VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO DE JULGAMENTO
PROVA INDIRECTA
ELEMENTOS DO TIPO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I- [O erro notório], trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
II- Não resultando da sentença que o arguido possua quaisquer limitações cognitivas – e sendo, por isso, de admitir que é possuidor do discernimento comum na generalidade dos indivíduos e da capacidade de se determinar em conformidade com esse mesmo discernimento – não é possível, em termos lógicos, considerar demonstrado que o arguido escondeu da assistente uma carta à mesma dirigida pela Segurança Social, que instalou câmaras de filmar nas diversas divisões da casa (incluindo os quartos onde os ofendidos dormiam) e que trancou a porta de casa para impedir os ofendidos de sair (o que só lograram fazer após a chegada da polícia), e que, apesar disso, não se tenha como estabelecido que quis coagir a assistente e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
III- O adequado uso do princípio da livre apreciação da prova, que rege a operação de determinação dos factos posta a cargo do julgador, implica uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida, de modo a dela extrair, do modo mais fiel possível, a verdade material, processualmente válida. Nesta operação, o Tribunal não está vinculado à estrita literalidade das palavras proferidas, antes podendo (e devendo) retirar dos relatos perante si produzidos todo o respetivo conteúdo útil, apreciado à luz das regras de experiência.
IV- O crime de violência doméstica, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade.
V- Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os atos atentatórios da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero.
VI- No ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial, mais do que repor a situação anterior ao dano – o que não é viável – visa-se compensar os padecimentos com um lenitivo pecuniário que permita suavizá-los.

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I. Relatório
No processo comum singular nº 489/21.4SXLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 5), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi julgado o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., em …, nascido em ........1969, residente na ..., acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a) n.º 4 e 5, do Código Penal, e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alíneas d) e e), e 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, dos quais veio a ser absolvido por sentença datada de 09.01.2024.
Contra o arguido havia sido deduzido pedido de indemnização civil, do qual foi igualmente absolvido.
Inconformada com a decisão final, dela interpôs recurso a assistente EE, m.id. nos autos, pedindo que seja “revogada a sentença recorrida e, em consequência, se[ja] proferida nova sentença por meio da qual seja o arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo Art. 152, Art. 152, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5, de que vinha acusado, sendo sempre condenado na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica e na pena acessória de obrigação de contactos físicos com EE e sendo ao final, e consequentemente, julgado procedente também o pedido de indemnização civil”.
Extraiu da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“1.º - Em síntese, andou mal o douto Tribunal recorrido no julgamento de relevantes pontos da matéria de fato e, da mesma forma, ao entender que no caso em apreço não se demonstraram os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de violência doméstica.
2.º - A prova produzida impunha e impõe decisão distinta.
3.º - Antes de mais, quanto à factualidade dada como provada pelo Tribunal, concluímos que a análise conjugada da prova produzida, e particularmente das declarações da assistente, da testemunha DD, e das declarações do próprio arguido, conjugados ao outros elementos probatorios, nomeadamente o Auto de Notícia e as Fichas de Avaliação de Risco para Situações de Violência Doméstica, conduzia a conclusões distintas relativamente aos pontos 2, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 dos factos dados como “não provados” pelo Tribunal a quo.
4.º - Por essa razão, requer-se a reapreciação das gravações correspondentes às referidas declarações e depoimentos, que a seguir melhor se identifica:
• Declarações da assistente na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 04/12/2023, com início pelas 09h56 e termo pelas 11h03, conforme consignado em ata da audiência de julgamento;
• Depoimento da testemunha DD na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 04/12/2023, com início às 11h05 e termo pelas 11h53, conforme consignado em ata da audiência de julgamento;
• Declarações do arguido na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 18/12/2023, com início às 10h00 e termo pelas 10h53, conforme consignado em ata da audiência de julgamento;
5.º - Deve, assim, ser dado como provado o ponto 2 constante dos factos dados como “não provados” pela douta sentença. Isso porque se extrai das declarações da assistente, aos 10min e ss, que o arguido lhe disse, em 2018 quando a assistente expressou a intenção de se divorciar: “NUNCA VAIS SAIR DAQUI”, “NUNCA VAIS CONSEGUIR TER DINHEIRO PARA IR PARA OUTRO LADO” “TU VAIS SEMPRE DEPENDER DE MIM” “VAIS SER SEMPRE NINGUÉM”
6.º - Devem, da mesma forma, ser dado como provados os pontos 5 e 6 constantes dos factos dados como “não provados”, porquanto extrai-se das declarações do menor DD que o arguido proferiu diversas vezes, entre os anos de 2018 e 31 de agosto de 2021, não apenas a expressão SAI DAQUI; PUTA”, mas também as expressões “PUTA”, “VACA”, “VADIA”, “COBRA”, “SAI DAQUI”, “NÃO VALES NADA”, dentre outras expressões injuriosas que não se logrou concretamente apurar; ainda, que o arguido dizia ainda, em frente ao filho: “PEGA NO TEU FILHO E VAI-TE EMBORA”.
7.º- Deve ser dado como provado o constante do ponto 7 dos factos dados como “não provados”, não tendo as declarações do arguido merecido credibilidade por parte do Tribunal a quo e não tendo qualquer lógica a tese de que o arguido instalou câmaras de videovigilância escondidas no quarto onde dormiam a assistente e o menor DD sem ter o intuito de praticar o controlo e a vigilância sobre estes, sendo tal conclusão completamente avessa às regras da experiência comum e à lógica.
8.º - Deve ainda ser dado como provado o constante do ponto 11 dos factos dados como “não provados”, nomeadamente o facto de que o arguido “quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios”, o que o arguido quis e conseguiu fazer ao longo de vários anos, adotando um comportamento que cerceava a liberdade da assistente, e também, quis e conseguiu fazer em particular no dia 31 de agosto de 2021, quando o arguido tentou, com ofensas, ameaças e coação e agresão psíquica submeter a assistente aos seus desígnios em detrimento da vontade claramente expressa pela assistente.
9.º - Por fim, deve ser dado como integralmente provado todo o constante dos pontos 12, 13, 14, 15 e 16 dos factos dados como “não provados” pela douta sentença recorrida.
10.º - A prova produzida demonstra ainda o profundo impacto do tratamento ao qual a assistente foi submetida a um período de cerca de, pelo menos, quatro anos sobre sua honra, autoestima, consideração e dignidade.
11.º - Os factos praticados pelo arguido – cuja adição ao álcool foi considerada provada; que admitiu também fazer uso de medicação calmante; que, como relatou a assistente, quando consumia bebidas alcóolicas tornava-se numa pessoa que lhe causava medo e ao filho comum de ambos; que ao longo de anos proferia injúrias e ofensas constantes e cotidianas, com “acusações” proferidas à assistente que revelaram um comportamento controlador e cerceador da sua liberdade; que como parte de tal comportamento controlador instalou de forma não consentida várias câmara escondidas pela casa, inclusive em divisões da casa onde a assistente e o menor DD pernoitavam e faziam a sua higiene pessoal, em uma brutal e desumanizadora violação da sua dignidade e dos seus direitos; que praticou um acto comprovado de agressão física, perante o qual o filho à época com 11 anos precisou de intervir temendo pela integridade física da mãe; que, no dia 31 de agosto de 2021, quando a assistente comunicou que encontrara uma alternativa habitacional e pretendia avançar com o divórcio, estando embriagado e tendo se alterado e adotado uma postura muito agressiva, injuriou, ofendeu, ameaçou e tentou coagir a assistente, trancando a porta da casa e colocando-se na frente desta, de forma a que apenas após a chegada da PSP e acompanhada por esta a assistente e o filho comum de ambos deixaram o local – foram, principalmente quando considerados em seu conjunto e globalidade, aptos a cercear a liberdade e autodeterminação da assistente e a afetar a sua honra, consideração, autoestima e dignidade pessoal, e de forma ainda mais grave por se terem prolongado ao longo de um período de tempo significativo.
13.º - Tais factos foram todos praticados pelo arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito conseguido de ofender, humilhar, subjugar, coagir, afetar a liberdade e autodeterminação, a dignidade e o livre desenvolvimento da personalidade da assistente, e considerados globalmente constituem maus tratos psíquicos – aos quais se soma um episódio de agressão física que além de provocar dores e hematomas teve o efeito de causar temor pela integridade física e agravar a perturbação psicológica causada pelos demais comportamentos do arguido ao longo dos anos que se seguiram.
14.º - Ora, impunha-se, assim, no caso em apreço, decisão distinta, uma vez que se demonstrou que os factos praticados pelo arguido no período de 2018 a setembro de 2021 foram praticados livre, voluntária e conscientemente pelo arguido, com o objetivo conseguido de humilhar, ofender, injuriar, atingir a honra, consideração, autoestima e dignidade, integridade física e psíquica da assistente, e com o intuito de controlá-la, cercear a sua liberdade e autodeterminação e submetê-la aos desígnios do arguido, consubstanciando tais factos na prática de maus tratos físicos e psíquicos que afetam a dignidade pessoal da vítima que caracterizam o tipoo penal da violência doméstica, e que não são igualmente protegidos e tutelados por quaisquer outros tipo penais.
15.º - Em suma, portanto, entende a assistente, como suprarreferido, que devem dar-se como provados os factos constantes dos pontos 11 a 16 dos factos dados como “não provados” pela sentença, e que correspondem, em síntese, ao elemento subjetivo dos crimes de violência doméstica de que veio acusado o arguido. Por outro lado, entende também que os factos praticados pelo arguido consubstanciaram, no seu conjunto, maus tratos psíquicos, e eram aptos a afetar, como fizeram, a dignidade pessoal da assistente, razão pela qual encontra-se preenchido também o elemento objetivo do crime de violência doméstica.
16.º - Por todo o exposto, entende a assistente que da factulidade demonstrada extrai-se sem quaisquer dúvidas que se encontram preenchidos in casu os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica.
17.º - Os factos dados como provados, e os que deveriam ser dados como provados e não o foram, conjuntamente apreciados, integram a prática do crime de violência doméstica, sendo a dignidade pessoal da vítima e o livre desenvolvimento da sua personalidade os principais bens jurídicos atingidos pelos factos praticados pelo arguido.
18.º - Assim, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo por via dele revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo e sendo aquela substituída por nova decisão por meio da qual seja o arguido condenado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo Art. 152, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5, pelo qual veio acusado.
19.º - Reitera-se, ainda, o requerimento de que, sendo condenado o arguido, seja sempre condenado na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica, bem como na pena acessória de obrigação de proibição de contactos físicos com EE.
20.º - Por fim, deve ser igualmente julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pela assistente, o qual foi reduzido em sede de audência de julgamento ao valor de 2.100,00 euros no tocante aos danos patrimoniais, devendo ser o arguido, portanto, condenado no pagamento do valor de 2.100,00 euros por danos patrimoniais e no valor de 5.000,00 euros por danos não patrimoniais, perfazendo-se o montante total de 7.100,00 euros.
Termos em que, e nos demais que sejam doutamente supridos por V. Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser proferida nova sentença por meio da qual seja o arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo Art. 152, Art. 152, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5, de que vinha acusado, sendo sempre condenado na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica e na pena acessória de obrigação de contactos físicos com EE e sendo ao final, e consequentemente, julgado procedente também o pedido de indemnização civil formulado pela assistente, como é de inteira justiça.”
O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
O arguido AA apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso, e extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“A. Por sentença proferida em 09.01.2024 pelo Tribunal a quo, o arguido foi absolvido da prática dos crimes de que vinha acusado e de todos os demais pedidos, designadamente, o de condenação em pedido de indemnização civil a EE.
B. A douta sentença, julgou improcedente a acusação proferida pelo Ministério Público, não merece qualquer reparo, pois que a conclusão que retirou da análise da matéria dada como provada não poderia ter sido outra: a inexistência de matéria que permita dar como preenchido um dos pressupostos do elemento objectivo do tipo de crime.
C. Sendo certo que o arguido entenda que não foi feita prova de vários pontos da matéria dada como provada – os quais refuta em absoluto – o facto é que ainda assim não pode deixar de concluir com a conclusão que dela se retira, a saber: «não são susceptíveis de integrar o conceito de mau trato previsto no tipo de violência doméstica por não consubstanciar um mau trato físico e psíquico que atinja a integridade física (um episódio ocorrido em 2018 em que o arguido apertou os pulsos da esposa) e psíquica de EE e de DD e o desenvolvimento das respectivas personalidades, pondo em causa a dignidade daqueles enquanto pessoas (não resultou demonstrado um impacto destes episódios nestes termos), não assumindo gravidade que justifique a tutela no quadro do citado crime».
D. Ou seja: não foi feita prova de matéria que permita concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime pelo qual o arguido vinha acusado.
E. Razão pela qual a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo.”
Também o Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, extraindo a respetiva motivação as seguintes conclusões:
“A. Apesar da matéria de facto dada como provada entendeu o Tribunal que a mesma não integrava a prática de crime de violência doméstica mas, outrossim, eventuais crimes de ofensa à integridade física e injúria;
B. Sendo questão de apreciação jurídica sobre a gravidade dos factos provados e a da não verificação de uma gravidade intolerável para a pessoa humana e a sua dignidade, não poderia ser imputado o crime de violência doméstica;
C. Relativamente aos crimes de natureza semi-pública e particular inexistiu declaração de desejo de procedimento criminal – queixa, tendo sido o arguido absolvido “in totum”;
D. Face à factualidade dada como provada consideramos que a decisão não poderia ser outra.”
Neste Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, no sentido da procedência do recurso, com os seguintes fundamentos:
Dos vícios do art.º 410.º n.º 2, CPP
Antes, porém, julgamos identificar alguns vícios da decisão, também chamados vícios endógenos da sentença, cujo conhecimento pelo tribunal de recurso é oficioso, importando identificá-los.
Assim, o facto não provado n.º 12:
O arguido sabia que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD”,
só pode ser entendido como erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º 2, c), CPP).
Vejamos.
O arguido é um homem adulto, dotado de razão, entendimento e discernimento, que (segundo a sentença em crise) nem a adição alcoólica permite por em causa.
Ora, para um cidadão comum, como é o arguido, e para o comum dos mortais, o facto provado I):
O arguido, no período compreendido entre 2018 e data não concretamente apurada mas anterior a 1 de setembro de 2021, em datas indeterminadas e em número de vezes não concretamente apurado, disse para o filho DD: “ÉS BURRO, NÃO QUERES APRENDER NADA DAQUILO QUE QUERO ENSINAR” “VAIS SER IGUAL À TUA MÃE, ÉS GORDO” e depois ria-se.
…o facto provado I), dizia, representa gravíssima ofensa psíquica ao menor seu filho, que entre 2018 e 1 de Setembro de 2021, foi sucessivamente vexado, humilhado, gozado, ridicularizado por quem tinha o dever de o proteger, rodear de amor, respeito, carinho e ser a figura de referência que todo o filho anseia ter no seu pai.
Acresce que a coroar este comportamento de bullying do arguido sobre o seu filho, aquele ria-se, em acto de escárnio que não pode senão ser entendido como gravíssima moléstia psíquica sobre o seu filho.
Com tais agressões verbais, o arguido não só atinge a auto-estima do menor, como denigre junto dele a imagem da sua mãe, uma das figuras de maior referência na adolescência, por parte de qualquer jovem menor.
Portanto, o arguido tinha de saber que com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD.
Este grave erro de lógica e de coordenação coerente dos factos, que entorpece a sentença em causa, é agravado pelo facto não provado n.º 13, segundo o qual:
O arguido ao actuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD”.
De facto, os factos provados E), F), G), H), I), L), M), N), O), quando confrontados com o facto não provado n.º 13, gritam em insanável contradição (art.º 410.º n.º 2, b) CPP) entre si, pois que é evidente para qualquer leitor atento da sentença em crise, que na verdade o arguido quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD.
Aliás, nem sequer é necessário ir buscar o enquadramento fáctico acima referido; bastaria o confronto singelo do facto provado Q):
O arguido sabia que, com a conduta acima descrita em F) e G), molestava fisicamente EE lesando a sua saúde física, actuando de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta ere proibida e punida por lei,
com o facto não provado n.º 13:
O arguido ao actuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD
para identificar nova, flagrante e insanável contradição de preposições em que repousa a sentença.
Igualmente o facto não provado n.º 14:
O arguido sabia que tinha o dever de respeitar EE com quem mantinha uma relação de conjugalidade e que ao actuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação o que quis e logrou conseguir”.
…o facto não provado n.º 14, dizíamos, é uma impossibilidade causadora de novo erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º n.º 2, c), CPP), porque é do senso comum afirmar que o arguido sabia do dever de respeitar o seu cônjuge, sabia que com ela mantinha uma relação de conjugalidade e que ao actuar conforme descrito, sabia que violava os seus mais elementares direitos e que a humilhava.
Trata-se, portanto, de mais um facto não provado, este facto n.º 14, que é ilógico, inverosímil e impossível.
O mesmo afirmamos do facto não provado n.º 15, (com excepção, possivelmente, da sua parte final):
O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou, bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis actuar do modo supra descrito”.
Outro tanto se dirá do facto não provado n.º 16:
O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou , bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis actuar do modo supra descrito
Estes factos, sendo do conhecimento da vida e resultando da experiência comum e do juízo sensato e razoável que qualquer pessoa faz, jamais poderiam ser tidos como não provados, sem mais, sendo possível a sua sobrevivência no quadro desta sentença se sujeitos a nuances, do género, “provado apenas que…”, o que não foi o caso.
Como é sabido, o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo. 410.º, n.º 2, al. c), CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Assim, existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum. O erro notório na apreciação da prova terá de constar do teor da própria decisão de facto e não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito, o que se verifica no caso em apreço.
Por outro lado, certa passagem da motivação da matéria de facto, na sua ligação aos factos provados K), L), M) e N) parece encerrar novo vício da sentença, uma insanável contradição entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º n.º 2, b), CPP).
Na verdade, lendo os factos provados citados, dos mesmos se retira que o arguido coarctou o jus ambulandi da assistente e do filho, impedindo-os de sair de casa, situação apenas resolvida com a chegada a polícia.
A sentença não foi capaz de descortinar aqui mais um acto de violência, típico de um quadro de V.D. em que o agente agressor prende em casa quem o desafia na sua autoridade, avançando-se com uma pretensa justificação de que a assistente tinha em seu poder um jogo de chaves da casa, sugerindo que se a assistente quisesse, teria saído de casa.
Com esta justificação, a sentença não percebe os quadros de toxicidade, coacção e medo em que as vítimas vivem a V.D., não tendo retirado daqui a gravidade que esta situação encerra. Aliás, na fundamentação, a decisão em causa afirma que
Admitindo EE ter uma chave da porta da entrada da habitação (não tendo mencionado estar privada do seu uso no momento, pelo que poderia ter destrancado a porta e saído, não resultando assim provado o facto descrito em 11)), referiu que a polícia chegou à residência e o arguido abriu a porta, tendo mãe e filho saído do local acompanhados pela polícia, tendo ido residir para a habitação do irmão da depoente sita em ..., o que FF confirmou”.
Assim se evidenciando que ao dar como não provado o facto n.º 11:
O arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios”.
a sentença em crise cai em insanável contradição, porque na verdade o arguido quis coagir a assistente a assinar uma certa declaração e para isso trancou-a em casa, tanto que se afirma na fundamentação que (pág. 12).
Nesse instante, o arguido trancou à chave a porta da entrada da residência, colocando-se diante da mesma”.
Esta situação de sequestro só terminou com a chegada da polícia e só assim a assistente e o filho lograram fugir ao arguido.
Donde, é evidente que o arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios. Comprovando a coacção, a fundamentação descreve a situação de crise e drama em que assistente e filho viveram este momento e afirma (pág. 11) que
Como EE recusou assinar o referido documento, o arguido dirigiu-se-lhe apelidando-a de nomes, explicitando que a mesma só sairia de casa se assinasse o papel”.
É um quadro de coacção, ameaça e de violência que inviabiliza a afirmação de que o arguido não quis coagir a assistente (e o filho).
Dos erros de julgamento
Como se dissera, a assistente estrutura o seu recurso em trono da ideia da impugnação ampla da matéria de facto, expondo sucessivos erros de julgamento em que se enredou a sentença.
Inicia a assistente a sua crítica à sentença, demonstrando que foi mal julgado o facto não provado n.º 7, que se relaciona directamente com o facto provado J).
Acompanhamos a assistente na sua exposição de que tal facto não provado só resulta de erro óbvio de análise, sendo situação típica dos casos de V.D. a instalação de câmaras de recolha de imagem por parte do agressor, como forma de vigiar, manipular e coagir a vítima deste crime. Este quadro típico resulta provado pela leitura alternativa, complementar e completa da prova, que a assistente empenhadamente demonstra.
Assim, acompanhamos a assistente no seu recurso, demonstrativo de que os factos não provados n.ºs 2, 4 a 6, 11 a 16, devem ser dados como provados.
Do erro de direito
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de Maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3.º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade1.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge2 (ou de pessoa com quem o agente mantenha, ou tenha mantido, relação de namoro ou relação análoga à dos cônjuges, com ou sem coabitação, ou de progenitor de descendente comum) ou de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que coabite com o agressor (alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 152.º CP).
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão3, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
A sentença em crise identifica o bem jurídico protegido pela criminalização da V.D., tendo presente que os maus tratos podem ou não ser reiterados.
Porém, partindo da factualidade provada, a sentença em crise apenas reconhece no conjunto de factos provados, “episódios reprováveis ou mesmo desagradáveis”, mas não “susceptíveis de integrar o conceito de mau trato previsto no tipo de violência doméstica”.
Afinal, a sentença, reconduz os episódios desagradáveis a um episódio ocorrido em 2018, “em que o arguido apertou os pulsos da esposa” (pág. 17 da sentença).
Retira-se assim gravidade a este incidente, que aliás é o único considerado.
Exigir, como o faz a sentença sindicada, que o conceito de «maus tratos» apenas seja preenchido com condutas qualificadas como especialmente repetidas ou intensas, maxime cruéis e desumanas, é desequilibrar e fragilizar a protecção jurídica das vítimas deste flagelo sociológico.
Verifica-se que a sentença em causa, com notável economia de argumentos, olvida, num ambiente de ruptura da conjugalidade:
- o quadro de adição alcoólica do arguido;
- a ocultação da carta da segurança Social, para obviar ao divórcio;
- o episódio de 2018 que causou “fortes dores [e] um hematoma no braço” da vítima;
- que entre 2018 e 1 de Setembro de 2021, repetidamente, disse o arguido para a vítima “SAI DAQUI, PUTA”;
- que nesse mesmo período o arguido vilipendiou o menor seu filho com os epítetos “ÉS BURRO, NÃO QUERES APRENDER NADA DAQUILO QUE QUERO ENSINAR, VAIS SER IGUAL À TUA MÃE, ÉS GORDO”;
- agressões estas que coroava com “riso”;
- que sequestrou mãe e filho na própria casa, libertados apenas pela intervenção da polícia e que,
- (facto provado Q)) “O arguido sabia que, com a conduta acima descrita em F) e G), molestava fisicamente EE lesando a sua saúde física, actuando de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta ere proibida e punida por lei”.
Este quadro de grave, reiterado, prolongado no tempo, conjunto de maus tratos derrota por completo o incompreensível apagão de factos com que a sentença em causa analisa a questão do ponto de vista jurídico-penal.
A subsunção jurídica dos factos à lei fê-la a sentença em causa com um grau de selectividade destinado a branquear por completo a acção do agressor, por um lado, e por outro, não soube compreender como é ofensivo da dignidade de mãe e filho os maus tratos a que foram sujeitos.
A sentença em crise erra na subsunção jurídica dos factos, portanto.
Neste conspecto, a sentença viola os ditamos do n.º 2 do art.º 374.º CPP, incorrendo em nulidade (art.º 379.º n.º 1, a), CPP), por não considerar na solução jurídica propugnada o conjunto da matéria de facto provado.
Não se fica por aqui a crítica que se possa dirigir à sentença sindicada.
A sentença afirma que a circunstância de que um filho menor ser testemunha dos maus tratos (pág. 17 da sentença) não constitui delito autónomo, asserção aliás cada vez mais discutível e discutida na jurisprudência.
Trata-se aqui, s.m.o. de um erro de paralaxe.
No caso, não se trata de saber se o menor foi testemunha muda e passiva dos maus tratos que o arguido dirigiu ao seu entorno familiar.
Na verdade, o menor foi vítima directa dos maus tratos perpetrados pelo seu pai, vide o facto provado I), facto este que é exemplo acabado de arrastado e prolongado maus tratos e portanto, constituindo o autor destes actos como responsável por mais um crime de V.D.
Não soube a sentença perceber este facto, no que errou uma vez mais.
Em resumo, a sentença em causa é entidade impérvia, mercê dos vícios de que padece, por força dos erros de julgamento em que se enredou e dos erros de direito que comete.
Deve assim o recurso da assistente ter acolhimentos pela Relação de Lisboa.
Na certeza de que, a final, melhor se dirá.”
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo recorrente e recorrido apresentado respostas, a primeira declarando subscrever as considerações tecidas no parecer, e o segundo reiterando os fundamentos da resposta apresentada em 1ª instância.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
II. questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso4.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença absolutória proferida nos autos – as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- saber se a matéria de facto foi incorretamente julgada e/ou se se verificam os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal;
- saber se os factos provados são bastantes para integrar o crime de violência doméstica de que o arguido vinha acusado;
- caso se conclua afirmativamente, caberá determinar a pena respetiva, bem como conhecer do pedido de indemnização civil formulado pela assistente.
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III. Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto.
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
“II. DOS FACTOS
1. Factos Provados
Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos:
A) O arguido e EE (doravante EE) foram casados um com o outro, desde ... de ... de 2000, tendo fixado residência no início do casamento na ... e nos últimos três anos na ....
B) Desse casamento têm um filho, GG, nascido em ... de ... de 2007.
C) O arguido tem problemas de adição de álcool o que motivou desentendimentos entre o casal, que deixou de partilhar cama desde pelo menos 2016.
D) Desde 2018 que EE manifestou ao arguido o seu desejo de se divorciar, facto não aceite pelo arguido.
E) EE chegou a pedir ajuda à Segurança Social para se autonomizar, mas o arguido ficou-lhe com a carta remetida por esta entidade em exposta ao seu pedido e não lha entregou, escondendo-a.
F) No dia 4 de dezembro de 2018, o arguido começou a discutir com EE aos gritos por causa de uma questão escolar do filho comum e agarrou-a pelos pulsos com força, causando-lhe dor, tendo esta gritado pelo filho DD, que se encontrava no quarto, para pedir ajuda, o que este fez metendo-se no meio dos dois.
G) Causou por esta forma fortes dores um hematoma no braço de EE.
H) O arguido no período compreendido entre 2018 e 1 de setembro de 2021, em datas indeterminadas, em várias ocasiões, disse para EE: “SAI DAQUI, PUTA”.
I) O arguido, no período compreendido entre 2018 e data não concretamente apurada mas anterior a 1 de setembro de 2021, em datas indeterminadas e em número de vezes não concretamente apurado, disse para o filho DD: “ÉS BURRO, NÃO QUERES APRENDER NADA DAQUILO QUE QUERO ENSINAR” “VAIS SER IGUAL À TUA MÃE, ÉS GORDO” e depois ria-se.
J) O arguido instalou câmaras de filmar escondidas pela casa, concretamente na sala e no quarto onde EE dormia e no hall de entrada, no quarto do filho atrás dos brinquedos com propósito não concretamente apurado.
K) No dia 31 de agosto de 2021, por volta das 19H30, no interior da residência comum sita na ..., o arguido, quando EE tentou iniciar uma conversa sobre o divórcio que pretendia, reagiu proferindo palavras não concretamente apuradas.
L) No decorrer desta discussão, o arguido dirigiu-se para a porta de casa e fechou-a à chave para que EE e o filho DD não pudessem sair, tendo porém EE as chaves da habitação.
M) O filho DD assistiu à discussão.
N) EE ligou para a Polícia de Segurança Pública a pedir ajuda e foi na presença dos agentes policiais que aquela e o filho saíram de casa.
O) O arguido sabia que praticava os factos supra descritos na casa de morada comum do casal e na presença do filho menor do casal.
P) Para custear despesas não concretamente apuradas a que teve de fazer face com a mudança de casa, EE pediu emprestado à sua mãe o montante de €600, à sua amiga HH a quantia de €500, tendo ainda recorrido à utilização de quantias monetárias que pertenciam à poupança do filho no valor de €1.100, o que não restituiu até ao momento.
Q) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita em F) e G), molestava fisicamente EE lesando a sua saúde física, actuando de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta ere proibida e punida por lei.
R) O grau de risco atribuído à situação em causa nos autos é médio.
S) O arguido é consultor na área de sistemas de informação, encontrando-se actualmente desempregado não auferindo qualquer subsídio.
T) O arguido ficou desempregado em Maio de 2023, tendo recebido um montante indemnizatório na ocasião o qual, com o apoio de amigos, suporta as despesas pessoais.
U) O arguido é divorciado e não tem companheira.
V) O arguido tem um filho o qual reside com a respectiva progenitora, suportando o arguido, mensalmente, a quantia de €262,50 a título de pensão, que paga com recurso à indemnização que auferiu pelo despedimento.
W) O arguido reside sozinho em habitação que lhe foi cedida, não suportando qualquer quantia a esse título.
X) O arguido é bacharel em ….
Y) O arguido não tem averbada qualquer condenação ao respectivo certificado do registo criminal.
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2. Factos não provados
1) Que o casal tenha deixado de e de manter relações sexuais desde 2015.
2) Que no momento referido em D) o arguido dissesse a EE que “ela não tinha para onde ir e que nunca conseguiria conseguir ter uma casa”.
3) Que no momento descrito em F) o arguido também tenha agarrado pelos braços de EE.
4) Que no momento descrito em H) o arguido tenha dito “FALSA, NÃO VALES NADA, SAI DESTA CASA VAI À TUA VIDA”.
5) O arguido, no período compreendido entre 2018 e 1 de setembro de 2021 diariamente e quando EE o chamava a atenção por estar a beber bebidas alcoólicas, proferia para ela as expressões: “VACA, VADIA, COBRA, BURRA “.
6) Que no momento descrito em I) o arguido também dissesse “NUNCA VAIS PASSAR DE ANO, SAI DAQUI TU E A TUA MÃE TEM QUE SAIR, JUNTAM-SE OS DOIS E SAEM DAQUI” VAIS SER UM MISERÁVEL NA TUA VIDA”.
7) Que o arguido tenha actuado do modo descrito em J) para controlar o que EE e o filho faziam na sua ausência.
8) Que no momento descrito em K) o arguido tenha dirigido a EE as expressões: “ÉS UMA PUTA, ÉS UMA RELES”.
9) No decurso da discussão o arguido disse para EE que lhe iria tirar o filho assim que tivesse oportunidade de o fazer.
10) Que EE tenha pedido ao seu irmão a quantia de €500.
11) O arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
12) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD.
13) O arguido ao actuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD.
14) O arguido sabia que tinha o dever de respeitar EE com quem mantinha uma relação de conjugalidade e que ao actuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação o que quis e logrou conseguir.
15) O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou , bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis actuar do modo supra descrito.
16) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiu de as praticar, atuando ainda com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo aos ofendidos, bem sabendo que a sua conduta é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem qualquer relevância para a boa decisão da causa.
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3. Motivação da matéria de facto
O tribunal estribou a sua convicção, no que concerne aos factos pelos quais o arguido vinha acusado, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pelo arguido, pela assistente (que foi casada com o arguido de ... de ... de 2000 até 11 de Maio de 2022) e pelas testemunhas DD (filho do arguido), II (casada com JJ, irmão do arguido), FF (irmão de EE), KK (mãe de EE), LL (amiga de EE) e HH (amiga de EE desde a adolescência) em audiência de discussão e julgamento.
A prova da factualidade descrita em A) e B) resultou demonstrada com base no cotejo dos assentos de fls. 25 e 26 com as declarações produzidas pelo arguido, pela assistente e por DD em audiência de discussão e julgamento, que a confirmaram.
O arguido negou o facto descrito em C), precisando que não considera uma adição o seu consumo pontual e em contexto social de álcool.
Por contraponto com a versão do arguido, DD referiu ter chegado a ver o pai a ingerir bebidas alcoólicas e com o rosto vermelho, tendo EE relatado, usando de firmeza, que o arguido tomava comprimidos xanax e outros juntamente com bebidas alcoólicas, sendo que no período da pandemia iniciava a ingestão de bebidas alcoólicas pelas 10H e mantinha-a durante o dia.
A assistente referiu que o arguido iniciou o consumo excessivo de bebidas alcoólicas em 2014 ou 2016 aquando de um período em que ficou desempregado, tendo aumentado o consumo durante a pandemia.
Explicitou que pelo menos desde o ano de 2016 que o casal deixou de partilhar leito e intimidade, reduzindo a frequência de relacionamento sexual que mantinham, pelo que o facto descrito em 1) não resultou demonstrado.
O arguido admitiu que a esposa lhe transmitiu pretender divorciar-se, com o que o mesmo concordou. Explicitou que o divórcio apenas não ocorreu nessa altura por ausência de condições financeiras de ambos para suportarem as despesas referentes a uma casa para cada um.
Por seu turno, EE confirmou, usando de isenção, o facto descrito em D), não mencionando a expressão indicada em 2), corroborando que apenas por o seu salário não lhe permitir suportar as despesas de uma habitação para si e para o seu filho é que não avançou com a sua decisão de imediato.
A testemunha II referiu ao tribunal, usando de isenção, que numa conversa telefónica que manteve com o arguido o mesmo apresentava uma voz estranha sem que a mesma lograsse identificar o que se passava, tendo comentado com o mesmo que a voz parecia ser a de uma “pessoa bêbeda” (sic).
Sobre o facto descrito em E), o arguido admitiu ter recepcionado a carta da Segurança Social dirigida à esposa, abrindo-a, tendo então tido conhecimento que EE pedira apoio judiciário. Negou porém ter escondido a carta, explicitando que a digitalizou e a remeteu para EE logo no momento, acrescentando que assim procedeu por ser uma prática do casal segundo a qual quem recebia a correspondência abria-a e remetia-a para o outro sem aguardar por lha entregar em mão.
Por contraponto com a versão apresentada pelo arguido, EE relatou ao tribunal que tendo tido conhecimento da possibilidade de pedir apoio judiciário para interpor acção de divórcio, justificando que estava crente que o arguido não concordaria com o mesmo, solicitou, em Julho de 2021, apoio judiciário junto da Segurança Social.
A certa altura recebeu uma carta da Segurança Social informando a depoente que se não respondesse ao solicitado que o apoio judiciário seria indeferido. Contactando telefonicamente a Segurança Social, teve então conhecimento que fora remetida, para a sua residência, uma missiva anterior.
Confrontando o arguido, EE tomou então conhecimento que o mesmo recepcionara a carta inicial da Segurança Social e não lha tinha entregue.
Em face do depoimento verosímil e isento produzido pela assistente, resultou demonstrado o facto descrito em E).
A factualidade descrita em F), G) e Q) foi negada pelo arguido. Por sua vez, EE relatou ao tribunal que na data mencionada na acusação, à noite, o arguido regressou a casa pelas 22H, após ter estado a assistir a uma partida de futebol.
Entrando em casa e apresentando-se embriagado, dirigiu-se ao quarto de DD (onde este se encontrava) tendo trocado palavras com o filho a respeito de trabalhos escolares.
Encontrando-se EE na sala da habitação e escutando a discussão entre pai e filho, a assistente interveio dizendo, a partir da divisão onde se encontrava, que não valia a pena estar a chatear o DD pois o mesmo já fizera os trabalhos escolares desse dia e poderiam os outros ficar para o dia seguinte.
Acto contínuo, o arguido sai do quarto do filho e, dirigindo-se à sala, disse a EE, em tom elevado, “porque tu é que sabes tudo?!”, não tendo a depoente respondido.
Após, EE levantou-se do sofá e, ao dirigir-se para o seu quarto, passa pelo arguido que, inclinando-se sobre a mesma, coloca o seu rosto muito próximo do da assistente e diz-lhe “vá, diz o que é que queres fazer?” (porquanto a depoente não lhe havia respondido anteriormente), ao que EE lhe responde “toca-me AA, toca-me”.
Ao dirigir-se para o quarto o arguido segura, com as suas mãos, os pulsos de EE e conduziu-a até ao sofá, negando a depoente que o marido a tenha empurrado (não tendo resultado demonstrado o facto descrito em 3)).
Gritando por socorro para o filho, o mesmo dirigiu-se até à sala e interpôs-se entre o casal.
O arguido negou a demais factualidade vertida na acusação, admitindo apenas ter instalado uma câmara no escritório da habitação devido a um roubo que ocorreu, mencionando não o ter feito noutras divisões da residência, não tendo explicação para EE e DD terem referido terem encontrado câmaras noutras divisões concretamente nas mencionadas em J), não se tendo apurado o motivo para essa instalação, tendo a assistente deitado as câmaras para o lixo, pelo que os factos descritos em 7) não resultaram demonstrados.
Por sua vez, EE, prestando um depoimento espontâneo e isento confirmou a factualidade elencada em H), no que foi corroborada por DD que mencionou ter ouvido o pai a dirigir à mãe as referidas expressões encontrando-se embriagado, não tendo as testemunhas mencionado o teor de 4) pelo que, na ausência de outros meios de prova, não resultou demonstrado o referido facto.
EE referiu ter alertado o arguido, em diversas ocasiões, para as questões do consumo de bebidas alcoólicas, negando que, nessa ocasião, o mesmo se lhe dirigisse apelidando-a conforme descrito em 5) pelo que esta factualidade não resultou provada.
A factualidade descrita em I) foi confirmada por EE e por DD, não tendo mencionado o referido em 6), sendo que o arguido mencionou que era a própria assistente quem “barrava” (sic) a relação do arguido com o filho, versão que não se mostra condizente com as declarações de EE e de DD, o qual mencionou ter ideia de vir a ser advogado, tendo alterado a mesma para a profissão de psicólogo, sentindo-se triste e desapontado quando o pai se lhe dirigia nos termos que referiu já que as suas más classificações eram apenas a Matemática, tendo boas notas escolares noutras disciplinas, pelo que o facto descrito em 15) e 16) não resultou provado.
A factualidade descrita em K) a M) resultou demonstrada com base no cotejo do auto de notícia de fls. 2 conjugado com as declarações produzidas pelo arguido e pelas testemunhas EE e DD em audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, o arguido relatou ao tribunal que na data e hora mencionadas na acusação, a esposa informou-o de que iria abandonar a residência do casal no dia seguinte, o que lhe causou surpresa porquanto uma semana antes dos factos haviam conversado sobre encontrarem uma forma de se divorciarem.
Nesse momento, o arguido, que reconheceu concordar com a decisão de EE, elaborou um documento para que a mesma assinasse porquanto pretendia ficar com um documento na sua posse que demonstrasse que EE e DD abandonavam a residência nessa noite com o consentimento do arguido.
Questionado sobre a necessidade de assinatura do referido documento quando o próprio concordava na saída da esposa e do filho de casa, o arguido respondeu que “foi por ingenuidade que elaborou o documento” (sic), que era algo para usar mais tarde se fosse necessário. Perguntado para que efeito é que iria precisar de um documento com o teor que mencionou, respondeu que foi “um proforma” (sic), acrescentando que “uma mãe não deve abandonar a casa com o filho” (sic).
Confrontado com as suas declarações sobre estar de acordo com a saída e, por isso, qual seria o abandono da residência que estava a acontecer, o arguido respondeu que “tem a ver com a sua profissão de ter tudo documentado” (sic), pretendendo ter um registo de que aquilo se tinha passado, o que não se mostra verosímil considerando que estando de acordo com a decisão da esposa (atendendo às suas declarações) poderia, tão simplesmente, nada fazer para impedir a sair de casa com o filho.
Admitiu que EE não assinou o documento que lhe apresentou e, perante essa recusa, o arguido disse-lhe, então, que contactasse a polícia para se deslocar ao local, o que EE fez, tendo-se deslocado ao local agentes da Polícia de Segurança Pública.
Negou ter dirigido à esposa as expressões vertidas na acusação e ter actuado conforme mencionado, explicitando que EE e DD não se dirigiram para a porta para saírem da residência.
Questionado, admitiu que DD se entrepôs entre si e a esposa porquanto esta última estava a “reagir de forma intensa” (sic), atirando o arguido contra a parede que, para se defender, tentava agarrar EE, tendo o filho de ambos actuado com o objectivo de parar com aquela situação entre o casal.
Não logrou, porém, o arguido apresentar uma explicação para EE só ter saído de casa após a chegada da Polícia de Segurança Pública.
Por contraponto com a versão apresentada pelo arguido, EE relatou ao tribunal que no dia 31 de Agosto de 2021 teve conhecimento que tinha uma casa para onde ir residir com o filho, apenas podendo concretizar a mudança no dia 1 de Setembro.
Decidiu, então, aproveitar que o filho não se encontrava em casa para conversar com o arguido sobre a saída da habitação.
Usando de firmeza, referiu que o arguido apresentava-se um pouco embriagado, tendo-lhe EE transmitido que lograra encontrar uma habitação pretendendo o divórcio, tendo o arguido reagido proferido palavras distintas das indicadas em 8), pelo que as mesmas não resultaram demonstradas.
Acto contínuo, o arguido telefonou para a sua mãe, em cuja habitação se encontrava DD, dizendo que EE pedira o divórcio e que o arguido iria buscar o filho. Como a avó paterna de DD tivesse respondido que o mesmo ainda não jantara, EE disse que a própria iria buscar o filho, o que fez, tendo-se deslocado sozinha até à residência onde estava DD, regressando ambos a casa.
Ao entrar na habitação, EE verificou que o marido se apresentava muito alterado e, na presença de DD, o arguido apresentou à depoente, para que a mesma assinasse, um documento no qual estava escrito que EE iria levar o filho sem o consentimento do arguido.
Como EE recusou assinar o referido documento, o arguido dirigiu-se-lhe apelidando-a de nomes, explicitando que a mesma só sairia de casa se assinasse o papel.
Nesse momento, a assistente logrou trocar mensagens com o advogado atribuído pela Segurança Social que a aconselhou a não assinar qualquer documento, mantendo o arguido que a mesma apenas poderia sair de casa mediante a assinatura do documento.
Após ter tomado a sua refeição de jantar, DD dirigiu-se para o seu quarto, mantendo-se o arguido e EE na sala, onde gritavam.
A dado momento o arguido dirigiu-se até ao quarto do filho, com quem conversou sem a presença de EE, pelo que a mesma desconhece o teor da conversa.
Regressando para junto de si, que se mantinha na sala, o arguido continua a insistir, gritando, que a mesma teria que assinar o documento, o que a mesma recusou, tendo-se dirigido com o filho para o seu quarto, dizendo o arguido as palavras que indicou o que a depoente escutou por a porta do seu quarto estar aberta.
A dado momento, DD pediu a EE que contactasse a polícia, o que a mesma fez, tendo comunicado ao arguido que assim procedera e que a própria e o filho iriam sair da habitação, dirigindo-se para a entrada do imóvel, sendo ideia da depoente posteriormente regressar à habitação para levar os pertences.
Nesse instante, o arguido trancou à chave a porta da entrada da residência, colocando-se diante da mesma.
AdmitindoEE ter uma chave da porta da entrada da habitação (não tendo mencionado estar privada do seu uso no momento, pelo que poderia ter destrancado a porta e saído, não resultando assim provado o facto descrito em 11)), referiu que a polícia chegou à residência e o arguido abriu a porta, tendo mãe e filho saído do local acompanhados pela polícia, tendo ido residir para a habitação do irmão da depoente sita em ..., o que FF confirmou.
EE não mencionou o facto descrito em 9) pelo que o mesmo não resultou provado.
Em consonância com o depoimento prestado por EE, DD relatou ao tribunal que na data encontrava-se na residência da avó paterna quando a avó recebeu um telefonema do arguido ao qual o depoente não assistiu.
Após, a avó transmitiu-lhe que a mãe viria buscá-lo, o que ocorreu pela hora do jantar e sem que o depoente já tivesse tomado essa refeição.
O depoente foi com a mãe para a residência da família, em cujo interior se encontrava o arguido, tendo-se DD dirigido para o seu quarto, a partir do qual escutava os berros do arguido a dirigir-se a EE apelidando-a de nomes, mantendo-se a mãe a conversar em tom baixo pelo que não percebia o que era dito.
Após, EE chamou o depoente para ir jantar, tendo tomado a refeição com a mãe, após o que retornou ao seu quarto, ficando o casal a conversar noutra divisão da casa.
Decorrido um período de tempo, que DD situou em cerca de uma hora, o pai entrou no seu quarto dizendo que o mesmo iria ficar a residir com a mãe porquanto o casal se iria divorciar, sendo melhor para o depoente ficar com EE, ausentando-se o arguido do quarto de DD após esta conversa.
Alguns instantes volvidos, os pais do depoente entraram no seu quarto questionando-o se queria sair de casa naquele dia, tendo o arguido apresentado a EE uns papéis para a mesma assinar, o que EE recusou, gerando-se uma discussão.
Nesse momento, pretendendo mãe e filho sair da habitação, o arguido trancou à chave a porta da entrada da residência, colocando-se diante da mesma.
Questionado, DD começou por referir que a mãe não tinha as chaves de casa, acabando por admitir que cada residente tinha o seu próprio molhe de chaves (o que o arguido e EE confirmaram), não tendo memória de ter visto se alguém mexeu nas chaves uns dos outros.
Como o arguido se apresentasse muito nervoso, ficando DD com medo, pediu à mãe que chamasse a polícia, o que a mesma fez, tendo-se as autoridades deslocado ao local, tendo mãe e filho saído de casa nessa ocasião indo residir com o tio materno do depoente.
EE relatou ao tribunal o modo como se sentiu e o impacto que os factos tiveram em si, tendo MM confirmou ter acompanhado a amiga e três agentes à habitação de EE, no dia seguinte ao da saída da habitação, para que a mesma recolhesse pertences seus, encontrando-se o arguido no seu interior e apresentando-se embriagado.
O facto descrito em P) foi confirmado por EE, no que foi corroborada por FF, KK e HH, sendo certo que o seu irmão não considerou o valor de €500 que entregou à assistente como um empréstimo mas antes uma doação, pelo que o facto descrito em 10) não resultou demonstrado.
Do cotejo da prova produzida, verificamos que o arguido negou a autoria dos factos em causa nos autos e o impacto que o seu consumo de bebidas alcoólicas teve na relação conjugal, relatando a convivência conjugal em termos opostos aos relatos de EE e DD, sendo certo que da prova produzida resultou demonstrada a factualidade elencada em A) a Q), não a descrita em 1) a 16).
O facto descrito em R) resultou demonstrado com base no teor do relatório de avaliação de risco de fls. 380 e seguintes e 401 e seguintes.
No que tange às condições sócio-económicas do arguido o tribunal tomou em consideração as declarações por si prestadas por se afigurarem verosímeis, atendendo à forma espontânea e clara com que foram produzidas.
No que concerne aos antecedentes criminais, foi considerado o certificado do registo criminal junto aos autos.
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III. DO DIREITO
1. Enquadramento jurídico-penal
O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a) n.º 4 e 5, do Código Penal, e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alíneas d) e e), e 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.
Estatui o citado normativo que “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
O tipo objectivo de ilícito é constituído pelos seguintes elementos:
a) Infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição normativa
Os maus tratos físicos correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples, isto é, traduzem-se na ofensa no corpo de outrem (“mau trato através do qual o ofendido (…) é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”5).
Os maus tratos psíquicos correspondem a humilhações, provocações, molestações, ameaças, podendo consubstanciar os crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúria.
Não se exige a reiteração do mau trato, podendo este traduzir-se num acto isolado que seja de tal modo intenso que preencha o tipo sub judice.
Efectivamente, na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na génese da revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, refere-se que a “A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado” acrescentando-se que “Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.”.
Consagrou-se pois, expressamente, o entendimento jurisprudencial segundo o qual o preenchimento do tipo não exige, necessariamente, a reiteração da conduta criminosa, bastando-se com uma única conduta, desde que esta seja especialmente grave (cfr. neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 2008, Processo n.º 07P3861, disponível em www.dgsi.pt).
O crime de violência doméstica pode pois ser de execução instantânea (e não duradoura) desde que os actos perpetrados, quer pela respectiva gravidade quer pela profundidade das consequências para o bem jurídico tutelado caiam sob a alçada do conceito de mau trato.
Conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Março de 2010, Processo n.º 345/07.9PAENT.E1, disponível em www.dgsi.pt, “1. Com a alteração efectuada ao artigo 152.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, não se visou subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143.º do Código Penal (ofensa à integridade física simples). 2. A actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.”.
Verifica-se, por conseguinte, uma miríade de hipóteses de concurso aparente entre o crime de violência doméstica e os de ofensa à integridade física, ameaça, coacção, sequestro e crimes contra a honra, que o legislador não eliminou suscitando-se o problema de saber qual o critério a atender para a destrinça entre enquadrar os factos perpetrados num ou noutros tipos.
É, pois, na identificação do bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica que encontraremos o critério diferenciador do que seja mau trato físico e psíquico enquadrável em sede do tipo previsto no artigo 152.º, do Código Penal.
Os bens jurídicos tutelados por esta norma penal incriminadora são a integridade física e psíquica, a liberdade, auto-determinação sexual e a honra de pessoa que com o arguido mantenha a relação familiar, parental ou de dependência prevista no tipo (atenta a natureza de crime específico impróprio deste ilícito).
Efectivamente, o “fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo”6.
Este bem jurídico encerra pois os direitos fundamentais à integridade pessoal (artigo 25.º, da Constituição da República Portuguesa) e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, da Constituição da República Portuguesa), ambos emanações do princípio da dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, “a degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico-constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do até aqui designado “concurso legal”, com ele se relacionam”7.
Assim, determinadas condutas podem enquadrar situações de violência emocional mas não maus tratos físicos ou psíquicos que mereçam a tutela do Direito Penal, apenas sendo de abranger neste conceito as lesões graves que permitam considerar a pessoa ofendida como recebendo um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do âmbito conjugal.
Nos presentes autos resultou demonstrada a factualidade elencada em A) a O), de cuja análise resultam episódios que, sendo reprováveis ou mesmo desagradáveis entre pessoas que mantêm uma relação marital, sendo as palavras utilizadas pelo arguido para com o filho desadequadas e reprováveis em termos de relação parental, tais episódios não são susceptíveis de integrar o conceito de mau trato previsto no tipo de violência doméstica por não consubstanciar um mau trato físico e psíquico que atinja a integridade física (um episódio ocorrido em 2018 em que o arguido apertou os pulsos da esposa) e psíquica de EE e de DD e o desenvolvimento das respectivas personalidades, pondo em causa a dignidade daqueles enquanto pessoas (não resultou demonstrado um impacto destes episódios nestes termos), não assumindo gravidade que justifique a tutela no quadro do citado crime.
Refira-se que a circunstância de um filho menor presenciar factos perpetrados pelo pai na pessoa da mãe constituem uma agravação do delito perpetrado na pessoa da mãe (cfr. artigo 152.º, n.º2, alínea a), do Código Penal) e não um delito autónomo de violência doméstica na pessoa do filho pelo presenciar desses factos.
Conclui-se, pois, pelo não preenchimento deste elemento objectivo do tipo do crime de violência doméstica, resultando prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da punição.
Impõe-se, pois, a absolvição do arguido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a) n.º 4 e 5, do Código Penal, e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alíneas d) e e), e 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, pelos quais vinha acusado.
Dos crimes de ofensa à integridade física e de Injúria
In casu, e considerando a factualidade demonstrada quanto a EE e a DD, importa atender a que alguns factos poderão ser susceptíveis de, autonomamente, serem subsumíveis ao tipo de crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1, do Código Penal (não se considerando, pela forma como os mesmos foram perpetrados, que integrem o conceito de especial censurabilidade ou perversidade que os integrem no disposto nos artigos 145.º, n.º1, alínea a) e n.º2, e 132.º, n.º2, alínea b), do Código Penal) e de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, do Código Penal.
Todavia, atenta a natureza semi-pública do referido artigo 143.º, n.º1, do Código Penal, a data em que os factos ocorreram (2018), sempre tal queixa (refira-se que a fls. 4 consta a menção a que inexistem outras ocorrências perpetradas pelo arguido, resultando do teor de fls. 14 a menção a que a depoente não apresentou queixa por estes factos) teria caducado face ao disposto no artigo 115.º, n.º1, do Código Penal.
Também relativamente ao crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º1, do Código Penal, importava a apresentação de queixa e a dedução de acusação particular quanto aos factos reportados quer a EE quer a DD (este, sendo menor, representado pela mãe que teria ainda esta que se constituir assistente em representação do filho).
Consequentemente, não pode o tribunal conhecer de tais ilícitos.
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2. Da Indemnização Civil
A assistente EE acompanhou a acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com fundamento nos factos descritos na acusação, peticionando a condenação daquele no pagamento da quantia de €7.700, sendo €2.700 a título de danos patrimoniais e €5.000 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da notificação e até efectivo e integral pagamento.
Estatui o artigo 21.º, n.º2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que “2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
Determina o artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, que “1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.”.
Considerando que nos presentes autos foi deduzido pedido de indemnização civil pela assistente não se impõe o arbitramento de indemnização.
Importa, isso sim, apreciar da verificação in casu dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, previstos no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável ex vi artigo 129.º, do Código Penal.
Estatui este normativo que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
No caso dos autos não existe um facto voluntário (acção dominada ou dominável pela vontade) do arguido, ilícito, culposo (uma vez que a conduta em questão é merecedora de um juízo de reprovação e censurabilidade por parte da nossa ordem jurídica), causador de dano (perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo Direito) e existindo nexo de causalidade entre o dano verificado e a conduta do arguido (artigo 563.º, do Código Civil).
Acresce que o empréstimo foi contraído pela assistente junto das pessoas mencionadas em P), não estando concretizadas as despesas em concreto que são reclamadas.
Impõe-se, pois, a absolvição do arguido do pedido de indemnização civil deduzido.
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3. Da Indemnização Civil
Estatui o artigo 21.º, n.º2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que “2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
Determina o artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, que “1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.”.
Tem sido entendimento sufragado unanimemente pela nossa jurisprudência8 que existe a obrigatoriedade de arbitramento de indemnização à vítima excepto se a própria a tanto se opuser expressamente, o que não se verificou in casu.
Nos presentes autos, considerando que foi deduzido pedido de indemnização civil pela assistente e bem assim em face da decisão de absolvição do arguido pelos crimes de violência doméstica de que vinha acusado, não se arbitra o pagamento de qualquer indemnização.”
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IV. Fundamentação
iv.1. do recurso em matéria de facto
Nas conclusões apresentadas insurge-se a recorrente contra a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, argumentando ter ocorrido erro de julgamento, por inadequada avaliação da prova produzida em julgamento, nomeadamente, no que se refere às declarações prestadas pela assistente e pela testemunha DD.
Reclama, face a esse seu entendimento, que se considerem provados os pontos 2, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 dos factos dados como “não provados”.
Por seu turno, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, identificou a existência dos vícios de erro notório na apreciação da prova (reportado aos factos considerados não provados sob os nos 12, 13, 14, 15 e 16) e de contradição insanável (entre os factos provados E), F), G), H), I), L), M), N), O), quando confrontados com o facto não provado nº 13; e entre os factos provados K), L), M) e N) e o facto não provado nº 11, e a fundamentação da decisão de facto).
Cumpre apreciar.
Um recurso é o mecanismo de reapreciação de uma decisão, configurando-se como um remédio jurídico, destinado à correção de erros que se patenteiem nas decisões submetidas ao escrutínio do tribunal de recurso.
As questões relativas à matéria de facto podem ser sindicadas essencialmente por duas vias:
i. Por recurso à chamada revista alargada, que se reconduz à invocação de ocorrência de qualquer um dos vícios consignados no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal;
ii. Ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo código.
Trataremos separadamente de cada um destes aspetos.
iv.1.1. dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal
Muito embora a recorrente EE não tenha invocado a verificação de qualquer dos vícios contemplados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, como acima se referiu, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, na intervenção a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, identificou a existência dos vícios de erro notório na apreciação da prova (reportado aos factos considerados não provados sob os nos 12, 13, 14, 15 e 16) e de contradição insanável (entre os factos provados E), F), G), H), I), L), M), N), O), quando confrontados com o facto não provado nº 13; e entre os factos provados K), L), M) e N) e o facto não provado nº 11, e a fundamentação da decisão de facto) – ou seja, os vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do citado artigo 410º.
Considerando a oficiosidade9 do conhecimento de tais vícios, importa examinar a questão suscitada pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto.
Comecemos pelos conceitos.
O artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal prevê que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. (sublinhado nosso)
A indagação de tais vícios, por parte do tribunal ad quem, é uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito, já que mais nenhuma outra prova é necessária para que se possa concluir pela eventual existência ou não dos mesmos. Mais não constitui tal tarefa de indagação do que a aplicação da norma adjetiva em causa às circunstâncias concretas da decisão em recurso. Como anota Pereira Madeira10, “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.”
Assim, a apreciação de tais questões deve incidir, exclusivamente, sobre o texto da decisão recorrida (ou seja, sem recurso a qualquer outro elemento externo – declarações, depoimentos ou documentos do processo), por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão só ocorre quando se verificar incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Na clara lição de Simas Santos e Leal-Henriques11: «há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente».
Como se esclarece no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.200712: “A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos.”
Verificar-se-á igualmente o vício previsto na alínea b), do nº 2 do artigo 410º quando há contradição entre os vários pontos da matéria de facto dada como provada; entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada; em sede de fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão13.
Porém, o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão não se verifica quando o resultado a que o juiz chegou na sentença advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu corresponder aos factos provados. Se o tribunal a quo entende que os factos provados não corporizam todos os elementos do tipo legal de crime imputado ao agente, não está em causa uma questão de facto – contradição insanável da fundamentação - mas sim uma questão de direito: erro de subsunção dos factos ao direito14.
No que se refere ao erro notório na apreciação da prova, este abrange, naturalmente, as hipótese de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta; quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável; quando se dá como assente algo patentemente errado, que não podia ter acontecido; ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma conclusão arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida15; ou, finalmente, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência, as leges artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial16.
Porém, basta, para assegurar a notoriedade do erro, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – e ainda que, para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras de experiência17. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.
Citando ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 29.03.201118, «O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).»
O erro notório na apreciação da prova “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”19
Como acima se referiu, o Exmo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação sugere a verificação de erro notório na apreciação da prova reportado aos factos considerados não provados sob os nos 12, 13, 14, 15 e 16, e de contradição insanável entre os factos provados E), F), G), H), I), L), M), N), O), quando confrontados com o facto não provado nº 13, e entre os factos provados K), L), M) e N) e o facto não provado nº 11, e, bem assim, a fundamentação da decisão de facto.
E tem razão.
Com efeito, o Tribunal a quo deu como provado que:
“E) EE chegou a pedir ajuda à Segurança Social para se autonomizar, mas o arguido ficou-lhe com a carta remetida por esta entidade em [res]posta ao seu pedido e não lha entregou, escondendo-a.
F) No dia 4 de dezembro de 2018, o arguido começou a discutir com EE aos gritos por causa de uma questão escolar do filho comum e agarrou-a pelos pulsos com força, causando-lhe dor, tendo esta gritado pelo filho DD, que se encontrava no quarto, para pedir ajuda, o que este fez metendo-se no meio dos dois.
G) Causou por esta forma fortes dores [e] um hematoma no braço de EE.
H) O arguido no período compreendido entre 2018 e 1 de setembro de 2021, em datas indeterminadas, em várias ocasiões, disse para EE: “sai daqui, puta”.
I) O arguido, no período compreendido entre 2018 e data não concretamente apurada mas anterior a 1 de setembro de 2021, em datas indeterminadas e em número de vezes não concretamente apurado, disse para o filho DD: “és burro, não queres aprender nada daquilo que quero ensinar” “vais ser igual à tua mãe, és gordo” e depois ria-se.
J) O arguido instalou câmaras de filmar escondidas pela casa, concretamente na sala e no quarto onde EE dormia e no hall de entrada, no quarto do filho atrás dos brinquedos com propósito não concretamente apurado.
K) No dia 31 de agosto de 2021, por volta das 19H30, no interior da residência comum sita na ..., o arguido, quando EE tentou iniciar uma conversa sobre o divórcio que pretendia, reagiu proferindo palavras não concretamente apuradas.
L) No decorrer desta discussão, o arguido dirigiu-se para a porta de casa e fechou-a à chave para que EE e o filho DD não pudessem sair, tendo porém EE as chaves da habitação.
M) O filho DD assistiu à discussão.
N) EE ligou para a Polícia de Segurança Pública a pedir ajuda e foi na presença dos agentes policiais que aquela e o filho saíram de casa.
O) O arguido sabia que praticava os factos supra descritos na casa de morada comum do casal e na presença do filho menor do casal.
[…]
Q) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita em F) e G), molestava fisicamente EE lesando a sua saúde física, actuando de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta ere proibida e punida por lei.”
Porém, considerou não provado que:
“11) O arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
12) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD.
13) O arguido ao actuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD.
14) O arguido sabia que tinha o dever de respeitar EE com quem mantinha uma relação de conjugalidade e que ao actuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação o que quis e logrou conseguir.
15) O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou, bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis actuar do modo supra descrito.
16) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiu de as praticar, atuando ainda com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo aos ofendidos, bem sabendo que a sua conduta é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.”
Independentemente da apreciação a fazer quanto à existência de erro de julgamento, é manifesto que a factualidade considerada provada na decisão impõe que, num quadro de normalidade, se considere igualmente demonstrada a disposição interior e a intencionalidade do arguido a que se reporta a matéria de facto dada como não provada.
Não resultando da sentença que o arguido possua quaisquer limitações cognitivas – e sendo, por isso, de admitir que é possuidor do discernimento comum na generalidade dos indivíduos e da capacidade de se determinar em conformidade com esse mesmo discernimento – parece-nos claro que não é possível, em termos lógicos, considerar demonstrado que o arguido escondeu da assistente uma carta à mesma dirigida pela Segurança Social, que instalou câmaras de filmar nas diversas divisões da casa (incluindo os quartos onde os ofendidos dormiam) e que trancou a porta de casa para impedir os ofendidos de sair (o que só lograram fazer após a chegada da polícia), e que, apesar disso, não se tenha como estabelecido que quis coagir a assistente e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
De igual sorte, não é possível ter como provado que o arguido praticou os factos descritos em F), G), J) e L), que proferiu as expressões referidas em H) e I) e que os acontecimentos se passaram na casa onde morava a família e na presença do filho menor de arguido e ofendida (cf. M e O), e que, ainda assim, o arguido não soubesse que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD (facto não provado nº 12); que ao atuar conforme o descrito, o arguido não tenha querido ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD (facto não provado nº 13); que o arguido não soubesse que tinha o dever de respeitar EE, com quem mantinha uma relação de conjugalidade, e que ao atuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação – ou que não tenha querido e logrado alcançar tais intentos (facto não provado nº 14); que o arguido não soubesse que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, ou que tal não tenha logrado, bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tinha a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim tenha querido atuar do modo supra descrito (facto não provado nº 15); ou, finalmente, que o arguido, ao comportar-se do modo dado como provado, não tenha agido sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se tenha coibido de as praticar, atuando ainda com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo aos ofendidos, bem sabendo que a sua conduta é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação (facto não provado nº 16).
Analisada a matéria de facto dada como provada e não provada à luz das regras da experiência comum e do normal suceder dos acontecimentos da vida, não pode aceitar-se que, tendo praticado os factos nos termos dados como provados, o arguido não se apercebesse do respetivo significado e do impacto que os mesmos produziam nos ofendidos, como não pode recusar-se que o arguido tenha atuado de forma livre, deliberada e consciente, ou seja, querendo praticar tais factos, apesar de saber tais comportamentos proibidos e punidos por lei (e, a este respeito, tem de dizer-se que é do conhecimento do homem médio, e portanto também do arguido, já que os autos não dão conta de que seja outra coisa que não um homem médio, dotado do discernimento suposto na generalidade dos cidadãos), pelo que tem de considerar-se demonstrado o elemento subjetivo descrito naqueles factos considerados não provados – que a sentença recorrida arredou da matéria de facto provada sem oferecer para o efeito qualquer explicação inteligível.
Assim, sem prejuízo da análise a empreender a propósito da existência de erro de julgamento, tem desde já de dizer-se que a sentença recorrida efetivamente enferma de erro notório na apreciação da prova, devendo os mencionados factos não provados nos 11 a 16 ser considerados provados, na medida em que constituem consequência lógica dos que foram dados como provados, não podendo compreender-se a existência da factualidade dada como provada sem a intencionalidade descrita naqueles pontos da matéria dada como não provada – a contradição existente entre os factos provados e não provados, que igualmente se verifica, deve, pois, ser ultrapassada por via da consideração como provadas das mencionadas circunstâncias de facto que traduzem o elemento subjetivo do tipo.
*
iv.1.2. da impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento
Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.
Além da «revista alargada», de que já tratámos, a matéria de facto pode ser sindicada através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida [assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais] – cf., por todos, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.202120.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Nesta conformidade, a reapreciação só determinará uma alteração à matéria de facto provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão21.
Assim, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, têm de descriminar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nos 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal), salientando-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão nº 3/2012, publicado no Diário da República, Iª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nos 3 e 4 do referido artigo 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.
Na verdade, o que decorre dos requisitos legais supra enunciados é algo simples – cabe ao recorrente enunciar qual a factualidade concreta que se mostra mal apreciada e discutir os diversos segmentos probatórios que, no seu entender, deveriam fundar uma diversa apreciação relativamente a tais pontos de facto.
Efetivamente, não basta afirmar sumariamente que A. ou B. disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como assente; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.
No fundo, exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.
Assim, o que é pedido ao recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quaisquer outros concretos e especificados elementos probatórios, demonstrando com argumentos a verificação do erro judiciário a que alude.
No caso, a recorrente EE indicou como incorretamente julgados os pontos 2, 5 a 7 e 11 a 16 dos factos dados como não provados na sentença recorrida, e convocou, em apoio da sua pretensão, os depoimentos prestados por si e pelo seu filho DD, e mesmo as declarações prestadas pelo arguido, em sede de audiência de julgamento.
Já vimos que, no que tange aos factos não provados elencados de 11 a 16 se verifica erro notório na apreciação da prova, devendo os mesmos transitar para a matéria de facto tida como provada, independentemente da análise da prova produzida sobre os mesmos (faz-se, a propósito, notar que este conjunto de factos contém, na verdade, ilações extraídas dos comportamentos adotados, matéria à qual se chega por via dedutiva – quando não ocorra confissão, como é o caso).
No que se refere aos demais pontos da matéria de facto convocada pela recorrente, a saber:
- que, tendo a assistente comunicado ao arguido a sua intenção de se divorciar, em 2018, o mesmo lhe tenha dito que “ela não tinha para onde ir e que nunca conseguiria conseguir ter uma casa” (facto não provado nº 2).
- que, no período compreendido entre 2018 e 01 de setembro de 2021, diariamente e quando EE o chamava a atenção por estar a beber bebidas alcoólicas, o arguido proferisse para ela as expressões: “vaca, vadia, cobra, burra” (facto não provado nº 5).
- que, concomitantemente com as expressões dadas como provadas em I), o arguido também tenha dito ao seu filho: “nunca vais passar de ano, sai daqui, tu e a tua mãe têm que sair, juntam-se os dois e saem daqui”, “vais ser um miserável na tua vida” (facto não provado nº 6).
- que o arguido tenha instalado as câmaras de filmar referidas em J) para controlar o que EE e o filho faziam na sua ausência (facto não provado nº 7).
A recorrente referenciou, a propósito, as concretas passagens dos depoimentos prestados na audiência de julgamento que suportam a sua pretensão, e sublinhou, ainda, que a sentença recorrida considerou credíveis as declarações por si prestadas, e também as prestadas pelo seu filho, ao contrário da versão do arguido que, a fazer fé na fundamentação exposta, não mereceu a adesão do Tribunal a quo.
Ouvida a prova gravada, temos de reconhecer assistir razão à recorrente.
Assim, no que se refere ao facto não provado nº 2, a sentença recorrida menciona, na respetiva fundamentação, que a assistente “confirmou, usando de isenção, o facto descrito em D)”, mas não mencionou a expressão aí indicada (que ela não tinha para onde ir e que nunca conseguiria ter uma casa).
Porém, é verdade que, como refere a recorrente, a partir dos 10 minutos do seu depoimento, a mesma afirma que o arguido lhe disse, em 2018, quando a assistente expressou a intenção de se divorciar: “nunca vais sair daqui”, “nunca vais conseguir ter dinheiro para ir para outro lado” “tu vais sempre depender de mim”, “vais ser sempre ninguém”, e mais disse ser verdade que dependia financeiramente do arguido e que ele sempre ganhou mais que ela (aos minutos 10:23).
As expressões referidas são, evidentemente, de conteúdo equivalente, não havendo razão objetiva para que os factos em questão não sejam dados como provados.
Identicamente, no que se refere aos factos não provados nos 5 e 6 (dizendo-se na fundamentação da sentença que a assistente negou que o arguido a tivesse apelidado conforme descrito em 5, e que os ofendidos não mencionaram o referido em 6), constata-se que DD, aos minutos 10:21 do seu depoimento, inequivocamente, refere que, no período compreendido entre dezembro de 2018 e setembro de 2021, o pai chamou à mãe “puta”, “vaca”, “vadia”, “cobra”, o que fazia repetidamente, e que aos minutos 10:42 e 10:47, a mesma testemunha reporta o proferimento de expressões como “sai daqui, puta”, “sai daqui”, “não vales nada”, e “pega no teu filho e vai-te embora”.
Não havendo razões para suspeitar da genuinidade de tais depoimentos, que são, aliás, concordantes entre si (e não tendo o Tribunal a quo posto em causa a respetiva credibilidade), não se vê razão plausível para que tais factos não tenham sido dados como provados – sendo evidente que são relevantes para o esclarecimento da verdade material (mesmo que as expressões reportadas não reproduzam ipsis verbis o que constava da acusação).
Finalmente, no que se refere à alínea J) dos factos provados e ao ponto 7 dos factos dados como não provados, como, com inteiro acerto se alega nas conclusões do recurso “não tendo as declarações do arguido merecido credibilidade por parte do Tribunal a quo e não tendo qualquer lógica a tese de que o arguido instalou câmaras de videovigilância escondidas no quarto onde dormiam a assistente e o menor DD sem ter o intuito de praticar o controlo e a vigilância sobre estes, sendo tal conclusão completamente avessa às regras da experiência comum e à lógica” – é evidente que aquele facto nº 7 tem de ser considerado provado. A instalação de câmaras de vigilância em todas as divisões da casa, ocultadas entre os objetos, no contexto em que ocorreu (com um conflito conjugal em curso, dormindo os cônjuges em quartos separados, tendo a assistente comunicado ao arguido a sua intenção de se divorciar, o que não foi por este aceite), só tem uma explicação lógica e plausível: o arguido pretendia controlar os movimentos dos membros da sua família.
Como se sabe, a livre valoração da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.
Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Ao tribunal de recurso cabe verificar, controlar, se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Por outro lado, praticamente toda a atividade probatória nos coloca perante a necessidade de recorrer a elementos de prova adjuvantes e de lançar mão a normas de experiência - mesmo nos casos de confissão integral, de depoimento testemunhal ou de registo fotográfico, videográfico, sonoro ou digital de um determinado ato praticado por “um agente em ação” (para utilizar a expressão do Prof. Cavaleiro de Ferreira), mostra-se sempre necessário desenvolver um raciocínio lógico (fundado em qualquer outro elemento probatório ou em regras da experiência comum) que permita determinar a verosimilhança dessa atuação.
Isto não significa que a ausência de prova direta de um facto nos deixe sem possibilidade de demonstração positiva desse facto. Significa apenas que o julgador, nessas circunstâncias, colocado perante a totalidade do acervo probatório obtido, tudo deverá tomar em consideração, ponderando cuidadosamente e com muito bom senso.
Do que se afirma decorre a quase forçosa circunstancialidade de cada elemento probatório que, não obstante, apreciado no conjunto e em correlação com os outros meios de prova, nos permitirá alcançar a dimensão daquilo que efetivamente ocorreu, com recurso ao raciocínio lógico e à formulação de ilações, decorrentes das regras de experiência comum.
Como sintetiza Sérgio Poças: “Se as provas credíveis se ajudam umas às outras – mutuamente se fortalecendo nesta comunicação – a prova resultado, por força deste factor de comunicação, é necessariamente maior de que a mera junção daquelas provas.”22
A apreciação da prova não é feita por segmentos isolados, estanques, opacos e incomunicáveis entre si, mas antes através da análise de todo o acervo produzido e da sua ponderação à luz dos critérios estabelecidos no artigo 127º do Código de Processo Penal.
E, no caso, a análise de toda a prova produzida em julgamento – que o Tribunal a quo empreendeu de forma honesta, declarando a credibilidade que lhe mereceram os depoimentos das duas testemunhas principais (as únicas com conhecimento direto dos factos relevantes), o que contrapôs à inverosimilhança surpreendida nas declarações do arguido, mais aditando elementos coadjuvantes aportados por testemunhas com menor contacto com os factos, mas que suportam a narrativa da assistente e do seu filho – dizíamos, a análise de toda esta prova e a sua interpretação à luz das regras de experiência comum conduz, efetivamente, a um resultado diverso do que foi alcançado na sentença recorrida.
Como já acima se referiu, não está o Julgador, na determinação da matéria de facto, vinculado à literalidade das declarações perante si produzidas, antes lhe cabendo interpretá-las, com espírito crítico e apelo às regras de experiência comum – e uma tal operação, empreendida de forma séria e responsável, é suscetível de conduzir à convicção de que, em determinados aspetos um depoimento se mostra credível, e noutros não é verosímil, ou é afastado pela avaliação conjugada de todas as circunstâncias em presença. As declarações de arguidos e testemunhas – como a vida – não são sempre «preto» ou «branco», nem sempre se diz toda a verdade e apenas a verdade, tal como também nem sempre se mente em tudo quanto se declara.
É difícil e espinhosa a tarefa cometida ao Juiz, no estabelecimento de factos passados (porque sempre dependente da mediação probatória) e, especialmente, na determinação de circunstâncias atinentes ao conhecimento e motivação dos sujeitos objeto do julgamento, na medida em que se trata de factos estritamente subjetivos que – a não ser que ocorra confissão – apenas são percecionáveis pelos próprios agentes, pelo que a respetiva prova está dependente das inferências que possam extrair-se dos aspetos objetivos em que se materializa a ação, através do significado que tais atos têm na respetiva comunidade social.
Ora, quer a intenção, quer a motivação, como conclusões de direito que são, não podem fazer-se derivar, imediatamente, da prova, mas deduzir-se dela, na medida em que sejam mera consequência ou prolongamento da mesma. Trata-se de factos, que não deixam de o ser, mas que assumem uma particular especificidade, na medida em que constituem realidades do foro psíquico, logo internos do sujeito. Tais factos não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face aos atos e às circunstâncias concretas do seu cometimento23.
Temos, pois, de concluir que a prova produzida em julgamento impõe uma decisão diversa da que foi tomada, devendo proceder-se à alteração da matéria de facto, em conformidade com o que decorre do artigo 431º do Código de Processo Penal.
Não se esconde que tal importa, em alguma medida, o recurso a prova indireta – como não poderia deixar de ser, já que o arguido não confessou os factos – no entanto, as inferências contempladas nos pontos 11 a 16 dos factos dados como não provados, são as únicas que podem considerar-se consentâneas com os factos objetivos apurados de forma direta e com as regras de experiência comum e o normal acontecer das coisas.
Como repetidamente se disse já em inúmeras decisões dos Tribunais Superiores em recursos sobre matéria de facto, é errado pretender-se que o Tribunal de julgamento está preso às palavras proferidas pelos declarantes e testemunhas, absorvendo-as qual esponja, para as verter do mesmo modo na decisão. Assim não acontece. Assim não deve acontecer, precisamente porque o adequado uso do princípio da livre apreciação da prova, que rege a operação de determinação dos factos posta a cargo do julgador, implica uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida, de modo a dela extrair, do modo mais fiel possível, a verdade material, processualmente válida24. Nesta operação, o Tribunal não está vinculado à estrita literalidade das palavras proferidas, antes podendo (e devendo) retirar dos relatos perante si produzidos todo o respetivo conteúdo útil, apreciado à luz das regras de experiência.
Uma convicção solidamente fundamentada não exige uma concordância absoluta de toda a prova produzida, e também não exige a respetiva «perfeição». É função do julgador interpretar todos os contributos probatórios perante si trazidos, tomando em conta não só o que é dito, mas também o modo como é dito, e, além disso, avaliar, na medida do possível, todas as circunstâncias suscetíveis de intervir na genuinidade dos depoimentos, distinguindo indícios de falsidade de quaisquer outras (compreensíveis) emoções humanas.
Em suma, as provas disponíveis suportam a alteração da matéria de facto pretendida pela recorrente, traduzindo uma interpretação conforme às regras da experiência comum.
Nestes termos, considera-se provado que:
(2) No momento referido em D) o arguido disse a EE que “ela não tinha para onde ir e que nunca conseguiria conseguir ter uma casa”.
(5) O arguido, no período compreendido entre 2018 e 01 de setembro de 2021 diariamente e quando EE o chamava a atenção por estar a beber bebidas alcoólicas, proferia para ela as expressões: “vaca, vadia, cobra, burra”.
(6) No momento descrito em I) o arguido também disse “nunca vais passar de ano, sai daqui, tu e a tua mãe têm que sair, juntam-se os dois e saem daqui”, “vais ser um miserável na tua vida”.
(7) O arguido atuou do modo descrito em J) para controlar o que EE e o filho faziam na sua ausência.
(11) O arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
(12) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD.
(13) O arguido ao atuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD.
(14) O arguido sabia que tinha o dever de respeitar EE com quem mantinha uma relação de conjugalidade e que ao atuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação o que quis e logrou conseguir.
(15) O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou , bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis atuar do modo supra descrito.
(16) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiu de as praticar, atuando ainda com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo aos ofendidos, bem sabendo que a sua conduta é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Procede, pois, o recurso no que se refere à alteração da matéria de facto.
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iv.2. do recurso em matéria de direito
iv.2.1. do crime de violência doméstica
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
Entre nós, o tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade25 26. O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, ou de progenitor de descendente comum, no que para o caso em mãos releva (cf. alíneas a), e c) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos»27.
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja, hoje, um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais.
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma ação isolada do agente (tão-pouco com vários atos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excecional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal28.
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, introduziu alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge (ou companheiro ou progenitor de descendente comum – ou qualquer uma das categorias contempladas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 152º do Código Penal), esclarecendo-se agora expressamente que tal atuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal das vítimas que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão29, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.06.201530, «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Em síntese: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Por outro lado não pode deixar de ser tido em conta, como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.201331, que “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.
Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”
E mais adiante, ainda no mesmo aresto, “Que aquela violência está pressuposta no tipo também nos parece evidente. Que deve ser aferida em função dos dois pólos subjectivos e do pólo objectivo da situação também nos parece ser de impor.
Assim, aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão32, entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
(…)
E, por fim, há que referir como abrangidos pelo tipo penal os casos de «micro violência continuada», que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão … exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.
É o caso abordado pelo acórdão do TRC de 07-10-2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes) em que a «ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade, mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa».”
Nesta linha de pensamento, ainda, o recente acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 04.06.202433, cujo entendimento subscrevemos sem reservas, aí se referindo: “Os relacionamentos entre duas pessoas estabelecem-se como forma de concretização de um projeto de vida, de afirmação da dignidade de ambos num contexto relacional, o qual não diminui a esfera de direito de cada um, antes potencia-os enquanto modo de desenvolvimento daquele projeto de vida.
A existência de uma relação conjugal ou análoga presente ou passada, não enfraquece a afirmação da dignidade de cada indivíduo dessa relação, antes torna o outro um garante ativo que a mesma se concretiza e desenvolve em harmonia com o projeto de vida traçado pelos dois. Deste modo, a existência de uma relação conjugal ou o contexto de uma separação, não só não pode levar a uma diminuição das exigências valorativas sobre os comportamentos tidos por cada um, antes pelo contrário, torna a avaliação de tais condutas mais exigente, porquanto sobre cada um recai um acrescido dever de respeito em relação ao outro.
Com efeito, a proximidade existencial inerente a uma relação conjugal ou análoga, torna cada um dos indivíduos da mesma mais vulnerável aos ataques do outro, não só pela sua proximidade física e menor capacidade de proteção de terceiros (designadamente familiares próximos e amigos), uma vez que muitas vezes tudo se passa “entre as paredes da casa de morada de família”, sem testemunhas, mas principalmente pela vulnerabilidade emocional da vítima de tais ataques. Neste contexto de grande proximidade, quaisquer expressões proferidas têm um peso acrescido, potenciando situações de especial quebra na autoestima da vítima, de diminuição da sua capacidade de autorreferenciação em relação aos outros, independentemente da intenção do agressor ao proferir tais expressões.
Neste plano, as condutas praticadas por um dos cônjuges, mesmo aquelas que se reconduzem a meras agressões verbais, têm sempre subjacente um contexto de afirmação de um poder em relação ao outro, consubstanciado na capacidade que as suas condutas têm para condicionar e perturbar psicologicamente o outro.”
Vistos os conceitos, e regressando ao caso dos autos, não podemos concordar com o Tribunal recorrido quando considera que da factualidade trazida ao julgamento apenas “(…) resultam episódios que, sendo reprováveis ou mesmo desagradáveis entre pessoas que mantêm uma relação marital, sendo as palavras utilizadas pelo arguido para com o filho desadequadas e reprováveis em termos de relação parental, tais episódios não são susceptíveis de integrar o conceito de mau trato previsto no tipo de violência doméstica por não consubstanciar um mau trato físico e psíquico que atinja a integridade física (um episódio ocorrido em 2018 em que o arguido apertou os pulsos da esposa) e psíquica de EE e de DD e o desenvolvimento das respectivas personalidades, pondo em causa a dignidade daqueles enquanto pessoas (não resultou demonstrado um impacto destes episódios nestes termos), não assumindo gravidade que justifique a tutela no quadro do citado crime.”
Na verdade, o que resulta dos factos provados – com a alteração decidida neste recurso – é um quadro de assinalável violência psicológica, um abuso inaceitável de uma posição de força, que teve como efeito a degradação da dignidade humana da assistente, lesando a sua integridade física e psíquica em moldes que reclamam, de forma evidente, a punição no quadro do crime de violência doméstica – na sua forma agravada, já que os factos tiveram lugar no domicílio comum e perante o filho menor de arguido e assistente (cf. nº 2, alínea a) do artigo 152º do Código de Processo Penal).
Com efeito, da matéria de facto provada, resulta abundantemente claro que o arguido não respeitou a assistente, estabelecendo um padrão de comportamento em que a agressão (física e verbal) se transformou num hábito, no período em que com a mesma coabitou, identificando-se, a par da pontual agressão física, a ocorrência de violência psicológica, traduzida, por um lado, no modo como o arguido a ela se dirigia repetidamente, apodando-a regularmente de “vaca”, “cobra” e “puta”, e, por outro lado, exercendo um controlo permanente sobre a sua vida, instalando câmaras de videovigilância no interior da casa e impedindo-a fisicamente de sair de casa (e, sabendo-se que o arguido trancou a porta de casa e se colocou à frente desta, “barrando” o caminho da assistente, que só logrou abandonar a casa na companhia da polícia, é obviamente irrelevante que a assistente possuísse um conjunto de chaves que, em abstrato, lhe permitiria abrir a porta, posto que, para o fazer, sempre teria que passar pelo arguido).
Perante o que se acha descrito na matéria de facto provada, é manifesto que o que está aqui em causa não são «episódios desagradáveis», mas antes um comportamento reiterado e persistente, um exercício de poder e controlo de um dos membros do casal sobre o outro, demonstrativo de um nível de violência que não é compatível com a manutenção da convivialidade entre ambos34 – e ao qual se mostrou não ser a ofendida capaz de se opor sem a intervenção das autoridades.
Não é igualmente possível duvidar que a atuação do arguido foi dolosa, na modalidade de dolo direto (a forma mais intensa de dolo): face ao teor das agressões reportadas e das expressões dirigidas à ofendida, num padrão de entendimento médio, resulta que o arguido bem sabia da potencialidade ofensiva dos seus comportamentos, resultando igualmente claro que quis exercer esse ascendente sobre a ofendida, causando-lhe medo e evidente infelicidade.
Deve, pois, proceder o recurso interposto, também nesta parte.
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Já no que se refere aos factos de que foi vítima DD, apesar de resultar evidente que também ele foi objeto de maus tratos (e não apenas por ter presenciado os maus tratos de que foi vítima a sua mãe), o certo é que da decisão absolutória não foi apresentado recurso pelo Ministério Público – a quem assistia legitimidade para o efeito, cf. artigo 401º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal – e o recurso interposto pela assistente foi apresentado apenas em nome próprio, e não enquanto legal representante do menor (que não se constituiu assistente), pelo que lhe falece legitimidade para o efeito (cf. artigo 401º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal). Em consequência, não pode este Tribunal ad quem apreciar a existência do crime de violência doméstica reportado ao ofendido DD.
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iv.2.2. escolha e determinação da medida da pena
Nesta sequência e em cumprimento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/201635, que fixou jurisprudência no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal», impõe-se proceder à escolha e determinação concreta da pena, dentro da moldura abstrata prevista para o crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152º, nos 1, alíneas a) e c), e 2, alínea a), do Código Penal – que é de pena de prisão de 2 a 5 anos.
O artigo 40º do nosso Código Penal, a propósito das finalidades das penas e medidas de segurança, estabelece que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração na sociedade” (nº 1), e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas36.
O modo de determinação da medida da pena está legalmente definido no artigo 71º do Código Penal, que estabelece que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1)
E ainda, “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.” (nº 2)
Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” (nº 3)
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer37.
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção»38.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.09.2005 (CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173), a dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão, arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa39.
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues40, apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Conforme explicita Figueiredo Dias41, o critério geral de escolha (entre penas alternativas) e de substituição da pena é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação», e acrescenta bem se compreender que assim seja: “sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena” 42.
Quanto à função que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto, esclarece este autor43 que: «Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão», acrescentando que «o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (ou de uma pena de substituição) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela(s) pena(s); coisa que só raramente acontece se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração».
Também neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 12.09.201244, do qual citamos: “A pena não privativa de liberdade só será preferível se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, casos havendo em que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às exigências de prevenção.
Há que ter em conta o critério da adequação e suficiência, atento por um lado, o bem jurídico protegido na espécie, uma das finalidades a que alude o artigo 40.º, mas e sobremaneira, atender às razões de prevenção geral, que se impõem no caso presente, não sendo excessivo a opção recair na pena privativa de liberdade, tendo em conta as necessidades de assegurar a paz comunitária, atendendo ao pleno do comportamento assumido pelo arguido no trecho de vida aqui analisado e valorado, que se não quedou apenas pela prática da infracção ora em equação e em discussão, antes a ultrapassando com uma configuração quantitativa e qualitativamente mais abrangente, bem mais ampla e gravosa em termos de lesividade, privando de vida a ex-companheira.
A própria escolha da espécie da pena a aplicar deve ter na base elementos, que sendo exógenos em relação à concreta e singular conduta apreciada para o tema em causa (mesmo que representando um minus no contexto global), se prendem com o conjunto das circunstâncias que enformam o facto total submetido a julgamento.”
Voltando ao caso concreto, verifica-se que são prementes as exigências de prevenção geral, porquanto a prática deste crime tem tido um incremento preocupante na nossa sociedade a que urge por cobro e cujos efeitos importa minimizar.
Pelo contrário, não são prementes as exigências de prevenção especial, dado que o arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se socialmente inserido.
Como fatores relevantes para a determinação concreta da pena a aplicar nos presentes autos, importa considerar:
1. Como agravantes:
- o grau elevado da ilicitude do facto, tendo o arguido atuado com dolo direto;
- o modo de execução do ilícito, que se prolongou por cerca de três anos consecutivos (pelo menos), exercendo o arguido um ascendente económico e emocional e social sobre a assistente durante todo esse período de tempo;
- a culpa elevada do agente, encontrando-se bem patente na factualidade acima descrita;
- a ausência de confissão dos factos e de arrependimento, reveladores da ausência de consciência do desvalor da sua conduta pelo arguido e das consequências da mesma;
- a ausência de compaixão pela assistente;
2. Como atenuantes:
- as condições pessoais do arguido, que se mostra familiar e socialmente inserido;
- a ausência de antecedentes criminais.
Numa análise necessariamente perfunctória da jurisprudência recente relativa ao crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, nos 1 e 2 do Código Penal, com características próximas do analisado nos presentes autos, encontramos penas fixadas em 2 anos e 10 meses de prisão (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.201345), 3 anos e 6 meses de prisão (acórdão da Relação de Guimarães de 09.10.201746), 3 anos e 9 meses de prisão (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.03.202247), 3 anos de prisão (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.05.202348), todas elas suspensas na sua execução, ainda que com imposição de condutas e sujeição a regime de prova, em alguns dos casos.
Nas as situações descritas, não era menor o desrespeito revelado pelos arguidos relativamente às respetivas cônjuges/companheiras e, em alguns deles, o comportamento objetivamente integrador do crime em questão manteve-se durante vários anos, num padrão de humilhação e ofensa da integridade física e psíquica das vítimas que, todavia, não vai além dos atos praticados pelo aqui arguido.
A medida concreta da pena tem, pois, necessariamente, de aproximar-se do ponto médio da respetiva moldura penal (já que, reconhecidamente, ainda podem conceber-se atuações mais graves do que aquela que os autos espelham), inexistindo quaisquer circunstâncias mitigantes que inculquem a desnecessidade de tal censura penal.
Tudo visto e ponderado, entende-se aplicar ao arguido Nuno Pires pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2, alínea a) do Código Penal, perpetrado na pessoa de EE, uma pena de três anos e seis meses de prisão.
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iv.2.3. da suspensão da execução da pena de prisão
Tendo em conta a medida da pena única encontrada, impõe-se considerar a possibilidade de suspensão da respetiva execução.
Nos termos previstos no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.202149, “Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Professor Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».
Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.”
Assim, subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes.
Importa, pois, determinar se existe, com base nos factos apurados, uma esperança séria de que é possível a socialização do arguido em liberdade e de que o mesmo tem capacidade para se autocontrolar, pautar os seus comportamentos pela obediência às normas jurídicas e evitar o cometimento de novos crimes.
Nos termos do artigo 50º do Código Penal, a averiguação de tal capacidade deve, no entanto, ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se no momento em que a decisão é tomada, se concluir que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são aptos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, então deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.
No caso dos autos, depõe em favor do arguido a sua inserção socioprofissional e a ausência de antecedentes criminais.
Em seu desfavor pondera a ausência de confissão e de arrependimento, o que demonstra ausência de consciência do desvalor da sua conduta criminosa.
Não se discute que são muito elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes.
No entanto, no momento de decidir pela suspensão da execução da pena de prisão o que importa considerar são as exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do arguido, a fim de prevenir a reincidência.
Em face da factualidade apurada, entende-se que ainda é possível formular um juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena ser bastante para evitar que o arguido volte a cometer crimes.
Em face de tudo o exposto, impõe-se concluir que as exigências de prevenção especial e de socialização do arguido ainda se satisfazem com a suspensão da execução da pena única de prisão ora aplicada, a qual deverá ser suspensa pelo período de quatro anos, com sujeição a regime de prova, com plano a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, executado com apoio e vigilância, com o objetivo de trabalhar a personalidade do arguido de modo a torná-lo mais empático e com maior compreensão e sensibilidade pelas necessidades específicas das mulheres e das crianças, e ainda sensibilizá-lo para o tratamento da dependência do álcool, que manifestamente condiciona o seu comportamento.
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iv.2.4. da pena acessória
Na acusação, requereu o Ministério Público a aplicação das penas acessórias a que alude o artigo 152º, nos 4, 5 e 6 do Código Penal, para eficaz tutela das exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso concreto, promovendo que, em caso de condenação, ao arguido fossem aplicadas as penas acessórias de:
a) obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica.
b) proibição de contactos físicos ou por qualquer meio, com EE, a graduar entre seis meses e cinco anos, com efetivo afastamento da respetiva residência, a ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 152º, nos 4 e 5 do Código Penal.
O artigo 152º, nº 4 do Código Penal prevê que, em caso de cometimento de qualquer dos crimes previstos nos nos precedentes, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
Como ensina Paulo Pinto de Albuquerque50, “Nos termos da Lei nº 19/2013, esta pena acessória deve ser fixada em complemento da pena principal, tendo o legislador manifestado o propósito claro de aumentar o uso desta pena (ver exposição de motivos do projeto de lei nº 194/XII, de que resultou esta modificação; também no sentido de que com o regime decorrente do artigo 152º, nº 4, «o legislador transformou o que anteriormente era uma faculdade do julgador em regime regra»). Esta pena deve ser graduada entre seis meses e cinco anos, segundo os critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa.”
A aplicação de uma pena acessória não pode constituir um efeito automático da condenação (cf. artigo 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), exigindo-se que exista uma ponderação judicial relativa à respetiva adequação e proporcionalidade.
Ora, tendo em conta os factos apurados no julgamento, nomeadamente no que se refere à intensidade da culpa do arguido, atendendo às circunstâncias do caso concreto – em que não pode deixar de relevar-se que a assinalável violência psicológica de que a assistente foi alvo durante vários anos, e o medo que ainda revela de que o arguido torne a procurá-la – resulta evidente a necessidade de imposição de tais penas acessórias, como meio de, por um lado, tranquilizar a assistente e, por outro lado, de potenciar a interiorização da censurabilidade dos comportamentos por parte do arguido, de modo a que este aproveite a oportunidade que lhe é concedida para alterar os seus padrões de conduta, mantendo-se afastado da ofendida e procurando a ajuda especializada de que manifestamente necessita.
Nesta conformidade, decide-se impor ao arguido a pena acessória de proibição de contactos por qualquer meio com a assistente EE, pelo período de 4 (quatro) anos, englobando a proibição de entrar e permanecer no local onde esta resida e de trabalho, bem como de dela se aproximar e destes locais a menos de 500 metros, e, bem assim, a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos do artigo 152º, nos 4 e 5, do Código Penal.
Nos termos previstos no nº 5 do artigo 152º, o cumprimento da pena acessória de afastamento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
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iv.2.5. do pedido de indemnização civil
A assistente EE deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido Nuno Pires, pedindo que “seja o arguido e ora demandado condenado a pagar à assistente e ora demandante a quantia de 2.700,00€, a título de compensação pelos danos patrimoniais causados, bem como a quantia de 5.000,00€, a título dos danos não patrimoniais causados, totalizando portanto o montante de 7.700,00€, que deverá sempre ser acrescido de juros legais a contar desde a notificação até o efetivo e integral pagamento”.
Face à absolvição decorrente da decisão, também absolutória, relativa à parte criminal proferida em 1ª instância, no recurso interposto pediu a assistente que, pela respetiva procedência, seja “igualmente julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pela assistente, o qual foi reduzido em sede de audiência de julgamento ao valor de 2.100,00 euros no tocante aos danos patrimoniais, devendo ser o arguido, portanto, condenado no pagamento do valor de 2.100,00 euros por danos patrimoniais e no valor de 5.000,00 euros por danos não patrimoniais, perfazendo-se o montante total de 7.100,00 euros”.
Face à procedência do recurso no que se refere à imputação criminal, cumpre agora conhecer da pretensão indemnizatória formulada pela recorrente.
Como escrevem Simas Santos e Leal-Henriques51, «A consumação de um crime pode desencadear dois tipos de reações criminais: uma de natureza criminal – para que o seu autor seja penalmente censurado, isto é, para que lhe seja aplicada uma pena; uma de natureza civil – para que os prejudicados com o crime sejam ressarcidos pelas consequências materiais e morais advindas da sua prática.»
Os artigos 71º e seguintes do Código de Processo Penal, preveem a possibilidade do lesado pedir a condenação do arguido ou mero responsável civil no pagamento de uma indemnização civil por danos causados pela prática de um crime.
A responsabilidade civil emergente de crime encontra a sua previsão legal no artigo 129º, do Código Penal, que dita que: «[a] indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.», i.e., pelas disposições do Código Civil, nomeadamente os artigos 483º e seguintes de 562º e seguintes.
Destes normativos legais, resultam os pressupostos da responsabilidade civil como também as regras de determinação dos danos a indemnizar, encontrando-se a obrigação de indemnizar condicionada à prática pelo lesante de um facto ilícito e culposo.
O artigo 483º do Código Civil dispõe que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Resulta desta norma legal que são cinco os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos a saber:
i. Facto voluntário do lesante, i.e., o facto dominável ou controlável pela vontade, facto este que pode ser positivo (ação) ou negativo (omissão);
ii. Ilicitude, traduzida na reprovação da conduta do agente, conduta essa que se manifesta através da violação do direito de outrem e da violação da lei que protege interesses alheios;
iii. Culpa, traduzida na reprovação ou censura do direito face à conduta do agente.
iv. Dano, traduzido na perda que o lesado sofreu em virtude de um facto ilícito, que pode ser de dois tipos, o dano patrimonial e o dano não patrimonial.
O dano patrimonial, que se traduz no reflexo do dano real na situação patrimonial do ofendido, pode ser de duas categorias (i) dano emergente, i.e., o prejuízo causado nos bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado à data do facto; (ii) lucro cessante, i.e., os benefícios que o lesado deixou de obter em virtude do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data do facto.
O dano não patrimonial ou moral traduz-se em prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária, uma vez que estão em causa bens que não integram o património do lesado.
Por essa razão, tais danos apenas podem ser compensados.
O Código Civil prevê a reparação destes danos no artigo 496º. Todavia, delimitou esta reparação aos danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
A fixação do valor da compensação por danos não patrimoniais é realizada de acordo com a equidade nos termos do artigo 496º, nº 4 do mencionado Código.
v. Nexo de causalidade entre o facto e o dano: o facto tem de ter dado origem (ser a causa) ao dano.
Vigora entre nós a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, prevista no artigo 563º, do Código Civil. De acordo com esta teoria a «inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias. (…) [O] facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.»52
Face ao que acima se expôs quanto à responsabilidade criminal do arguido, é manifesta a verificação in casu do facto ilícito e culposo, atribuível ao arguido/demandado, e gerador de danos na esfera jurídica da demandante (nomeadamente, de danos morais, cuja existência constitui paradigma do crime de violência doméstica), justificando-se, por isso, a atribuição de compensação indemnizatória.
Importa, então, quantificar os danos infligidos à demandante.
Comecemos pelos danos patrimoniais.
Estabelece o artigo 564º do Código Civil, que “1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. 2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Com apoio nesta disposição legal, a doutrina e jurisprudência, classifica os danos patrimoniais em «danos emergentes», «lucros cessantes» e, ainda, «danos futuros» - ou seja, os prejuízos diretos causados (v.g., objetos danificados, despesas incorridas), as vantagens que deixaram de ser recebidas (p. ex., salários que não foram pagos) e, ainda, oportunidades que já não poderão ser alcançadas (tipicamente, oportunidades de emprego ou carreiras profissionais que se frustram em virtude das lesões sofridas).
Ora, no caso dos autos, e a este título, a demandante reclamou o pagamento de quantias que diz ter pedido emprestadas, para fazer face a despesas incorridas com a mudança de casa, e, bem assim, de montante retirado da poupança do seu filho (cf. facto provado sob a alínea P).
Desconhece-se, no entanto, que despesas foram concretamente incorridas, não se mostrando possível estabelecer uma relação de causalidade entre as mesmas e os atos praticados pelo arguido/demandado, em termos de se poder concluir que não teriam existido se não fosse a conduta do arguido.
Mesmo que se aceite que tais despesas – e a necessidade de obter tais montantes – seja consequência da separação do casal, com os elementos de facto apurados, não é possível afirmar que as mesmas derivem direta e necessariamente da prática do crime, podendo admitir-se que, mesmo que a mencionada separação tivesse sido pacífica, tais gastos sempre teriam acontecido.
Nestes termos, não pode ter-se por assente que o comportamento ilícito do arguido tenha importado a produção de danos de natureza patrimonial na esfera jurídica da assistente, que não teriam ocorrido se não fosse essa conduta, pelo que, nesta parte, terá de improceder o pedido de indemnização civil formulado.
Quando aos danos não patrimoniais.
Como se referiu, os danos de natureza não patrimonial são indemnizáveis quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito - cf. artigo 496º do Código Civil.
A este respeito, cumpre ter presente que, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, releva a gravidade do dano causado, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
É necessário considerar, desde logo, que estes elementos têm, no seu todo, uma dupla finalidade: a da reparação dos danos causados e a da sanção ou reprovação do agente no plano civilístico, com os meios adequados do direito privado53.
A gravidade mede-se por um padrão objetivo, de normalidade, de bom senso prático, de criteriosa ponderação das realidades da vida, o que afastará, à partida, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais decorrentes de sensibilidades particularmente embotadas ou especialmente requintadas, ou seja, anormais ou incomuns.
Por outro lado, ainda, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que, em face das circunstâncias concretas do caso, justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
No que se reporta à quantificação dos danos não patrimoniais, em primeiro lugar, é de notar que, estando em causa a lesão de interesses imateriais (isto é que não atingem de forma direta ou imediata o património do lesado), o objetivo, em termos de ressarcimento, não é (nem pode ser), face à sua evidente impossibilidade, a reconstituição natural da situação anterior ao sinistro, ou, face à insusceptibilidade da sua avaliação pecuniária, a fixação de um montante pecuniário equivalente ao «mal» sofrido, mas será apenas atenuar, minorar ou, de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado.
A ofensa objetiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjetivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral54.
Neste sentido, refere Antunes Varela, que “ao lado dos danos pecuniariamente avaliáveis, há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.”55
Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os atos atentatórios da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero56 .
A indemnização pelo dano em apreço não é uma verdadeira indemnização no sentido de repor, reconstituir as coisas no estado anterior à lesão. Com a indemnização pretende-se dar ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe situações ou momentos de prazer e alegria que neutralizem, tanto quanto possível, a intensidade da dor física e psíquica57.
Com efeito, nestas hipóteses, e conforme é posição pacífica da doutrina e da jurisprudência, o que está em causa é a fixação de um benefício material/pecuniário (único possível) que se traduza, pelas utilidades, prazeres ou distrações que proporciona, numa compensação ou atenuação pelos bens imateriais antes referidos da pessoa humana (o lesado), atingidos pelo evento.
Nesta conformidade, a compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, não pode – por definição – ser feita através da teoria ou fórmula da diferença prevista no artigo 566º, nº 2, do Código Civil.
Ao invés, o montante da indemnização, nos termos do disposto nos artigos 496º, nº 3 e 494º do Código Civil, deverá ser fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante, à situação económica do lesante e do lesado, às demais circunstâncias do caso, nomeadamente, por assim o imporem os princípios da proporcionalidade e igualdade, aos critérios e valores usualmente acolhidos na jurisprudência em casos similares.
Com efeito, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.06.201558, “não podendo apurar-se o valor exacto de tais danos, atenta a sua natureza, o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade (…), fazendo apelo a todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (…) e tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigos 496º, n.º 3, 1ª parte e 494º do Código Civil).”
Adicionalmente, prossegue o referido aresto, “nos parâmetros gerais a ter em conta considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. n.º 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt) serem ainda de destacar a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496º, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar.”
No entanto, como se adverte no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.201559, (e na jurisprudência ali referenciada), a utilização de critérios de equidade não deve impedir que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto.
Por outro lado, ainda, é de referir que, conforme se colhe da mesma jurisprudência do Supremo Tribunal, o recurso à equidade não pode, nem deve conduzir à arbitrariedade, não devendo os tribunais “…contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito civil que a afirmação destes vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.”60
Na fixação do montante da indemnização em análise deve o tribunal orientar-se por um critério de equidade, que não pode fazer corresponder a indemnização a um enriquecimento despropositado do lesado, nem a uma simples esmola, a um valor meramente simbólico61.
Devem incluir-se entre os danos não patrimoniais indemnizáveis as dores físicas e psíquicas, a perturbação da pessoa, os sofrimentos morais, e os prejuízos na vida e relação sociais.
Como escreve Dario Martins de Almeida62, “quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa. A equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo”.
Do exposto decorre que o tribunal, para a fixação dos danos não patrimoniais, no cumprimento da disposição legal supracitada que determina que se julgue de acordo com a equidade, deverá atender aos elementos expressamente previstos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que derivam da matéria de facto provada. Isto com a finalidade de, após a adequada ponderação, poder concluir sobre o valor pecuniário que no caso concreto se mostra justo e adequado.
No caso dos autos, apurou-se que, como consequência direta e necessária da conduta do arguido, EE sentiu medo, insegurança e inquietação, foi humilhada e atingida na sua honra e consideração, vendo a sua dignidade pessoal significativamente lesada.
Estes danos morais sofridos pela assistente em resultado dos sucessivos atos do arguido, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efetivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos.
Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, como se disse, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso.
Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado das lesadas à custa do lesante.
Retomando o que já acima expusemos quanto à natureza do ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial, nos quais, como então referimos, mais do que repor a situação anterior ao dano – o que não é viável – se visa compensar os padecimentos com um lenitivo pecuniário que permita suavizá-los, e aceitando que, tal como se ponderou no já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2018, “como vem sendo entendimento pacífico da jurisprudência63, que «dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”»”, temos que, analisando a factualidade apurada, tendo em conta as condições económicas do arguido apuradas nos autos e fazendo apelo à equidade, considera-se justo e proporcional condenar o arguido a pagar à assistente o montante peticionado de 5.000 € (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, contados desde a data da notificação do arguido da dedução do pedido cível até integral pagamento, nos termos previstos no artigo 805º, nº 3 do Código Civil.
Procede, pois, nesta medida, o pedido de indemnização civil formulado pela assistente.
*
V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente EE e, em consequência:
i. Alterar a matéria de facto fixada na sentença recorrida, considerando provado que:
(2) No momento referido em D) o arguido disse a EE que “ela não tinha para onde ir e que nunca conseguiria conseguir ter uma casa”.
(5) O arguido, no período compreendido entre 2018 e 01 de setembro de 2021 diariamente e quando EE o chamava a atenção por estar a beber bebidas alcoólicas, proferia para ela as expressões: “vaca, vadia, cobra, burra”.
(6) No momento descrito em I) o arguido também disse “nunca vais passar de ano, sai daqui, tu e a tua mãe têm que sair, juntam-se os dois e saem daqui”, “vais ser um miserável na tua vida”.
(7) O arguido atuou do modo descrito em J) para controlar o que EE e o filho faziam na sua ausência.
(11) O arguido quis coagir EE e submetê-la aos seus intentos e desígnios.
(12) O arguido sabia que, com a conduta acima descrita, molestava psiquicamente o seu filho DD.
(13) O arguido ao atuar conforme o descrito, quis ofender a saúde física e psíquica de EE e a saúde psíquica de DD.
(14) O arguido sabia que tinha o dever de respeitar EE com quem mantinha uma relação de conjugalidade e que ao atuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, e que a humilhava, atingindo a sua honra, consideração e a sua dignidade pessoal e bem assim lhe causava um profundo sentimento de insegurança, medo e inquietação o que quis e logrou conseguir.
(15) O arguido sabia também que a sua conduta era suscetível de provocar sofrimento, receio e inquietação no filho, provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afetando desse modo a sua paz e sossego individuais, o que logrou , bem sabendo que o mesmo em virtude da sua idade, ainda não tem a sua personalidade suficientemente estruturada e que a sua conduta lhe provocava efeitos psicológicos graves e duradouros, e ainda assim quis atuar do modo supra descrito.
(16) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiu de as praticar, atuando ainda com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo aos ofendidos, bem sabendo que a sua conduta é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
ii. Revogar a sentença recorrida, condenando o arguido AA, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e c), nº 2, alínea a), nos 4 e 5, do Código Penal, de que foi vítima EE, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição a regime de prova, assente em plano individual de readaptação a elaborar pela Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, do qual fará parte integrante a frequência do programa para agressores de violência doméstica e de programa com vista à sensibilização para o tratamento da dependência do álcool, nos termos dos artigos 50º e 53º do Código Penal, em conjugação com o artigo 34º-B da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro.
iii. Condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de contactos por qualquer meio com a assistente EE, pelo período de 4 (quatro) anos, englobando a proibição de entrar e permanecer no local onde esta resida e de trabalho, bem como de dela se aproximar e destes locais a menos de 500 metros, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos do artigo 152º, nos 4 e 5, do Código Penal.
O cumprimento da pena acessória de afastamento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
iv. O arguido é responsável pelo pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.
v. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado nos autos, condenando o arguido AA a pagar à assistente EE a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
Custas cíveis na proporção do decaimento, que se fixa em 3/4 para o demandado, e 1/4 para a demandante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a assistente.
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Lisboa, 11 de julho de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Rui Coelho
Alda Tomé Casimiro
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1. Como refere TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 329 a 339.
2. Cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.01.2001, no processo nº 0041056, Relatora: Desembargadora Conceição Gomes, acessível em www.dgsi.pt
3. “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, nº 12 (Especial), Set-Dez, 2010.
4. cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
5. FARIA, Paula Ribeiro de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág.205.
6. LEITE, André Lamas, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, in Revista Julgar, n.º12, página 49.
7. LEITE, André Lamas, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, in Revista Julgar, n.º12, página 50.
8. Vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-09-2015, Processo n.º 67/14.4 S2LSB.L1-3, do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-05-2014, Processo n.º 232/12.9GEACB.C1, Tribunal da Relação de Évora de 19-05-2015, Processo n.º 150/11.8GAVNO, Tribunal da Relação de Évora de 21-04-2015, Processo n.º 65/11.0GEALR.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
9. Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 7/95, de 19.10.1995, in Diário da República, Iª série, de 28.12.1995, que fixou jurisprudência no sentido de que «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito».
10. Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291.
11. Recursos Penais, cit., pág. 78.
12. No processo nº 07P1779, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt
13. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 340 e ss.
14. Sobre este tema e no sentido apontado, cf. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.10.2012, no processo nº 165/10.3GDCNT.C1 e do Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2007, no processo nº 07P147, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
15. Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal anotado, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740.
16. Vd., entre tantos outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.03.2018, no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, Relatora: Desembargadora Paula Roberto, e de 14.01.2015, no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, Relator: Desembargador Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
17. Pereira Madeira, Ob. cit., pág. 1294.
18. No processo nº 288/09.1GBMTJ.L1-5, Relator: Desembargador Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt.
19. Cf. cit. ac. STJ de 13.07.2005.
20. No processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, Relator: Desembargador Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
21. Note-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01 de abril de 2008 (no processo nº 360/08-01, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
  As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.”
22. Cf. Sérgio Poças “Da sentença penal – fundamentação de facto”, em Revista Julgar nº 3, pág. 38.
23. Cf. Manuel Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Volume I, 1992, págs. 297 e 298.
24. Que se traduz no apuramento dos factos efetivamente acontecidos, salvaguardadas as garantias de defesa constitucional e legalmente previstas.
25. Cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 329 a 339.
26. Neste sentido, também, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2017, no processo nº 2263/15.8JAPRT. P1.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, em www.dgsi.pt.
27. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, pág. 305.
28. Vd., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.04.2006 (no processo nº 06P468, Relator: Conselheiro João Bernardo) e de 06.04.2006 (no processo nº 06P1167, Relator: Conselheiro Simas Santos) e do Tribunal da Relação de Évora de 29.11.2005 (no processo nº 1653/05- 1, relatado pelo, então, Desembargador Pires da Graça), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
29. “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, nº 12 (Especial), Set-Dez, 2010.
30. No processo nº 1340/14.7TAPTM.E1, relatado pela, então, Desembargadora Ana Barata de Brito, em www.dgsi.pt.
31. No processo nº 113/10.0TAVVC.E1, Relator: Desembargador João Gomes de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.
32. Ob. cit., pág. 22.
33. No processo nº 129/22.4GBMFR.L1-5, Relator: Desembargador João Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.
34. Com o sentido de que não releva, no cometimento do crime de violência doméstica, se os factos ocorreram ao longo de um período de tempo mais ou menos extenso, ou apenas numa única ocasião, vd., também, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19.03.2024, no processo nº 287/22.8PGPDL.L1-5, Relator: Desembargador Paulo Barreto, em www.dgsi.pt, do qual citamos: “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que os diversos ilícitos típicos que o podem preencher. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente atingidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente.
  E, ainda com este alcance, vd. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.04.2018, no processo nº 3/17.6GCIDN.C1, relatado pelo, então, Desembargador Vasques Osório, acessível em www.dgsi.pt, do qual citamos: “Deve notar-se que a qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito, da mesma forma que a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, ob. cit., pág. 19).
  Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, a relação de domínio daquele sobre esta, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade.”
35. Publicado no Diário da República, Iª série, nº 36, de 22.02.2016.
36. Cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 22.01.2019, no processo nº 65/19.1JBLSB-A.L1-3, Relatora: Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, disponível em www.dgsi.pt.
37. Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e segs..
38. Américo Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena”, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322.
39. Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84.
40. “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182.
41. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331.
42. Ob. cit., § 498, pág. 332.
43. Ob. cit., § 500, págs. 332 e 333.
44. No processo nº 1221/11.6JAPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges, acessível em www.dgsi.pt.
45. No processo nº 113/10.0TAVVC.E1, Relator: Desembargador Gomes de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.
46. No processo nº 83/14.6GAMCD.G1, Relatora: Desembargadora Ausenda Gonçalves, em www.dgsi.pt.
47. No processo nº 7528/13.0TDLSB.L3-3, Relatora: Desembargadora Maria Perquilhas, em www.dgsi.pt.
48. No processo nº 924/20.9PBCSC.L1-5, Relator: Desembargador Jorge Gonçalves, em www.dgsi.pt.
49. No processo nº 381/16.4GAMMC.C1.S1, Relator: Conselheiro António Clemente Lima, acessível em www.dgsi.pt.
50. Comentário do Código Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editoria, Lisboa, 2021, pág. 648.
51. Noções de Direito Penal, Rei dos Livros, 5.ª Edição, 2016, pág. 423.
52. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.2010, no processo nº 2290/04.0TBBCL.G1.S1, Relator: Conselheiro Sebastião Póvoas, disponível em www.dgsi.pt.
53. Cf., neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 3ª ed., 1980, Vol. I, pág. 502.
54. Neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375.
55. Ob. cit., pág. 571. No mesmo sentido, ao nível jurisprudencial, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2011, no processo nº 160/2002.P1.S1 (Relator: Conselheiro Granja da Fonseca), de 04.06.2015, no processo nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1 (Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), e de 16.06.2016, no processo nº proc. n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2c(Relator: Conselheiro Tomé Gomes), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
56. Cf., neste sentido, “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512.
57. Cf., neste sentido, Vaz Serra, BMJ 78, pág. 83 e BMJ 278, pág. 182.
58. No processo nº 2567/09.9TBABF.E1.S1, Relatora: Conselheira Fernanda Isabel Pereira, acessível em www.dgsi.pt.
59. No processo nº 3558/04.1TBSTB.E1.S1, Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
60. Vd., neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2016 e de 18.06.2015, já citados, e, ainda, de 31.01.2012, no processo nº 875/05.7TBILLH.C1.S1, Relator: Conselheiro Nuno Cameira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
61. Cf., em igual entendimento, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1993, in CJ- STJ, III, pág. 182.
62. Manual de Acidentes de Viação, 2ª ed., Coimbra, 1980, págs. 103 e 104.
63. De que é expressão o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.06.1997, in CJ, Ano IV, tomo III, pág. 892.