NON BIS IN IDEM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I - Não há violação do princípio ne bis in idem se o arguido nunca antes tinha sido julgado pelos factos que constam da acusação pública e pelos quais foi condenado.
II - Não são suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, o tempo, a motivação, o grau de participação do agente, nem as circunstâncias relevantes em que os factos ocorreram.
III - Mesmo que a acusação ou a pronúncia revelem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, se o arguido na sua contestação ou nas suas declarações em julgamento demonstra ter claramente identificado, interpretado ou compreendido os factos submetidos a julgamento, está assegurado o contraditório.
IV - Pratica o crime de violência doméstica na pessoa dos filhos o arguido que, ao longo de um largo período temporal, agrediu física e psicologicamente a sua mulher, mãe dos seus filhos, na presença destes e no domicílio partilhado por todos, mesmo que não tenha batido, ameaçado, injuriado, humilhado ou vexado directamente os seus filhos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
No processo nº 157/20.4SXLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 9, foi proferida sentença datada de 13/11/2023, na qual se decidiu:
“Pelo exposto, julgo a acusação totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
1) Condeno o arguido AA:
a. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de CC, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de DD, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
d. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de EE, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
2) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 77.º do Código Penal, condeno o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão cuja execução se suspende por igual período de tempo (5 anos), com sujeição a regime de prova e ao Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRSP e a homologar pelo Tribunal, direccionado para a prevenção da violência doméstica e para a problemática alcoólica, e na condição de o arguido:
(i) se afastar da residência e local de trabalho de BB, a uma distância de pelo menos 500 e 100 metros, respetivamente, pelo período da suspensão da pena;
(ii) não contactar, por qualquer meio, com BB, devendo os contactos relativos aos filhos menores de ambos ser assegurados por intermédio de terceiros, pelo período da suspensão da pena;
(iii) pagar no prazo de 2 anos à ofendida a quantia arbitrada a título de indemnização, devendo o arguido entregar esse dinheiro nos autos, entregando o Tribunal posteriormente o valor à ofendida.
3) Condeno o arguido AA a proceder ao pagamento à vítima BB da quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de reparação pelos prejuízos causados pela prática do crime.(…)”
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Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1.ª - O presente recurso jurisdicional vem interposto da douta sentença penal condenatória proferida aos 13.11.2023, Ref. 430292284;
2.ª - Face à prova produzida, considera o Arguido e aqui Recorrente, sempre com todo o respeito e consideração, que incorreu o Tribunal a quo num erro de julgamento ao decidir como decidiu, tendo julgado incorrectamente alguns concretos pontos de facto e matéria de direito, com isso inquinando a decisão final proferida;
3.ª - O Tribunal, ao responder como respondeu à matéria de facto, nomeadamente no que se refere aos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 16 da matéria de facto provada, ocorreu numa flagrante violação do princípio do “ne bis in idem” (artigo 29.º da CRP), com isso inquinando a decisão final proferida;
4.ª - Com efeito, os factos da matéria provada mencionados no artigo anterior foram já objecto dos processos n.ºs 620/19.0LSB, 1071/18.9PZLSB, 10224/18.9T9LRS e 958/17.0PZLSB, incorporados nos presentes autos, processos que foram arquivados e/ou terminaram com uma suspensão provisória do processo;
5.ª - Assim, a decisão recorrida terá que ser revogada e o Arguido ser absolvido, por violação do princípio do “ne bis in idem”;
6.ª - Acresce que a sentença deu como provados diversos factos que não concretizam detalhadamente a data e as circunstâncias em que alegadamente ocorreram, em decorrência do despacho de acusação do Ministério Público, que faz imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas, nomeadamente do tempo em que ocorreram, o número de vezes e as circunstâncias, pelo que tal factualidade deverá ser desconsiderada e/ou considerada não escrita;
7.ª - Acresce que, perante os elementos de prova recolhidos e os meios de prova produzidos, não resulta demonstrado, de forma clara e inequívoca, de que o Arguido tenha praticado os crimes de que vem acusado ou dos elementos em que se baseou e fundamentou a acusação;
8.ª - Por outro lado, na douta decisão recorrida ocorre uma errada interpretação e aplicação do Direito que aplicou ao caso em concreto, relativamente à condenação autónoma pela prática de três crimes de violência doméstica na pessoa dos filhos menores do casal CC, DD e EE, devendo o Arguido ser absolvido dos crimes de violência doméstica dos filhos menores;
9.ª - O Arguido não praticou materialmente nenhum facto na pessoa dos seus filhos menores, tal como reconhecido (e bem) na sentença recorrida, e o facto de os menores terem alegadamente assistido a episódios de violência verbal e/ou física na pessoa da sua progenitora, não enquadra o crime de violência doméstica na sua alínea d), tão-só pode contribuir para o agravamento da pena a aplicar pelo crime de violência doméstica praticado contra a mãe;
10.ª - Tem sido esse o entendimento da jurisprudência dominante e é esse o espírito do legislador, sendo esta solução justa pelo que o ora Recorrente pugna;
11.ª - Termos em que a sentença recorrida deve ser revogada, sendo o Arguido absolvido dos três crimes autónomos de que vem acusado e condenado, relativamente aos seus filhos menores;
12.ª - Entende ainda o Arguido e ora Recorrente que ocorreu, na decisão recorrida, uma errada interpretação e aplicação do Direito que aplicou ao caso em concreto, relativamente à medida da pena aplicada e ao cúmulo jurídico operado na condenação;
13.ª - Sendo o presente recurso julgado procedente e o Arguido absolvido dos três crimes de violência doméstica em causa, não haverá lugar ao cúmulo jurídico ou deve o mesmo ser revogado;
14.ª - Por outro lado, as medidas concretas da pena aplicadas – bem como o cúmulo jurídico efectuado - são excessivas e exageradas, atenta as finalidades da pena, a ausência de antecedentes criminais do Arguido e prognóstico favorável acerca do comportamento do arguido no futuro, considerando ainda outras situações de violência doméstica mais gravosas;
15.ª - Ora, tendo em conta os vectores da determinação da medida da pena e a moldura penal abstrata prevista (de dois a cinco anos de prisão), constata-se que a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela qual o Arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa de BB (cônjuge à data), é exagerada e excessiva, bem como ofensiva ao princípio da proporcionalidade;
16.ª - Uma pena excessiva não cumpre as finalidades de prevenção geral, porque intolerável comunitariamente, nem realiza as funções de prevenção especial, porque o agente não a aceita e tem-na por injusta, não exercendo uma função de emenda cívica, tornando-se um puro desperdício.
17.ª - Pelo que, no caso concreto a pena deverá conter-se perto do seu limite mínimo (dois anos) ou dele aproximar-se.
18.ª - Relativamente ao cúmulo jurídico, a pena conjunta deverá conter-se no seu limite mínimo (parcelar mais alta) ou dele aproximar-se, o que se requer;
19.ª - A douta sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios do sistema jurídico, os artigos 40.º, 42.º, 70.º, 71.º, e 152.º do Código Penal, assim como o artigo 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1. Foi determinada a reabertura dos inquéritos nº 1071/18.9 PZLSB e 620/19.0 PZLSB e a respectiva incorporação nos presentes autos, passando os factos ali denunciados a ser objecto de investigação conjunta com os que haviam sido objecto de denúncia no presente processo;
2. O mesmo sucedeu com o inquérito nº 10224/18.9 T9LSB que consubstanciava uma duplicação relativamente aos factos vertidos no inquérito nº 1071/18.9 PZLSB e que, por isso, foi objecto de incorporação nos mesmos;
3. Os factos pelos quais o inquérito nº 958/17.0 PZLSB foi objecto de suspensão provisória do processo foram aqui alegados, e dados como provados, a título meramente circunstancial.
4. Assim, o arguido nunca antes tinha sido julgado pela prática dos factos em questão, pelo que claro está que não se verifica qualquer violação do princípio ne bis in idem.
5. Todos os factos dados como provados se encontram devidamente circunstanciados no tempo e no espaço, obviamente com as limitações inerentes à pluralidade de situações que consubstanciam o crime de violência doméstica sendo, no entanto, devidamente balizadas no tempo e no espaço.
6. O recorrente nem sequer indica quais são os factos concretos que o Tribunal a quo deu como provados e que não concretizam a data e as circunstâncias em que ocorreram, pelo que essa análise se mostra desde logo prejudicada por falta da devida concretização/impugnação por parte do recorrente.
7. A matéria de facto foi correctamente apreciada, tendo sido dados como provados os factos relativamente aos quais foi produzida prova em julgamento, o que sucedeu com rigoroso respeito pelos princípios legais e constitucionais que norteiam o processo penal.
8. A exposição das crianças à violência interparental constitui uma forma de vitimização das mesmas, com sérias implicações no seu desenvolvimento.
9. Na vivência pelos menores CC, DD e EE de situações de maus-tratos físicos e psíquicos sobre a sua progenitora, foi a integridade psíquica dos mesmos lesada, pelo que deverão ser os referidos menores ser considerados como vítimas autónomas.
10. Havendo várias vítimas, o agente comete tantos crimes quantas as vítimas atingidas.
11. Bem andou o Tribunal a quo ao entender que os menores CC, DD e EE deverão ser considerados vítimas autónomas, ainda que indirectas, do crime de violência doméstica, nomeadamente na sua componente de violência psicológica.
12. O Tribunal a quo teve em conta todos os factores previstos no art. 71.º do Código Penal, conforme lhe era legalmente imposto e bem andou ao fixar as penas parcelares e a pena única aplicada ao arguido nos termos em que o fez, não tendo incorrida na violação de qualquer norma legal.
13. A moldura do cúmulo jurídico da pena única a aplicar ao arguido deveria ser fixada entre um mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão e 9 anos e 6 meses de prisão.
14. Decidiu o Tribunal a quo aplicar ao arguido AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares em que vinha condenado, a pena única de cinco anos de prisão, que decidiu suspender na sua execução, com sujeição a regime de prova.
15. Uma pena única de medida inferior àquela em que o arguido foi condenado seria claramente insuficiente e inapta a satisfazer as finalidades previstas no art. 40.º do Código Penal.
16. Entende-se, assim e em suma, que não merece a sentença recorrida qualquer censura, pelo que deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, e a sentença ser mantida nos seus exactos termos.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no qual acompanhou a argumentação já apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, no sentido da improcedência do recurso e da manutenção da decisão recorrida.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, as questões a decidir neste recurso consistem em saber se existe:
I. Violação do princípio ne bis in idem;
II. Violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa em processo penal – artigo 32º da Constituição, relativamente às “imputações genéricas” constantes da sentença recorrida;
III. Erro na qualificação jurídica da factualidade dada como provada;
IV. Erro na determinação das penas parcelares e do cúmulo jurídico.
Pese embora o recorrente, no corpo da sua motivação de recurso tenha aludido à falta de exame crítico da prova e à violação do princípio in dubio pro reo, por parte da decisão recorrida, a verdade é que o mesmo não levou tais matérias às suas conclusões de recurso, pelo que tem que se entender que as mesmas não fazem parte do objecto do recurso, nada havendo neste tocante a apreciar.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
1. Factos provados
Com interesse para a decisão da causa, dão-se como provados os seguintes factos:
Da acusação pública:
1) O arguido AA e a vítima BB casaram um com o outro em … de 2005.
2) Arguido e vítima são progenitores comuns de CC, nascido em ... de ... de 2007, DD, nascido em ... de ... de 2009 e EE, nascida em ... de ... de 2013.
3) Desde, pelo menos, o ano de 2010/11, o arguido passou, com frequência não apurada, a ingerir bebidas alcoólicas a ponto de, em algumas ocasiões, ficar embriagado, tendo já se submetido a tratamento do consumo de álcool, no âmbito de solução consensualizada aplicada no processo-crime com o NUIPC 958/17.0PZLSB em que a ora ofendida aí figurava também como vitima por factos ocorridos no dia 15-10-2017 integradores de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº1, al. a) e 132º, nº 2, al. b) do Código Penal.
4) Ao longo de todo o período compreendido entre os anos de 2010/2011 e o dia 6 de Junho de 2020, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, por vezes na presença dos três filhos menores comuns, por vezes quando aparentava já estar embriagado, o arguido declarou à vítima “TENS VÁRIOS AMANTES, ÉS UMA PUTA, ÉS UMA PORCA”.
5) Em algumas dessas ocasiões, de número não apurado, o arguido declarou à vítima, com foros de seriedade, que a matava e que lhe batia, expressões de que a vítima ficou sempre bem ciente, o que por vezes sucedeu na presença dos filhos.
6) Aquando dessas discussões, por vezes, o arguido agarrava os pulsos da sua mulher, com força, causando-lhe dores e hematomas.
7) Ao longo de todo o período compreendido entre 2010/2011 e o dia 6 de Junho de 2020, em várias ocasiões, de número não apurado, movido por ciúmes, o arguido envidou apurar junto de terceiros de identidade ainda não apurada, do círculo relacional da vítima, quanto aos horários e rotinas da vítima, para assim controlar o quotidiano da mesma bem como em alguns períodos a proibiu de trabalhar, dizendo-lhe que mulher sua não trabalhava.
8) No ano de 2011, a vitima sofreu um AVC que demandou um internamento hospitalar durante 1 mês, tendo inicialmente perdido os movimentos do lado esquerdo do corpo, necessitando de ajuda para as atividades mais básicas, como alimentar-se tendo ficado acamada durante 3 meses.
9) Não obstante, o arguido não a ajudava, designadamente a alimentar-se sendo auxiliada pela mãe e vizinha, e perguntava à vitima o motivo pelo qual a casa não estava limpa e por que é que não podia fazer nada sozinha.
10) Após a vitima retomar a mobilidade, o arguido não permitia que comprasse os alimentos recomendados medicamente para a dieta da vitima por serem muito caros, dizia que não podia sair de casa com roupa justa, curta ou decotadas nem se maquilhar porque se estava a exibir para outros homens.
11) Quando BB pretendia dar a sua opinião sobre qualquer assunto familiar, o arguido que ela não mandava nada porque como ele é que trabalhava não tinha voto na matéria, não obstante a vitima não trabalhar por vontade do arguido.
12) Em 2013, em data não concretamente apurada, mas situada no 7º mês de gravidez da EE, numa discussão, o arguido levantou a mão para a vitima, o que a levou a deixar de partilhar o quarto.
13) Em 2016, ao arrepio da vontade do arguido, a vitima passou a trabalhar como empregada doméstica, tendo o arguido aumentado o controlo sobre o modo como se vestia.
14) No dia 15-10-2017, pelo menos CC e DD presenciaram o arguido a agarrar a mãe e a embater com a cabeça desta na parede e a atirá-la contra a parede, tendo tentado afastar o arguido da mãe e pedido socorro aos avós maternos que tinham passado a viver no mesmo prédio.
15) No dia 21 de Novembro de 2018, pelas 21h00, o arguido iniciou uma discussão com a sua mulher e disse-lhe “és uma puta, sua vaca, porca, não te vou facilitar a vida, isto não fica por aqui.
16) No dia 28-6-2019, pelas 19h30, o arguido apodou a sua mulher de puta e vaca.
17) No dia 6 de Junho de 2020, entre as 14h17 e as 18h17, o arguido enviou diversas mensagens à sua mulher, designadamente as seguintes:
Não pedi uma mulher traidora e tenho;
A minha escolha era ter uma mulher fiel e não traidora;
Eu casei contigo para criar família, tu casaste comigo para sair do pe da tua mãe,
Agora já não faço falta puta que pariu;
Podia ter dito a mais tempo não e pores os cornos agora não preciso vai embora na podia ter namorada e fazer vida;
Tu ficas bem tens família eu deixei tudo pela merda que arranjei e não foi por falta de aviso;
Sempre disseram que não servias para mim não aceitei agora toma la a razão
Perdi mae, irmãos, primos pai por ti não o devia ter feito
Nem devia ter casado contigo
Eu tento não lhes dar razão mas teem
Arranjaste outro porque não vais embora e levas os miúdos
Faz o que quiseres pode ser que a policia chegue e eu esteja morto vontade não me está a
falta até a faca está aqui
Depois fica com remorsos
Não apareças aqui
Traidora agora já sei
Com provas mandaram sms
Como é possivel
Agora podes chamar a policia adultera
Quero ver depois tenho fotos quero ver dizeres não es tu;
Tiran te fotografias
Nem tens resposta manda vir a policia eu mostro não tens coragem
Traiodora
Desta x tenho provas chama a policia traidora
Tenhom imagens tuas traidora eu já desconfiava agora tenho provas
Posso ussalas contra ti
E onde me trais
Eras santa
Quero ver dizer aos meninos a santa que es vou fazer de lhes mostrar
As fotos não fizem isso
Não é chatear fizeste merda andas com outro tenho fotos assume agora chama a policia
falei com a advogada agora a policia
Adultera
Pois não es puta sou eu
Fizeste meteste os cornos
3x
Nunca devia ter casado contigo bem disseram que eras fácil e oferecida, es uma merda de esposa”.
18) Como o arguido, com tais mensagens, fez crer à vítima que se iria suicidar, e que a culpa seria da vítima, esta deslocou-se então ao domicílio comum, sito na ..., aí encontrando o arguido, aparentando estar embriagado, com várias garrafas vazias de bebidas alcoólicas, mormente vinho, cerveja e bebidas brancas, junto a si.
19) O arguido declarou então à vítima “ÉS UMA PUTA, ÉS UMA PORCA, ÉS UMA ADÚLTERA, TENS AMANTES, DEVES ANDAR A FAZER BROCHES”.
20) A vítima deslocou-se então à esquadra da PSP sita no Campus da Justiça, em Lisboa, onde apresentou queixa, relatando os factos praticados pelo arguido.
21) Enquanto a ofendida esteve na esquadra o arguido, através do seu telemóvel, efetuou cerca de 60 chamadas telefónicas para a ofendida.
22) O efetivo da PSP acompanhou então a vítima ao domicílio comum, para que a mesma pudesse recolher alguns pertences, e para a proteger de eventual reação do arguido.
23) Aí chegados, pelas 20H30 do mesmo dia, encontraram o arguido a dormir na cama, com várias garrafas vazias de bebidas alcoólicas, mormente vinho, cerveja e bebidas brancas, junto a si.
24) Volvidos alguns instantes, o arguido acordou.
25) O arguido envidou então confrontar a vítima, dirigindo-se à mesma, tendo o caminho lhe sido barrado pelo efetivo da PSP, por receio do que o arguido pudesse fazer à vítima.
26) Por o arguido continuar a tentar chegar junto da vítima, o efetivo da PSP procedeu à sua algemagem.
27) Então, de viva voz e com foros de seriedade, o arguido declarou à vítima “VOU MATAR-TE, PUTA DE MERDA”, expressões de que a vítima ficou bem ciente.
28) Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar a vítima BB, inclusive no domicílio comum e na presença dos filhos menores comuns, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e mãe de seus filhos.
29) Ao agir da forma descrita, bem sabia o arguido que molestava fisicamente a vitima e lhe dirigia expressões de teor injurioso e intimidatório, causando-lhe receio pela sua integridade física e coartando a sua liberdade de escolha ao impor-lhe regras, designadamente quanto ao exercício de profissão, escolha de roupa.
30) Esteve sempre ciente o arguido de que ao agir da forma descrita o fazia na presença dos filhos menores comuns CC, DD e EE.
31) Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao expor os seus três filhos, de tenra idade, com quem coabitava, a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem seus filhos tinham profunda vinculação pessoal e afectiva, causava-lhes sofrimento e angústia, maltratando-os e turbando o processo de desenvolvimento das suas personalidades, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita.
32) Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Dos antecedentes criminais do arguido:
33) O arguido não tem antecedentes criminais registados no seu CRC.
Das condições pessoais, sociais e económicas do arguido:
34) O arguido encontra-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ..., desde 24-05-2023, à ordem do processo n.º 259/23.5GCMFR, que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
35) Antes de ser recluso, trabalhou até Fevereiro de 2023, numa ..., no turno da noite, ocupação profissional pela qual obtinha um rendimento entre € 1.200,00 (mil e duzentos euros) e € 1.300,00 (mil e trezentos euros) mensais.
36) Residia com FF, mais recente companheira, e com o filho de ambos, de 1 ano e 11 meses, numa habitação arrendada em ..., pela qual suportavam a renda de € 200,00 (duzentos euros).
37) Tem 3 filhos com a vítima nos presentes autos, encontrando-se estes aos cuidados da mesma
38) Tem o 9.º ano de escolaridade.
39) Do relatório social elaborado pela DGRSP consta que:
“AA, filho de pai incógnito, quarto de uma fratria de cinco irmãos uterinos, provém de um enquadramento familiar de origem desfavorável e de acentuada instabilidade, vivenciando continuadas situações de negligência e ausência de vínculos com figuras significativas. A figura materna assumia comportamentos de imprevisibilidade e de agressividade física na relação com os descendentes, sendo o arguido sobrecarregado com tarefas domésticas desproporcionais à sua idade e assumindo a responsabilidade de proceder ao pagamento das despesas do agregado. No contexto familiar de origem foi estando relativamente presente um companheiro da mãe, que mantinha em paralelo outro agregado constituído, com quem AA mantinha uma interação adequada, tendo dúvidas se este era o seu pai biológico. Igualmente, na adolescência, integrou este agregado um tio materno do arguido que mantinha hábitos excessivo de alcoolismo. De modo a contribuir para subsistência do agregado, AA ingressou precocemente no mercado de trabalho numa empresa de importação e exportação de revistas, interrompendo o percurso escolar durante um ano para acompanhar a irmã mais nova nas deslocações à escola, não chegando a concluir o ensino obrigatório. Aos 17 anos, por incompatibilidades com a figura materna, o arguido optou por autonomizar-se da morada de família, arrendando uma habitação e, iniciando, entretanto, o relacionamento afetivo com a ofendida nos autos, namoro que não era aceite pela mãe de AA por questões religiosas. De modo a contribuir para a subsistência do agregado constituído, AA foi mantendo hábitos regulares de trabalho no decurso da sua trajetória em áreas indiferenciadas, nomeadamente na …, em …, na … e numa …, mostrando-se investido no exercício de funções laborais. Em termos de características pessoais, do avaliado, AA mostra-se adequado na interação embora sejam evidentes vulnerabilidades pessoais decorrentes das suas vivências disfuncionais no contexto familiar de origem e consequentes dificuldades nas competências socio emocionais relacionadas com a gestão das emoções agravadas pela problemática de alcoolismo que mantém há quase duas décadas. O arguido mostra-se capaz de reconhecer de forma crítica comportamentos de natureza criminal idênticos aos dos presentes autos, embora os circunstancie na instabilidade pessoal decorrente do consumo excessivo de álcool, mostrando-se disponível para um tratamento efetivo e uma intervenção direcionada para os comportamentos de violência doméstica, na abordagem da disfuncionalidade das relações de intimidade e aprendizagem de estratégias que promovam a sua estabilização em termos psico emocionais”.
2. Factos não provados
Foram considerados como não provados os seguintes factos:
A. Após a vítima retomar a mobilidade após o AVC, o arguido não a deixava fazer caminhadas recomendadas pelo médico uma vez que estaria a exibir-se para outros homens.
B. A ofendida EE assistiu às agressões ocorridas a 15-10-2017 produzidas pelo arguido à ofendida BB.
Motivação da matéria de facto
Para formar a convicção do Tribunal, no que respeita aos factos provados e não provados, procedeu-se a uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento. Foi ainda tida em consideração toda a restante prova constante dos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, atendendo às regras da experiência comum, tendo sempre em consideração o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Nomeadamente, foram valoradas as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, assim como os depoimentos prestados, na mesma, pelas testemunhas BB, ofendida nos presentes autos, GG, mãe da ofendida BB, HH e II, agentes da PSP que presenciaram os factos ocorrido a 6 de Junho de 2020, JJ, tia da ofendida BB, KK, vizinha do casal desde o ano de 2011.
Foi igualmente valorada toda a prova documental constante dos autos, designadamente, o auto de notícia por detenção, de fls. 2 a 4, o auto de apreensão, de fls. 10 a 11, o auto de denúncia, de fls 15 a 20, os assentos de nascimento, de fls. 42 a 46, auto de cópia de mensagens, de fls. 515 a 523, CRC do arguido, de fls. 863 e o Relatório social elaborado pela DGRSP, de fls. 894 a 897.
Os factos n.ºs 1 e 2 resultaram provados por confissão do arguido quanto aos mesmos, assim como da articulação dessa confissão com o depoimento das restantes testemunhas e com os assentos de nascimento de fls. 42 a 46.
O facto n.º 3 resulta igualmente provado por confissão do arguido quanto ao mesmo, ou seja, que por volta dos anos de 2010/2011, consumia habitualmente bebidas alcoólicas em excesso e que foi sujeito a tratamento do consumo do álcool no âmbito de solução consensualizada em processo-crime aí melhor identificado, o que se comprova pelo documentos constantes dos autos a fls. 47 a 57 e 145 e seguintes.
O facto n.º 4 resulta igualmente provado, em parte, pelas declarações do arguido, que confirmou ter utilizado tais expressões, em algumas ocasiões, dirigindo-as, em discussões, à ofendida BB, porém, segundo o mesmo, nunca o tendo feito na presença dos restantes ofendidos, seus filhos, que normalmente estariam em casa dos avós, o que se demonstra, nesta última parte, pouco credível tal invocação. Desde logo, porque se encontra em clara contradição com os depoimentos das testemunhas BB e GG, que declaram, sem qualquer hesitação, que o arguido humilhava a ofendida BB em frente aos filhos, com recurso a essas expressões, o que é confirmado pelo declarado por CC e DD, nas declarações para memória futura constantes dos autos, onde estes referem que assistiram a algumas discussões entre os progenitores, onde o arguido apelidava a ofendida de “puta” e “vaca”, o que ocorria muitas vezes, pelo menos duas a três vezes por semana, à noite, quando o mesmo chegava a casa após o exercício da sua atividade profissional. Assim, terão necessariamente que ter ocorrido, pelo menos algumas dessas discussões, perante os filhos do casal, atenta a espontaneidade das suas declarações, pelo que se considerou, assim, como provado este facto.
Quanto aos factos n.ºs 5 e 6, o arguido negou categoricamente que os mesmos tenham ocorrido. Sucede que, quanto ao facto n.º 5, segundo declarado pela ofendida, em várias situações, que não consegue precisar, o arguido dizia perante os filhos que se a ofendida BB o tentasse deixar, a matava a ela e com quem ela estivesse. É certo que este é o único meio de prova que indica versão dos factos diferente da declarada pelo arguido, porém tendo em consideração, como adiante melhor se referirá, que a generalidade das discussões do casal tinham por motivo os fortes ciúmes que o arguido sentia de a ofendida BB ter relação com outras pessoas que não o próprio, o que o levava a exercer um controlo exacerbado sobre a mesma, reputa-se com enorme probabilidade que este facto tenha ocorrido como declarado pela ofendida e não como apresentado pelo arguido, motivo pelo qual se deu o mesmo como provado. Já quanto ao facto n.º 6, igualmente a ofendida, no seu depoimento, refere que era prática habitual do arguido, como forma de impor a sua autoridade sobre a ofendida, apertar-lhe os pulsos durante as discussões que mantinham, o que é corroborado pelo depoimento da testemunha JJ, tia da ofendida BB, que reputa ter verificado nódoas negras nos braços desta, numa situação entre os anos de 2017 e 2018, vindo a saber ser oriunda de uma discussão do casal, pelo que, nessa medida, se considerou o referido facto como provado.
O facto n.º 7 resultou provado parcialmente pelas declarações do arguido que, de forma objetiva, admitiu ter recorrido a amigos que averiguassem do dia-a-dia da ofendida BB, para dessa forma controlar os seus horários e deslocações. Quanto a ter imposto à ofendida uma proibição de esta trabalhar, refere o arguido que a decisão foi tomada em conjunto pelo casal, ponderando o custo/benefício de tal decisão, mais referindo que a mãe da ofendida BB apoiava-a a não trabalhar, já que era obrigação do arguido, como homem, obter rendimento que sustentasse o seu agregado familiar. Ora, dos depoimentos das testemunhas BB e GG, dispondo a primeira que até ao ano de 2015 não exercia qualquer atividade profissional por imposição do arguido, já que, segundo este, mulher sua não trabalha e não se anda a exibir nos transportes aos outros; já a segunda refere, sem qualquer dúvida, que o arguido se opunha a que a sua filha exercesse qualquer atividade profissional, o que é plena convicção deste Tribunal seria o que ocorreria, já que se reconduz a mais uma expressão da personalidade controladora do arguido demonstrada pela prova produzida nos autos, já que, quando a ofendida veio a arranjar um emprego, como forma de fazer face às despesas comuns e à impossibilidade de trabalhar do mesmo por acidente de trabalho, ocorrido no ano de 2016, o arguido era totalmente avesso ao facto de esta se encontrar a trabalhar, inexistindo qualquer indício de que a mesma não tivesse vontade de exercer uma atividade profissional ou que a mãe da mesma a isso a incentivasse. Tal determinação terá sido obra do arguido, de forma a limitar a exposição da ofendida BB a terceiros, o que lhe suscitava ciúmes, daí que se considere como provado este facto.
Os factos n.ºs 8 e 9 resultam novamente provados pelas declarações do arguido que, quanto aos mesmos, confirma que a ofendida BB sofreu o referido AVC, porém que não tendo ficado acamada 3 meses, referindo, no que ao facto n.º 9 diz respeito, que não a ajudava, durante o dia, nas suas necessidades básicas, uma vez que se encontrava a trabalhar, sendo para o efeito ajudada pela sua mãe e por uma vizinha. Revelou também o arguido que referia à ofendida o facto de a casa não se encontrar limpa, por saber que esta auxiliava a mãe na limpeza da casa desta, mas que não procedia à limpeza da sua própria casa. Ora, tal referência é pouco credível, já que experienciando a ofendida BB, por consequência do AVC, num momento inicial, perda de movimentos do lado esquerdo do seu corpo e tendo que ficar acamada durante período temporal expressivo, necessitando, aliás, de ajuda de terceiros para as suas necessidades mais básicas, não se compreende como poderia ajudar a sua mãe na limpeza da casa desta. Ainda que tal assim ocorresse, seria igualmente responsabilidade do arguido, como membro da família e do casal, o desenvolvimento de atividades domésticas, especialmente encontrando-se a ofendida, sua esposa, em tal condição. Já no depoimento da ofendida BB, a mesma revela que apenas poderia ser assistida por terceiros durante a ausência do arguido da habitação de ambos, uma vez que este impedia que terceiras pessoas a ajudassem e declara que o arguido lhe perguntava porque é que a casa não estava limpa, apesar da sua condição. Atenta a clara disparidade entre as declarações de ambos, são de atribuir maior credibilidade às declarações da ofendida, uma vez que melhor se enquadram na personalidade possessiva e controladora que a prova produzida demonstrou ser à data a do arguido, sendo para este função e responsabilidade da esposa o cuidado do lar e dos filhos, pelo que se deram como provados os factos referidos.
O facto n.º 10 resultou provado na totalidade, apesar de o arguido, nas suas declarações, ter refutado a grande maioria dos comportamentos nele descritos, à exceção do seu trecho final, quanto ao vestuário e uso de maquilhagem pela ofendida BB, o que o mesmo admite ter feito, em algumas situações, por não gostar da forma como a ofendida se arranjava para o exercício da sua atividade profissional. Quanto às caminhadas, as quais haviam sido prescritas pelo médico da mesma, o arguido referiu ter acompanhado a ofendida nas mesmas, inexistindo qualquer meio de prova que refute tal declaração, pelo que se considerou como não provado o facto A. Já quanto aos alimentos que compunham a dieta e a medicação prescrita, declarou o arguido nunca se ter oposto à compra dos mesmos, apesar do seu valor elevado, o que se encontra em clara contradição com o depoimento da ofendida BB, onde esta declarou que o arguido não lhos queria comprar pelo seu valor elevado e pelo facto de gastar o rendimento do seu trabalho em despesas próprias, nomeadamente, no consumo de bebidas alcoólicas. Atenta a contradição entre declarações, tendo em conta as dificuldades financeiras que o casal enfrentava e o facto de resultar do depoimento da testemunha GG que esta auxiliava o casal, na medida das suas possibilidades, com comida e ajudas monetárias, o que indica que o rendimento obtido pelo arguido não era suficiente para as despesas habituais do agregado familiar, pelo que se comprova, desta forma, que o arguido não adquiria os referidos bens por falta de capacidade económica. Quanto às imposições do arguido a nível do vestuário usado pela ofendida, a mesma confirmou o declarado pelo arguido, referindo que este se insurgia contra a sua utilização de saias, vestidos, ou calças justas, por entender que a mesma o fazia para se exibir para outros homens, o que, atenta o comprovado sentimento de ciúme demonstrado pelo arguido, se reputa como provado que o arguido terá dito essas expressões com esse intuito.
Os factos n.ºs 11 e 12 resultaram provados das declarações do arguido, que admite ter praticado as condutas neles descritos, dizendo à ofendida BB, em discussões, que como esta não trabalhava, não tinha o direito de declarar a sua vontade e divergir do arguido, apesar de a mesma, como já supra exposto, não trabalhar por imposição deste. Mais confirmou que empurrou a ofendida BB, durante o 7.º mês de gravidez da sua filha EE, e atirou-a para o sofá numa discussão sobre o seu consumo excessivo de álcool e a sua relação com outras mulheres.
O facto n.º 13 resultou provado pelas declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento, em que o mesmo confirmou que durante o ano de 2016, tendo sofrido um acidente de trabalho que o impedia de exercer a sua atividade, o que terá motivado a sua esposa a exercer uma atividade profissional por forma a fazer face às despesas do agregado. Reputa como verdadeira a menção de que tal decisão foi tomada ao arrepio da vontade do arguido, atentos os depoimentos da ofendida BB e de GG, em que as mesmas declararam que por ciúme obsessivo do arguido, o mesmo não queria que a esposa fosse exposta a relações sociais com outras pessoas, e que era extremamente controlador, especialmente com os horários e deslocações da vítima, o que, por si só, confirma que o mesmo era avesso a que esta desenvolvesse uma atividade profissional.
O facto n.º 14 resultou provado dos depoimentos das testemunhas BB, GG e pelas declarações para memória futura prestadas pelo ofendido CC, de onde resulta que a ofendida, tendo o arguido saído de casa para ir consumir bebidas alcoólicas, seguiu-o e quando voltaram para casa iniciou-se uma discussão, tendo por motivo a falta de condições económicas do casal e o consumo do mesmo de bebidas alcoólicas. Nessa discussão, entende este Tribunal que a versão mais credível dos factos corresponde à descrita pelas testemunhas referidas, e não à descrita pelo arguido, uma vez que as várias testemunhas depuseram de forma congruente e complementar quanto à atuação do arguido, tendo este agarrado BB e tendo embatido com a cabeça desta na parede e atirá-la para a parede, indo os referidos filhos pedir socorro a casa dos avós maternos.
Os factos n.ºs 15 e 16, resultaram provados dos inquéritos juntos aos presentes autos sob os n.ºs 1071/18.9PZLSB e 620/19.0PZLSB, admitindo o arguido a prática dos referidos factos, apenas não sabendo precisar se tais datas correspondem aos referidos eventos. O arguido admitiu com perfeita clareza que frequentemente existiam injúrias de sua parte à vítima BB, não sabendo este, atento o seu número, precisar em que datas os mesmos ocorreram.
Os factos n.ºs 17 a 32 resultaram provados pela conjugação da prova produzida em audiência de julgamento. O arguido, desde logo, confirma o envio das mensagens constantes do facto n.º 17, as quais constam igualmente do auto de cópia de mensagens, de fls. 515 a 523, pelo que, sem necessidade de mais prova, se tem o facto por provado. Seguidamente, declarou o arguido que, de facto, BB se deslocou ao domicílio comum, por este ter feito crer que se iria suicidar, porém não se encontrava embriagado, apesar das várias garrafas de bebidas alcoólicas que tinha junto de si, no quarto. Iniciou-se discussão entre o casal, na qual terá o arguido proferido as expressões vertidas no facto n.º 19, fazendo com que a BB abandonasse o domicílio comum e se dirigisse à esquadra da PSP do ..., onde apresentou queixa contra o mesmo. O arguido confirma igualmente ter ligado por diversas vezes para o telemóvel da ofendida nesse espaço temporal, desconhecendo, porém, quantas foram ao certo. BB foi então, acompanhada por efetivo policial composto pelos agentes da PSP HH e II, os quais depuseram indicando que acompanharam a ofendida à residência comum para recolha dos seus pertences, vindo a encontrar o arguido a dormir no quarto, mas ao fim de algum tempo acordou, ficando muito alterado pela presença policial na sua habitação, tendo estes tentado acalmá-lo, o que se revelou infrutífero, especialmente quando este se apercebeu que BB se encontrava acompanhada por estes e o motivo da sua deslocação. Assim, o arguido tentou abeirar-se da ofendida, com vista a tirar satisfações com esta, o que foi impedido pelos referidos agentes. Após várias investidas com o mesmo intuito e tendo sido advertido para as consequências de não desistir de tal pretensão, veio o arguido a ser projetado contra a cama e a ser algemado. Quando tal sucedeu, referiram os agentes indicados que este proferiu “SUA PUTA DE MERDA, VOU-TE MATAR”, alto e em bom som, para que a vítima se inteirasse das mesmas. Seguidamente, foi o arguido transportado à esquadra na viatura policial, nestes termos, atenta a espontaneidade, clareza e concretização dos depoimentos dos agentes, assim como por se encontrarem em concordância com o depoimento da ofendida, deram-se como provados os factos descritos.
É indubitável atento tudo o supra descrito que o arguido tinha concreta noção da gravidade das suas condutas, pretendendo com as mesmas humilhar e menosprezar a vítima, mesmo que na presença dos seus filhos, apesar dos deveres legalmente impostos, especialmente oriundos do casamento entre ambos, não se coibindo de a injuriar, intimidar e agredir a ofendida BB, na sua integridade física e psíquica e na sua liberdade de autodeterminação, bem sabendo, como não podia ignorar, que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
Quanto aos antecedentes criminais - facto n.º 33, teve-se em consideração o CRC do arguido junto aos autos, a fls. 227.
Os factos n.ºs 34 a 39 foram considerados provados, atentas as declarações prestadas pelo arguido quanto às suas condições pessoais, sociais e económicas, que se tiveram por sinceras e credíveis, porquanto não foram contrariadas por quaisquer outros meios de prova, e do teor do relatório social elaborado pela DGRSP, a fls. 187 a 189.”
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3.2.- Mérito do recurso
A)Violação do princípio ne bis in idem
Alega o recorrente que o Tribunal a quo ao dar como provados os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 16, violou o princípio do “ne bis in idem”, previsto no art.º 29º da CRP, porquanto tais factos foram já objecto dos processos nºs 620/19.0LSB, 1071/18.9PZLSB, 10224/18.9T9LRS e 958/17.0PZLSB, incorporados nos presentes autos, que foram arquivados e/ou terminaram com uma suspensão provisória do processo.
Vejamos se lhe assiste razão.
O princípio ne bis in idem encontra-se consagrado no art.º 29º, nº 5 da CRP, onde se prevê que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Importa, pois, determinar o que se deve entender por “o mesmo crime”.
Compulsados os autos, constata-se que o Ministério Público, por despacho datado de 1/07/2020, determinou a reabertura dos processos 1071/18.9PZLSB e 620/19.0PZLSB e a incorporação dos mesmos nos presentes autos, passando os factos ali denunciados a ser objecto de investigação conjunta com os que haviam sido objecto de denúncia no presente processo.
Quanto ao inquérito nº 10224/18.9T9LSB, por despacho de 6/12/2018, o Ministério Público considerou que o mesmo se tratava de uma duplicação relativamente aos factos vertidos no inquérito nº 1071/18.9PZLSB, tendo ordenado a incorporação destes naqueles autos.
Os autos de inquérito nº 1071/18.9PZLSB, que incorporaram os autos nº 10224/18.9T9LSB, respeitam a factos praticados pelo arguido a 21/11/2018 e foram arquivados, nos termos previstos no art.º 277º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, por falta de indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica na pessoa de BB, quando considerados individualmente os referidos factos.
Os autos de inquérito nº 620/19.0PZLSB respeitam a factos praticados pelo arguido a 28/06/19 e foram igualmente arquivados, nos termos previstos no art.º 277º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, por falta de indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica na pessoa de BB, quando considerados individualmente os referidos factos.
Sucede, porém, que o crime de violência doméstica tem natureza pública, tendo o Ministério Público decidido proceder à reabertura do inquérito pelos factos praticados pelo arguido a 21/11/2018 e a 28/06/19 e incorporar os processos nº 10224/18.9T9LSB e nº 620/19.0PZLSB nos presentes autos, procedendo à acusação do arguido pela prática de um só crime de violência doméstica na pessoa de BB.
Já os autos de inquérito nº 958/17.0PZLSB respeitam a factos praticados pelo arguido a 15/10/17, dia em que o mesmo, no interior da residência comum, agarrou BB pelo pescoço e empurrou a sua cabeça contra a parede do quarto. Estes autos dizem respeito a um crime de violência doméstica na pessoa de BB e foram objecto de arquivamento, nos termos previstos no art.º 277º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, por se ter considerado que os factos não integravam a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica na pessoa de BB.
Nos presentes autos, relativamente ao dia 15/10/17, deu-se como provado que:
“14) No dia 15-10-2017, pelo menos CC e DD presenciaram o arguido a agarrar a mãe e a embater com a cabeça desta na parede e a atirá-la contra a parede, tendo tentado afastar o arguido da mãe e pedido socorro aos avós maternos que tinham passado a viver no mesmo prédio.”
Ou seja, relativamente a estes factos, o arguido foi acusado e condenado nos presentes autos pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa dos seus filhos e não na pessoa de BB.
Impõe-se, assim, concluir que o arguido nunca antes tinha sido julgado pelos factos que constam da acusação pública nos presentes autos e pelos quais foi aqui condenado.
Face ao exposto, entende-se que não se verifica qualquer situação de ne bis in idem, não assistindo razão ao recorrente quanto a esta sua alegação.
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B) “imputações genéricas”
Alega também o arguido que a sentença em crise deu como provados diversos factos que não explicitam detalhadamente a data e as circunstâncias em que alegadamente ocorreram, em decorrência do despacho de acusação do Ministério Público que faz imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas, nomeadamente do tempo em que ocorreram, o número de vezes e as circunstâncias, pelo que tal factualidade deverá ser desconsiderada e/ou considerada não escrita.
Entende, para tanto, que a sentença recorrida não descreve e não precisa a data e as circunstâncias em que nomeadamente ocorreram os factos dados como provados em 4, 5, 6, 7 e 11.
Tais imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas, nomeadamente do tempo em que ocorreram, o número de vezes e as circunstâncias, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e do direito de defesa consagrado no art.º 32º, nº 1 da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, devendo ser tidas como não escritas.
Apreciemos esta sua pretensão.
Na verdade, tal como alega o recorrente, a acusação não pode conter “imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente” ( como se decidiu no Acórdão do TRP de 24/11/2021, proferido no processo n.º 304/20.6PAVLG.P1, em que foi relator João Pedro Pereira Cardoso, in www.dgsi.pt ).
Porém, entendemos não ser esse o caso dos presentes autos.
É que, conforme se decidiu neste último acórdão citado, “relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio; o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação.”
Diz-nos a experiência comum que determinadas condutas e comportamentos humanos, tipificados como crimes, não são passíveis de concretização rigorosa quanto ao dia e à hora em que ocorreram, sobretudo quando se prolongam no tempo, não sendo exigível à vítima que memorize todos os dias, horas e lugares onde ocorreu cada uma das condutas criminosas, como é comum suceder nos crimes de violência doméstica.
Nestas situações, a descrição factual tem que ser tanto quanto possível espácio-temporalmente concreta, ainda que por referência, por exemplo, apenas ao ano, como sucede no caso em apreço, para permitir que o arguido se possa defender.
Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 28/04/2021, proferido no processo nº 4426/17.2T9LSB.L1-3, em que foi relator João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido que as imputações genéricas, destituídas de especificação e de concretização sobre o tempo, o modo e o lugar da prática dos factos, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e impedirem o exercício do direito de defesa, constitucionalmente consagrado (…).
Para ser justo e equitativo, o processo tem de garantir a possibilidade de o arguido contradizer a acusação ou a pronúncia e de se defender de uma forma efectiva, o que exige especificação e concretização quanto ao modo, tempo e lugar dos eventos imputados. Por outro lado, também sabemos da existência de particulares dificuldades de investigação e de apuramento quanto aos exactos contornos dos factos relevantes em actividades criminosas como as de tráfico de armas, peculato ou branqueamento de capitais e uma especial exigência na particularização das circunstâncias fácticas do crime conduziria a intoleráveis níveis de impunidade.
Como escreveu no acórdão do STJ de 17-12-2020, proc. 2081/18.1T8EVR.S1,
“o critério normativo da concretização dos factos nos moldes exigíveis para o exercício do direito de defesa e do contraditório colhe-se nos artigos 243.º1/a/b e artigo 283.º/3/b, Código de Processo Penal, impondo-se que a acusação (e a pronúncia) contenham, sob pena de nulidade, “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”
No mesmo sentido decidiu o Acórdão do TRP de 24/11/2021, proferido no processo nº 304/20.6PAVLG.P1, em que foi relator João Pedro Pereira Cardoso, in www.dgsi.pt, que: “ I - As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente.
II - Contudo, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio; o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação.
III - Resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram; relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente.
IV - Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado; a solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório.
V - Relevando a concretização dos factos ao exercício do contraditório, não se vê como este possa ter-se como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada.
Impõe o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que na fundamentação da sentença se faça a enumeração dos factos provados e não provados.
Ora, na seleção da matéria de facto, o Tribunal deve ater-se a factos, os quais são acontecimentos ou comportamentos devidamente individualizados e localizados no espaço e no tempo, não se devendo incluir na fundamentação da decisão conceitos de direito, proposições normativas ou juízos de valor.
Caso tal aconteça, estas asserções devem ser excluídas do acervo factual da decisão.
A jurisprudência maioritária tem entendido que as imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, com recurso a expressões vagas, imprecisas, nebulosas e obscuras, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente.
Nos termos previstos no art.º 32º, nº 5 da CRP, o arguido tem direito a conhecer os factos que em concreto lhe são imputados, para que os possa rebater e se defender, exercendo o seu direito ao contraditório.
Não são, assim, suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação do agente, nem as circunstâncias relevantes em que os factos ocorreram.
A imputação correcta dos factos tem de ser precisa e concreta e não conclusiva, assinalando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento ilícito do arguido, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar.
Contudo, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se assinalar a uma data e um local exactos, admitindo-se, quando tal não seja possível, que se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar, mas entre “x” e “y””.
Uma vez que a concretização dos factos visa permitir o exercício do contraditório, este não se pode ter como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada.
Mesmo que a acusação ou a pronúncia revelem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, se o arguido na sua contestação ou nas suas declarações em julgamento demonstra ter claramente identificado, interpretado ou compreendido os factos submetidos a julgamento, está assegurado o contraditório.
Na decisão recorrida, nos pontos 4, 5, 6, 7 e 11 dos factos provados, indicaram-se as seguintes expressões de certa forma vagas:
(…) 4. Ao longo de todo o período compreendido entre os anos de 2010/2011 e o dia 6 de Junho de 2020, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum (…)”
5. Em algumas dessas ocasiões, de número não apurado (…).
6. Aquando dessas discussões, por vezes (…).
7. Ao longo de todo o período compreendido entre 2010/2011 e o dia 6 de Junho de 2020, em várias ocasiões, de número não apurado (…).
11. Quando BB pretendia dar a sua opinião sobre qualquer assunto familiar, o arguido que ela não mandava nada porque como ele é que trabalhava não tinha voto na matéria, não obstante a vitima não trabalhar por vontade do arguido.
Quanto aos factos descritos em 4, 5 e 6, verifica-se que os mesmos se encontram balizados temporalmente, reportando-se os factos descritos em 5 e 6 ao período temporal indicado em 4, assim como se encontram circunstanciados espacialmente, tendo ocorrido no domicílio comum do casal.
Tais factos são passíveis de serem localizados não só no espaço, como no tempo, tendo sido possível ao arguido contextualizá-los e contraditá-los em julgamento, como sucedeu.
Quanto aos factos descritos em 7 e 11, o arguido reconheceu a localização espácio-temporal dos factos descritos em 7 e confessou parte dos mesmos, tal como confessou todos os factos descritos em 11, o se pode constatar na fundamentação de facto da sentença em apreço.
Assim sendo, na medida em que o arguido entendeu o que lhe era imputado e se conseguiu defender, não se mostra violado o art.º 32º da CRP, impondo-se julgar nesta parte improcedente o recurso, sem necessidade de mais considerandos.
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C) Qualificação jurídica dos factos
Alega ainda o recorrente que relativamente aos três crimes autónomos de violência doméstica nas pessoas dos filhos menores do casal, CC, DD e EE, as provas produzidas em julgamento não permitem, nem constituem fundamento suficiente para dar como provados os factos apurados.
Alega também, que a prova produzida não permite a sua condenação autónoma pela prática de três crimes de violência doméstica na pessoa dos filhos menores, pois apenas se provou que os menores CC, DD e EE presenciaram as ocasiões em que o arguido terá ofendido a sua mãe e a agressão física do dia 15/10/2017, mas não se apurou que o arguido alguma vez tenha ameaçado ou maltratado os filhos, nem praticado qualquer conduta que visasse directamente os filhos, pelo que não se pode concluir que o mesmo praticou o crime de violência doméstica p. e p. pela alínea d) do art.º 152º do Cód. Penal relativamente aos mesmos.
Vejamos se lhe assiste ou não razão.
Importa, antes de mais, considerar que o recorrente não impugnou a matéria de facto apurada na decisão recorrida, pelo que a apreciação jurídica a fazer se terá que reportar necessariamente aos factos tal como constam descritos naquela decisão.
O crime de violência doméstica está tipificado no art.º 152º do Cód. Penal, onde se prevê que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.” (sublinhados nossos )
Quanto ao que se deva entender por violência doméstica, estabelece-se no art.º 3º, alínea b) da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e ratificada por Portugal em 2013, que: “violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima”.
O nosso Código Penal prevê este tipo de ilícito no título dedicado aos crimes contra as pessoas, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, sendo o bem jurídico protegido mais amplo do que o previsto na citada Convenção, pois abrange, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, punindo os comportamentos lesivos da mesma ( cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. I, págs. 329 a 339 ).
Tem-se observado, no entanto, alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica.
Porém, em geral, apontam-se como tuteladas pela citada norma a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar, sendo a estrutura “família” o que se toma como ponto de referência da normativização prevista no nº 1 do art.º 152º, sem que seja, no entanto, a “família” a figura central alvo de protecção, mas antes a pessoa que nela se insere, individualmente considerada.
(cf., neste sentido, Nuno Brandão, in «A tutela penal especial reforçada da violência doméstica», Julgar”, nº 12, págs. 9 e seg., Plácido Conde Fernandes, in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), págs. 304 e 305, e Augusto Silva Dias, in «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110).
Como se defendeu no Ac. do STJ de 20/04/17, proferido no processo nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1, em que foi relator Nuno Gomes da Silva: “A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.
Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.
Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.
Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.”
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, outro familiar ou pessoa com quem se partilhe o lar.
Fruto de uma longa evolução da consciência comunitária quanto à gravidade e censurabilidade de comportamentos que têm o ambiente familiar e as relações de intimidade por pano de fundo, o actual art.º 152º do Cód. Penal pune condutas aptas a colocar em causa bens jurídicos que são emanação directa da dignidade da pessoa, como sejam a saúde, a vida, a integridade física e a liberdade individual, para salvaguarda do direito que qualquer pessoa tem a ser tratada com dignidade, sem ser humilhada ou vexada, sejam quais forem as circunstâncias em que se encontre e as relações que tenha com outras pessoas com quem viva.
A preocupação legislativa centra-se, assim, na tutela da posição mais fraca nas relações de poder/domínio que potencialmente surgem nas formas de relacionamento de maior intimidade, designadamente na família enquanto célula social fundamental, e encontra raízes no princípio da solidariedade que enforma todo o nosso ordenamento jurídico.
Como refere Nuno Brandão, in ob cit., pág. 18, confere-se uma “(…) tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível.
O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige, assim, uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, seja conjugal ou idêntica à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, familiar ou outra.
O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
Com particular acerto, pode ler-se do sumário do Ac. do TRG de 15/10/2012, proferido no processo nº 639/08.6GBFLG.G1, e que foi relator Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt: “ I) A revisão do CP de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou de «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do CP) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a "reiteração" de comportamentos. II) Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do citado artº 152º do CP, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação. III) A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. III) Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.”
Ou seja, se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, mas não o da violência doméstica.
A doutrina tem definido o crime de violência doméstica como um crime habitual.
Refere Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 314, que: “Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”.
A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é determinante para as consequências jurídicas do facto, ou seja, para a punição do agente. Há pluralidade de crimes se forem vários os preceitos violados ou se for o mesmo preceito violado várias vezes, pluralidade esta que só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo.
Dispõe o art.º 30º, nº 1 do Cód. Penal que: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
O crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, enquadra-se não só na figura de crimes habituais, mas também na categoria de crimes prolongados, protelados ou de trato sucessivo, desde que exista uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa, desde o início assumida pelo agente.
É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade da atuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de trato sucessivo num só crime.
Neste sentido se decidiu no Ac. do STJ de 29/11/2012, proferido no processo nº 862/11.6TAPFR.S1, em que foi relator Santos Carvalho, in www.dgsi.pt: “(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal Anotado” de P. P. Albuquerque)”.
Importa ainda ter em conta, como se referiu no Ac. do TRE de 8/01/2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC.E1, em que foi relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt., que: “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.
Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”
Conclui-se, assim, que para haver violência doméstica é necessário que haja uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração, que da parte do agressor haja uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento ou menosprezo, e que da parte da vítima exista o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual, verificando-se ainda um desequilíbrio entre a afirmação de uma igualdade jurídica consagrada na lei e uma desigualdade de estatuto económico e social que se imponha como realidade de facto.
Importa ainda ter em conta que são também abrangidos pelo tipo penal os casos de «micro violência continuada», que Nuno Brandão, in ob. cit., caracterizou pela “opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.
É este o caso abordado pelo acórdão do TRC de 7/10/2009, proferido no processo nº 317/05.8GBPBL.C2, em que foi relator Mouraz Lopes, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: a “ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa.”
Voltando ao caso dos autos, vemos que o recorrente alega que a matéria de facto dada como provada não permite concluir pelo preenchimento do tipo da violência doméstica relativamente aos seus filhos menores, porquanto não se apurou que o arguido tenha tido algum acto lesivo direcionado aos mesmos.
Conforme ficou supra referido, o Tribunal a quo deu como provado que:
- o arguido vivia com a sua mulher, BB, e os três filhos menores do casal, CC, DD e EE, no domicílio comum;
- ao longo de todo o período compreendido entre os anos de 2010/2011 e o dia 6 de Junho de 2020, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, por vezes na presença dos três filhos menores comuns, por vezes quando aparentava já estar embriagado, o arguido declarou à vítima “TENS VÁRIOS AMANTES, ÉS UMA PUTA, ÉS UMA PORCA”;
- em algumas dessas ocasiões, de número não apurado, o arguido declarou à vítima, com foros de seriedade, que a matava e que lhe batia, expressões de que a vítima ficou sempre bem ciente, o que por vezes sucedeu na presença dos filhos;
- aquando dessas discussões, por vezes, o arguido agarrava os pulsos da sua mulher, com força, causando-lhe dores e hematomas;
- quando BB pretendia dar a sua opinião sobre qualquer assunto familiar, o arguido dizia que ela não mandava nada porque, como ele é que trabalhava, não tinha voto na matéria, não obstante a vítima não trabalhar por vontade do arguido;
- no dia 15/10/2017, pelo menos CC e DD presenciaram o arguido a agarrar a mãe e a embater com a cabeça desta na parede e a atirá-la contra a parede, tendo tentado afastar o arguido da mãe e pedido socorro aos avós maternos que tinham passado a viver no mesmo prédio;
- ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar a vítima BB, inclusive no domicílio comum e na presença dos filhos menores comuns, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e mãe de seus filhos;
- ao agir da forma descrita, bem sabia o arguido que molestava fisicamente a vítima e lhe dirigia expressões de teor injurioso e intimidatório, causando-lhe receio pela sua integridade física e coartando a sua liberdade de escolha ao impor-lhe regras, designadamente quanto ao exercício de profissão, escolha de roupa;
- esteve sempre ciente o arguido de que ao agir da forma descrita o fazia na presença dos filhos menores comuns CC, DD e EE;
- bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao expor os seus três filhos, de tenra idade, com quem coabitava, a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem seus filhos tinham profunda vinculação pessoal e afectiva, causava-lhes sofrimento e angústia, maltratando-os e turbando o processo de desenvolvimento das suas personalidades, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita;
- agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Ora, em face desta factualidade dúvidas não restam de que se mostra, efectivamente preenchido o elemento objectivo do tipo legal da violência doméstica, previsto no art.º 152º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal, pois os comportamentos do arguido, ao longo de um largo período temporal, traduziram-se em inúmeras e reiteradas agressões físicas e psicológicas e em humilhações e vexames, lesivos da saúde e da honra da sua mulher, mãe dos seus filhos, na presença destes últimos e no domicílio partilhado por todos.
O facto de não se ter provado que o arguido bateu, ameaçou, injuriou, humilhou ou vexou directamente os seus três filhos, não é suficiente para se poder concluir que o mesmo não praticou o crime de violência doméstica relativamente aos menores.
Na verdade, durante vários anos, o arguido sujeitou os seus filhos a assistir a comportamentos de grande agressividade física e verbal contra a sua mãe, fazendo com que os mesmos vivessem num ambiente de terror psicológico, na eminência de que tais comportamentos pudessem, a qualquer momento, eclodir, sobretudo tendo em conta a dependência do arguido do consumo de bebidas alcoólicas.
Em face disto, dúvidas não podem haver de que tais comportamentos do arguido provocaram necessariamente danos psicológicos nos menores, que viviam num ambiente familiar pouco securizante, com um pai que era suposto respeitar a mãe e proteger os filhos, mas que a qualquer momento os podia sujeitar a presenciar cenas de violência física e verbal para com a sua mãe, sem para tal demonstrar qualquer inibição.
O facto de os menores terem sido sujeitos pelo arguido a presenciar tais comportamentos durante vários anos teve necessariamente consequências nocivas no seu saudável crescimento, equilíbrio e desenvolvimento psicológico, em moldes tais que são merecedores da tutela do direito.
Qualquer criança ou jovem tem direito a crescer e a se desenvolver num ambiente familiar saudável, isento de discussões e conflitos, sem medo de, a qualquer momento, o pai poder agredir física ou verbalmente a mãe ou de verem o pai ter para com a mãe atitudes de desrespeito pelas suas características e qualidades.
O arguido, ao privar voluntária e conscientemente os seus filhos, durante vários anos, de viverem e crescerem num ambiente familiar isento de conflitos, agressões e discussões, infligiu-lhes maus tratos psicológicos idóneos ao preenchimento do elemento objectivo do crime de violência doméstica, não podendo tal matéria, pela sua gravidade, configurar apenas uma circunstância agravante da pena aplicada pela prática do crime de violência doméstica relativamente à mãe dos menores.
Não se desconhece a existência de alguma jurisprudência em sentido contrário ao ora defendido.
No entanto, considera-se que a posição assumida é a que se mostra conforme à mais recente opção legislativa, decorrente da entrada em vigor, a 17/08/21, da Lei nº 57/2021, de 16/08, que alargou a proteção das vítimas de violência doméstica, alterando a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, o Código Penal e o Código de Processo Penal.
A Lei nº 57/2021 alterou, nomeadamente, a definição de “vítima” constante da alínea a) do art.º 2º da Lei nº 112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, a qual passou a ser a seguinte:
“a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica;” (sublinhados nossos)
Em face desta alteração legislativa, entende-se que foi opção do legislador considerar também como vítimas do crime de violência domésticas as crianças e jovens até aos 18 anos que presenciaram situações de violência doméstica ocorridas entre os seus progenitores ou entre as pessoas com quem viviam, como sucede no caso dos presentes autos.
E esta situação de violência doméstica é tanto mais grave, quanto é certo que as crianças e jovens se encontram numa situação de completa dependência emocional e económica dos adultos com quem vivem, sem terem qualquer possibilidade de evitar serem expostas às situações de violência que eclodem entre os adultos que as deveriam proteger.
É também esta a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem“, 5ª edição atualizada, 2022, Universidade Católica Editora, pág. 668, onde se pode ler que: “ (…) Havendo várias vítimas, o agente comete tantos crimes quantas as vítimas atingidas. Por exemplo, no caso de agressões de um progenitor a outro na presença de um filho menor, há concurso efetivo dos dois crimes de violência doméstica, o crime de violência física de que é vítima o progenitor agravado pela “presença de menor” e o crime de violência psicológica de que é vítima o filho que é praticado contra uma “pessoa particularmente indefesa”, em razão da idade (…) A solução do concurso efectivo de crimes de violência doméstica no caso mencionado é imposta agora pela Lei nº 57/2021, uma vez que o menor passa a ser uma vítima autónoma do crime (…).”
No mesmo sentido decidiu o acórdão do TRE datado de 24/05/2022, proferido no processo nº 981/21.0PCSTB-A.E1, em que foi relatora Beatriz Marques Borges, in www.dgsi.pt.
Mostra-se igualmente preenchido o elemento subjectivo deste tipo legal de crime, uma vez que resultou provado que o arguido actuou em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de atingir a ofendida, sua companheira e mãe dos seus filhos, na sua honra e consideração e de atingir e molestar a sua integridade moral e física, na presença dos filhos, apercebendo-se do prejuízo que lhes causava e querendo fazê-lo, tendo, por isso, agido com dolo directo, nos termos do art.º 14º, nº 1 do Cód. Penal.
Finalmente, é também de considerar que há lugar à agravação prevista no art.º 152º, nº 2, alínea a) do Cód. Penal, porquanto resultou provado que alguns dos factos foram praticados no domicílio comum.
Conclui-se, assim, que não merece censura o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado na decisão recorrida, devendo o recurso improceder também nesta parte.
D) Medida da pena
Nos presentes autos foi o arguido condenado:
a. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de CC, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de DD, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
d. pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pessoa de EE, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
2) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 77.º do Código Penal, condeno o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão cuja execução se suspende por igual período de tempo (5 anos), com sujeição a regime de prova e ao Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRSP e a homologar pelo Tribunal, direccionado para a prevenção da violência doméstica e para a problemática alcoólica, e na condição de o arguido:
(i) se afastar da residência e local de trabalho de BB, a uma distância de pelo menos 500 e 100 metros, respetivamente, pelo período da suspensão da pena;
(ii) não contactar, por qualquer meio, com BB, devendo os contactos relativos aos filhos menores de ambos ser assegurados por intermédio de terceiros, pelo período da suspensão da pena;
(iii) pagar no prazo de 2 anos à ofendida a quantia arbitrada a título de indemnização, devendo o arguido entregar esse dinheiro nos autos, entregando o Tribunal posteriormente o valor à ofendida.
O arguido alega que as penas que lhe foram aplicadas são excessivas e desajustadas, face à sua ausência de antecedentes criminais, devendo ser-lhe aplicadas penas de prisão, suspensas na sua execução, próximas dos seus limites mínimos, quer relativamente às penas parcelares, quer relativamente à pena única resultante do cúmulo jurídico de penas.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os crimes pelos quais o arguido foi condenado são punidos com pena de prisão de dois a cinco anos.
Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:
Artigo 71.º - Determinação da medida da pena
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Em matéria de concurso de crimes importa ter em conta o disposto no artigo 77º do Cód. Penal onde se prevê que:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena.
Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Para este autor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.
Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”
Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”
Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação ao arguido das penas em apreço pela seguinte forma:
“(…) Assim, e por imposição do art.º 71.º n.º 2 do Código Penal, importa fazer a seguinte ponderação:
- As exigências de prevenção geral que se fazem sentir são de grau elevado, porque existe uma necessidade de consciencializar os membros da comunidade sobre estes atos, atento o número de situações de violência doméstica julgados nos Tribunais, visto que são comportamentos cada vez mais frequentes e altamente lesivos para a dignidade das pessoas em contexto familiar.
- Quanto às exigências de prevenção especial, o arguido não tem registada qualquer condenação no seu Certificado de Registo Criminal, tendo prestado declarações em que admitiu muitos dos factos pelos quais veio acusado, associando a sua prática ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, porém tendo quanto a muitos deles tentado ludibriar este Tribunal com uma narração fáctica desconforme com a realidade, reputam-se de medianas as exigências de prevenção especial.
- Grau da ilicitude do facto – Atendendo ao número de situações praticadas pelo arguido e à sua recorrência e ao facto de se conduzirem na sua grande generalidade a situações de maus-tratos psíquicos, ainda que com consequências físicas, nomeadamente para a ofendida BB, reputa-se de mediana a ilicitude dos factos praticados pelo arguido.
- Sentimentos demonstrados pelo arguido na prática do crime – na prática dos factos, demonstrou o arguido pura indiferença pelos ofendidos como sua esposa e filhos, pelas suas integridades físicas e psíquicas, apesar das especiais relações familiares que sobre estes existem e dos deveres legais a que estava adstrito.
- A intensidade do dolo – o dolo do arguido já supra analisado como eventual reveste-se de elevada intensidade, assim como a sua culpa.
Tudo ponderado e considerado, entende-se ser adequada e suficiente a aplicação ao arguido AA de uma pena de 3 (três) anos e 6 meses de prisão, pelo crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida BB
Pinto, e a aplicação ao arguido AA de uma pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes praticados na pessoa dos seus filhos, CC, DD e EE, penas que se mostram compatíveis com a necessidade de o arguido interiorizar o respeito pelos bens jurídicos protegidos pela incriminação e se mostra congruente com a medida da respetiva culpa.
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4. Do cúmulo jurídico das penas aplicáveis
Dispõe o art.º 77.º do Código Penal que “1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
A moldura do cúmulo jurídico da pena única a aplicar ao arguido será de fixar entre um mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão e 9 anos e 6 meses de prisão.
Considerando os factos dados como provados e a personalidade do agente demonstrada no cometimento dos mesmos, pelo cometimento dos mesmos revelar um ilícito de mediana gravidade, revelador de uma personalidade obsessiva e desprovida dos valores do respeito que deve existir entre os membros de um agregado familiar e da integridade física e psíquica dos mesmos, seria de aplicar ao arguido uma pena muito próxima do limite médio da moldura do concurso. Porém, uma vez que o Ministério Público, ao abrigo do art.º 16.º n.º 3 do Código de Processo Penal, entendeu que ao arguido não deveria ser aplicada, em concreto, pena superior a 5 anos de prisão, por decorrência do n.º 4 da mesma disposição legal, está este Tribunal impedido de lhe aplicar pena superior a cinco anos de prisão.
Nesses termos e tudo ponderado, será de aplicar ao arguido AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares em que vinha condenado, a pena única de cinco anos de prisão, como decorre do n.º 1 do art.º 77.º do Código Penal. (…)”
Analisada a decisão, verifica-se que o Tribunal recorrido aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.
Ao contrário do que o recorrente alega, o Tribunal recorrido ponderou a sua ausência de antecedentes criminais.
Relativamente às necessidades de prevenção geral, estas revelam-se efectivamente elevadas, dado que existe uma necessidade bastante premente de proteção dos bens jurídicos tutelados por este ilícito criminal, máxime, o respeito pela dignidade da pessoa humana, relevando aqui o facto de o crime de violência doméstica ser um crime que, pela sua violência e frequência, provoca forte alarme social.
O arguido foi condenado no mínimo da pena relativamente aos crimes praticados nas pessoas de cada um dos seus filhos.
A pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de que foi vítima BB teve em conta a gravidade e reiteração dos comportamentos do arguido para com a mesma, não merecendo a sua dosimetria qualquer reparo.
A pena do cúmulo jurídico fixou-se nos cinco anos, tendo em conta o limite máximo peticionado pelo Ministério Público.
Esta pena foi suspensa na sua execução, não tendo o arguido questionado esta circunstância, nem as condições a que a mesma foi sujeita.
Em face da matéria de facto apurada, entendemos que a quantificação das penas não se mostra desproporcionada, nem se mostram violadas as regras da experiência comum, estando as circunstâncias atenuantes e agravantes bem ponderadas, pelo que não se justifica a alteração das penas concretamente aplicadas ao recorrente.
Em face de tudo o exposto, impõe-se concluir que improcede, também neste tocante o presente recurso.
Não se considerando violadas qualquer das normas invocadas pelo arguido, nomeadamente os arts.º 40º, 42º, 70º, 71º e 152º do Cód. Penal, os arts.º 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa e o art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o recurso tem que improceder na sua totalidade.
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4. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente recurso, interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.
Notifique.

Lisboa, 11 de Julho de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Carla Francisco
Maria José Machado (com voto de vencido)
Sandra Oliveira Pinto

Voto de vencido de Maria José Machado:
“Vencida quanto à questão respeitante ao ne bis in idem designadamente em relação ao factos que foram investigados no âmbito dos inquéritos n.ºs 1071/18.9PZLSB e 620/19.0PZLSB, que o tribunal da 1ª instância, tal como resulta da fundamentação, deu como provados sob os pontos 15 e 16, porquanto, tenho entendido que tendo aqueles inquéritos sido arquivados por insuficiência de prova, a decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura da instrução, quer da intervenção hierárquica, tem a força de “caso decidido” e, por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura do inquérito, se admissível, os factos dele objecto não podem ser de novo valorados noutro processo para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente (cfr. neste sentido o acórdão da Relação do Porto, de 10/01/2018, processo n.º 821/16.2T9GDM.P1). Ora, embora isso não resulte claro da decisão, os inquéritos em questão não terão sido reabertos por haver quanto aos factos neles denunciados outras provas, mas sim porque o Ministério Público terá entendido que esses factos deveriam ser considerados para conjuntamente com os factos dos autos integrar a conduta do arguido num só crime de violência doméstica , o que a meu ver não é admissível, pois o que houve foi a prática de novos factos pelo arguido (novo crime) e não estamos perante uma única resolução criminosa relativamente a factos passados e arquivados por insuficiência de provas que perdurou no tempo e se manteve nos novos factos completamente autónomos dos denunciados naqueles inquéritos que foram objecto de arquivamento.
Por outro lado, ainda que não tenha havido impugnação da matéria de facto, entendo que os factos provados quanto à vítima EE, são genéricos, não determinados no tempo e desprovidos de carga negativa significativa que permitam o preenchimento do crime de violência doméstica, pelo qual o arguido foi condenado em relação a ela.
Assim, apenas condenaria o arguido pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da sua mulher, BB e de dois crimes de violência doméstica relativamente aos filhos menores CC e DD.”