancia em pó, de cor castanha, com características de ser heroína, no quarto de CC;
12. Da busca ao anexo onde se encontrava o arguido AA, foi localizado e apreendido o seguinte:
- 10.43 Gramas de uma substância em pó de cor branca, com características de ser estupefaciente sintético, que estava disposta em várias linhas, a ser doseada em doses individuais, para venda direta aos consumidores, numa mesinha de cabeceira, com um tampo em vidro;
- 6 Pacotes já preparados/doseados, contendo uma substância em pó de cor branca, com características de ser estupefaciente sintético, acusando o peso total de 0.77 grama.s, que se encontravam em cima do tampo de vidro, onde estavam a ser preparadas as doses individuais (pacotes);
- 1 Balança digital de precisão;
- Diversos artigos utilizados na preparação e doseamento da matéria estupefaciente, nomeadamente recortes em plástico, utilizados no acondicionamento/embalamento das doses individuais da matéria estupefaciente, um doseador em plástico, um X-ato, uma tesoura e uma perna de uma tesoura;
- 1 Telemóvel, propriedade do arguido AA;
Da busca ao quarto de cama onde se encontrava o arguido CC foi localizado e aprendido o seguinte:
- 9 Pacotes com características de ser Heroína localizados no solo, atrás da porta do quarto, que foram sinalizados pelo canídeo da Equipa Cinotécnica;
- 2 Notas de 10 euros do BCE, perfazendo o valor total de 20 euros;
- 2 Telemóveis, propriedade do arguido CC;
Da busca ao quarto de cama do arguido DD foi localizado e apreendido:
- 1 Telemóvel, propriedade do arguido DD;
Da busca ao quarto de cama do arguido BB foi localizado e apreendido:
- 2 Telemóveis, propriedade do arguido BB;
Da busca ao veículo de matrícula ..-CF-.., propriedade do arguido DD, foi localizado e apreendido:
- 346 Euros em notas e moedas do BCE;
Da revista pessoal ao arguido AA foi localizado e apreendido no bolso do casco que trajava 4 embalagens de uma substância granulada de cor branca, com características de ser estupefaciente sintético, que após teste e pesagem, acusou um peso total de 40,15 gr, com o resultado inconclusivo para Cocaína;
Da revista pessoal ao arguido JJ foi localizado e apreendido o seguinte:
- 515 Euros em notas do BCE, cuja posse não conseguiu justificar, ainda, para mais, encontrando-se na situação de desempregado;
- 1 Telemóvel, propriedade do arguido JJ;
O arguido JJ, está a residir recentemente naquela residência, pelo que estará indiciado também no tráfico de estupefaciente em colaboração com os arguidos agora detidos.
Em suma, procedeu-se à apreensão cautelar de:
- Um total de 881 euros em dinheiro BCE;
- 51,35 gr de uma substância com características de ser estupefaciente sintético;
- 1,26 gr de Heroína;
- Diversos recortes, um doseador e utensílios utilizados na preparação das doses da matéria estupefaciente (parte de tesoura e lâmina de x-ato);
- 1 Balança digital de precisão;
- 7 Telemóveis;
NUIPC 609/23.4PCRGR
13. No dia 27 de Setembro de 2023, pelas 14h30, no ..., em ..., Arguido BB foi surpreendido na posse de 22 panfletos contendo produto que se supõe ser estupefaciente cocaína com o peso bruto global de €2,20 gramas, destinado à venda a terceiros consumidores, 2 notas de €20,00, 6 notas de €10,00 e 2 notas de €5,00, todas do BCE, provenientes da venda de estupefacientes.
14. Os arguidos, em todos os momentos acima descritos, conheciam perfeitamente a natureza, qualidade, quantidade e composição estupefaciente do produto que manuseavam e vendiam, bem sabendo que a sua detenção e cedência a qualquer título sem autorização legal são proibidas, o que representaram e quiseram,.
15. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei, em obediência a plano prévio, com divisão de tarefas, cujos contornos e desfecho gizaram e aceitaram, com o objetivo de auferirem avultados lucros.
16. Todos objectos apreendidos relacionam-se com a prática da atividade de tráfico de estupefacientes acima descrita e os valores apreendidos são provenientes daquela actividade ilícita.
Junto dos arguidos residem ainda a mulher de AA, três filhas e um filho do mesmo.
Os arguidos BB e DD, cada um deles, namora com uma filha de AA.
AA e CC prestam trabalho de ..., BB de ... e DD de vaqueiro.
Os quatro arguidos não consomem substâncias estupefacientes.
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Os elementos indiciadores são os que constam do requerimento do MP, nomeadamente:
- Auto de notícia de fls. 2-3;
- Auto de notícia e de detenção de fls. 199 e ss.;
- Autos de apreensão de fls. 149, 150, 151, 171, 172, 180, 186-188
- Reporta.gem fotográfica de fls. 152,153, 156, 157 a 171
- Autos de pesagem e despistagem de fls. 154,156, 164, 182
- Testemunhos de fls.: 71-72, 107-112.
Para além destes elementos, e quanto à situação familiar e profissional dos arguidos, assim como à circunstância de os mesmos não consumirem substâncias estupefacientes, o Tribunal, nesta parte, atendeu às declarações que os mesmos prestaram quanto a estas matérias, revelando os quatro, sobre estes pontos, um nível suficiente de autenticidade, desde logo no próprio reconhecimento em si de não consumirem drogas.
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Tais factos são susceptíveis de configurar a prática, em coautoria material e na forma con.sum.ada, de um crime de tráfico de tráfico de estupefacientes, p. ep. pelo artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01.
Estes factos, para além da sua gravidade em si, manifestam um evidente perigo de continuação da actividade criminosa. Os quatro arguidos residem na mesma casa, estão mesmo inseridos no mesmo agregado familiar, apresentam situações profissionais que, ao que se afigura, são precárias, sendo evidente, como tal, o risco que existe de esta atividade prosseguir, até porque, no caso do arguido BB, apuram-se factos que remontam já a Setembro passado. Evidente é, também,, o perigo de perturbação do inquérito, face à natureza testemunhal de alguma da prova recolhida, para alem do perigo de perturbação da ordem pública inerente à atividade ilícita em si que aqui se indicia.
Importa, como tal, fixar a cada um dos arguidos um estatuto coactivo que vá para além do simples cumprimento das obrigações decorrentes do TIR, e que, acima de tudo, faça com que os arguidos efetivamente parem com esta atividade ilícita.
Entende-se, ainda assim, que a situação dos quatro arguidos não é idêntica, não só pela sua condição pessoal e familiar - chamando-se aqui a atenção para a idade do arguido CC, e mesmo dos arguidos DD e BB -, mas também,, segundo é possível perceber a partir dos factos indiciados, para aquilo que pode ser o papel de cada um dos arguidos nesta atividade ilícita.
Assim, e começando pelos arguidos AA e BB considera-se que, em relação a estes, só uma medida de coacção privativa da liberdade será suficiente para acautelar os riscos acima apontados, devendo os mesmos ficar sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, sem prejuízo, no caso do arguido BB, de eventual aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com sujeição a meios de controlo à distância (medida sujeita a prévia analise dos serviços da DGRSP). Já quanto aos arguidos CC e DD, e pelo menos neste momento, considera-se adequado que o estatuto coactivo dos mesmos seja composto por medidas de coacção de apresentações periódicas e proibição de comtacto com pessoas conotadas com o tráfico e consumo de drogas, assim como a permanência em locais conotados com o consumo e tráfico de drogas.
Face ao exposto, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade, e ao abrigo do disposto nos arts. 191° a 194°, 196.°, 198.°, 200°/ 1/d), 202.° e 204°/ b) e c), todos do CPP, determino que os arguidos aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos às seguintes medidas de coacção, para além do T.I.R. já prestado:
• O arguido AA a prisão preventiva;
• O arguido BB a prisão preventiva, sem prejuízo de lhe ser eventualmente aplicada a obrigação de permanência na habitação, com sujeição a meios técnicos de controlo à distância, devendo ser diligenciado, junto da DGSPS, pelo apuramento das condições para esse efeito;
• Os arguidos CC e DD apresentações diárias, até às 20:00 horas, junto da esquadra da PSP da sua área de residência e a proibição de contactos com pessoas conotadas com consumo e tráfico de droga e de permanência em locais conotado com o consumo e tráfico de droga.
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Passe mandados de condução dos arguidos AA e BB ao Estabelecimento Prisional.
Comunique à Esquadra da PSP da área de residência dos arguidos CC e DD as medidas de coacção a.gora aplicadas.
Restitua os arguidos CC e DD à liberdade.
Solicite aos serviços da DGRSP o apuramento das condições para eventual aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com sujeição a meios técnicos de controlo à distância, ao arguido BB.
Notifique os arguidos nos termos do disposto no art.°194.° n.° 9 e n.° 10 do CPP.
Comunique ao TEP.
Oportunamente devolva os autos ao DIAP.
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Neste momento, o Mm° Juiz ordenou a entrada dos arguidos na sala e passou a notificá-los do despacho que antecede, cujo alcance explicou.
Do despacho acabado de proferir foram todos os presentes devidamente notificados do que disseram ficar bem cientes. notificados, sendo os arguidos CC e DD nos termos do disposto do art.° 194, n.° 9, do CPP e os arguidos AA e BB, nos termos do disposto do art.° 194.° n.° 10 do CPP.
Nada mais havendo a tratar, pelo Mm° Juiz de Direito foi encerrada a diligência pelas 11:54:29 horas, tendo sido entregues os mandados de condução dos arguidos AA e BB ao Estabelecimento Prisional aos Srs. Agentes da PSP aqui presentes, e os arguidos CC e DD foram restituídos à liberdade. Para constar se elaborou o presente auto que após lido e revisto vai ser assinado.”
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IV. Do mérito do recurso:
Qualificação jurídica dos factos fortemente indiciados:
De acordo com o despacho recorrido, os factos que estão fortemente indiciados são subsumíveis à prática pelo arguido, em coautoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, nº1 do DL nº15/93, de 22 de Janeiro .
O recorrente não discute a forte indiciação dos factos descritos no despacho recorrido mas discorda de tal qualificação jurídica, dizendo que os factos apenas permitem chamar à colação o crime de tráfico de menor gravidade nos termos do artigo 25.° da Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro.
Vejamos.
O art. 21º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro estabelece o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, dispondo que “quem, sem para tal estar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, exportar, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Dentro do crime de tráfico, para além deste tipo fundamental, a lei contempla um tipo agravado (art. 24º) e tipos privilegiados: o tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25º e o tráfico para consumo, previsto no art. 26º.
No que respeita ao tipo previsto no art. 25º, dispõe a lei que “se, nos casos previstos nos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.
É aqui erigido como elemento justificativo do privilegiamento do crime a considerável diminuição da ilicitude, que tem de resultar de uma valoração global do facto, tendo em conta não só as circunstâncias que o artigo enumera de forma não taxativa, mas quaisquer outras, atendíveis na referida globalidade, que apontem para aquela considerável diminuição (cfr. Lourenço Martins, “Droga e Direito”, Aequitas, pág. 145 e segs.; na jurisprudência, cfr. por todos o acórdão do STJ de 04.05.2005, Processo: 05P1263, Relator: Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt. ).
O elemento da diminuição da considerável diminuição da ilicitude tem de ser aferido face à ilicitude que é a típica do art. 21º, expressa, além de mais, na moldura penal abstracta que lhe corresponde (mínimo de 4 anos e máximo de 12 anos), reveladora, no quadro do nosso sistema sancionatório penal, de que essa moldura pressupõe uma acentuada ilicitude. Procura assim o art.º. 25º permitir ao julgador encontrar a justa medida de punição naqueles casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, fiquem aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art. 21º e encontram sanção adequada dentro das molduras penais previstas no art. 25º (assim, o Ac. do STJ de 15.12.99, BMJ, n.º 492, pág. 215).
Constitui, assim, o art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22-01, uma "válvula de segurança do sistema'', destinado a evitar que se parifiquem os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo, evitando-se que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial
Entre nós, vem o Supremo Tribunal de Justiça convergindo no entendimento de que, para que se possa entender haver ilicitude consideravelmente diminuída no domínio do tráfico de estupefacientes, tem de ser feita uma ponderação global dos factores em presença, valorando a interdependência dos índices de natureza objectiva fornecidos pelo legislador, em termos exemplificativos, as quantidades de estupefacientes detidas, vendidas, distribuídas, oferecidas ou proporcionadas a outrem e o nível de risco de difusão, a sua qualidade, aí se incluindo o potencial grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos pela incriminação, reflectida na colocação nas tabelas, os meios utilizados, reportados à organização e à logística de que o agente lançou mão e o modo e as circunstâncias da acção, que deverão ser simples, não planeados, não organizados, tudo confluindo para se concluir que, nas circunstâncias do caso concreto, se deve subtrair o caso à previsão do tipo fundamental por via da consideração de factores da ilicitude de baixa intensidade. Há que ter em conta os critérios de proporcionalidade que estão pressupostos na definição das penas e constituem um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
Haverá que proceder à valorização global do episódio, não se mostrando suficiente que um dos factores interdependentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como menos grave ou leve, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias. O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) do bem jurídico protegido (saúde pública).
(cfr. por todo, os Ac. STJ de 25/10/2017, Processo:46/15.4PEFIG.S1, Relator: LOPES DA MOTA, de 13-12-2007, Processo: 07P3300, Relator: RODRIGUES DA COSTA, 28-05-2015, Processo: 421/14.1TAVIS.S1, Relator: SOUTO DE MOURA)
Lê-se no Ac. do STJ de 24-09-2020, Processo: 109/17.1GCMBR.S1, Relator: FRANCISCO CAETANO, in www.dgsi.pt:
“O labor jurisprudencial deste STJ tem densificado o conceito de menor gravidade a partir das seguintes circunstâncias, cumulativas, ou não:
a) – Qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, como drogas duras ou drogas leves;
b) – Quantidades e variedades detidas desses produtos e transmitidas a cada um dos consumidores e se são ou não adequadas ao seu consumo médio individual;
c) – Dimensão dos proventos obtidos;
d) – Grau de adesão à actividade de tráfico, como forma de sustento de vida;
e) – Afectação ou não de parte dos proventos ao consumo próprio;
f) – Duração da actividade e persistência, habitualidade ou regularidade no abastecimento de consumidores;
g) – Número de consumidores contactados;
h) – Posição do agente no circuito de distribuição;
i) – Extensão geográfica, mais ampla ou mais restrita do desenvolvimento da actividade;
j) – Modo de execução, isolado ou de entreajuda e forma de organização, profissionalizada ou rudimentar (cfr. Acs. STJ de 30.11.2017, Proc. 3466/11.OTALRA.C1.S3 e 13.03.2019, Proc. 227/17.6PALGS.S1, em www.dgsi.pt).
É a partir da ponderação conjunta de tais circunstâncias (eventualmente ainda com outras, dado o conceito aberto de menor gravidade), que o julgador obterá a imagem global do facto para concluir, ou não, pela menor gravidade da ilicitude da conduta em relação ao tipo fundamental do art.º 21.º citado, sendo que qualquer uma delas pode assumir-se com maior ou menor relevância, consoante a preponderância que tiver em concreto.”
E como bem refere o nosso STJ, a previsão do artº 25º - pequeno tráfico – não inclui apenas as situações de pequeníssima ou insignificante dimensão, as simples bagatelas penais, mas todos os casos que, à luz do senso comum, sejam efectivamente de pequena dimensão.
Com efeito, a amplitude da pena abstracta – entre 1 e 5 anos de prisão – e a circunstância de o seu limite máximo ser superior ao mínimo previsto no artº 21º (casos graves), permite nela inclui inúmeras situações, entre as quais aquelas em que, não sendo já diminutas as quantidades comercializadas ou a comercializar, as demais circunstâncias da acção levam a concluir ainda por uma actividade de pequeno tráfico, designadamente os casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do artº 21º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista no citado artº 25º.
Ora, dos factos que estão fortemente indiciados resulta que desde há vários meses que o recorrente vende heroína e cocaínea sintética (alfa PHP), numa cadência quase diária, a quatro consumidores, colaborando com os demais arguidos nesta atividade.
É certo que o fez a partir da residência em que ele e os demais arguidos habitavam e através de contacto direto com os consumidores que para o efeito os procuraram.
Mas o que vemos aqui é uma situação de facto correspondente a uma “normal” atividade típica de tráfico, nas suas ramificações finais de distribuição e abastecimento para satisfação da procura de consumidores habituais, que o recorrente e os demais arguidos garantiam regularmente, diariamente, o que requer, evidentemente, meios, planeamento e organização adequados.
Não temos aqui uma atividade esporádica, isolada, mas uma atividade regular, realizada a partir de casa.
Note-se ainda que está fortemente indiciado que, aquando do cumprimento dos mandados de busca, o recorrente foi surpreendido a dividir e acondicionar uma substancia sintética, cuja composição ainda não é conhecida, mas que se destinava a ser vendida.
Na casa habitada pelos arguidos foi encontrada heroína, acondicionada em 9 pacotes, num total de 1,26 gramas (no quarto do arguido CC), para além de vários pacotes de uma substância sintética, cuja composição ainda não é conhecida, num total de €:51,35 gramas (no anexo onde se encontrava o recorrente e no bolso do casaco que trajava) e ainda dinheiro, no total de €;881,00 (na posse do arguido JJ, no quarto do arguido CC, no veículo do arguido DD), uma balança de precisão e telemóveis.
Está fortemente indiciado que os objetos e valores apreendidos se relacionam com a prática da atividade de tráfico de estupefacientes e que o dinheiro apreendido é proveniente daquela atividade.
Está ainda fortemente indiciado que os arguidos agiram em obediência a um plano prévio, com divisão de tarefas e com o objetivo de auferirem avultados lucros.
Aqui, chamamos à colação o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2020, processo nº 476/13.6JAPRT.P1, Relator: Desembargador Jorge Langweg, acessível em www.dgsi.pt, onde se lê:
A coautoria pressupõe, pois, um elemento subjetivo – o acordo, com o sentido de decisão, expressa ou tácita, para a realização de determinada ação típica, e um elemento objetivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte direta na execução. A execução conjunta, neste sentido, não exige, todavia, que todos os agentes intervenham em todos os atos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina. O autor deve ter o domínio funcional do facto; o coautor tem também, do mesmo modo, que deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo, e na execução de tal acordo se dispôs a levar a cabo. O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar necessária à realização da finalidade pretendida.”
Transpondo estes ensinamentos para o caso dos autos, vemos que o importante é que cada um dos arguidos tinha tarefas a desempenhar na atividade de tráfico de estupefacientes que todos levavam a cabo, em comunhão de esforços e de intenções. É por isso indiferente a divisão da casa em que os objetos apreendidos foram encontrados, considerando que os valores apreendidos são provenientes desta atividade criminosa, que todos os arguidos viviam juntos, que a venda se realizava à porta de casa e que nenhum é consumidor de estupefacientes.
Não ignora este Tribunal de que se desconhece ainda a natureza desta substancia sintética apreendida nos autos.
Contudo, independentemente disso, a verdade é que se deu como fortemente indiciado a venda por estes arguidos de heroína e cocaína sintética Alfa P HP, com uma cadência quase diária, a quatro consumidores, no período indicado nos factos indiciados e que foi apreendida também heroína na residência dos arguidos.
A cocaína Alfa – PHP é uma droga sintética, do grupo da catinona (consultável em https://www.unodc.org/LSS/Substance/Details/dad53ec7-df79-4139-bbe57680308db28), incluída na tabela II-A anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Por ser uma droga relativamente recente, não está incluída no mapa a que se refere o art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03.
A respeito do tráfico de heroína e de substancias estupefacientes sintéticas chamamos a atenção para o «World Drug Report 2023», publicado pela Organização das Nações Unidas-UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime) e disponível in https://www.unodc.org/res/WDR-2023/WDR23 Exsum fin_SP. pdf, onde se noticia que, em 2021, cerca de, 31,5 milhões consumiram opiáceos, principalmente heroína, que cerca de 38 % das pessoas em tratamento por consumo de drogas em 2021 indicaram os opioides como droga principal e que este é o grupo de drogas mais letal.
A heroína continua, assim, a ser uma «droga dura», com efeitos devastadores na saúde dos respetivos consumidores.
Este relatório alerta ainda para as drogas sintéticas, cuja produção é de baixo custo, fácil e rápida e que transformaram radicalmente muitos mercados de drogas ilícitas.
Salienta que os grupos criminosos conseguem rodear as leis, produzindo novas drogas e usando precursores não controlados.
Chama a atenção para o fentanil, que alterou drasticamente o mercado de opioides na América do Norte, com consequências catastróficas. Em 2021, a maioria das quase 90 mil mortes por overdose relacionadas a opioides na América do Norte envolveu fentanil fabricado ilegalmente.
Isso mesmo é sublinhado no relatório europeu sobre drogas de 2023, in https://www.emcdda.europa.eu, onde se diz claramente que o consumo de estimulantes sintéticos está associado a riscos para a saúde física e mental, existindo uma crescente diversidade no mercado da droga neste domínio, algumas com efeitos ainda não estudados
Uma das mensagens principais do World Drug Report 2023», é a de que o fenómeno mundial das drogas põe em perigo as metas do desenvolvimento sustentável e os esforços na promoção da paz, da segurança e dos direitos humanos
Por fim, de acordo com o Relatório de Segurança Interna, disponível in https://www.portugal.gov.pt/, em 2023 a criminalidade relacionada com o tráfico e consumo de estupefacientes aumentou cerca de 19,4%
Lê-se no Ac. desta Relação de 04 Junho 2024 Processo n.º 501/23.2JAPDL.L1-5, Relator: PAULO BARRETO, o seguinte:
Como refere “Grazina, Manuela - Revista Dependências, Março 2021,Editor: News-Coop - Informação e Comunicação, CRL, pp. 12-14, disponível em dependencias.pt, “(…) o que assusta nas novas substâncias é o facto de as pessoas que as produzem e colocam no mercado serem autênticos assassinos em série porque têm que saber muito de bioquímica, de neuroquímica e de neurociências; algumas destas moléculas que tenho estudado para perceber o seu efeito têm um potencial nefasto terrível e, pelo menos uma delas, é constituída por grupos químicos que conseguem fazer de conta que é, ao mesmo tempo, LSD, ecstasy, cocaína e metanfetaminas; vai estimular múltiplos sistemas neuroquímicos no cérebro, com um risco muito grande associado; mas não só nestes casos das novas substâncias porque está mais do que demonstrado cientificamente que a exposição a qualquer droga mata as células do cérebro que são capazes de exercer funções fundamentais na vida do indivíduo, nomeadamente na capacidade cognitiva, nas memórias, no processamento das emoções e, sobretudo, na capacidade de decisão; se tivéssemos de escolher um alvo de morte celular no cérebro aliado à toxicodependência seriam as células da tomada de decisão; essa é a razão principal para se ficar toxicodependente.”
Tudo para dizer que, quer à heroína, quer à cocaína PHP, que são substâncias especialmente aditivas, se continua a associar uma grande danosidade social.
Tais considerações são importantes para termos consciência da gravidade do comportamento dos arguidos supra descrita, de venda sistemática e organizada de heroína – que foi apreendida nos autos – e de cocaína sintética alfa PHP.
Temos também de ter em conta que os factos se passaram em ..., uma pequena localidade da ilha de São Miguel, onde por razões geográficas é reconhecidamente mais difícil o desenvolvimento de uma operação de tráfico de estupefacientes em larga escala e onde o impacto de uma atividade como a desenvolvida pelo arguido assume proporções notoriamente mais danosas e desagregadoras do tecido social do que em comunidades de maior dimensão.
Entende pois este Tribunal que a imagem global da actividade do recorrente, não tem um menor relevo ao nível da ilicitude do facto comparativamente com a actividade padrão de tráfico. Ainda que a atividade desenvolvida se possa inserir no chamado tráfico de rua, apresenta uma organização e repetição que não se pode considerar como suscetível de apontar para uma acentuada diminuição de ilicitude com potencialidade para integrar o artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93.
Dentro da multiplicidade de situações suscetíveis de configurar os elementos do tipo legal previsto no artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, concede-se que a apreciada nos autos, no presente momento da investigação, revelará uma menor carga de ilicitude. Porém, será sempre a partir de tal tipo que deverá ser perspetivada a atuação do arguido.
Tudo para concluir que os factos fortemente indiciados são, desta forma, subsumíveis à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.°, n°1 do DL n°15/93, de 22 de Janeiro e tabelas I-A e II-A, anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. e não ao disposto no art.º 25º do mesmo diploma, como pretendia o recorrente.
Uma última nota: mesmo tendo o recorrente outra atividade profissional remunerada, como ..., conforme se deu como fortemente indiciado, tal circunstância não tem a virtualidade de conduzir a uma qualificação jurídica distinta dos factos em causa.
Improcede, por isso, o recurso do arguido nesta parte.
b) os pressupostos da aplicação da prisão preventiva:
A aplicação de medidas de coação implica, em maior ou menor grau, consoante os traços distintivos da medida em causa, restrições ao direito à liberdade, direito fundamental com tutela constitucional, estando por isso submetidas ao princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade e devendo conter-se, de acordo com o estabelecido no nº 2 do art. 18º da CRP, dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Lembramos também que a imposição de medidas de coação, mormente das privativas da liberdade, não contende com o princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º nº 2 da C.R.P., sendo certo que não pode constituir uma antecipação da pena e que aquelas sempre hão-de ter natureza excecional e de ultima ratio, obedecendo estritamente aos requisitos fixados na lei.
Em consonância com o referente constitucional, o nº 1 do art. 191º do CPP estabelece os princípios da legalidade e tipicidade das medidas de coação e de garantia patrimonial, prescrevendo que:
a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”.
Por seu turno, o nº 1 do art. 193º do CPP estabelece que:
«As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.» .
O princípio da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) significa que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, o que obriga à escolha da medida de coação menos onerosa para o cidadão de entre aquelas que sejam adequadas.
O princípio da adequação obriga a escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso.
E para que respeite o princípio da proporcionalidade, a medida de coacção escolhida deverá manter uma relação directa com a gravidade do crime e com a sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos (cfr. Ac. RL de 19-06-2019, Processo: 207/18.4PDBRR.L1-3 Relator: JOÃO LEE FERREIRA, in www.dgsi.pt).
A prisão preventiva - que é a medida de coação mais gravosa, porque mais limitadora da liberdade - está sujeita a critérios de estrita legalidade, prevista como uma das exceções ao princípio enunciado no nº 2 do art. 27º da CRP.
A sua natureza excecional e subsidiária encontra-se expressamente afirmada no nº 2 do art. 28º da C.R.P., nos termos do qual “a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.”
O quadro legal da admissibilidade da prisão preventiva está estabelecido no art. 202º do CPP, preceito do qual decorre que o legislador, em consonância com o referente constitucional, fez depender a aplicação da prisão preventiva da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal.
Vejamos se no caso dos autos estão presentes exigências cautelares que imponham a aplicação de medidas de coação.
No art.º 204 do CPP são elencadas as exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coacção:
“Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”.
Revertendo ao caso dos autos, vemos que no despacho recorrido se considerou como verificado o perigo de continuação da atividade criminosa, o perigo de perturbação do inquérito e para a instrução do processo, na vertente de aquisição, conservação e veracidade da prova e o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas —artigo 204.°, n.° 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
No que respeita ao perigo de continuação da atividade criminosa, é sabido que o juízo deve ter em conta a prática de crimes de natureza idêntica e a plausibilidade da reiteração criminosa deve aferir-se a partir das circunstâncias do caso concreto (quer anteriores, quer contemporâneas à conduta indiciada e relacionadas com esta) e da personalidade revelada pelo arguido (neste sentido, cfr o Ac. RC de 22-03-2023, Processo: 1070/22.6PBFIG-A.C1, Relator: HELENA BOLIEIRO, in www.dgsi.pt).
Escreve Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, II, 3ª ed. revista e atualizada, 2002, págs. 268 e 269.:
o fundamento da medida de coação referido na alínea c) do art. 204º deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada. O perigo de continuação da atividade criminosa há de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade. Atentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido pode ser de recear a continuação da atividade criminosa, o que importa evitar e a lei permite que para tal sejam aplicadas medidas de coação. Assim, por ex., se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pode justificar-se a prisão preventiva. A aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado”
Ora, no caso em análise há de facto perigo de continuação da atividade criminosa.
Sabemos, pelas regras da experiência e do normal acontecer, que a atividade de tráfico de estupefacientes proporciona lucros fáceis e avultados, sobretudo de cocaína sintética e de heroina, que para além de particularmente aditivas, são muito rentáveis.
Sabemos também que os rendimentos auferidos pelo arguido são modestos, pois advêm da sua atividade de ..., sendo efetivamente esta uma atividade precária, no sentido de que o arguido não tem um vínculo profissional estável que lhe proporcione um rendimento fixo mensal.
Mais resulta dos factos acima descritos que o arguido agiu com um intuito lucrativo.
Desta forma, tendo-se o arguido habituado a dispor do acréscimo de rendimentos proporcionados pelos proveitos do tráfico de estupefacientes, logo que pressionado com a falta de dinheiro para sustentar os hábitos de consumo que entretanto criou ou para fazer face a uma qualquer despesa extraordinária, com grande probabilidade reatará os contactos que tem junto de consumidores e de vendedores e voltará a cometer o mesmo crime.
Entende-se ainda que, ao praticar os factos criminosos aqui em causa, o arguido demonstrou possuir uma personalidade ousada e gananciosa, indiferente ao dever ser jurídico penal.
Lê-se no Ac. RL de 11-06-2019, Processo: 1534/17.3 T9TVD-A.L1 -5, Relator: JOSÉ ADRIANO, in www.dgsi.pt :
“A experiência e os estudos que existem sobre esta realidade dizem-nos que os traficantes, quando embrenhados nessa actividade e dela dependem, raramente ou nunca a abandonam voluntariamente, porque não querem prescindir dos elevados rendimentos que o negócio lhes proporciona a curto prazo e lhes permite o acesso a bens e modo de vida que, de outra maneira, dificilmente ou jamais obteriam, preferindo correr os riscos que, sobejamente, conhecem”
Por fim, dos factos que estão fortemente indiciados resulta que o arguido tinha um papel preponderante nesta atividade, pois é pai de um dos arguido e sogro dos outros dois arguidos (em rigor, pai das namoradas dos arguidos BB e DD), vivendo todos juntos na mesma casa, que é a casa do arguido e dos filhos. Assim, por força dos laços familiares e da idade, é razoável concluir que o aqui recorrente tinha ascendência sobre os demais arguidos e por isso um papel de liderança na atividade criminosa.
Tal perigo é atenuado pelo facto do arguido não ter antecedentes criminais, sendo este o primeiro contacto que tem com o sistema de justiça formal.
A inserção familiar do recorrente, por ele invocada em seu favor, na realidade em nada abona. De facto, vemos que foi precisamente com o filho e com os namorados das filhas, aqui arguidos, que o recorrente desenvolveu a atividade criminosa em causa nos autos.
Há também perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, perigo este que a jurisprudência mais recente tem considerado que deve estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), não apenas na perspetiva do arguido, mas também na dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da sua conduta criminosa. Não está aqui em causa, propriamente, uma questão de defesa social, mas antes um objetivo de salvaguarda da paz social, que foi afetada pelo comportamento dos arguidos (de contenção do conflito social provocado pela atividade delituosa).
(cfr. neste sentido o Ac. da RE de 07-05-2019, Processo: 3/19.1T9CCH-A.E1, Relator: LAURA MAURÍCIO, in www.dgsi.pt)
No caso concreto, os factos fortemente indiciados revelam a venda de heroína e cocaína sintética (alfa PHP), que são produtos estupefacientes com um potencial aditivo extremamente elevado e com efeitos especialmente nocivos para a saúde. A venda destes produtos estupefacientes é também geradora de muita criminalidade secundária, nomeadamente roubos e furtos, o que contribui para a insegurança das populações. Trata-se de facto de um crime grave, o que é espelhado na moldura penal cominada. Em casos como o presente, em que as vendas se fizeram na rua, à porta de casa, o tráfico de estupefacientes, gera-se um particular sentimento de insegurança, de desconforto e de inquietação nas pessoas que a ele assistem, exigindo das autoridades medidas que a previnam e impeçam. A aplicação de tais medidas por parte do julgador poderá evitar atitudes irracionais da comunidade, como ondas de medo coletivo ou vontade de fazer justiça pelas próprias mãos (neste sentido, Ac. RP de 10-01-2024, Processo: 1134/23.9JAAVR-A.P1, Relator: NUNO PIRES SALPICO).
Quanto ao perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, entende-se que, estando o arguido ciente da gravidade do crimes em causa nos autos e da pena que previsivelmente lhe será aplicada, é provável que tente impedir que novas provas se conjuguem contra ele, não tendo pejo certamente em pressionar as testemunhas indicadas nos factos fortemente indiciados e outras que saibam que possam vir a ser inquiridas, no sentido de que não prestem depoimentos que o desfavoreçam e de que alterem até depoimentos já prestados.
É certo que dois dos arguidos não foram privados da liberdade e poderão eles próprios perturbar o inquérito. Contudo, e como acima vimos, o aqui recorrente tem um papel preponderante nesta atividade criminosa e, estando preso preventivamente, é mais difícil a comunicação entre eles e que se juntem todos para planearem ações nesse sentido. Ou seja, a prisão preventiva do recorrente, se não elimina tal perigo, certamente que o atenua.
Expostas que foram as exigências cautelares no caso o tribunal tem, pois, de aplicar medidas de coação que sejam adequadas às mesmas e que respeitem os princípios da necessidade e proporcionalidade a que alude o art.º 193 do CPP.
São requisitos para a aplicação de uma medida de coação – à excepção do TIR – a observância dos princípios da adequação, necessidade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da adequação das medidas de coação exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.
O artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e, tal como em todos os demais campos de aplicação, em matéria de aplicação das medidas de coação o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 264).
Aqui chegados, temos pois que ponderar se as exigências cautelares acima expostas, e designadamente o perigo de continuação da atividade criminosa, que é o mais intenso, impõem a aplicação de uma medida detentiva ou se, ao invés, são acauteladas com medidas de coação não privativas da liberdade.
Julgamos, tal como o fez o Tribunal recorrido, que atenta intensidade do referido perigo, apenas a aplicação de uma medida de coação detentiva conseguirá conter o arguido e impedi-lo, por essa via, de praticar novos actos criminosos, de prolongar a atividade criminosa indiciada.
Acresce que a prisão preventiva é proporcional à gravidade dos crimes e às penas que previsivelmente lhe serão aplicadas, atenta a moldura penal cominada e as circunstâncias do caso concreto.
Note-se, por fim, que a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mesmo sob vigilância eletrónica (artigo 201.º do Código de Processo Penal), cuja aplicação o arguido requer, não é uma medida eficaz e suficiente para obstar à continuação da prática da actividade criminosa, podendo o arguido contactar com os seus clientes a partir da sua residência, fazendo com que estes – sejam os mesmos de antigamente, ou outros diferentes - se desloquem à aludida residência (Ac RL de 11-06-2019, Processo: 1534/17.3T9TVD-A.L1-5, Relator: JOSÉ ADRIANO).
Era, de resto, o que sucedia neste caso.
Em conclusão, encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, pelo que o despacho impugnado não violou qualquer normativo legal ou constitucional, designadamente os artigos 191°, n. s 1, 192 n.º 2, 193, 202.° e 204. do CPP, 18º n.º 2, 28º n.º 2, 32 n.º 2 da CRP, nem os princípios da proporcionalidade, adequação e subsidiariedade.
Por fim, e relativamente ao estado de saúde do recorrente, antes de mais, há que dizer que a finalidade do recurso é que o Tribunal Superior aprecie a decisão recorrida e não que se pronuncie sobre questões novas que não tenham sido colocadas perante o tribunal recorrido. Os recursos são remédios jurídicos, destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior. E nessa apreciação, o Tribunal da Relação tem de tomar em conta os elementos existentes nos autos quando da prolação da decisão recorrida.
Daí que não possa este Tribunal da Relação ter em consideração na decisão de recurso quaisquer informações clínicas, atestados ou relatórios não acessíveis no momento da prolação da decisão.
De qualquer modo, sempre se dirá que o nosso serviço nacional de saúde presta assistência médica aos presos preventivos e que, caso o recorrente padeça de doença grave, poderá solicitar a suspensão da execução da prisão preventiva, nos termos do Artigo 211.º do CPP.
Termos em que improcede integralmente o recurso, mantendo-se o recorrente em prisão preventiva
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IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA mantendo-se a decisão do Tribunal a quo que determinou a sua sujeição a prisão preventiva.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
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Lisboa, 11 de julho de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques
Carla francisco
Paulo Barreto