RECURSO
JULGAMENTO
MATÉRIA DE FACTO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PLURALIDADE DE ACÇÕES
Sumário

(da responsabilidade do relator):
I - Não compete ao Tribunal de recurso efectuar um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída. Intervindo como uma solução correctiva para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida, só alterará a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida.
II – Uma pluralidade de crimes de abuso sexual de crianças deverá ser integrada na figura do concurso efetivo de crimes previsto no art.º 30.º/1 do Código Penal, não sendo aplicável a figura crime de trato sucessivo.
III O tipo penal de crime de abuso sexual de criança não permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida de diversos atos sexuais de relevo em momentos temporalmente distintos e fundada em sucessivas resoluções criminosas.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal de Sintra – J4 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Sintra, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em:
A) Julgar a acusação do Ministério Público totalmente procedente por provada e, em consequência:
1. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
1.1. Três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1 e 2 e art.º 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um dos crimes.
1.2. Em cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em 1.1.), nos termos do art. 77º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos de prisão.
2. Condenar o arguido AA na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente aos seus filhos, pelo período de 15 (quinze) anos (art. 69.º-C, n.º 3 do Código Penal), sem prejuízo da maioridade dos mesmos.
3. Condenar o arguido em 3 Ucs. de taxa de justiça, nos termos do art. 8.º, n.º 9, do RCP, em conjugação com a Tabela III anexa a este diploma
B) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB, parcialmente procedente e, em consequência:
a. Condenar o arguido/demandado AA a pagar à ofendida CC, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a que acrescem juros desde a presente data até integral pagamento, à respectiva taxa legal.
c. Absolver o arguido/demandado do demais pedido.
d. Condenar o arguido/demandado nas correspondentes custas cíveis.
e. Condenar a demandante nas correspondentes custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões:
« I - Quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade, prolongada no tempo, é difícil qualquer contagem, maxime sujeita ao arbítrio de quem decide.
A doutrina e a jurisprudência vêm tratando esta problemática com definições de crimes prolongados, protelados, exauridos, protraídos ou de trato sucessivo. Convencionando que há só um crime, desdobrável em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime tanto mais grave quanto mais repetido. No caso em apreço, a vítima é a mesma, houve uma homogeneidade na conduta do Arguido, e os tipos de ilícito individualmente considerados são os mesmos. Ocorreu assim, no entender do Recorrente uma unidade resolutiva, em que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o processo de motivação (vide Eduardo Correia 1968, pág. 201 e 202, citado por Pinto Albuquerque in Código Penal, Anotado).
No entanto, o tribunal a quo decidiu aplicar o art.º 30º, n.º 1 do Código Penal, com a soma de três crimes, desconsiderando a unificação dos vários actos sucessivos num só crime de trato sucessivo, em que outra seria a medida concreta da pena (art.º 412º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPP).
II - O que a experiência do homem médio nos ensina, é que qualquer perturbação derivada da dor causada no corpo de uma criança, desencadeia sempre uma espontânea reação de choro ou pelo menos de gemidos.
No caso do episódio da noite de 21 para 22 de março de 2023 (vide pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17 dos Factos Provados) é descrito um dos abusos com encosto de pénis erecto no órgão genital da vítima, mormente à vulva, com movimentos de fricção, provocando-lhe dores.
Mas nada se diz sobre ausência de gemidos ou choros da vítima a que atrás se alude, nem como tal foi possível sem que a mãe se apercebesse, quando é certo que partilhava a cama com o Arguido e os seus dois filhos menores.
Tal circunstância, suscita alguma dúvida razoável, não totalmente afastada, se atentarmos na lógica dos comportamentos dos seres adultos e das crianças.
Valendo aqui a invocação do princípio in dubio pro reo, já que, nenhuma outra prova complementar, mais credível, foi obtida para além daquilo que a criança relatou, e que é uma das vertentes da presunção de inocência consagrada no art.º 32, n.º2, 1ª parte, da CRP. Devendo assim, no entender do Recorrente, serem levados a “Factos Não Provados” os pontos 16º e 17º dos “Factos Provados” (art.º 412º, n.º3, alíneas a) e b) do CPP).
III - No entender do Recorrente, o douto acórdão reflecte excessiva credibilidade atribuída às declarações da menor versus veemente negação por parte do Arguido, já que a criança repete com os mesmos pormenores o que se terá passado com a actuação do Arguido, mas em ocasiões diferentes. Não se podendo ignorar que, nas declarações prestadas pela criança, há um padrão repetitivo - o de tocar na vulva, introduzir a ponta do dedo e movimentos e fricção com o pénis erecto. O que não abona em favor da relevada espontaneidade do depoimento da vítima no presente acórdão.
E que, em sede de livre apreciação da prova que assiste ao julgador, sempre questiona a subjectividade da sua livre convicção, mormente nestes casos de abuso sexual de crianças, sempre perturbadores da sensibilidade de um ser adulto, muito mais problemática para quem decide da liberdade ou da condenação de um acusado.
IV - No entender do Recorrente, há fundamentos factuais e processuais penais para a interposição do presente recurso, designadamente a interpretação que foi dada pelo douto acórdão ao art.º 30º do Código Penal, o não afastamento de toda a dúvida razoável decorrente das declarações da criança, e a impossibilidade de confirmar, por outros elementos de prova inequívocos, as declarações da vítima.
Sempre com o douto suprimento do tribunal superior e tendo como parâmetros os princípios comuns da lógica e da razão, resulta insuficiente a ponderação crítica efectuada pelo tribunal recorrido do que verdadeiramente terá acontecido na convivência do Arguido com a menor que considerava como filha e que se estende desde os cinco até aos sete anos de idade.
V - Da análise do relatório social emitido pela entidade independente da Reinserção Social resulta uma clara dissonância entre o comportamento do Arguido no seio da família e os factos por que foi condenado, nomeadamente a que foi relatada pela mãe da criança (vide ponto 34 dos “Factos Provados”).
O Arguido é primário, já conhece as agruras da reclusão, mais graves neste tipo de crimes, porque sofrem a reprovação dos outros presidiários, não obstante alguns cuidados das autoridades penitenciárias, nem sempre superáveis, e é nesta sede que se torna mais pertinente aqui relevar as finalidades das penas ínsitas no art.º 40º do Código Penal. Preceito este que aponta no sentido de que as decisões judiciais devem contribuir para a reintegração e não para a segregação dos Arguidos.
Sem conceder, em tudo o que atrás se invocou, o Recorrente vem pugnar, junto desse Alto Tribunal, pela alteração da dosimetria penal, com a fixação de uma pena mais justa. »
- das respostas -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo pelo acerto do acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal.
Respondeu igualmente a Assistente, concluindo igualmente que o acórdão recorrido não padece de qualquer violação de dispositivo legal e, consequentemente, o recurso apresentado pelo arguido não merece qualquer provimento.
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido do acerto do acórdão recorrido e da sua manutenção.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- do erro de julgamento da matéria de facto;
- do erro na qualificação jurídica – número de crimes;
- dosimetria da pena.
DO ACORDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada:
« 1. CC, nasceu em ...-...-2015, em ... e é filha de BB.
2. O seu pai biológico não quis reconhecer a sua paternidade, em ..., não tendo a criança disso conhecimento, reconhecendo, desde sempre, como seu pai, o arguido DD.
3. Fruto do relacionamento, desde 2017, entre BB e o arguido AA nasceu, em 2018, EE.
4. Desde o ano de 2021, que a família reside na ..., numa habitação cedida por uma tia do arguido que reside em ....
5. Desde a idade de 5 anos até aos 7 anos da CC, para satisfazer os seus instintos libidinosos, pelo menos, em três ocasiões distintas, o arguido começou a tocar com as suas mãos na vagina da CC e a introduzir a ponta do dedo, na vagina da criança, também friccionando o seu pénis na vagina daquela, provocando-lhe dores.
6. Com efeito, em data não concretamente apurada, mas ainda a CC não frequentava o 1.º ano do ciclo, já quando residiam em Portugal, sensivelmente, no ano de 2021, quando a CC tinha 5 anos, no interior da habitação, o arguido colocou uma das suas mãos na vulva da CC, esfregando e introduziu a ponta do dedo na vagina, provocando-lhe dores.
7. Outrossim, o arguido com o seu pénis erecto, encostou-o ao órgão genital da CC, mormente à vulva, fazendo movimentos de friccão, provocando-lhe dores.
8. Numa outra ocasião, em data não concretamente apurada, mas após a situação acima descrita, numa ocasião, em que estavam no quarto, à noite, estando a criança a dormir no beliche com o arguido e a sua progenitora com o seu irmão EE, o arguido começou a colocar a sua mão no interior das cuecas da CC.
9. Nessa ocasião, o arguido colocou uma das suas mãos na vulva da CC, esfregando e introduziu a ponta do dedo na vagina, provocando-lhe dores.
10. Outrossim, o arguido com o seu pénis erecto, encostou-o ao órgão genital da CC, mormente à vulva, fazendo movimentos de friccão, provocando-lhe dores.
11. Na noite de 21 para 22 de Março de 2023, devido ao forte odor no quarto da habitação, proveniente do emprego de um produto para o bolor nas paredes, BB e o arguido decidiram pernoitar na sala da habitação, tendo para o efeito, colocado dois colchões no chão.
12. Cerca das 22 horas, na hora de deitar, BB ficou numa das pontas do colchão e ao seu lado CC, ao lado desta o seu irmão EE e o arguido na outra extremidade da cama.
13. A CC tinha vestido uma camisola, calças de ganga, cuecas e meias.
14. A hora não concretamente apurada, mas antes das 02h15m, com o fito de satisfazer os seus instintos lascivos, o arguido colocou nas suas mãos óleo de bebé.
15. Seguidamente, levantou a CC e colocou a menina ao seu lado na cama.
16. Acto contínuo, colocou as suas na vulva da CC, esfregando e introduziu a ponta do dedo na vagina, provocando-lhe dores.
17. Outrossim, o arguido com o seu pénis erecto, encostou-o ao órgão genital da CC, mormente à vulva, fazendo movimentos de friccão, provocando-lhe dores.
18. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, e assim introduzir os seus dedos no seu órgão genital e tocar-lhe com o seu pénis erecto na vagina da CC, o que fez entre os 5 e os 7 anos de idade da CC, bem sabendo que se tratava de uma criança e que era filha da sua companheira, a quem trata de filha e esta como pai e, ainda assim não se coibiu de o fazer, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
19. Com a conduta descrita, visou ainda o arguido constranger a menor a contacto de natureza sexual contra a sua vontade, aproveitando-se da circunstância desta estar ao seu cuidado e, por isso, indefesa, valendose da privacidade que o recato do lar lhe proporcionava bem como e ainda da ascendência que sobre a mesma mantinha atenta a relação de coabitação, o que visou e conseguiu.
20. Ao agir da forma acima descrita, o arguido agiu ainda no propósito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos e impulsos sexuais e ainda assim não se coibiu de o fazer.
21. Actuou assim o arguido de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Condições socio-económicas do arguido:
22. O arguido veio para Portugal com o objetivo de obter a sua nacionalidade, através do pai, que é português e, consequentemente, obter melhores condições de vida.
23. Inicialmente, quando o arguido chegou ao país de acolhimento, chegou a residir junto da avó e também junto de um tio, no entanto, após ter consigo contrato laboral, passou a conseguir assegurar as suas necessidades diárias, tendo ido residir para a habitação pertencente à tia, em ....
24. O arguido AA residia com a companheira, com a enteada, CC e com o filho do casal, actualmente com 5 anos de idade.
25. A companheira, BB não trabalhava, tendo como objetivo contrair matrimónio com o arguido, após o mesmo ter a documentação legalizada, no caso do título de residência.
26. Actualmente, o casal tem mais uma filha, com dois meses de idade.
27. O arguido é natural de ..., tendo vivido juntamente com a mãe, já falecida e com o irmão uterino, actualmente com 31 anos de idade e residente no país de origem, durante a sua infância e adolescência.
28. A relação intrafamiliar era descrita como estruturada, com laços afetivos e tendo-lhe sido transmitido normas e valores pró-sociais. No que concerne à família paterna, pese embora o pai continue a residir em ..., não mantinha uma relação de proximidade.
29. Em Portugal, o arguido tem ainda dois irmãos germanos, com 25 e 18 anos de idade.
30. No que concerne a seu percurso académico, este ocorreu em ..., tendo terminado o equivalente ao 12º ano de escolaridade. Após o término do seu percurso escolar, integrou-se laboralmente como …, de forma a poder colaborar nas despesas diárias e necessidades básicas da família. Em Portugal o arguido estava integrado no mercado de trabalho, na sua área profissional, na … a desempenhar a função de servente, numa … no ..., sendo descrito como um funcionário pontual e assíduo.
31. O arguido refere ter um filho, actualmente com 13 anos, que reside com a mãe em ....
32. No que concerne à relação amorosa e de conjugalidade com BB, esta teve início no país de origem, desde que a filha da companheira tinha 3 anos de idade. A companheira, natural de ..., chegou a residir em ... durante cerca de 3 a 4 anos, tendo pedido asilo político. Nessa altura, AA visitava a família em ..., continuando a prestar o seu apoio. O filho do casal nasceu em ..., mas após ter o processo estar quase finalizado, foi emitida uma ordem de saída do país de acolhimento, com a emissão de um mandado de BB regressar ao país de origem com os dois filhos.
33. Na sequência desses acontecimentos, em dezembro de 2021, a companheira veio para Portugal para ficar junto do arguido. O casal residia na habitação cedida pela tia, em ..., tendo conseguido estabilizar a sua situação habitacional, financeira e profissional.
34. A relação afetiva é descrita por ambos, como uma relação positiva. A companheira descreve o arguido como bom pai para os filhos, nomeadamente para a sua filha, tendo sido sugerido pelo próprio a sua perfilhação, uma vez que a criança não tem nome do pai biológico. Quando vieram para Portugal, mantinham uma rotina funcional, com a gestão diária semanal, enquanto o arguido se encontrava a trabalhar e durante os períodos de lazer, mantinham atividades lúdicas e recreativas com as crianças.
35. Actualmente e após a reclusão de AA, BB encontra-se a residir nos apartamentos do ..., após ter sido sinalizada pela LNES – Linha Nacional de Emergência Social - Linha 144, por se encontrar em situação de vulnerabilidade social (não tendo habitação, nem situação regular documental e profissional), tendo a seu cargo três crianças. A enteada e o filho do casal encontram-se em equipamento educativo, em ..., sendo que a alegada vítima beneficia de apoio psicológico regular. O filho do casal também beneficia de acompanhamento clínico por ter sido diagnosticado com Síndrome de ….
36. O arguido AA beneficia de apoio por parte da família paterna, nomeadamente por parte de um primo, FF, natural de ... e que se encontra a residir em Portugal há cerca de seis anos e que o visita no Estabelecimento Prisional da ... bem como lhe presta o seu apoio no que concerne a bens essenciais e ao carregamento dos cartões de cantina e telefone. O arguido mantém contacto telefónico regular com BB, com vista a obter informações acerca dos seus filhos.
37. Quanto aos factos que lhe são imputados o arguido nega-os, desresponsabilizando-se na generalidade das ações, apresentando uma fraca capacidade de descentração, revelando dificuldades em estruturar um pensamento orientado para a concepção dos actos praticados de forma a gerarem uma mudança das suas condutas.
Do pedido cível:
38. Em consequência das condutas do arguido a ofendida CC ficou extremamente triste e angustiada.
39. E apresentou, mantendo, alterações no seu percurso escolar, tal como ansiedade, desconcentração, vergonha e tristeza profunda.
Outros:
40. O arguido não tem antecedentes criminais.
Apenas restou como não provado que: “BB foi adormecer o EE, ficando a CC com o arguido na sala”.»
FUNDAMENTAÇÃO
- do erro de julgamento da matéria de facto;
Pretende o Recorrente que se reconheça ter ocorrido um erro de julgamento relativamente aos factos 16 e 17, os quais deveriam ser dados como não provados.
No seu entender, no episódio de abuso da noite de 21 para 22 de Março de 2023, é de questionar a congruência da afirmação de provocação de dores na vulva da criança com os movimentos de fricção do pénis erecto do arguido, num espaço circunscrito por dois colchões compartilhado pelo Arguido e pela sua companheira BB, sem que a criança gemesse ou chorasse.
Avança ainda com a discordância do acórdão relativamente à excessiva (no seu entendimento) credibilidade atribuída às declarações da menor perante a veemente negação por parte do Arguido.
Vejamos, então.
Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de ........2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
- As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas e nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento.
- Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade pelo que só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
- Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»]
Por tudo isto, perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B].
Consequentemente, o recurso de impugnação ampla merece especiais imposições fixadas na lei, a saber, no art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Impõe-se, então, ao Recorrente que indique os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados bem como os meios de prova e respectiva interpretação, avaliação, que imponham decisão diversa daquela produzida em primeira instância.
Caso o Recorrente entenda existirem provas que devam ser renovadas terá que os indicar especificadamente e expor as razões que justifiquem que a dita renovação evitará o reenvio do processo tal como resulta do art.º 430.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio da indicação da prova produzida, caso tenha sido sujeita a gravação, exige-se ao Recorrente a referência ao que tiver sido consignado na acta, devendo o recorrente apontar as passagens das gravações em que fundamenta a sua pretensão recursiva. Não lhe bastará remeter para a totalidade de um ou de vários depoimentos, mas sim indicar as concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas no Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 412.º/4 e 6 do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012, in DR, 1.ª de 18.04 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Aqui chegados, cumpre expressar a conclusão que se impõe no que toca à impugnação ampla e sua apreciação. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).
Compulsadas as motivações do Recorrente, constatamos que a sua dissidência relativamente ao acórdão recorrido centra-se em dois argumentos, ambos sem sustento.
No primeiro, diz o Recorrente que, atentas as circunstâncias nas quais terão ocorrido os factos, não é verosímil que a vítima não tenha feito barulho bastante para acordar a mãe, posto que se provou que lhe foram causadas dores.
Dado que em momento algum foram graduadas tais dores numa escala de intensidade, é manifestamente subjectivo e conclusivo o juízo do Recorrente. A afirmação de que a menor teria que ter produzido barulho (choro ou gritos) que acordassem a mãe não tem qualquer sustento na prova produzida (nem o Recorrente a indica) sendo algo que não pode resultar das regras da experiência comum, como o pretende em sede recursiva.
O segundo argumento versa sobre a credibilidade dada ao depoimento da vítima quando contrariada pela negação do Arguido. Não aponta, porém, passagens concretas do depoimento daquela e das declarações deste para exemplificar as razões pelas quais, ao invés do decidido, deverá imperar a sua versão, negando os factos.
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, que permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção do julgador, desde que logre justifica-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. Alcançamos, então, a evidente conclusão de que o Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
No caso concreto, quanto à fundamentação sobre a ocorrência dos factos provados, escreveu o Tribunal a quo:
« O Tribunal fundou a sua convicção, no que diz respeito à matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental e pericial constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede, com apelo ainda às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127º do Código de Processo Penal.
Como sucede na grande maioria das situações em que estão em causa crimes de natureza sexual, sobretudo os perpetrados contra menores, os factos tendem a acontecer longe dos olhares de terceiros, num ambiente de secretismo, clandestinidade ou encobrimento, sem testemunhas e sem deixar grandes vestígios ou indícios , sendo esse mesmo ambiente que facilita, por um lado, a conduta do agressor, ao mesmo tempo que, por outro, gera sentimentos de recriminação e vergonha na própria vítima, justificando a sua tardia denúncia e a forma como a mesma acaba por vivenciá-los e relatá-los .
In casu, o arguido quis prestar declarações aceitando, apenas, a factualidade vertida na acusação nos pontos 1 a 4.
Quanto à demais factualidade, negou-a veementemente.
Nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório disse o arguido que “naquela noite” dormiram na sala (por causa do bolor) onde colocaram os colchões.
Cerca das 02:00 horas acordou com os meninos em cima si pelo que se levantou e foi à casa de banho. Que colocou óleo nas mãos e quando voltou para a cama pegou na CC e colocou-a ao lado na mãe. Recorda que a CC não dormiu mais até que a mãe acordou e abraçaram-se. Foram para casa de banho e demoraram muito. Nessa altura foi interpelado pela ofendida que o confrontou com o facto de ter tocado na “xixinha da CC” e ficou agressiva, trancando-se no quarto, ao que se seguiu, no dia seguinte a ida ao hospital e demais diligências.
Que sempre a considerou a CC com sua filha, tendo-a conhecido aos três anos de idade.
Confrontado com o relato de em outras ocasiões ter tocado na CC (segundo a menina) negou, dizendo que se tal aconteceu foi sem intenção no âmbito da educação.
Confrontado com a existência de óleo na vagina da menor não soube explicar, reiterando que a pegou pela cintura.
Assim, e em face da postura do arguido, de negação dos factos, foram atendidas e analisadas as seguintes provas que suportaram a convicção do Tribunal.
Nesta tarefa foram avaliadas, por constituírem prova adquirida nos autos, as declarações para futura memória prestadas pela menor CC.
As declarações da menor, com registo de imagem evidencia um depoimento franco, embora tímido, sem contradições quanto aos actos sexuais descritos, procurando esclarecer pormenores sempre que o instada para o efeito.
De igual modo, é manifesto que não se esquiva a respostas e não tem um depoimento que denuncie qualquer vontade de vingança que possa condicionar a verdade das suas palavras.
A menor descreve os factos com o rigor possível em face das perguntas que lhe são feitas, mas sem discurso ensaiado, respeitando uma cronologia mais ou menos seguida na sua cabeça, mas de forma pouco precisa, esforçando-se por descrever pormenores que lhe são perguntados.
As perguntas feitas são essencialmente abertas, como se impõe, sem prejuízo de alguma concretização de actos que se pretendeu ver esclarecidos e que poderá ter motivado um ou outra pergunta fechada, embora atinentes a pormenores da narrativa já feita de forma livre pela menor, as quais não põem em causa, nem condicionam, o circunstancialismo descrito sobre os abusos e o autor dos mesmos.
É ainda de evidenciar que não se registam contradições, muito embora a idade da menor e a sua capacidade cognitiva condicionem a descrição dos factos, mormente, lembramos, a título de exemplo, quanto à periodicidade destas práticas (número de vezes), às circunstâncias que antecederam a sua execução (mormente, quanto às razões que motivaram a que o pai dormisse junto dela, /ou estivessem todos a dormir na sala) existência ou não de penetração do pénis na sua vagina (até por desconhecer o acto e/ou a sensação).
Feita esta primeira apreciação sobre a capacidade da menor para depor e da verosimilhança das suas declarações, passamos, então, a narrar o que disse.
Assim, a menor CC logrou descrever o agregado familiar, as respectivas actividades e região(ões) em que residiu, de forma satisfatória e ajustada à idade, sendo que à data das suas declarações frequentava o 2º ano.
No primeiro episódio que relata, exemplifica com recurso aos Bonecos Anatomicamente Correctos (evidenciando a menor conhecimento ajustado e correcto dos órgãos sexuais, apontando-os e identificando-os nos corpos do Bonecos) que estava todos a dormir na sala, num colchão, quando pai a retirou de junto mãe (ao lado da qual estava deitada), e a colocou junto dele, trocando-a de posição com o irmão mais novo (de 4 anos).
Descreve que sentiu “uma coisa no pipi, óleo” que o pai esfregou, o que “fez doer um bocadinho”. Acrescentou que “ele pôs a pilinha no meu pipi”, respondendo afirmativamente à pergunta, “ele pôs-se em cima de ti?” e exemplificando o acto com recurso aos Bonecos. No detalhe às perguntas feitas pormenoriza que ele “mexia-se”, que “era uma coisa grande” e a sensação “era escorregadia”. No decurso das declarações revela a forma como pai lhe mexia “no pipi”, dizendo e exemplificando que metia, pelo menos a ponta do dedo “a unha”.
Estes actos aconteceram sempre na casa da “tia do pai” referindo-se à casa onde a família residia e identificada na acusação, sendo que na primeira vez a pequenita anda não andava na escola e que tais actos aconteceram muita vezes.
Detalha um outro episódio, em tudo idêntico ao descrito, que terá acontecido no quarto, quando a mãe estava a adormecer o irmão no beliche de cima e a depoente se encontrava com o pai no beliche de baixo.
Os factos que descreve integram, sempre, a prática dos mesmos actos.
A par do relato da menor, a assistente, BB, mãe da menor CC, prestou um depoimento isento, coerente e detalhado sobre a noite de 22 de Março de 2023, a qual veio a despoletar o presente processo e a denunciar a actividade do arguido sobre a menor.
Assim, explicou que nessa noite foram dormir para a sala porque no quarto tinha sido aplicado um produto de limpeza do bolor.
Tendo despertado pelas 03:00 horas, apercebeu-se que a CC estava acordada, e não falava, pelo que a levou à casa de banho julgando que esta necessitava urinar. Ao baixar-lhe as calça e as cuecas apercebeu-se que a vagina da filha estava coberta de óleo e, ao explorar o tema, a menina contou que o pai lhe tinha metido o dedo no pipi, tocando nessa zona.
Com esta declaração da filha desencadeou, no dia seguinte, todo o processo de participação do ocorrido às autoridades.
De igual modo, e recordando o estado anímico da filha àquela data, refere que a mesma começou a ter um comportamento alterado na escola, pois recebia queixas da ... pelo comportamento, as quais, agora, e após conhecimento destes factos relaciona com os abusos.
No mais, descreveu o sofrimento da filha e a alteração comportamental com a revelação da situação por reporte à situação anterior.
De igual modo, as testemunhas GG, psicóloga clínica, que acompanha a ofendida desde a denúncia dos factos e a testemunha HH, ... da mesma desde o 2º ano, confirmaram as alterações comportamentais que a menor apresentou e apresenta, descrevendo o sofrimento que esta evidencia, em tudo compatível com o trauma emergentes de abuso de jaez sexual.
De salientar que as alterações comportamentais da menor no sentido de apresentar irritabilidade, desconcentração, isolamento e tristeza são temporalmente coincidentes com leitura, na escola do livro “O teu corpo é teu”, no âmbito do qual as crianças foram sensibilizadas para o tema de não se normal e adequado que terceiros toquem no corpo das crianças. Esta conversa parece ter despertado a menor para o desajuste da conduta a que vinha sendo exposta por parte do arguido desde os seus cinco anos de idade, conforme relato da menina.
Também estas testemunhas mostraram um depoimento isento, credível, revelando conhecimento directo da matéria sobre a qual depuseram.
A par da narrativa emergente das testemunhas supra-referida, importa relacionar os seguintes elementos que resultam dos autos, mormente:
- do exame médico realizado à menor CC no dia seguinte à noite em que é reportado o abuso, resulta que a menor apresentava “ligeira hiperemia vulvar” o que é compatível com a pressão do pénis e/ou manipulação da zona, sendo aliás a impressão clínica dos médicos avaliadores de “abuso sexual provável” (vide ficha clínica a fls. 12 dos autos relativa a avaliação do dia 22.03.2023); De igual modo, aquando da avaliação do acto médico a menor terá descrito os actos, constando da referida ficha que “o padrasto mexeu na rg genital com o dedo e com o pénis. Diz que magoou só um pouco, não terá feito força para penetrar. Refere que não terá sido a primeira vez que o padrasto fez algo parecido. Refere que começou a fazer “isto” quando vieram de ... (Dezembro de 2021). Nesta altura não viviam juntos (…) que não costuma magoar”.
- do exame comparativo entre o perfil de ADN do arguido e o material biológico colhido à menor no dia 22 de Março de 2023 (em sede de perícia de índole sexual pelo ..., cf. exame fls. 126/127, ponto C) que se mostra junto a fls. 155- 159 resulta que a menor apresentava “presença de perfil genético do arguido na região genital” (retirado do cotonete e toalhita com que foi limpa a região da menor após os reportados contactos – manipulação e do pénis, assim como das cuecas que vestia). (vide fls. 290)
Do exposto, e como começamos por referir, encontrámos nas declarações da menor um relato espontâneo dos factos, ainda que através de uma narrativa mais vaga, a qual é melhor detalhada mediante a colocação de questões mais directas, as quais não beliscam a verosimilhança do narrado, como, aliás, a descrição supra evidencia.
Com efeito, a menor identifica o autor dos actos e os comportamentos que terão ocorrido, referindo o contacto entre o órgão genital do arguido e o seu; os locais onde tais actos ocorriam; algum pormenor quanto à posição de ambos com recurso aos Bonecos Anatomicamente Correctos.
Deste modo, a menor acaba por conferir vários pormenores sobre o local, a roupa de vestia, a roupa que era despida, a indicação sobre a sensação que tinha ao sentir o pénis na vulva, referindo que “era uma coisa grande” e a sensação “era escorregadia” e que o pai era “mexia-se”, sem conferir qualquer significado a este acto o que revela a absoluta falta de conhecimentos sobre a sexualidade, e por outro, valida a veracidade do relato.
De notar que as falhas de memória que são admitidas ao longo do relato através das expressões “não me lembro”, não sei dizer” são entendidos como critério de credibilidade porquanto nas falsas declarações as crianças tendem a reproduzir o discurso demasiado rígido.
Destarte, com apoio nas declarações da menor (que referiu que a primeira vez ainda não andava na escola), em conjugação com as declarações da mãe (que referiu que a CC entrou para a escola aos 6 anos de idade) o Tribunal não teve dúvidas quanto ao início e termo da actuação do arguido e da natureza dos actos praticados nos moldes dados por assentes, ou seja, a primeira vez terá ocorrido quando esta teria 5 anos idade e a última vez no dia 22 de Março de 2023.
E no detalhe dos actos a menor relatou a colocação do pénis da zona vulvar (que designou de pipi), referindo que por vezes doía. E que o pai também mexia com os dedos, o que exemplificou, referindo que metia a unha, daqui se extraindo que colocava a ponta do dedo. Que os actos eram sempre os mesmos e ocorreram em diversas ocasiões distintas e muitas vezes.
A sensação de dor descrita é compatível, pela anatomia da menor, com a mera pressão do pénis erecto na zona vulvar sem penetração do mesmo e, é disso evidência a ligeira hiperemia vulvar que a menor apresentava no exame médico realizado no dia 22 de Março de 2023, logo após um dos contactos descritos (último).
Destarte, da conjugação de toda a prova supra evidenciada, com suporte essencial na narrativa da menor e com total apoio nas evidência físicas encontradas como foram os vestígios biológicos do arguido na zona vulvar da menina; o óleo que esta apresentava na vulva na noite de 22 de Março de 2023 em consonância com o seu relato, também confirmado ela mãe, tudo enformado pelas evidentes alterações psicológicas e comportamentais que a menor passou a apresentar e melhor descritas pelas testemunhas, GG, psicóloga clínica que acompanha a menor CC e HH, ... da CC, dúvidas não resultaram para este Colectivo da actuação do arguido nos moldes descritos, pelo menos no número de vezes mencionado no acervo acusatório.
Também os factos provados relativos às consequências psicológicas que advieram para a ofendida, considerou o Tribunal, tendo em atenção natureza dos factos, as declarações da assistente e das testemunhas acima referidas.
As demais testemunhas ouvidas nada disseram que infirmasse a factualidade dada por assente.
Todos os depoimentos mostraram-se isentos, não revelando as testemunhas qualquer animosidade para o arguido e, como tal, credíveis.».
Aqui chegados, cumpre reconhecer o acerto da fundamentação reproduzida. O Tribunal cuidou de apreciar os meios de prova que lhe foram presentes em julgamento e fê-lo de forma clara, coerente e justificada. Expôs o raciocínio que seguiu e a convicção alcançada, não se vislumbrando qualquer razão de censura.
Uma última palavra para a alusão, nas conclusões, ao princípio do in dubio pro reo no que toca à valoração comparativa das declarações do Arguido e do depoimento da menor. Apoiando-se nesta argumentação, entende o Recorrente que o Tribunal a quo teria que ser confrontado com dúvidas perante tal contradição de versões, não podendo proceder a uma valoração desfavorável ao Arguido.
Como já vimos acima, não é reconhecido à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova. Ora, o que o Recorrente defende é que teve dúvidas quanto aos factos, atenta a prova produzida. Logo, se o Tribunal não teve as mesmas dúvidas, violou o princípio do in dubio pro reo.
Naturalmente, esta é uma visão equivocada da questão, já que o Tribunal, com a amplitude permitida pela livre apreciação da prova, superou as dúvidas que poderia ter e produziu uma decisão fundamentada na qual expressa como chegou aos factos provados. Não se vislumbra qualquer vício argumentativo que questione tal grau de certeza e, do conjunto da prova produzida, não se alcança a existência de uma dúvida tão evidente que o Tribunal a quo não pudesse ignorar.
«O princípio in dubio pro reo resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 14/01/2014, Desembargadora Alda Tomé Casimiro, ECLI:PT:TRL:2014:76.10.2GTEVR.L1.5.8C]
Conforme referido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/2010, Desembargador Artur Oliveira, [ECLI:PT:TRP:2010:997.08.2GCSTS.P1.3F] «O princípio in dubio pro reo pressupõe que, após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos; não de uma dúvida hipotética e abstracta, sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas antes de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Só há violação do princípio in dubio pro reo quando for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece».
Com efeito, «A diversidade das versões não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.»
[ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 30/09/2009, Desembargador Gomes de Sousa, ECLI:PT:TRC:2009:195.07.2GBCNT.C.71].
Apesar de limitado na amplitude do seu conhecimento sobre a matéria, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/11/2022, Conselheiro Orlando Gonçalves, [ECLI:PT:STJ:2022:76.20.4T9VLS.L1.S1.75], segundo o qual «Se na fundamentação da sentença/acórdão oferecida pelo tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
No caso em apreciação, não é nesta perspetiva que o recorrente coloca a questão, mas antes no entendimento, seu, de que a prova produzida em julgamento impunha uma diversa decisão da que foi tomada, como se verifica quando defende, designadamente, que face à ausência de provas impunha-se ao tribunal de 1.ª instância e ao da Relação ter dúvidas sobre os factos dados como provados, o que traduz diferente questão, apreciada no âmbito do erro de julgamento no acórdão recorrido.»
Podendo a Relação ir mais além - «Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo, de que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo» dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.
Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova.
Não se compreende que se siga o mesmo raciocínio na Relação.
O princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, e nessa perspectiva, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 07/05/2019, Desembargador Jorge Gonçalves, ECLI:PT:TRL:2019:485.15.0GABRR.L2.5.86] – certo é que, na decisão que nos ocupa, não se vislumbra existirem razões que imponham a invocada dúvida, quando confrontados com a decisão de facto recorrida e a fundamentação que a acompanha, atentas as provas produzidas em audiência.
«O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02/11/2021, Desembargador Luis Gominho, ECLI:PT:TRL:2021:50.19.3JELSB.L1.5.F1]
Logo, no caso concreto, não se mostra violado o princípio do in dubio pro reo, como pretendido pelo recorrente.
Assim, e como acima se referiu, não compete ao Tribunal de recurso efectuar um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída. Intervindo como uma solução correctiva para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida, só alterando a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, alcançamos o juízo de validação do acórdão e da sua manutenção, inalterado, no que à matéria de facto respeita.
- do erro na qualificação jurídica – número de crimes;
Perante os factos provados, entende o Recorrente que estaríamos sempre perante um único crime, de trato sucessivo, com diversas acções.
Atentando ao disposto no art.º 30.º do Código Penal, encontramos a regra essencial para apreciar se o entendimento do Recorrente merece acolhimento. Diz tal preceito que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
A previsão do crime continuado, do n.º 2 deste artigo, é imediatamente afastada pela exclusão do n.º 3, posto que estamos perante crimes contra bens eminentemente pessoais.
Poderemos estar aqui perante um crime de “trato sucessivo”? A resposta é manifestamente negativa.
Entende este Tribunal que uma pluralidade de condutas integradoras de crimes de abuso sexual de crianças deverá ser vista como concurso efetivo de crimes previsto no art.º 30.º/1 do Código Penal, não sendo aplicável a figura crime de trato sucessivo. Entende-se, pois, que este tipo de crime não permite que se possa entender apenas como uma única comissão a prática repetida de diversos atos sexuais de relevo em momentos temporalmente distintos e fundada em sucessivas resoluções criminosas.
Socorremo-nos aqui do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.2022, Conselheiro Orlando Gonçalves [ECLI:PT:STJ:2022:500.21.9PKLSB.L1.S1.19], de cujo sumário se retira: « I - Embora a jurisprudência do TJ se tenha mostrado dividida quanto à aplicação da figura do crime exaurido ou de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, atualmente e desde há alguns anos atrás, consolidou-se jurisprudência, cremos que unanimemente, no sentido da integração da pluralidade de condutas integradoras de crimes de abuso sexual de crianças, na figura do concurso efetivo de crimes previsto no art.30.º, n.º1 do Código Penal, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo.
II - Em parte alguma o tipo penal de crime de abuso sexual de criança permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida de diversos atos sexuais de relevo, em diversos dias, ao longo de vários meses ou anos, em momentos temporalmente distintos e fundada em sucessivas resoluções criminosas. A estrutura do tipo penal não contempla a reiteração, mas a punição da prática de «ato sexual», ou seja, de cada ato sexual, pelo que à pluralidade de atos sucede-se a pluralidade de sentidos de ilicitude típica.
III - Por outro lado, se no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, o legislador afastou no art. 30.º, n.º 3 do CP, a punição do agente em termos de crime continuado, em que um dos pressupostos é a diminuição sensível da pena, por maioria de razão não se poderá unificar num único crime “de trato sucessivo”, as diversas condutas do agente, quando este nem sequer preenche os pressupostos do crime continuado, pois o sentido de ilicitude e de censura são agravados com as sucessivas violações do bem jurídico, facilitadas pela fragilidade da vítima em resultado da sua idade.
IV - Como bem realça Paulo Pinto de Albuquerque, o julgador ao punir crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando um dolo inicial que engloba todas as ações, praticaria uma fraude ao propósito do legislador.»
Perante esta jurisprudência, que se subscreve, naufraga a pretensão do Recorrente.
- dosimetria da pena.
Pela prática dos crimes em apreço fixou o Tribunal a pena de 5 anos de prisão por cada crime e, em cúmulo jurídico, fixou a pena única de 7 anos de prisão. A moldura penal abstracta é de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.
Na determinação da medida da pena há que atender ao critério estabelecido no art.º 71.º do Código Penal, segundo o qual «1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.»
Previamente, e como o impõe o teor do art.º 70.º do mesmo Código, há que dar preferência à punição com recurso a pena não privativa da liberdade caso a norma incriminadora preveja esta punição alternativa. No caso concreto, porém, tal não é uma opção possível.
Agora, para proceder à determinação do quantum concreto da punição, em primeiro lugar, há que atender à culpa. Sendo o juízo de culpa uma ponderação valorativa do processo de formação da vontade do arguido, tendo como critério aquilo que uma pessoa (enquanto homem médio com características pessoais similares à condição do agente) colocada na posição daquele faria perante a mesma situação, não poderemos deixar de a considerar muito elevada no caso que nos ocupa.
No fundo, o juízo de culpa releva, necessariamente, da intuição do julgador, sendo este assessorado pelas regras da experiência que lhe permitem proceder à valoração nos termos descritos. E no caso vertente, o arguido deliberadamente violou normas que punem actos de conhecida gravidade, socialmente perniciosos.
Encontrado o vector que limita o máximo concreto da pena aplicável, será ainda de ponderar: o grau de ilicitude dos factos e suas repercussões; a intensidade do dolo; as condições pessoais do arguido, suas habilitações literárias e situação económica; a sua conduta anterior e posterior ao facto – cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2006, Relator Juiz Conselheiro Santos Carvalho [ECLI:PT:STJ:2006:06P2681.A0] - «I - Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto… alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada…” (Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra Editora, p. 570).
II - “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” (mesma obra, pág. seguinte).
III - A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.
IV - “Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassáve1 de todas e quaisquer considerações preventivas…” (ainda a mesma obra, p. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (p. 558).».
Entramos aqui nas chamadas razões de prevenção especial, aquelas dirigidas ao infractor, e as razões de prevenção geral, dirigidas à comunidade.
As primeiras traduzem-se em duas vertentes, caracterizadas como positiva e negativa. A positiva respeitando às expectativas de ressocialização do condenado, e a negativa resultando da necessidade de prevenção da reincidência.
As segundas traduzem a necessidade de apaziguamento da comunidade em geral, eliminando sentimentos de impunidade, e reforçando a mensagem de que existem consequências para a prática de condutas que são criminosas e, desta forma, assegurando ao cidadão comum que o Estado e as suas leis estão activamente a promover a segurança e a paz social.
Seguindo estas indicações, valorou o Tribunal recorrido o seguinte: «No caso presente, são de sopesar as elevadíssimas exigências de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas violadas com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, sendo este jaez de comportamento dramaticamente crescente, com lesões irreparáveis produzidas ao nível do normal desenvolvimento psicológico do menor. Com efeito, estamos perante criminalidade gravíssima, que cria forte sentimento de repúdio e alarme na comunidade e que esta deposita e exige dos tribunais uma efectiva aplicação de penas que defendam e se ajustem aos bens jurídicos em causa, de modo a que não se crie o sentimento de impunidade. E não esquecendo que este sentimento ainda existe quanto a estes crimes porquanto praticados no seio da família e contra vítimas menores que não se fazem ouvir, o que cumpre definitivamente banir.
Por outro lado, e sem prejuízo de o arguido não ter antecedentes criminais registados, não podem postergar-se as prementes necessidades preventivas especiais que igualmente se fazem sentir, na medida em que o mesmo não assumiu a prática dos factos, adoptando, relativamente aos mesmos, uma postura de vitimização e de desresponsabilização, e revelou falta de capacidade de descentração (bem como de empatia para com a vítima), e total ausência de juízo de autocrítica ou autocensura, com o elevado risco de reincidência daí resultante.
Ainda a atender:
- a culpa do arguido que é agente que é elevadíssima;
- O grau de ilicitude dos factos, que é elevadíssima, moldando-se o dolo
do arguido no dolo direto;
- A grave violação dos deveres impostos ao agente, sobretudo dos deveres resultantes da relação de coabitação, já contemplada, contudo, pela agravante do art. 177º, n.º 1 al. b) do Código Penal, a que acresce o facto de o arguido e a menor se tratarem como se de pai e filha fossem e não olvidando as circunstâncias em que foram cometidos, na presença da restante família – companheira e filho;
- As consequências daí resultantes, que se afiguram muito graves e intensas, mormente a angústia e o sofrimento causados à vítima, com as consequências psicológicas daí resultantes, mesmo em termos de vida futura, sendo sempre uma incógnita as marcas psicológicas que permanecem e acompanharão a vítima por toda a sua vida com impacto relevante e decisivo;
- A variedade dos actos sexuais de relevo perpetrados, dentro do leque subsumível em tal conceito e o tempo em que duraram;
- A inexistência de antecedentes criminais registados pelo arguido;
- As características da respetiva personalidade, que a natureza dos actos em si mesmo revelam.
- As condições económicas, sociais e culturais do arguido, de onde se destaca pela inserção social com apoio familiar. (vide factos 22 a 36 provados).
- a postura do arguido de não reconhecimento dos factos e ausência de arrependimento e auto-censura dos factos.»
Ou seja, o Tribunal a quo valorou todos os elementos relevantes disponíveis para alcançar as penas de 5 anos de prisão por cada crime e de 7 anos de prisão de pena única.
Estando tais penas tão próximas do limite mínimo e tão distantes do limite máximo, nunca serão merecedoras de reparo por excesso. De facto, cinco anos por cada um dos crimes é o mínimo possível para assegurar a satisfação das necessidades de prevenção geral bem como de prevenção especial, sabendo que em não se aproximam tais penas do limite máximo decorrente da culpa que, como a avaliámos, é muito elevada.
Quanto à pena única, fixada no 1/5 do intervalo apurado, também a mesma se situa em tal patamar, em nada excedendo a medida da culpa ou as finalidades da punição, vistos os factos na sua totalidade e ponderadas as condições pessoais do Arguido.
Pelo exposto, decide-se manter inalteradas as penas parcelares e a pena única fixadas no acórdão recorrido.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o Recurso do Arguido e manter inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 4 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 11.Junho.2024
Rui Coelho
Manuel Sequeira
Alda Casimiro