CASO JULGADO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
CASO JULGADO FORMAL
CONTA BANCÁRIA
MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DE COGNIÇÃO
DESPESAS
PAGAMENTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PROVA VINCULADA
Sumário


I. O processo especial de prestação de contas é constituído por duas fases: uma, primeira, que visa apreciar e decidir da existência da obrigação de prestar contas (art. 942º do CPC), fase esta que consubstancia condição prévia e necessária à segunda fase e que tem, assim, natureza prejudicial; e, reconhecida que seja tal obrigação, uma segunda fase, que se destina à efetivação das demais operações de natureza essencialmente material, que visa a efetivação da prestação de contas cuja obrigação de as prestar foi reconhecida na primeira fase (art. 944º do CPC).
II. Contestada a existência da obrigação ou questionados os termos em que as contas devem ser apresentadas e sendo apreciada e decidida na 1ª fase a concreta obrigação de prestação de contas e o objeto dessa prestação, constituindo essa decisão pressuposto prévio e necessário da 2ª fase e, assim, tendo natureza prejudicial, tal decisão impõe-se , com força de caso julgado, na 2ª fase, delimitando tal prestação e o seu objeto, o que impede que, nesta, se venha a discutir novamente a obrigação e/ou o objeto dessa obrigação.
III. A matéria relativa ao julgamento “segundo o prudente arbítrio” a que se reporta o art. 945º, nº 5, do CPC, envolvendo a atendibilidade das circunstâncias de cada caso, a prova produzida sujeita a livre apreciação do julgador e o apelo às regras da experiência comum, insere-se no âmbito da decisão da matéria de facto e dos poderes da Relação nesse domínio, os quais são insindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Texto Integral

Recorrentes: AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG HH

Recorrido: II

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA e mulher, BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF e GG e marido, HH, todos residentes no Brasil, instauraram ação de prestação de contas contra II, onde concluíram pedindo que o réu preste contas do mandato sem representação que lhe foi conferido pelos autores, desde 04.08.2014 até 23.05.2016 e, consequentemente, que seja condenado no pagamento do saldo que delas se vier a apurar.

Alegaram, em síntese, que: são herdeiros de JJ, falecido a ...; fazia parte do acervo de bens a partilhar por óbito daquele o prédio urbano que identificam; por procuração notarial de 4.08.2014, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança, podendo receber os valores, representá-los junto ao Banco Espírito Santo, bem como para efeitos de participação do Imposto de Selo, nomeando-o representante fiscal em Portugal; no exercício do mandato, o réu vendeu o mencionado prédio, não prestando contas aos autores quanto à venda do bem imóvel, nem quanto ao montante depositado no Banco Espírito Santo, S.A.; foram-lhe também conferidos poderes especiais para os representar junto do Banco Espirito Santo e receber valores, desconhecendo o montante que estava depositado nesta instituição bancária e também não receberam qualquer valor referente aos depósitos bancários pertencentes a JJ.

2. Citado, o Réu contestou a obrigação de prestar contas.

Alegou, desde logo, que extrajudicialmente prestou contas à Drª KK, advogada mandatária dos autores; sem prescindir, prestou contas, em tal articulado, alegando que o preço da venda do bem imóvel ascendeu a € 47.555,63, suportou despesas que totalizam € 18.449,02, tendo um saldo a seu favor no valor de € 37.200,00.

Quanto às “alegadas contas bancárias de que o falecido era possuidor”, não teve nenhuma intervenção nas mesmas, sendo que o A. AA era co-titular das mesmas e movimentava-as, tanto quanto sabe o Réu, por via eletrónica ou quando vinha a Portugal, e, “por isso relativamente a dinheiros não pode prestar contas” pois que nunca o administrou nem em nome do falecido nem dos AA.

Formulou, ainda, pedido reconvencional 1

3. Notificados, os AA. contestaram as contas apresentadas, não aceitando nem o valor, nem a receita apresentada.

Alegaram que, pese embora o Réu tenha negado a movimentação das contas do Autor da Herança, este participou ao Serviço de Finanças, conforme Demonstração de Liquidação Provisória, o valor da herança como sendo de 102 398,76€, conforme doc nº 14 junto pelo R. e do qual resulta que este pagou o imposto dos AA sobre esse valor, no total de 9 318,52€.

4. Foi admitida a intervenção principal provocada, do lado ativo, dos sucessores de AA (despacho de 12.03.2018).

5. Aos 08.11.2017 e 30.05.2018, conforme atas respetivas, realizou-se a audiência final (nos termos do art. 942º, nº 3, 1ª parte, do CPC2) e, aos 10.07.2018, foi proferida sentença que julgou a existência da obrigação do Réu de prestar contas desde 04.08.2014 até 23.05.2016, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada em 11, 12 e 13 3.

6. Inconformados, os AA. interpuseram recurso de apelação (aos 28.09.2018), tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 07.11.2019, determinado a devolução dos autos ao Tribunal recorrido para fundamentar a decisão da matéria de facto no que respeita aos pontos 3 e 13 da decisão da matéria de facto provada, ao que foi dado cumprimento pela 1ª instância por despacho de 02.12.2019 4.

7. Por acórdão do mencionado Tribunal da Relação de 05.11.2020, transitado em julgado aos 18.03.2021 5, a apelação foi julgada parcialmente procedente, revogando-se o despacho de fls. 82 e segs [que admitira a reconvenção] e, bem assim, revogando-se, em parte, a sentença recorrida, nos seguintes termos:

“A) Não se admite a reconvenção deduzida pelo réu, sem prejuízo de serem atendidas na prestação de contas as despesas efectuadas pelo réu e referidas nos pontos 9. e 10. da factualidade provada;

B) Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, julga-se a existência da obrigação do requerido de prestar contas desde 04.08.14 até 23.05.16, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive.”

8. Por despacho de 21.04.2021, em obediência ao decidido no Acórdão mencionado no ponto anterior, foi notificado o Réu “para, no prazo de 20 dias, prestar contas desde 04/08/2014 até 23/05/2016 em forma de conta-corrente, especificando a proveniência das receitas e despesas, bem como o respetivo saldo, se o houver, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive.”

9. O Réu apresentou a prestação de contas, onde reiterou que nunca movimentou/administrou nenhuma conta do falecido, nem dos Requerentes.

Os AA contestaram tendo, para além do mais, alegado faltar a prestação de contas quanto às contas bancárias.

Tiveram lugar diligências de prova referentes ao apuramento das contas bancárias.

E, a 20.04.2023, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi, aos 08.06.2023, proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: “Julgo a presente ação parcialmente provada, e nessa medida procedente, e em consequência aprovo as contas prestadas pelo Réu, com o saldo líquido positivo no montante de € 35.514,77 (trinta e cinco mil, quinhentos e catorze euros e setenta e sete cêntimos) a favor dos Autores, a ser pago pelo Réu, devendo ainda este repor à herança a quantia, não justificada, de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) – ponto 10º dos factos provados, absolvendo o Réu do demais peticionado pelos Autores.”

10. Não se conformando com a sentença referida em 9), o Réu interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 22.02.2024, este o ora recorrido, decidido nos seguintes termos: “em julgar parcialmente provido o recurso de apelação, alterando a decisão recorrida e, em consequência, aprovam-se as contas prestadas pelo Réu nos termos atrás referido, com o saldo líquido positivo no montante de € 34.514,77 a favor dos Autores, a ser pago pelo Réu.”

11. Inconformados, vieram os AA. interpor recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1ª- A primeira fase deste processo de prestação de contas terminou com a decisão do Acórdão do TRP, transitado em jugado em 18/03/2021, que se pronunciou sobre a obrigação de prestar contas por parte do aqui Réu, tendo considerado que este estava obrigado a prestar contas desde 04/08/2014 a 23/05/2016.

2ª - Pela interpretação que fazemos desse Acórdão, entendemos que a matéria de facto provada na segunda fase do processo e que sustenta a decisão do Tribunal de 1ª Instância, não contradiz a decisão de mérito da primeira fase do processo, antes se situa no âmbito desta, já que o mandato em causa tem subjacente as duas procurações que os Autores outorgaram a favor do Réu e os atos praticados com as mesmas.

3ª – Como é entendido por Castro Mendes e Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2022, pág. 655) “O objeto do caso julgado é a decisão referente ao pedido, não cada uma das suas premissas de facto ou de direito. O caso julgado não se estende a cada uma destas premissas, quando consideradas de forma isolada e separada da decisão, pois que não é possível desligar esses fundamentos da respetiva decisão e atribuir-lhes a indiscutibilidade própria do caso julgado”.

4ª- Uma das obrigações do mandatário é prestar contas, findo o mandato, ou quando o mandante as exigir – artigo 1161º, alínea d) do Código Civil - pelo que, o Acórdão que decidiu a primeira parte do processo, decidiu pela existência da obrigação do Réu prestar contas, levando em conta determinada factualidade, sendo que esta não é incompatível com a segunda fase do processo, pois para além desses factos dados como provados na primeira fase, também deverão ser considerados todos os outros que sejam relevantes para efeitos de aprovação das receitas e das despesas obtidas pelo Réu, no exercício do mandato que lhe foi confiado.

5ª- Não faz qualquer sentido considerar provados os poderes conferidos pelos mandantes ao mandatário pelas duas procurações e depois não poder considerar todos os atos praticados pelo mandatário no âmbito desses poderes.

6ª- Pelo que, com a prolação do acórdão do TRP, datado de 05/11/2020, não se formou caso julgado sobre a existência ou não existência das receitas e das despesas, uma vez que aquelas e estas só serão objeto da segunda fase do processo de prestação de contas.

7ª- Como refere Alberto dos Reis, «se o réu está ou não obrigado a prestar contas, é questão de direito substancial e, portanto, de mérito da causa: é questão a decidir segundo as disposições de direito civil ou da lei comercial que for aplicável, ou mesmo de lei processual funcionado como lei substantiva» (Processos Especiais, Vol. I, pág. 305, Coimbra Editora, 1982)

– Também a jurisprudência do STJ considera que obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa-fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte» - Acórdão do STJ de 16 de junho de 2011 (proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, citando Vaz Serra (Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115),

– Assim, na primeira fase dos autos, ficou provada a relação jurídica de direito material da qual emerge a obrigação do Réu de prestar contas, pelo que todos os atos jurídicos que este praticou e dos quais resultaram créditos e débitos, têm de ser considerados, sob pena de se estar a desvirtuar o objetivo principal da ação de prestação de contas, que é o resultado da diferença entre as receitas – o crédito – que, de facto, se produziram e as despesas que efetivamente se realizaram – o débito – para atingir a diferença entre as receitas e as despesas – o saldo - que é o objetivo da prestação de contas.

10ª- Termos em que o Acórdão da Relação do qual agora se recorre incorreu em erro de direito, por violação do disposto no artigo 942º, nº 3 e 4 do CPC, uma vez que a decisão inserida nesta disposição legal, tem como objeto saber se existe ou não existe obrigação de prestar contas, apenas constituindo caso julgado quanto a esta matéria.

11ª – Passando à segunda fase do processo de prestação de contas, exige o artigo 944º, nº 1 do Código de Processo Civil, que, nas contas se especifique a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, devendo o Réu discriminar e individualizar as diferentes fontes de receita a as diferentes causas de despesa.

12ª – Como explica Alberto dos Reis “há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as verbas respectivas.”

13ª- Assim, tendo o aqui Réu apresentado, de forma forçada, as contas e em forma de conta corrente em 12/05/2021 – referência citius ......52 – cabia-lhe a ele, o ónus da prova da exatidão das verbas de receita e de despesa, pois os atos de administração que praticou, são factos pessoais, relativamente aos quais ele tem o dever de informar – artigo 573º do Código Civil.

14ª - Neste sentido, o Acórdão do STJ de 09/02/2006, - disponível em www.dgsi.pt, “ A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. Está obrigado a prestar contas o procurador que age com poderes de representação, administrando bens ou interesses do representado, independentemente da existência ou da natureza de negócio de que resultou a procuração. Não é o fim para que procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os actos realizados, que justificam a prestação de contas.”

15ª - Após a apresentação das contas pelo Réu, os Autores, ao abrigo do disposto no artigo 945º, nº 2 do CPC, na sua Contestação, impugnaram as verbas da receita, alegando que esta deveria ser superior à inscrita, bem como impugnaram as verbas da despesa, tendo apresentado o saldo das contas no valor de 72 977,08€ - cfr. referência citius ......29 datada 07/06/2021- cabendo-lhe o ónus da prova do que neste articulado alegaram.

16ª- Quanto aos valores da receita e no que diz respeito às contas bancárias, foram tidos em consideração pelo Tribunal da 1ª Instância, os seguintes elementos de prova, constantes dos autos:

a) A participação que o Réu fez, em nome dos Autores, do óbito de JJ, no Serviço de Finanças de ..., na qual indicou e identificou na Relação de Bens, o imóvel bem como todas as contas bancárias que faziam parte do património da herança de JJ - cfr. assinatura do Réu constante do Doc. n.º 7 junto aos autos – referência citius .....85 de .../.../2017.

b) O ofício do Serviço de Finanças de ..., datado de .../.../2017, referência citius .....99.

c) Ofício do Novo Banco junto aos autos em .../.../2022, referência citius ......18, no qual informa que a Conta à Ordem n..........51 e contas associadas apresentavam dois titulares, sendo um deles JJ, e à data do óbito – .../.../2014 – as contas tituladas por aquele apresentavam o seguinte saldo de 82 201,07€, tendo sido considerado metade deste valor – 41 100,07€ - a quantia pertencente ao autor da herança, devido à cotitularidade das contas.

17ª - Neste ofício o banco refere que o montante de 37.500,00€ foi transferido para uma conta titulada por II, conforme se pode comprovar por documento anexo, que é um comprovativo de transferência datado de 02/05/2015, para crédito na conta n.º ..........87 em nome de II, sendo que neste documento consta a sua assinatura e a cópia da procuração com poderes para o ato outorgada pelos aqui Autores, não tendo o Réu impugnado a assinatura do documento.

18ª – Ora, o douto Acórdão do qual se recorre, apesar de não considerar como receita as contas bancárias – ao abrigo do caso julgado - considerou-as para os efeitos da despesa.

19ª- Na verdade, o douto Acórdão do qual se recorre teve em conta os documentos do Serviço de Finanças supra identificados nas alíneas a) e b), no que concerne ao valor do imposto pago pelo Réu ao Estado, no valor de 8 887,96€, que é uma despesa gerada e decorrente da atuação do Réu no âmbito do mandato, mas da qual não é possível dissociar o valor das contas bancárias, pois estas fazem parte da matéria coletável a partir da qual se gerou o imposto.

20ª- Poder-se-ia concluir, então, para que as contas ficassem certas teríamos também de retirar do lado da despesa o valor do imposto de selo gerado pelas contas bancárias.

21ª- Pensamos que não é possível concluir-se dessa forma, primeiro porque não existe caso julgado que impeça que se dê como provada a existência das contas bancárias, como vindo de referir, segundo porque tal entendimento inviabilizaria o objetivo essencial desta ação especial de prestação de contas e, por fim estamos perante um património autónomo pelo que terá sempre de ser considerado um todo, para este efeito das despesas.

22ª- Como refere Rabindranath Capelo de Sousa – Lições de Direito das Sucessões”,2º, pág. 113/114 - “estamos perante uma universalidade composta por património autónomo, em que os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comunhão de tal património.”

23ª - A participação da Relação de Bens da herança para efeito do imposto de selo, onde identificou uma por uma as contas bancárias pertencentes ao autor da herança e a transferência da quantia de 37 500,00€ para uma conta sua, foram atos praticados pelo Réu e que são válidos e eficazes porque foram praticados no âmbito do mandato e geraram respetivamente despesa e receita – artigos 1157º e 1158º do Código Civil – sendo que o mandatário é obrigado a prestar contas quando os mandantes o exigirem – artigo 1161º, alínea d) do Código Civil.

24ª – Pelo que o Tribunal a quo, ao considerar as contas bancárias como objeto da prestação de contas apenas para efeito da despesa, retirando-as do lado da receita, proferiu uma decisão injusta que não permite que os destinatários compreendam em que provas o tribunal se baseou para a proferir, violando o disposto no n.º 4 do artigo 607º do CPC.

25ª - Finalmente, os Autores não aceitam a outra alteração da matéria de facto que o TRP fez relativamente ao facto - dado agora como provado - de que o Réu pagou a expensas suas, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade de valor não apurado, por entenderem que tal alteração violou o disposto no artigo 944º, nº 3 em conjugação com o artigo 945, nº 5 do CPC.

26ª- O ónus da prova da exatidão da despesa cabe ao Réu, ou seja, à pessoa que presta as contas, e, não admitindo esta ação especial de prestação de contas que o apuramento das receitas e das despesas em causa seja feito em incidente de liquidação de sentença, a lei determina que o apuramento desse saldo seja feito, na ausência de prova consistente, pelo juiz com recurso ao seu prudente arbítrio e às regras da experiência, conforme decorre do n.º 5, do artigo 945º do Código de Processo Civil.

27ª – No entanto, apenas poderão ser consideradas justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los, e, no caso da rubrica em questão, é costume exigir-se documento comprovativo da despesa referente a honorário do técnico que presta este tipo de serviços, no caso, pensamos nós, o arquiteto que elaborou o orçamento junto aos autos.

28ª – Pelo que, relacionado com este item, o Réu, apenas juntou aos autos o Doc. nº 20 e cuja despesa foi dada como provada - Requisição de Liq. Util. Câmara - € 76,88 – que se refere à taxa paga pela requisição da licença.

29ª – Já o Doc. n.º 21, junto com aquela peça processual refere-se à rejeição liminar do pedido de operação urbanística solicitado, ao qual se juntou (apenas) um orçamento para a referida operação urbanística que, como vimos, não foi autorizada.

30ª – Finalmente, se verificarmos a escritura de compra e venda – junta pelos Autores no Requerimento com referência citius .....13 de 06/12/2016, como Doc. nº 4 – a mesma foi instruída com o alvará de licença de construção n.º 2627, passado pela Câmara Municipal de ... em 24.10.1974 - cuja despesa está aprovada nas contas sob o item Requisição de Liq. Util. Câmara - € 76,88 - e com o duplicado do requerimento do pedido da respetiva licença de utilização apresentado na Câmara Municipal em 15/01/2015 (que foi indeferido).

31ª- Portanto, parece-nos evidente que, face ao indeferimento do pedido de licenciamento, não é verosímil que a despesa tenha existido, contudo, no caso de dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita - artigo 414º, do CPC.

32ª- Tanto mais que estamos perante contas apresentadas pelo mandatário, por factos pessoais, para quem seria fácil comprovar o pagamento da despesa referente a este item e não se pode dizer que relativamente a tais despesas não é costume exigir-se documentos, pelo que o tribunal a quo não podia basear-se num mero juízo de probabilidade para concluir pela demonstração de tal realidade, com base no disposto na parte final do nº 5, do art.º 945º.

33ª- A este respeito acompanhamos o recente Ac. do TRP de 27/11/2023, relatado por Fernanda Almeida (acessível in www.dgsi.pt): “O juiz não deve prescindir de documentos de suporte de contas (das receitas ou das despesas) quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação.”.

34ª- Pelo que, o Tribunal a quo ao modificar a douta sentença da 1ª Instância neste ponto da matéria de facto, violou o disposto nos artigos 414º, 944º, nº 3 e 945º n.º 5, todos do CPC.

35ª – Devendo ser repristinada a decisão da 1ª Instância, mantendo-se a condenação do R. a pagar aos autores o saldo de 73 014,47€.

Pelo exposto, e com o sempre douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência ser revogado o douto acórdão recorrido, como é de Direito e de Justiça”.

12. O Recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1.º Interpuseram os Autores recurso de revista do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, considerando que o mesmo violou o caso julgado material formado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 05/11/2020 e ainda por violação do artigo 607º, n.º4 do CPC.

2.º Ora, os Autores laboram na sua exposição num grave equívoco jurídico, enviesando o caso julgado patente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 05/11/2020, numa perspetiva que nunca se poderia retirar do mesmo.

3.º O processo de prestação de contas divide-se em duas fases, a primeira de apuramento da obrigação de prestar contas e em que medida, e uma segunda fase de indicação das receitas e despesas num encontro de contas entre deve e haver.

4.º O Réu na primeira fase destes autos contestou a sua obrigação de prestar contas considerando já as haver prestado extrajudicialmente, e ainda, caso assim não se entendesse, apenas deveria prestar contas relativamente ao produto da venda do imóvel pertencente ao acervo da herança, e já não relativamente às contas bancárias porque não as movimentou.

5.º Os Autores consideravam por outro lado, que tendo em conta o imposto de selo onde constavam contas bancárias em nome do falecido tal obrigação deveria recair também sobre as mesmas.

6.º Foi produzida prova sobre tais factos nesta primeira fase, e foi proferida sentença pelo Tribunal a quo que decidiu julgar a existência de prestar contas por parte do Réu mas apenas relativamente ao produto da venda do imóvel, considerando os pontos 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9) e 13) que aqui importam.

7.º Não se conformando com tal decisão, os Autores recorreram para o douto Tribunal da Relação do Porto invocando entre outros fundamentos que deveria ser acrescentado ao ponto 3 dos factos provados como fazendo parte do acervo hereditário as contas bancárias identificadas no imposto de selo do Serviço de Finanças, e o ponto 13) dos factos provados deveria ser dado como não provado.

8.º O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão a 05.11.2020 transitado em julgado a 10/12/2020, considerando que não havia nos autos prova suficiente da existência de contas bancárias nos autos razão pela qual não havia nada a acrescentar ao ponto 3 dos factos provados mantendo-se a sua redação, considerando por outro lado, que não havia prova da suficiente também da sua inexistência razão pela qual o ponto 13 deveria ser dado como não provado.

9.º Mais considerando que esta alteração não tinha relevância para a decisão do recurso já que “quanto ao conteúdo da obrigação de o réu prestar contas, ficou a mesma definida na presenta fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido a oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía contas bancárias.” – SICAcórdão.

10.º Contudo, com o início da segunda fase do processo de prestação de contas Autores e o Tribunal de 1ª Instância incorreram num equivoco e errada interpretação de direito, exatamente o aqui explanado pelos Autores nas suas alegações, considerando que porque o Tribunal da Relação do Porto deu como não provado o ponto 13, poderiam os Autores nesta segunda fase voltar a requerer prova sobre a existência ou não de contas bancárias e solicitar prestação de contas sobre a mesma.

11.º Ora, o Autor entendia que o Tribunal da Relação do Porto considerou não haver prova suficiente que permitisse concluir pela existência de contas bancárias, nem que permitisse concluir pela sua inexistência, sendo certo que a prova competia aos Autores – provar a sua existência para que numa segunda fase se prestasse contas sobre as mesmas.

12.º Daqui resultaria que não assistia aos Autores o direito de nesta fase, chamada de executiva, discutir sobre a existência ou não de contas bancárias, nem de requerer prova sobre as mesmas conforme o fizeram.

13.º As diligencias probatórias requeridas pelos Autores nesta segunda fase podiam e deviam ter sido requeridas na primeira fase do processo destinada a conformar a existência ou não da obrigação de prestar contas e o conteúdo dessa obrigação, nomeadamente se esta recairia ou não sobre as contas bancárias.

14.º Não o tendo feito, e tinham os Autores à sua disposição todos os meios probatórios para o fazer, tinha precludido o seu direito de o vir fazer nesta segunda fase, pois esta ultima tem apenas como conteúdo a prestação de contas efetiva tal como definido e limitado no Acórdão da Relação do Porto – a venda do imóvel.

15.º Pelos motivos expostos, o Réu recorreu de tal decisão, recurso que teve provimento total nessa questão suscitada, tendo o Tribunal da Relação do Porto eliminado o ponto 10. Por constituir este uma ofensa do caso julgado, bem como alterar a redação do ponto 5. Pelos mesmos fundamentos.

16.º Assim, é efetivamente por estes fundamentos que considera o aqui Réu que não assiste razão aos Autores no recurso de revista ora interposto.

17.º O acervo hereditário do falecido está definido no ponto 3) dos factos provados do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2020 e é relativamente a esse que a prestação de contas deverá incidir, conforme delimita esse mesmo acórdão.

18.º Os Autores após a informação prestada pelo Ofício do Novo Banco a 03.11.2017 (na primeira fase do processo) com a ref.ª .....30 que informava não existir contas em nome do falecido à data do óbito, nada disseram, não impugnaram a informação, não solicitaram esclarecimentos, conformando-se com tal informação.

19.º Não o tendo feito e tinham à sua disposição todos os meios probatórios para o fazer, precludiu o seu direito de o vir fazer nesta fase executiva do processo de prestação de contas que tem apenas como conteúdo a prestação de contas tal como definido em tal acórdão, relativamente à venda do imóvel identificado no ponto 3 que faz parte do acervo hereditário e nada mais.

20.º E não se diga que a alteração ao ponto 4 dos factos provados o permite, já que, tal acrescento é uma mera reprodução do conteúdo da procuração, e como este próprio Tribunal no acórdão de 05/11/2020 refere e bem, “(…) não se extrai a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao Réu para movimentar contas bancárias.”

21.º E assim sendo, entendemos não existir qualquer razão aos Autores no seu recurso de revista, nem na posição jurídica sufragada pelos mesmos quando referem que “Face à transcrição da matéria de facto provada e não provada, pode verificar-se que, o facto constante no ponto 2-A da matéria de facto não provada, como bem se entende, significa apenas que a inexistência das contas não foi provada”.

22.º Pois era aos Autores quem cabia fazer prova de tal facto na primeira fase do processo, tal como bem refere o TRP no seu acórdão de 05/11/2020 “Quanto ao conteúdo da obrigação de o Réu prestar contas, ficou a mesma definida na presente fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía outras contas bancárias.”.

23.º Os Réus, mais uma vez, confundem a obrigação de prestar contas e o objeto dessa obrigação, há muito já definido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 05/11/2020, com as receitas e despesas decorrentes desse objeto

24.º Assim, deverá manter-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que não merece qualquer reparo e/ou censura, efetuando uma aplicação correta dos normativos legais e de facto, improcedendo desta forma as alegações recursivas dos Autores.

Quanto à falta de fundamentação – património autónomo correspondência entre receita e despesas:

25.º A existência das contas sempre constou do imposto de selo das finanças, junto aos autos de prestação de contas pelo próprio Autor.

26.º Tais valores conforme se deu como provado em tal ação não foram movimentados pelo Autor e tais contas eram também tituladas pelo sobrinho AA que como aí consta movimentava como bem entendia as contas o que resulta manifesto dos extratos e inegável, já que a cada transação aí efetuado corresponde um cambio.

27.º Não é pelo facto de existirem contas bancárias constantes do imposto de selo que os Autores fazem prova de que o Réu movimentou ou ficou com tais valores.

28.º Os Autores confundem o conceito de receita e de despesa: Uma receita significa para quem presta contas um valor que este arrecadou, e uma despesa um valor que este despendeu. O Réu não arrecadou os valores das contas bancárias.

29.º Acresce que, relativamente às contas bancárias, informou o Novo Banco uma vez mais a 28/12/2021 através da ref.ª ......91 (repetindo a informação já dada a 03.11.2017 na fase declarativa do processo) que à data do óbito de JJ não existiam contas em seu nome. Mais informando que existia sim uma conta técnica aberta a .../.../2014 por falecimento de JJ a 10/06/2014.

30.º Mais refere no ofício seguinte que, tais contas bancárias constantes do imposto de selo das Finanças são tituladas por JJ (falecido) e AA (sobrinho). – ofício de 09/05/2022 com a ref.ª ......18

31.º Daí que nessa mesma liquidação se refira que apenas ½ de tais valores indicados correspondam à quota parte pertencente à herança do falecido JJ, pelo que nem sequer poderiam tais valores ser admitidos na sua totalidade.

32.º Assim sendo, não existe qualquer deficiência no ónus de fundamentação do Tribunal da Relação do Porto, já que a modificação da matéria de facto operada pela mesma está cabalmente explicada e fundamentada, e ainda para mais, a coberto do caso julgado por aquele mesmo Tribunal decretado.

Quanto à despesa do técnico para licenciamento da habitabilidade:

33.º Em boa verdade se diga, que os Autores manipulam a verdade consoante lhes aprouver, já que no âmbito da ação declarativa comum desencadeada por força da não admissão nos presentes autos do pedido reconvencional do Réu (Proc. n.º 1400/21.8... – Juízo Local Cível de ...), são os próprios quem juntam um email a 16/11/2021 com a ref.ª ......27 onde se dá conta da contratação de um arquiteto para licenciamento da habitação.

34.º Acresce que, tal facto provado, consta já do acórdão do tribunal da Relação do Porto de 05/11/2020 “9. O Réu a expensas suas, pagou o seguinte: (…) técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade”. Há muito transitado em julgado.

35.º E na premissa de estar provado o pagamento do técnico, como acontece nos presente autos, ainda que não definido em concreto o montante pago, a sua quantificação sempre poderia ser relegada para execução de sentença ou fixada por recurso a critérios de equidade, conforme fez, e bem, o Tribunal da Relação do Porto.

TERMOS EM QUE, DEVEM AS ALEGAÇÕES DE RECURSO DOS AUTORES SEREM JULGADAS IMPROCEDENTES POR NÃO PROVADAS, MANTENDO-SE NA INTEGRA O DOUTO ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNALDARELAÇÃO DO PORTO.”

13. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2, 2ª parte, do CPC.


***


II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as que sejam de conhecimento oficioso (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06).

Assim, são as seguintes as questões suscitadas pelos Recorrentes:

- Da (in)existência de caso julgado;

- Da existência das contas bancárias e da consideração, como despesa, do pagamento de imposto de selo sobre tais contas, mas não, como receita, da existência das mesmas, o que determina “decisão injusta que não permite que os destinatários compreendam em que provas o tribunal se baseou para a proferir, violando o disposto no n.º 4 do artigo 607º do CPC.”

- Da despesa para diligenciar pela licença de habitabilidade (nº 10.a. dos factos provados).


***


III. Da fundamentação de facto

Consignaremos a decisão da matéria de facto constante do acórdão da Relação de 05.11.2020, bem como no Acórdão recorrido, de 22.02.2024 [em ambas indicaremos, a itálico, as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação e, abaixo, entre parenteses, o que constava das decisões proferidas pela 1ª instância]:

A. Decisão da matéria de facto constante do acórdão da Relação de 05.11.2020:

Factos provados:

1. JJ faleceu a ........14, no estado de viúvo de LL, sem descendentes e ascendentes vivos.

2. Por testamento público, outorgado no dia ........04, lavrado a folhas 69, do Livro 2-A, do 1º Cartório Notarial de ..., JJ instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui autores.

3. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar de ..., na Rua da Belavista, nº 23, freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº .77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 55. 6

4. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 091/92 do Livro 4021 e datada de ........14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respectivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança de JJ, podendo receber os valores, representar junto ao Banco Espírito Santo, podendo representar os aqui autores para efeitos de participação do Imposto de Selo e nomeá-lo representante fiscal em Portugal.

4-A. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 099/099 do Livro 4071 e datada de ........14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respectivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extractos, bem como proceder ao levantamento ou efectuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques. [Facto aditado pela Relação no Acórdão de 05.11.2020]

5. Mediante escritura pública outorgada a ........05, o réu na qualidade de procurador dos autores, declarou vender a MM casado com NN, no regime da comunhão de bens, que declarou comprar, o prédio descrito em 3), pelo preço de € 47.555,63.

6. O réu não entregou aos autores o preço do imóvel.

7. Por instrumento notarial elaborado no 27.º Ofício de Notas ..., a cargo do Tabelião OO, outorgado no dia ........16, no Brasil, os autores declaram revogar a procuração referida em 4).

8. A Ilustre Mandatária dos autores enviou ao réu uma carta datada de 20.05.16, nos termos da qual comunicava a “revogação de mandato e solicitava a “prestação de contas”.

9. O réu, a expensas suas, pagou o seguinte: funeral do falecido, taxas camarárias pela legalização do imóvel, água, luz e Cabovisão do prédio do falecido, IMI do prédio, emolumentos das escrituras de compra e venda e de habilitação de herdeiros, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade do imóvel. 7

10. … tratou junto da Segurança Social do reembolso das despesas do funeral respeitante ao falecido.

11. Desde Julho 2008 até ao óbito do falecido JJ, o réu e sua mulher cuidaram deste, confecionando as refeições, levando-o ao médico, fazendo a limpeza da casa, prestando-lhe serviços de higiene pessoal, pernoitando em sua casa.

12. Em contrapartida de tais serviços, foi acordado entre o autor AA, o réu e mulher deste, que os compensaria, após a venda do prédio descrito em 3), com um montante de cerca de € 600,00 por mês. 8

13. Eliminado.

[“13. À data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Novo Banco.”].

Factos não provados

1. O réu prestou contas à Drª KK, advogada mandatária dos autores, mediante o documento designado “relatório de contas”, comunicando-lhe o crédito que tinha sobre a herança representada dos aqui autores.

2. O réu e sua mulher cuidaram do falecido desde o ano de 2005.

2-A. À data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Novo Banco. [Aditado pelo Acórdão da Relação de 05.11.2020]

B. Decisão da matéria de facto constante do acórdão da Relação de 22.02.2024 [acórdão recorrido]:

Factos provados:

1. JJ faleceu a ... de ... de 2014, no estado de viúvo de LL, sem descendentes e ascendentes vivos.

2. Por testamento público, outorgado no dia ... de ... de 2004, lavrado a folhas 69, do Livro 2-A, do 1º Cartório Notarial de ..., JJ instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui Autores.

3. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 091/92 do Livro 4021 e datada de ... de ... de 2014, os herdeiros do falecido (aqui Autores) e respetivos cônjuges, constituíram o Réu procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança de JJ, podendo receber os valores, representar junto ao Banco Espírito Santo, podendo representar os aqui Autores para efeitos de participação do Imposto de Selo e nomeá-lo representante fiscal em Portugal e praticar todos os atos com vista e emissão dos números de contribuintes portugueses; enfim praticar todos os atos necessários ao fim a que se destina esse mandato (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

4. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 099/099 do Livro 4071 e datada de ........14, os herdeiros do falecido aqui autores) e respetivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extratos, bem como proceder ao levantamento ou efetuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

5. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar de ..., na Rua ..., freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º .77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 55. [Alterado pelo Acórdão da Relação de 22.02.2024]

[Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:

- O prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar de ..., na Rua ..., freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº .77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 55;

- Conta à ordem nº ..........51, no “Novo Banco”, com saldo € 475,54;

- Conta CR nº ..........57, no “Novo Banco” com o saldo € 5.500,00;

- Conta CR n.º ..........89, no “Novo Banco” com o saldo € 7.100,00;

- Conta CR nº ..........54, no “Novo Banco” com o saldo € 27.500,00;

- Conta CR nº ..........14, no “Novo Banco” com o saldo € 525,00.]

6. Mediante escritura pública outorgada a ... de ... de 2005, o Réu na qualidade de procurador dos Autores, declarou vender a MM casado com NN, no regime da comunhão de bens, que declarou comprar, o prédio descrito em 5), pelo preço de € 47.555,63.

7. Por instrumento notarial elaborado no 27º Ofício de Notas ..., a cargo do Tabelião OO, outorgado no dia ... de ... de 2016, no Brasil os Requerentes declaram revogar a procuração referida em 3).

8. O Réu recebeu o preço em 6), ou seja € 47.555,63.

9. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:

Escritura de habilitação de herdeiros de JJ - € 196,46

Certificado de óbito para habilitação de herdeiros - € 20,00

Funeral de JJ - € 1.741,60

Autenticação da procuração Brasil - € 20,68

Coima da participação de óbito - € 93,75

Habilitação de herdeiros de LL - € 171,59

Certificado de casamento e óbito de LL - € 40.00

Imposto de Selo da Herança - € 8.887,96

Pagamento Dr. PP – Processo AA - € 300,00

Requisição de Liq. Util. Câmara - € 76,88

Liquidação IMI - € 190,22

Pagamento de Cabovisão (07/2014) - € 50,23

Pagamento de Cabovisão (08/2014) - € 32,14

Pagamento de desativação Cabovisão - registo duas cópias e envelope - € 2,50

Pagamento Indaqua (12/2014) - € 10,96

Pagamento Indaqua (11/2014) - € 12,14

Pagamento Indaqua (10/2014) - € 12,53

Pagamento Indaqua (09/2014) - € 11,35

Pagamento Indaqua (08/2014) - € 14,95

Pagamento Indaqua (01/2015) - € 15,42

Pagamento Indaqua (02/2015) - € 10,57

Pagamento Indaqua (03/2015) - € 11,73

Pagamento Indaqua (07/2014) - € 16,12

EDP (10/2014) - € 63,28

EDP (01/2015) - € 37,79

TOTAL - € 12.040,86

10. Eliminado.

[A 02/02/2015, o Réu movimentou a conta bancária nº .........51 do falecido e transferiu o montante de € 37.500,00 para a sua conta nº ..........87.]

10.a. O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado. [Aditado pelo Acórdão da Relação de 22.02.2024]

Factos não provados:

1. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:

- 6.4721 UP. Dossier n.º ...........04 GESPATRIMÓNIO, BES: € 161,39.

2. A 20/02/2015, o Réu pagou à Segurança Social o valor de € 855,75, através da conta bancária nº .........51.

3. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:

Liquidação de imposto de selo - € 3.415,04

Liquidação de imposto sobre transmissões - € 1.784,57

Imposto adicional - € 4.118,91

Pagamento Dr. PP – Processo AA- € 3.000,00

Custo de legalização da casa - € 3.500,00

Despesas de transporte suportadas pelo Réu no total € 216,00

461,60 Km x € 0,40/Km em veículo próprio (13 viagens de ... a ..., na execução do referido em 3) dos factos provados)

Horas despendidas na execução e ao serviço da herança, quer dos herdeiros, quer pelos Autores - 300 horas (na execução do referido em 3 dos factos provados) - € 1.200,00.


***


IV. Fundamentação de Direito

1. Da (in)existência de caso julgado

A questão do caso julgado coloca-se no que se reporta à existência, ou não, de contas bancárias em nome do falecido JJ e da obrigação, ou não, de prestação de contas quanto às mesmas por parte do Réu.

No acórdão do Tribunal da Relação proferido a 05.11.2020, referente à 1ª fase do processo de prestação de contas (art. 942º do CPC) foi decidido que:

“B) Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, julga-se a existência da obrigação do requerido de prestar contas desde 04.08.14 até 23.05.16, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive”, sendo que: na factualidade provada até ao nº 10, inclusive, não foi dado como provado que existissem contas bancárias, facto que foi dado como não provado (nº 2-A dos factos não provados aditados pela Relação); foi dado como provado que os AA., aos 29.09.2014, “constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extractos, bem como proceder ao levantamento ou efectuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques” [nº 4-A dos factos provados aditados pela Relação]

É de referir que a 1ª instância, na decisão de 10.07.2018, havia dado como provado que à data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Novo Banco (nº 13 dos factos dados como provados em tal decisão). Os AA. apelaram, impugnando tal ponto da matéria de facto, pretendendo que fosse eliminado e dado como provada a existência de tais contas. No mencionado acórdão, procedendo-se à reapreciação de tal impugnação, foi entendido não ter sido feita prova suficiente quer da inexistência, quer da existência, de contas bancárias, razão pela qual eliminou o nº 13 dos factos provados, dando-o como não provado, e julgou improcedente a pretensão dos AA. de dar como provada a existência das mesmas, mais se tendo entendido que competia aos AA. o ónus de tal prova e, assim, considerando não existir, quanto a elas, a obrigação de prestação de contas.

Na subsequente tramitação de tal processo – 2ª fase (art. 944º do CPC) – foi o Réu notificado para, “em obediência ao decidido” em tal acórdão, “prestar contas desde 04/08/2014 até 23/05/2016 em forma de conta-corrente, especificando a proveniência das receitas e despesas, bem como o respectivo saldo, se o houver, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive”.

Em cumprimento, o Réu apresentou contas, de onde não constam contas bancárias, o que os AA. contestaram invocando a existência das mesmas. Sucederam-se diligências de prova tendentes a apurar da existência, ou não, de contas bancárias, bem como realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi, a 08.06.2023, proferida pela 1ª instância decisão, na qual se deu como provado a existência das contas bancárias (nº 5 dos factos provados) e, bem assim, que o réu movimentou a conta bancária do falecido, transferindo para a sua (do Réu) conta a quantia de €37.500,00 (nº 10), aprovando as contas com saldo líquido a favor dos AA. de €35.514,77 e determinando a reposição, pelo Réu à herança, dos mencionados €37.500,00.

O Réu recorreu dessa decisão, tendo o Tribunal da Relação, no acórdão ora recorrido (de 22.02.2024), concluído no sentido da existência de caso julgado, formal e material, formado pela decisão proferida no Acórdão de 05.11.2020 quer quanto à questão da inexistência das contas bancárias [e, em consequência, eliminando do nº 5 dos factos provados a existência das mesmas, bem como eliminado o nº 10], quer quanto à inexistência da obrigação de prestação de contas quanto às invocadas contas bancárias e revogando a reposição da quantia de €37.500,00.

Do assim decidido discordam os AA/Recorrentes, considerando não existir caso julgado e argumentando, em síntese, que:

- a matéria de facto dada como provada na decisão da 1ª instância (de 08.06.2023) na 2ª fase do processo não contradiz a decisão de mérito proferida na 1ª fase (acórdão de 05.11.2020), já que o mandato em causa tem subjacente as duas procurações que os AA. outorgaram e os atos praticados com as mesmas, devendo ser considerados, para além dos factos dados como provados na 1ª fase, todos os outros que sejam relevantes para efeitos de aprovação das receitas e das despesas obtidas pelo réu no exercício do mandato, não fazendo sentido considerarem-se provados os poderes conferidos por tais procurações e, depois, não considerar todos os atos praticados pelo mandatário no âmbito desses poderes;

- tendo, na 1ª fase do processo, ficado provada a relação jurídica material da qual emerge a obrigação do réu de prestar contas, as receitas e as despesas só serão objeto da 2ª fase do processo, devendo nesta serem considerados todos os atos jurídicos que este praticou e dos quais resultam créditos e débitos, sob pena de se desvirtuar o objetivo principal da ação de prestação de contas;

- Assim, o acórdão recorrido violou o disposto no art. 942º, nºs 3 e 4 do CPC uma vez que que a decisão apenas constitui caso julgado quanto à questão de saber se existe ou não a obrigação de prestar contas.

1.2. Na decisão de 10.07.2018, proferida pela 1ª instância e complementada com a fundamentação à decisão da matéria de facto de 02.12.20199 consta o seguinte quanto ao nº 13 dos factos então dados como provados [“13. À data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Novo Banco”]: “Em relação ao facto 13, foi relevante o teor do ofício do “Novo Banco” a fls. 100 dos autos, nos termos do qual consta que “… à data do óbito (...-...-2014) não existiam contas abertas em nome do autor da herança JJ”; é certo que dos documentos de fls. 105 a 111 consta que foram relacionados valores monetários para efeitos de imposto de selo – valores esses declarados pelo participante da herança –, contudo, tal documento particular e o de fls. 123, neste caso, não faz prova bastante da existência de tal matéria fáctica, sendo contrariada pelo teor de fls. 100.

De todo o modo sempre se dirá que competiria aos Requerentes fazer prova da existência dos saldos bancários à data do óbito do falecido, o que não lograram fazer, atenta a repartição do ónus da prova previsto no artº 342º do Código Civil.”

No acórdão da Relação de 05.11.2020 [proferido no âmbito do recurso de apelação dos AA. interposto da decisão acima mencionada], quanto à pretensão dos AA. de ser dado como provado que do acervo hereditário faziam parte as contas bancárias, pretensão que foi julgada improcedente, foi referido o seguinte:

“A) Relativamente ao ponto 3. da factualidade provada, os autores pretendem que seja considerado provado que, além do prédio urbano ali indicado, faziam ainda faziam parte do acervo de bens do falecido as contas bancárias discriminadas na conclusão que numerámos como 1ª.

Em consequência, pretendem que o ponto 13. seja considerado não provado.

Ouvido em depoimento de parte e em declarações de parte, o réu negou a existência de quaisquer contas bancárias em nome do falecido: (…)

Por seu turno, a testemunha QQ afirmou que (…)

Quanto aos documentos juntos aos autos:

Como já se escreveu no acórdão de fls. 157 e seguintes, a fls. 100, está junto um ofício enviado pelo Novo Banco, sucessor do BES, datado de 31.10.17, no qual aquela instituição informa que, à data do óbito de JJ (........14), não existiam contas abertas em nome daquele.

E, a fls. 123, está junto um ofício enviado pelo Banco de Portugal, com data de 02.05.18, no qual aquela instituição informa que, à data do óbito de JJ, existiam no Novo Banco contas bancárias por ele tituladas.

Por outro lado, a fls. 105 e seguintes, está junta a liquidação do Imposto de Selo feita pelo Serviço de Finanças ... 4, à qual está anexa a respectiva participação para efeitos daquele imposto.

Nas referidas liquidação e participação, estão discriminadas as contas bancárias que estão indicadas pelos autores na conclusão que numerámos como 1ª.

Assim, como se fez notar no complemento da fundamentação da decisão da matéria de facto, feito pelo Tribunal recorrido a pedido deste Tribunal e já acima transcrita, os documentos juntos aos autos contêm informações contraditórias.

Por outro lado, no seu depoimento de parte, como vimos, o réu afirmou que quando foi ao Banco Espírito Santo não existiam ali quaisquer contas bancárias em nome do falecido JJ.

Também não se extrair a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao réu para movimentar contas bancárias.

A prova produzida nos autos não é, pois, suficiente, para formar no espírito do julgador, uma convicção segura acerca da existência das referidas contas bancárias, pelo que, na dúvida, não pode ser considerada provada a existência de tais contas.

Porém, também não é possível formar uma convicção segura acerca da inexistência das referidas contas bancárias.

Sendo assim, o facto vertido no ponto 13. da factualidade provada deve ser considerado não provado, devendo manter-se como provado o facto vertido no ponto 3.

(…)

D) Finalmente, pretendem os autores que seja aditado à factualidade provada que, por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 099/099 do Livro 4071 e datada de 29.09.14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respectivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extractos, bem como proceder ao levantamento ou efectuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques.

A existência da referida procuração foi alegada pelo réu na contestação e a mesma foi junta com aquele articulado, pelo que irá ser considerada provada”.

E, em sede de fundamentação jurídica, foi referido o seguinte:

“Quanto ao conteúdo da obrigação de o réu prestar contas, ficou a mesma definida na presente fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942.º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido a oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía outras contas bancárias.

As alterações efectuadas à matéria de facto não têm relevância para a decisão do recurso.

A sentença será alterada apenas em consequência da decisão de inadmissibilidade da reconvenção.”

No Acórdão ora recorrido (de 22.02.2024) foi referido, em síntese, o seguinte:

- o processo de prestação de contas divide-se em duas fases, uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e em que medida, e em caso afirmativo, uma segunda, onde são indicadas as receitas e despesas e se procede ao encontro de contas - tudo, tendo em conta o objeto balizado na primeira fase do processo.

- Face à decisão da 1ª instância de 10.07.2018, confirmada, no que releva, pelo do Tribunal da Relação de 05.11.2020, transitado em julgado, relativamente aos pontos que respeitam à prestação de contas relativa às contas bancárias [decidindo que o ponto 3) deveria manter-se no elenco dos factos provados tal como estava originalmente decidido pelo Tribunal de 1ª Instância, e que o ponto 13, por sua vez, deveria constar no elenco dos factos não provados], encontrava-se vedada a possibilidade de, nesta segunda fase do processo de prestação de contas, de os AA. pedirem a prestação de contas relativamente a tais contas bancárias, bem como requerer prova relativamente às mesmas, para consequentemente dar como provado o ponto 10 dos factos provados;

- O Acórdão da Relação de 05.11.2020, relativamente às contas bancárias e à prestação de contas quanto a estas, é claro, conforme resulta do que consignou na fundamentação da impugnação da decisão da matéria de facto 10, tendo ele entendido não ter sido feita prova suficiente que permitisse acrescentar ao ponto 3 dos factos provados que faziam parte do acervo hereditário as contas bancárias indicadas pelos Autores, razão pela qual tal ponto não poderia ser alterado, mas tendo entendido, também, que não havia prova suficiente para garantir a sua inexistência razão pela qual o ponto 13) deveria passar a constar do elenco de factos não provados;

- Contudo, como refere o mencionado Acórdão de 05.11.2020, na esteira do assim também entendido pela 1ª instância na decisão de 10.07.2018, competia aos Autores, nessa fase declarativa, fazer prova da existência de tais contas bancárias (e não o contrário);

- Ademais, no Acórdão de 05.11.2020 salvaguardou-se nas suas conclusões que a referida alteração ao ponto 13 não altera a obrigação e conteúdo da prestação, concluindo esse Acórdão dizendo: “Quanto ao conteúdo da obrigação de o Réu prestar contas, ficou a mesma definida na presente fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía outras contas bancárias.”.

- Daqui emerge que as diligências probatórias requeridas pelos Autores deveriam e podiam ter sido efetuadas na fase declarativa do processo, esta a fase destinada a conformar a existência ou não da obrigação de prestar contas e o conteúdo dessa obrigação;

- Além disso, os AA, após a informação prestada pelo Ofício do Novo Banco a 03.11.2017 (na primeira fase do processo), que informava não existirem contas em nome do falecido à data do óbito, nada disseram, não impugnaram a informação, não solicitaram esclarecimentos, conformando-se com a mesma.

- Assim, a fase executiva do processo que se iniciou após a prolação do acórdão da Relação de 05.11.2020 tem apenas como conteúdo a prestação de contas tal como aí definido, relativamente à venda do bem imóvel identificado no ponto 3 que faz parte do acervo hereditário e nada mais;

- O aditamento do nº 4-A aos factos provados introduzido pelo Acórdão da Relação de 05.11.2020 consubstancia mera reprodução conteúdo da procuração, para além de que, como se refere nesse Acórdão “(…) não se extrai a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao Réu para movimentar contas bancárias.”.

- Não tendo os AA. feito prova, durante a primeira fase do processo de prestação de contas - fase declarativa -, não poderiam vir a fazê-lo na fase executiva do mesmo, tendo o conteúdo da obrigação de prestar contas ficado definido na fase declarativa do processo de prestação de contas, nomeadamente, no ponto 3, 5 e 6 dos factos provados conforme o Acórdão de 05.11.2020;

- A determinação do âmbito do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exata do seu conteúdo, como aliás decorre do artigo 621º, 1ª parte do CPC, estendendo-se, por isso, às questões preliminares que constituíram um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, excluindo a eficácia de caso toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada, ficando precludidas todas as razões de sustentação da pretensão deduzida, que não encontraram acolhimento na decisão proferida;

-Para além de que, “formando-se caso julgado ou autoridade de caso julgado relativamente àquele acórdão, decidir e fundamentar de forma contrária na presente acção, que assenta na mesma causa de pedir, abala todo o princípio basilar do Estado de Direito Democrático - princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, princípio constitucionalmente consagrado (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), o que se verifica no caso vertente.”;

- Os factos dados como provados na sentença de 08.06.2023 que se mostrem contrários aos constantes do Acórdão de 05.11.2020 terão, pois, de ser entendidos como não consentidos, uma vez que consubstanciam decisões contraditórias proferidas sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, tendo tal sentença, quanto aos nºs 5 (na parte relativa à existência das contas bancárias) e 10 dos factos provados, violado o caso julgado formal e material formado pelo citado Acórdão de 05.11.2020 que julgou a obrigação e o conteúdo da obrigação de prestar contas, violando os artigos 608º, n.º 2, 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil, assim devendo ser eliminados.

- Nesta sede, os únicos pontos que seriam de acrescentar à matéria fáctica seriam se as despesas e valores apresentados se considerariam provados ou não provados em face da prova produzida, não havendo nesta fase uma nova definição da obrigação de prestar contas e seu conteúdo, há sim, uma fase executiva de deve e haver referente ao já definido, ou seja, referente à venda do bem imóvel.

1.3. Desde já se dirá que se concorda, no essencial, com o acórdão recorrido.

O processo especial de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se (art. 941º do CPC11), sendo ele constituído por duas fases: uma, primeira, que visa apreciar e decidir da existência, ou não, da obrigação de prestar contas (art. 942º), que é condição prévia e necessária à segunda fase e que tem, assim, natureza prejudicial; e, reconhecida que seja tal obrigação, uma segunda fase, que se destina à efetivação das demais operações de natureza essencialmente material, que visa a efetivação da prestação de contas cuja obrigação de as prestar foi reconhecida na primeira fase (art. 944º) 12.

Como se diz no texto do Acórdão do STJ nº 5/2021, uniformizador de jurisprudência, a propósito da 1ª fase, nos casos em que se “contesta a existência da obrigação ou questiona os termos em que as contas devem ser apresentadas, ou o período a que respeitam, a discussão de questões de direito material e até de cariz processual é feita no âmbito da tramitação processual prevista no art. 942.º do CPC de 2013” e, bem assim, quanto à segunda fase que “para além de estar condicionada pela consolidação daquela decisão preliminar, assume um carácter eminentemente “executivo”: integrando a apresentação das contas e a discussão das verbas enquadradas nos campos do “deve” e do “haver”, culmina com a sentença que, em função dos elementos recolhidos, fixa o respetivo saldo credor ou devedor.

A concreta obrigação de prestação de contas e o objeto dessa prestação, nos termos em que ficam definitivamente (com trânsito em julgado) definidos na 1ª fase, constituindo pressuposto prévio e necessário da 2ª fase e, assim, tendo natureza prejudicial, impõem-se , com força de caso julgado, na 2ª fase, delimitando tal prestação e o seu objeto, o que impede que, nesta, se venha a discutir novamente a obrigação e/ou o objeto dessa obrigação.

Com efeito:

O caso julgado (arts. 619º e 620º) e autoridade que dele decorre visam obstar à contradição prática entre duas decisões – “decisões contraditórias concretamente incompatíveis” –, ou seja, que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito ou questão concreta já definida por decisão anterior, evitando colocar o tribunal na situação de se contradizer (ou de reafirmar o que já havia sido decidido), tendo também “um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui implicitamente toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória (…). Além disso está, está igualmente excluído todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que se encontra numa relação de exclusão com o que foi definido na decisão transitada. (…)” – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Março/Julho de 1996, Lex, p. 339.

O caso julgado e a sua autoridade, atenta a teoria da substanciação, deve ser aferida em função não apenas da concreta pretensão formulada, mas em função também da causa de pedir, que a delimita 13.

E, conforme o art. 621º do CPC , “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.

Como vem sendo entendido, deve recorrer-se à parte motivadora da sentença quando tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa.

Como dizem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, pp. 754/755 “[a] determinação do âmbito objetivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exata do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”). Releva, nomeadamente, para o efeito a leitura que a sentença faça sobre o objeto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objetiva definida pelo pedido e pela causa de pedir (…), mas não é indiferente a interpretação que o próprio tribunal faça da extensão de um e de outra, de tal modo que, violado, em efetivo contraditório, o art. 608-2 ou o art. 609-1, sem que seja arguida a nulidade da sentença, esta pode constituir caso julgado sobre a própria definição do objeto do processo, ficando este a ser mais amplo, mais reduzido ou diverso do que era na realidade.”

Assim também Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pp. 696/697 “(…), é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”.

Na jurisprudência, no mesmo sentido, cfr., designadamente, o Acórdão do STJ de 12.03.2014, Processo 177/03.3TTFAR.E1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário consta que “1 – A determinação do âmbito do caso julgado de uma decisão judicial pressupõe a respectiva interpretação, não bastando na sua concretização do seu sentido considerar a parte decisória da mesma, cumprindo tomar em consideração também a respectiva fundamentação e a relação desta com o dispositivo, visando garantir a harmonia e a coerência entre estas duas partes, devendo atender-se ainda a todas as circunstâncias que possam funcionar como meios auxiliares de interpretação, de forma a permitir concluir-se sobre o sentido que se quis atribuir à decisão14.

Quanto aos fundamentos de facto de uma decisão, em princípio não estão abrangidos pelo caso julgado, não valendo por si mesmos, i.é., quando desligados da respetiva decisão, apenas valendo “enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta”. Não obstante, não são irrelevantes, pois que “para a correcta interpretação da sentença pode ser indispensável conhecer a respectiva fundamentação. Eles mantêm sempre essa função interpretativa da decisão – Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 341.

Porém, situações existem em que os fundamentos de facto estão abrangidos pelo caso julgado, o que ocorre quando se verifica uma relação de prejudicialidade relativamente à decisão subsequente. Como diz J.P. Remédios Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª Edição (2011), Coimbra Editora, p.689: “[n]a verdade, em certos casos marginais, há situações em que, independentemente do artigo 96º/2 [atualmente, art. 91º, nº 2] do CPC, os fundamentos de facto insítos na sentença final, só por si, podem adquirir, valor de caso julgado.

Autonomizam-se, desde logo, os fundamentos de facto que criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada e o objecto da acção posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação de uma acção posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objecto da primeira acção (…)15 . No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, ob. e p. cit.: “(…), isto é, também se verificam situações em que os fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto, desligados da respectiva decisão), adquirem valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (ou entre o efeito produzido e um outro efeito). (…)

1.4. No caso, estamos perante uma mesma ação, constituída, porém, por duas fases. Estava em causa na 1ª fase do processo a existência de contas bancárias do falecido JJ e a obrigação de prestação de contas, pelo Réu, quanto às mesmas, questão que foi decidida na sentença de 10.07.2018, na qual se havia dado como provado que tais contas não existiam (nº 13 dos factos aí dados como provados) e que as excluiu da obrigação, pelo Réu, de prestar contas quanto a elas. Tendo tal sentença sido objeto de recurso de apelação pelos AA, o Tribunal da Relação, por acórdão de 05.11.2020, transitado em julgado, embora tivesse considerado não ter sido feita prova suficiente da inexistência das contas, e, assim, dando-as como não provadas (eliminando o nº 13), considerou também não o ter sido quanto à existência de tais contas16. Mais considerou que cabia aos AA. o ónus da prova da existência das mesmas e, assim, excluiu da obrigação de prestação de contas pelo Réu a relativa a essas eventuais contas bancárias, assim restringindo, como se diz no acórdão ora recorrido, a “prestação de contas relativamente ao produto da venda do bem imóvel, constituído pelo acervo da herança vendido pelo Recorrente na decorrência do seu mandato e cujo produto da venda não foi entregue aos Autores.”

Com efeito, é isso que claramente resulta do acórdão de 05.11.2020 e da sua interpretação. Pese embora, no seu segmento decisório, se determine que a prestação de contas deverá levar “ em conta a factualidade provada até ao ponto 10., inclusive” e, nesses pontos, se inclua o nº 4-A aditado pela Relação, nele é expressamente dito que tal alteração não releva para a decisão do recurso e que a sentença será alterada apenas em consequência da decisão de inadmissibilidade da reconvenção, assim mantendo a sentença da 1ª instância quanto à exclusão, que nela havia sido decidida, da prestação de contas relativamente a eventuais contas bancárias. E isso mesmo resulta também da fundamentação da sentença, que foi acolhida pela Relação, quando considera que “De todo o modo sempre se dirá que competiria aos Requerentes fazer prova da existência dos saldos bancários à data do óbito do falecido, o que não lograram fazer, atenta a repartição do ónus da prova previsto no art. 342º do Código Civil”.

O decidido no citado acórdão de 05.11.2020 constitui, pois, caso julgado quanto à questão, prévia e prejudicial à 2ª fase, da definição/delimitação do objeto da obrigação de prestação de contas e, assim, não podendo ser contrariado pela decisão recorrida, sob pena de violação do mesmo. E porque de questão prejudicial se trata, está a decisão da matéria de facto nele proferida coberta também pelo caso julgado, não podendo, na 2ª fase, ser novamente apreciada e decidida a questão da existência, ou não, de contas bancárias.

Ao contrário do defendido pelos Recorrentes, ao referido não obsta a necessidade de indicação, na conta corrente a apresentar na 2ª fase, da proveniência das receitas e da aplicação das despesas (art. 944º, nº 1). É certo que tal indicação é necessária pois que só com ela se poderá determinar a sua razão de ser. Mas isso não significa que se possa, nessa 2ª fase, apreciar e decidir novamente da obrigação de prestação de contas, incluindo do objeto (atos ou factos) justificativo dessa obrigação nos termos em que se colocou e foi decidido na 1ª fase, devendo aquela indicação circunscrever-se ao que esteja incluído na obrigação de prestação de contas tal como foi delimitada na 1ª fase.

E também não procede o argumento dos Recorrentes fundado no aditamento, pelo Acórdão da Relação de 05.11.2020, do nº 4-A dos factos provados [4-A. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas ..., Brasil, de fls. 099/099 do Livro 4071 e datada de 29.09.14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respectivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extractos, bem como proceder ao levantamento ou efectuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques.]

Como referido, o aditamento de tal facto foi, pelo Acórdão de 05.11.2020, considerado irrelevante para a delimitação, que nele se fez, do objeto da obrigação da prestação de contas, a ter lugar na 2ª fase do processo, para além de que, nesse acórdão se referiu igualmente que “Também não se extrair a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao réu para movimentar contas bancárias.”

Tendo em conta que os Recorrentes citam o Acórdão do STJ de 09.02.2006, não podemos deixar de dizer o seguinte:

Do sumário de tal Acórdão consta o seguinte:

1. A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art. 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. 2. Está obrigado a prestar contas o procurador que age com poderes de representação, administrando bens ou interesses do representado, independentemente da existência ou da natureza de negócio de que resultou a procuração. 3. Não é o fim para que procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os actos realizados, que justificam a prestação de contas. 4. Do disposto nos artigos 1014º e seguintes do Código de Processo Civil infere-se que a prestação de contas só tem interesse para o requerente (representado) quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos, não sendo de aplicar este processo quando o acto não tenha tido, nas relações entre mandatário e mandante, reflexos patrimoniais.” [sublinhado nosso]

Ora, do ponto 3 do referido sumário, bem como do texto do Acórdão, o que decorre é que não basta a existência de uma procuração ou os poderes conferidos ao procurador que dela constam para determinar a existência da obrigação de prestação de contas, sendo que o que justifica essa obrigação são os atos realizados.

E, assim sendo, improcedem nesta parte as conclusões do recurso (conclusões 2ª a 14ª)

2. Da existência de contas bancárias

Da conclusões 15ª a 24ª resulta, em bom rigor (ou, pelo menos, ao que parece), que a discordância dos Recorrentes assenta na decisão da matéria de facto do Acórdão da Relação de 05.11.2020, que não deu como provada a existência de contas bancárias.

Como decorre do que deixámos dito no ponto anterior, o acórdão de 05.11.2020 transitou em julgado e faz, também quanto à fundamentação de facto, caso julgado, não se podendo, agora nesta 2ª fase, voltar a discutir tal questão de facto que já havia sido apreciada e decidida no mencionado acórdão, pelo que improcede a argumentação fundada nos meios de prova que, aparentemente (segundo os Recorrentes) sustentariam diferente decisão.

Mas, dizem ainda os Recorrentes, que o acórdão ora recorrido considerou, nas despesas, o valor pago relativo ao imposto de selo, no montante de €8.887,96, que se reporta quer a outros bens, quer às contas bancárias, não sendo possível dissocia-las pois estas fazem parte da matéria coletável a partir da qual se gerou o imposto, bens esses constantes da relação de bens que o Recorrido apresentou no Serviço de Finanças. Conclui, assim, que “então, para que as contas ficassem certas teríamos também de retirar do lado da despesa o valor do imposto de selo gerado pelas contas bancárias” (conclusão 20ª), “pelo que o Tribunal a quo, ao considerar as contas bancárias como objeto da prestação de contas apenas para efeito da despesa, retirando-as do lado da receita, proferiu uma decisão injusta que não permite que os destinatários compreendam em que provas o tribunal se baseou para a proferir, violando o disposto no n.º 4 do artigo 607º do CPC.” (conclusão 24º).

Do nº 9 dos factos dados como provados na sentença proferida (a 08.06.2023) nesta 2ª fase dos autos consta que o réu pagou, a expensas suas, “ Imposto de Selo da Herança - €8.887,96”.

E, da respetiva fundamentação, que: “No que concerne aos factos atinentes ao imposto de selo da herança ficou apurado com base nos vários ofícios das Finanças juntos aos autos, em conjugação com as declarações de parte do Réu que confirmou esse montante (€ 8.887,96), afirmando que recebeu um estorno através de cheque de mais de € 1.000,00.”

De tal facto não consta que o montante pago inclua a parte do Imposto de Selo correspondente a contas bancárias, sendo que tal facto não foi impugnado no recurso de apelação pelos aí Recorridos (ora Recorrentes) como o poderia ter sido, interpondo, subsidiariamente, recurso subordinado (art. 633º, nºs 1 e 5), nem tão pouco requerendo a ampliação do âmbito do recurso (art. 636º, nº 2), prevenindo a hipótese de procedência do recurso de apelação, por forma a determinar se nesses €8.887,96 estava incluído o valor do imposto correspondente ao montante das contas bancárias e respetivo valor, por forma a deduzi-lo nas despesas.

De todo o modo, não tendo o mencionado ponto sido impugnado, não tinha a Relação que o apreciar e, assim, não tinha de o fundamentar, não se vendo que tenha sido violado o art. 607º, nº 4. Acresce que a fundamentação desse ponto da matéria de facto consta da sentença da 1ª instância, sendo que o recurso de revista apenas tem, e pode ter, como objeto decisão que seja proferida pela Relação e não pela 1ª instância, como decorre do disposto no nº 1 do art. 671º, nos termos do qual “1. Cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1ª instância (…)”.

Acresce que não se vê que tenha sido peticionado, seja no recurso de apelação, seja na presente revista, que ao valor da mencionada despesa seja deduzido o valor do imposto na parte correspondente às (eventuais) contas bancárias. O que, em bom rigor, ocorre é que os Recorrentes, invocando esse pagamento e partindo desse pressuposto, pretendem que a existência de contas bancárias seja dada como provada o que, todavia e como já acima dito, não é possível, estando a matéria de facto, bem como a questão relativa à inexistência da obrigação de prestação de contas quanto às (eventuais) contas bancárias, cobertas pela força do caso julgado formado pelo Acórdão da Relação de 05.11.2020.

Por fim, dir-se-á ainda que uma coisa é o pagamento do imposto de selo, ainda que este possa cobrir a parte correspondente às alegadas contas bancárias e, outra, a existência dessas contas, realidades distintas. E, nos autos, sendo embora desconhecido se existiam, ou não, contas bancárias (já que, no acórdão de 05.11.2020 foi dado como não provado quer a sua existência, quer a sua inexistência), está assente que o Recorrido pagou o montante de €8.887,96, não se vendo, por isso, que não deva ele ser relacionado nas despesas. Alegando os AA. a existência de contas bancárias e pretendendo, quanto a elas, a prestação de contas por parte do Réu, cabia-lhes o ónus da prova da existência das mesmas (art. 342º, nº 1, do CC) e da obrigação de prestação de contas. Mas entendendo porventura os AA. que tais contas não existiam e pretendendo que o imposto foi “mal” ou indevidamente pago (na parte a elas correspondente) e que, assim, não teria o Réu que o pagar, caber-lhes-ia, ainda assim, o ónus da prova dessa factualidade, mormente da inexistência das mesmas e desse “mau” ou “indevido” pagamento, uma vez que, tendo sido pago pelo Réu, tal constituiria matéria de exceção, impeditiva do direito de este o relacionar como despesa (art. 342º, nº 2, do CC).

A terminar, não se vê que o facto de a herança ser um património autónomo, obste ao referido e imponha que se extraiam as conclusões pretendidas pelos Recorrentes.

Assim, improcedem, nesta parte, as conclusões do recurso (conclusões 15ª a 24ª).

3. Da discordância quanto à despesa para diligenciar pela licença de habitabilidade (nº 10.a. dos factos provados).

Na sentença proferida na 1ª fase do processo (de 10.07.2018) foi dado como provado no nº 9 dos factos provados que “9. O Requerido, a expensas suas, pagou o seguinte: (…), técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade do imóvel”.

Os AA. apelaram da referida decisão, impugnando esse ponto 9, tendo o mesmo sido mantido pelo já mencionado Acórdão da Relação de 05.11.2020, transitado em julgado, no qual se referiu o seguinte: “Quanto à circunstância de a despesa com o técnico não estar documentada de acordo com o disposto no artigo 944.º, n.º 3, trata-se de questão a dirimir na fase executiva do processo de prestação de contas.

Nesta fase processual, há apenas que determinar se o réu está obrigado a prestar contas.”

Na sentença de 08.06.2023 foi dado como não provado que o “custo da legalização da casa” importou em €.3500,00, tendo-se, na respetiva fundamentação, referido o seguinte: “Por outro lado, não foi atendido o orçamento emitido pelo Arqto RR junto aos autos, porquanto tal documento não dá qualquer quitação do recebimento de qualquer quantia monetária”.

No recurso de apelação interposto pelo Réu tal ponto foi impugnado, pretendendo este que fosse dado como provado, tendo a Relação, no acórdão ora recorrido (de 22.02.2024), aditado à matéria de facto provada o ponto 10.a. do qual consta que: “10.a. O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado”, referindo na respetiva fundamentação da decisão de facto o seguinte:

“Impugna, ainda, o Apelante o ponto 3 da matéria de facto não provada, designadamente, no que respeita ao custo com a legalização da casa.

Entendeu o Tribunal a quo dar como não provadas as despesas elencadas no ponto 3 dos factos não provados, nomeadamente, as despesas relativas ao custo de legalização da casa no valor de 3500€. Afigura-se que a referida resposta não merece a nossa crítica, excepto no segmento em que deu, igualmente, como não provada a despesa relativa ao custo de legalização da casa nos termos que a seguir enunciaremos.

Com efeito, é pacífico no ordenamento jurídico português que a licença de habitabilidade é condição sine qua non para a venda de um imóvel. Até porque a preterição das proibições de celebração de escrituras públicas que envolva transmissão de prédios urbanos, sem a prova suficiente da existência da correspondente licença de utilização nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26.07, e do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25.03, importa a nulidade do negócio celebrado com infração dessas proibições, nos termos do art.º 294.º do Código Civil.

A tais proibições subjazem interesses de ordem pública que, para além da protecção dos consumidores, visam obviar à construção clandestina e promover a transparência e segurança do mercado habitacional, como resulta da evolução legislativa neste domínio e como vem sendo reconhecido pela jurisprudência.

Ora, analisadas as declarações de parte do Recorrente e o depoimento da testemunha QQ, concatenados com as regras da experiência comum, afigura-se-nos que o referido ponto deve merecer outra resposta no que diz respeito à efectiva despesa incorrida com o técnico para legalização da casa.

De resto, o Tribunal a quo dá, inclusive, como provado no ponto 9) que o Recorrente pagou a expensas suas a requisição da licença de utilização junto da Câmara Municipal no valor de € 76,88.

Ora, como é sabido, nada obsta a que o tribunal, na busca da verdade material, tome em consideração, para fins probatórios, as declarações não confessórias da parte, as quais serão livremente apreciadas, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

(…)

No caso vertente, as declarações de parte do Réu encontram-se corroboradas pelo testemunho de QQ e encontram justificação à luz da lei e das regras da experiência comum.

Afigura-se-nos, no entanto, que o valor apresentado como custo é manifestamente exorbitante não podendo, por isso, ser atendido e dado como assente.

De resto, no acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 05 de novembro de 2020, referente à fase declarativa da acção de prestação de contas, foi dado como provado o ponto 9) dos factos provados que refere o seguinte:

“9. O Réu a expensas suas, pagou o seguinte: funeral do falecido, taxas camarárias pela legalização do imóvel, água, luz, e Cabovisão do prédio do falecido, IMI do prédio, emolumentos das escrituras de compra e venda e de habilitação de herdeiros, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade”

Mais acrescentando que “Quanto à circunstância de a despesa com o técnico não estar documentada de acordo com o disposto no artigo 944º, n.º 3, trata-se de questão a dirimir na fase executiva do processo de prestação de contas”.

Assim, consta do acervo de factos provados dos presentes autos que o Réu, aqui Apelante, pagou a expensas suas um técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade.

De resto, o facto de não se encontrar apurada de forma clara o montante pago pelo Recorrente ao técnico, no caso, Arquiteto RR, tal não constitui motivação, para dar como não provada tal despesa.

Já que, na premissa de estar provado o pagamento de técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade, ainda que não se definindo em concreto o montante pago, a sua quantificação sempre pode ser relegada para execução de sentença ou fixada por recurso a critérios de equidade.

Assim sendo, decide-se:

- (…)

- acrescentar à matéria de facto provada, o seguinte ponto 10.a “O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado”

Do assim decidido discordam os Recorrentes alegando que “não aceitam a outra alteração da matéria de facto que o TRP fez relativamente ao facto - dado agora como provado - de que o Réu pagou a expensas suas, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade de valor não apurado, por entenderem que tal alteração violou o disposto no artigo 944º, nº 3 em conjugação com o artigo 945, nº 5 do CPC”, argumentando, em síntese, que: o ónus da prova da exatidão da despesa cabe a quem está obrigado à prestação de contas, não sendo admissível a liquidação em incidente de liquidação, cabendo ao juiz decidir nos termos do art. 945º, nº 5; no caso em apreço, não se trata de despesa em que não seja comum exigir-se documento comprovativo da mesma, antes pelo contrário, sendo habitual exigir-se documento comprovativo da despesa referente a honorários do técnico que presta estes serviços, no caso, o técnico que elaborou o orçamento junto aos autos; alude aos documentos mencionados nas conclusões 28º a 30º, que não comprovam tal despesa, concluindo que “face ao indeferimento do pedido de licenciamento, não é verosímil que a despesa tenha existido, contudo, no caso de dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita - artigo 414º, do CPC”, não podendo o Tribunal basear-se num mero juízo de probabilidade para concluir pela demonstração da realidade com base no disposto na parte final do art. 945º, nº 5. Assim, diz, “34ª- Pelo que, o Tribunal a quo ao modificar a douta sentença da 1ª Instância neste ponto da matéria de facto, violou o disposto nos artigos 414º, 944º, nº 3 e 945º n.º 5, todos do CPC.”

3.1. Desde logo, há que dizer que tal facto, na parte em que se refere que “O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade (…)” está coberto, nos termos apontados no ponto IV. 1.3. e 1.4. do presente acórdão, pelo caso julgado formado pela decisão da matéria de facto proferida na sentença de 10.07.2018, confirmada pelo Acórdão de 05.11.2020, transitado em julgado, que considerou, na 1ª fase do processo, a despesa verificada, apenas sendo que o que ficou por apurar e foi relegado para a 2ª fase foi o apuramento do respetivo montante.

Mas, mesmo que assim se não entendesse por, na interpretação do citado Acórdão de 05.11.2020, se ter referido que “trata-se de questão a dirimir na fase executiva do processo de prestação de contas” [o que não entendemos por se nos afigurar, como referido, que o que foi relegado para a 2ª fase foi a determinação do montante de tal despesa], sempre se dirá que a revista, nesta parte, não poderia proceder.

Como é sabido, nos termos dos arts. 682º, nº 2, e 674º, nº 3, o STJ não conhece da matéria de facto, não podendo o recurso de revista ter por objeto o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos provados, salvo quando a lei exija certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova. Decorre também do art. 660º, nº 4, que das decisões proferidas pela Relação sobre a impugnação da decisão da matéria de facto não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Está pois excluída a sindicabilidade da decisão da matéria de facto por este Supremo quando ela assenta em meios de prova não vinculados, isto é, sujeitos à livre apreciação do julgador.

E tem sido, também, entendimento do Supremo Tribunal de Justiça17 o de que não cabe no âmbito do recurso de revista sindicar a decisão das instâncias de dar como provado factos com recurso a presunções judiciais (arts. 349º e 351º do Cód. Civil), salvo quando se mostrem desprovidas de qualquer base factual ou patenteiem manifesta ilogicidade. As presunções judicias estão sujeitas à livre apreciação do julgador, pelo que o facto que haja sido provado com base em presunção, não é sindicável pelo STJ, estando-lhe vedada a indagação de erro intrínseco à própria apreciação e valoração da prova sujeita à livre apreciação do julgador.

Como diz António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª Edição, Almedina, pp. 427/428, “[j]amais poderá invocar-se para o efeito uma divergência relativamente ao julgamento feito pela Relação, agindo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova relativamente a prova testemunhal ou pericial, atuação que, nos termos do nº 4 do art. 662º, é insindicável através do recurso de revista18.

Ora, no caso, não se verifica nenhuma dessas situações que permitiria a este Supremo conhecer da matéria de facto. Nem o facto constante do nº 10.a dos factos provados está sujeito a prova vinculada, que apenas pudesse ser provado por documento com força probatória plena, nem contraria qualquer documento com tal força probatória, antes estando sujeito à livre apreciação do julgador. Nem, por outro lado, o juízo extraído pela Relação, com apelo às regras da experiência comum, consubstancia situação de manifesta ilogicidade ou se encontra desprovido de qualquer sustentação, antes assentando na conjugação, pela Relação, de meios de prova que teve por pertinentes e de conclusão que deles extraiu.

Por outo lado, sem prejuízo do que se disse, mas tendo presente a invocada violação do disposto no art. 945º, nº 5, do CPC, não assiste razão aos recorrentes.

Dispõe o citado preceito que “5 - O juiz ordena a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los”.

É certo que se, na 1ª fase do processo especial de prestação de contas, compete à pessoa a favor de quem as contas irão ser prestadas, o ónus da prova da obrigação da prestação de contas, já na 2ª fase o ónus da prova da exatidão das verbas das receitas e das despesas incumbe à pessoa que presta as contas, no caso, ao réu – cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2ª Edição, Almedina, p. 181 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2ª Edição, Almedina, p. 414.

E, quanto ao julgamento “segundo o prudente arbítrio”, tal não significa um poder discricionário, referindo os mencionados autores, ob. cit, p. 415, que “[o]s poderes-deveres instrutórios previstos no nº 2 mostram a preocupação legal de que as contas sejam julgadas com base em elementos dotados de um mínimo de consistência. O prudente arbítrio não pressupõe “certeza”, sob pena de não haver lugar a tal tipo de julgamento, apelando mais a um juízo em que se ponderem, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro”, mais entendendo, na densificação de tal conceito, que tal ocorrerá na situações em que seja “relativamente frequente que não haja documentação de suporte” e em que, de acordo com as regras da experiência, seja “possível admitir com relativa facilidade a ocorrência de receitas ou despesas de determinada índole mesmo que não documentadas”, devendo o juiz apelar a regras da experiência, da prudência e da razoabilidade, “abstraindo das regras do ónus da prova e procurando o mais possível a decisão daquilo que é normal que aconteça, sem sujeitar as partes a riscos especiais”.

Porém, a matéria relativa ao julgamento “segundo o prudente arbítrio”, envolvendo a atendibilidade das circunstâncias de cada caso, a prova produzida e que, no caso, está sujeita à livre apreciação do julgador, e o apelo às regras da experiência comum, insere-se no âmbito da decisão da matéria de facto e dos poderes da Relação nesse domínio, os quais, conforme já acima referido, são insindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça.

E, neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ de 14.09.2021, Processo 768/15.0T8MCN.P2.S1, nos termos do qual «(…) deverá considerar-se como “matéria de facto incensurável pelo Supremo Tribunal de Justiça a questão de saber se … o julgador, em seu prudente arbítrio, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, já tinha elementos seguros e suficientes para julgar as contas” — e, a fortiori, a questão de saber se, em face de elementos que considerou seguros e suficientes para julgar as contas, apreciou correctamente as provas relativas às despesas e às receitas inscritas» e de 9.11.2017, Processo 628/14.1TBBGC-C.G1.S1, em cujo texto se refere que «ainda que tivesse havido erro na “apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, o mesmo não poderia ser objecto de recurso de revista, não se podendo conhecer do recurso nesta parte, cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 26.01.2017, citado pela Recorrida bem como o Ac. do STJ de 12 de Setembro de 2017, proferido no processo n.º 13/08.4TMFAR.F4.S1», ambos in www.dgsi.pt.

Não pode, pois e em conclusão, este Supremo Tribunal de Justiça conhecer da impugnação aduzida quanto a tal ponto dos factos provados e à despesa ora em causa.

Resta uma nota final para dizer o seguinte:

Insurgem-se os Recorrentes contra a referência constante do Acórdão recorrido à possibilidade de liquidação das despesas em incidente de liquidação, uma vez que tal seria incompatível com o desiderato do processo especial – de prestação de contas – ora em causa.

Tal questão é perfeitamente irrelevante uma vez que, no caso, o Acórdão recorrido não remeteu a liquidação da despesa para incidente de liquidação, antes a tendo fixado nos termos do art. 945º, nº 5, do CPC.

Improcedem, assim e também nesta parte, as conclusões do recurso (conclusões 25ª a 34ª).


***


V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 18.06.2024

Relatora: Cons. Paula Leal de Carvalho

Adjuntos: Cons. Fernando Baptista de Oliveira

Cons. Isabel Salgado

_______


1. O pedido reconvencional, tendo embora sido admitido pela 1ª instância, veio tal decisão a ser revogada pelo Acórdão da relação de 05.11.2020, não relevando ao recurso ora em apreço.

2. De ora em diante as referências feitas sem outra menção de origem reportam-se ao CPC/2013.

3. No que releva ao recurso de revista, deste nº 13 dos factos dados como provados constava que: “13. À data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Novo Banco.

4. Do ponto 3 dos factos provados constava que “3. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar de ..., na Rua ..., freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº .77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 55.”

5. Do mencionado acórdão da Relação foi interposto recurso de revista, porém não admitido conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.03.2021.

6. Facto impugnado pelos AA. no recurso de apelação que interpuseram aos 28.09.2018 da decisão de 10.07.2018, impugnação que foi julgada improcedente.

7. Facto impugnado pelos AA. no recurso de apelação que interpuseram aos 28.09.2018 da decisão de 10.07.2018, impugnação que foi julgada improcedente.

8. Facto impugnado pelos AA. no recurso de apelação que interpuseram aos 28.09.2018 da decisão de 0.07.2018. No acórdão de 05.11.2020 referiu-se o seguinte: “Este concreto ponto da matéria de facto diz respeito à reconvenção, pelo que a sua impugnação ficou prejudicada face à decisão de julgar inadmissível a reconvenção”. Não obstante, e à cautela, apreciou da impugnação julgando-a improcedente. Tal matéria não releva ao recurso de revista.

9. Na sequência do acórdão da Relação de 07.11.2019, que determinou a baixa dos autos à 1ª instância para fundamentar a decisão da matéria de facto quanto aos nºs 3 e 13 dos factos que havia dado como provados.

10. Que já acima se consignou.

11. As normas que indicaremos, sem menção de origem, reportam-se ao CPC.

12. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta. Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª Edição, Almedina, p.412.

13. Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 692 e segs.

14. Cfr. também, e designadamente, Acórdão 01.07.2021, Proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1, in www.dgsi.pt.

15. Assim também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I., 3ª Edição, Almedina, p. 127.

16. Relembrando, referiu-se no citado acórdão que “A prova produzida nos autos não é pois, suficiente, para formar no espirito do julgador, uma convicção segura acerca da existências das referidas contas bancárias, pelo que, na duvida, não pode ser considerada provada a existência de tais contas. A prova produzida nos autos não é pois, suficiente, para formar no espirito do julgador, uma convicção segura acerca da existências das referidas contas bancárias, pelo que, na duvida, não pode ser considerada provada a existência de tais contas.

  Porém, também não é possível formar uma convicção segura acerca da inexistência das referidas contas bancárias.

  (…).”

17. Cfr., designadamente, Acórdãos do STJ de 17-10-2019, Proc. 1703/16.3T8PNF.P1.S1, de 19.10.2021, Proc. 295/20.3T8VRL.G1.S1 e de 17.01.2023, Proc. 286/09.5TBSTS.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

18. E ainda mesmo autor,, ob. cit, po 477 e seguintes e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil, Vol I, 3ª Edição, Almedina, p.879.