ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
QUEIXA
PROCESSO PENAL
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
Sumário


I. A condenação no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC, nos termos do artigo 277.º, n.º 5, do Código Processo Penal («CPP»), em caso de arquivamento do inquérito, é uma sanção de natureza processual, aplicável a quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa por «utilização indevida do processo».
II. Tendo em conta os princípios e finalidades do processo penal, que se distanciam do processo civil, nomeadamente dos poderes de disposição do processo na realização dos interesses privados que este visa tutelar, o conceito de «utilização abusiva do processo» penal na fase de inquérito, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, aproximando-se da «má-fé instrumental» definida no artigo 542.º, n.º 1, al. d), do CPC, incorpora elementos da «má fé substancial» a que se referem as alíneas a), b) e c) do mesmo preceito.
III. Tal como no processo civil, exige-se uma atuação com dolo ou negligência grave e que, por definição, a denúncia ou queixa conduzam à instauração e desenvolvimento de um processo suscetível de ser usado e que seja usado para as finalidades pretendidas, alheias às que lhe são próprias.
IV. No caso, não foram feitas quaisquer diligências no inquérito por não existir crime; destinando-se o inquérito a realizar diligências que visam investigar a existência de um crime (artigo 262.º, n.º 1, do CPP), «inexistindo crime, inexistem quaisquer diligências a realizar», como se diz no despacho que conheceu da reclamação hierárquica do despacho de arquivamento.
V. O despacho de arquivamento, consubstanciou-se num despacho liminar proferido no uso dos poderes conferidos ao Ministério Público pela al. a) do n.º 2 do artigo 53.º do CPP, segundo o qual «compete em especial ao Ministério Público: a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes (…)».
VI. Considerando que as queixas apresentadas não deram origem a um processo penal, não seria possível haver uma utilização abusiva do processo. Para além disso, como se afirma na decisão recorrida, «a atuação processual do denunciante não se mostra caracterizada de molde a corresponder a utilização abusiva do processo», «o que leva a concluir pela insuficiência de pressupostos da pretensão formulada no requerimento em análise.»
VII. Acresce que, no recurso interposto, vêm invocadas razões que não foram alegadas no requerimento de aplicação da sanção – nomeadamente o uso de «linguagem imprópria, pouco urbana e ofensiva com o propósito de ofender, achincalhar e intimidar» e a tramitação «tumultuosa» do processo – que, sendo factos novos, não conhecidos na decisão recorrida, não podem ser consideradas no âmbito deste recurso.
VIII. Pelo que se conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida que indeferiu a aplicação da sanção.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. Recorre o Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto da decisão da Senhora Juíza Desembargadora de 30.6.2023 que, proferido despacho de arquivamento do inquérito instaurado com base em «queixas-crime» apresentadas por AA contra a Senhora Procuradora da República BB, indeferiu o requerimento do Ministério Público de aplicação da sanção prevista no artigo 277.º, n.º 5, do Código Processo Penal («CPP»), segundo o qual, em caso de arquivamento do inquérito nos termos do n.º 1 do mesmo preceito, sempre que se verificar que existiu, por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal.

2. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“I. Na decisão que julgou improcedente o requerimento de aplicação da sanção prevista no art.º 277.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, apesar de não se colocar em causa que os factos denunciados não constituem infracções penais, entendeu-se que inexiste suporte factual e prova da presença de uso abusivo do processo por parte do denunciante, o que leva a concluir pela insuficiência de pressupostos da pretensão formulada no requerimento em análise.

II. Contudo, o requerido/denunciante AA tanto pelo seu estatuto cultural, económico e social, como pela sua experiência judiciária sabia perfeitamente que as denúncias que apresentou não tinham qualquer fundamento.

III. O referido AA para além de ter como habilitações literárias um curso superior de Engenharia e uma situação económica desafogada, tem tido intervenções em inúmeros processos de natureza criminal.

IV. No processo n.º 2498/20.1... em que o AA é arguido por ter difamado dois Magistrados do Ministério Público que tramitaram um inquérito onde era denunciante apresentou as denúncias que deram origem a este inquérito contra a Magistrada do Ministério Público que teve intervenção nesse processo.

V. Nas denúncias que deram origem a estes autos usou linguagem imprópria, pouco urbana e ofensiva para com a denunciada com o propósito de a ofender, achincalhar e intimidar, bem como de levá-la a solicitar a escusa.

VI. Esse derradeiro desiderato do AA foi logrado noutro processo relativamente ao Magistrado Judicial titular do processon.º2498/20.1... solicitado a escusa de intervir dando origem ao Ac. deste Tribunal da Relação, proferido em 15-02-2023, no Processo n.º 2498/20.1..., da ... Secção onde lucidamente se afirmou que o comportamento processual provocatório do arguido contra o juiz induz, não só para juristas como até para o comum dos cidadãos, é a conclusão de que se trata de um comportamento destinado a evitar a realização do julgamento, designadamente pelo juiz que é o juiz natural.

VII. Aliás, devido à actuação do AA a tramitação do processo n.º 2498/20.1... tem sido tumultuosa tal como consta documentado no inquérito e se afirma no Acórdão que vimos de citar onde se referem os dezassete pedidos de escusa ou de recusa de Juízes com origem em processos em que é ou foi interveniente o AA para depois se dizer: depois de lidas as várias decisões, vemos que os motivos aventados para a escusa prendem-se, na maior parte das vezes, com o facto de haver apresentação de queixas contra os magistrados envolvidos ou de queixas apresentadas ou anunciadas por estes contra o referido interveniente. Outro facto ainda que sai fora do comum é o de nos autos principais já terem sido nomeados 5 defensores ao arguido, os quais pediram sucessivas escusas à Ordem dos Advogados, a que acresce uma renúncia do mandatário constituído pelo arguido

VIII. Acrescem à abundante experiência judiciária do requerido/denunciante as várias condenações de que foi alvo e que se encontram documentadas no Ac. Rel. Porto de 8-06-2022, proferido no processo n.º 782/18.3... onde se referiu: assume ainda especial relevância no quadro da prevenção especial a circunstância do arguido já ter condenações anteriores uma por crime de injúria, em que foi condenado com pena de multa; um por crime de desobediência, condenado também em pena de multa. E uma condenação que apenas ocorreu em 28/02/2020 e transitada em 19/11/2020, por crime de difamação agravada, diga-se que também uma difamação a Magistrado Judicial, em relação a factos praticados em 4/09/2017. Ou seja, apesar de ter pendente contra si um processo pela difamação de Magistrado Judicial, não se coibiu de voltar a praticar ilícitos da mesma natureza.

IX. Poucos meses após ter visto confirmada por este Tribunal da Relação a condenação na pena única de um ano e sete meses de prisão suspensa na sua execução por ter praticado os crimes de difamação e denúncia caluniosa em que era ofendida uma Magistrada, o AA voltou a injuriar, difamar com as suas denúncias infundadas uma cidadã que apenas exerceu correctamente e de forma adequada as suas funções.

X. Pelo exposto entende-se que no despacho recorrido foi violado o disposto no art.º 277.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, pelo que deverá esse despacho ser revogado, determinando-se a sua substituição por outro que condene o requerido na sanção prevista no dispositivo violado.»

3. Notificado para o efeito, o denunciante AA não apresentou resposta.

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto «acompanhando a posição do recorrente, por concordar com os fundamentos da motivação apresentada», emitido parecer no sentido de dever ser julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto.

5. Tendo o denunciante, porque afetado pelo recurso, a faculdade de responder ao parecer do Ministério Público, nos termos do art.º 417.º, n.º 2 CPP, e não tendo advogado constituído, foi este notificado para constituir previamente advogado, uma vez que, nos termos o art.º 40.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil («CPC»), aplicável por força do art.º 4.º do CPP, é obrigatória a constituição de mandatário judicial na pendência da fase ou instância de recurso, como a dos presentes autos, para o que lhe foi concedido o prazo de 15 dias.

Não tendo o denunciante constituído advogado, apesar da notificação efetuada para esse efeito, foi determinado, por despacho de 22.12.2023, que o recurso prosseguisse seus termos sem cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.

Notificado desse despacho, o denunciante nada disse no prazo de 10 dias, que lhe foi fixado para o efeito.

6. Colhidos os vistos o recurso foi apresentado à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

7. A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos (transcrição):

“I.

No âmbito do inquérito n.º 709/23.0T9GDM, no qual foi incorporado o inquérito n.º 76/23.2..., após a prolação de despacho de arquivamento o Ministério Público formulou requerimento no qual solicita a condenação do denunciante AA em sanção, nos termos do artigo 277.º, n.º 5, do Código Processo Penal.

Notificado o requerido no presente incidente, pelo mesmo foi remetida aos autos comunicação eletrónica (email) em 8-6-2023, que foi notificada ao Ministério Público.

II.

A. DESPACHO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO -21-03-2023 [REF.ª ......75]:

Despacho de arquivamento

Os presentes autos foram instaurados porque, no escrito que intitula como “queixa-crime”, remetido para o Ministério Público de ... em anexo a uma mensagem electrónica datada de 23-01-2023, AA refere que uma Magistrada do Ministério Público de ... promoveu a aplicação ao denunciante de uma multa que este considera ilegal. Na peculiar forma de tentar usar linguagem jurídica, o denunciante afirma que a Magistrada denunciada, fez questão de fazer crer que, direta ou indiretamente, por sua iniciativa ou de outrem, promoveu ou pediu ao juiz CC a infame aplicação de uma multa ilegal baseada numa justificação absolutamente falsa, também ela fabricada ou simulada localmente1.

Contudo, anteriormente, no dia 27-12-2022 deu entrada nesta Procuradoria-Geral Regional um requerimento remetido através de mensagem electrónica onde o mesmo indivíduo, denunciante no inquérito n.º 4782/22.0..., refere, além do mais, pretender apresentar “queixa-crime” contra a mesma Magistrada afirmando que esta havia ocultado participações criminais durante seis semanas. No seu escrito, o AA referia-se a outras “queixas-crime” apresentadas contra o Magistrado Judicial titular do processo n.º 2498/20.1... a correr os seus termos no Juízo Local Criminal de ... onde o AA é arguido.

Portanto, são duas as “queixas-crime” do AA que constituem o objecto do presente inquérito que por vontade do denunciante foi instaurado para apreciar as condutas da Magistrada do Ministério Público elegida como alvo das participações.

Perante este tipo de iniciativas, apesar de se intuírem no impulsionador do processo intenções que não cabem nas finalidades do Direito Penal, necessário se torna ter alguma segurança para se afirmar que o pretendido com a instauração dos inquéritos carece de qualquer fundamento. Ademais, este denunciante visa Magistrados o que obriga a um especial cuidado tendo em vista a transparência do Sistema Judiciário.

Nos casos em apreço, para além da linguagem imprópria e pouco urbana, o AA não deixa de evidenciar as suas verdadeiras intenções ao apresentar estas “queixa-crime”.

Na “queixa-crime” apresentada em 23-01-2023, o AA limita-se a reeditar a sua tese de que a condenação em multa processual constituiu um crime. Este pretenso crime havia sido denunciado anteriormente tendo como visado o Magistrado Judicial que havia condenado o AA por ter faltado injustificadamente a uma diligência judicial. A nuance da “queixa-crime” aqui em causa consiste em apontar uma Magistrada do Ministério Público como “implicada” no putativo crime que o AA entende ter sido praticado.

No que se refere à “queixa-crime” apresentada em 27-12-2022, teremos de regredir ao processo no âmbito do qual o AA dirigiu este e outros escritos.

Na realidade, em 26-12-2022, como sempre, através de mensagem electrónica remetida para esta Procuradoria-Geral Regional, o referido indivíduo anexou outro escrito da sua lavra, desta feita insurgindo-se contra o despacho de arquivamento que mereceu anterior “queixa-crime” com que pretendeu atingir não só o despacho proferido pelo Magistrado Judicial de ..., como provocar que este solicitasse escusa no processo de que era titular que tinha o aqui “queixoso” investido na qualidade de arguido 2.

No inquérito n.º 4074/22.5... ao qual foi apensado o inquérito n.º 4782/22.0... foram apreciadas várias “queixas-crime” apresentadas não só contra dois Magistrados do Ministério Público que haviam denunciado o referido AA, dando origem ao processo n.º 2498/20.1..., como contra Magistrado Judicial titular deste processo.

Além do mais, foi apreciada e decidida a questão levantada na “nova queixa-crime” referindo-se:

(…) quanto à sanção aplicada ao aqui denunciante, verifica-se que a mesma resulta de despacho proferido para a acta durante a audiência de 12-10-2022 por se ter entendido como injustificada a falta a julgamento. A discordância do bem fundamentado despacho condenatório poderia materializar-se na interposição de recurso e nunca numa denúncia contra o Mmo. Juiz, muito menos nos termos em que foi redigida.

Conforme resulta da análise das denúncias e dos elementos recolhidos, não existe qualquer indício da prática pelos visados nas participações de qualquer acto censurável e muito menos de qualquer ilícito penal.

Ora, como deveremos fazer fé no que o AA escreveu no pedido de intervenção hierárquica no sentido de que não pode tratar a perseguida Vítima/denunciante como se fosse um estúpido, sendo um cidadão com formação universitária muito vasta e internacional, apreciado, agraciado e premiado em vários países pelo seu intelecto, conhecimento multidisciplinar, e capacidade de investigar, relacionar e de deduzir (seja, no difícil campo científico, seja no fácil campo criminal!), teremos necessariamente de interpretar esta “nova queixa” como uma renovação dos propósitos do AA perseguir criminalmente além do Magistrado Judicial titular do processo n.º 2498/20.1..., também a Magistrada do Ministério Público que ali teve intervenção.

Uma vez que o pedido de intervenção hierárquica foi indeferido por despacho de 14-02-2023, referindo-se que em face do exposto e com os fundamentos referidos, não merece qualquer reparo o douto despacho final proferido pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto a fls. 56 a 63, indeferindo-se assim a requerida intervenção hierárquica, mantendo-se o despacho proferido, nos seus precisos termos, apesar de contrariarmos o pensamento e a tese do AA, cumpre-nos decidir da mesma forma idêntica questão.

Na verdade, após análise do processo n.º 2498/20.1... não encontramos qualquer motivo para discordar das promoções e decisões ali proferidas e muito menos qualquer acto censurável no plano disciplinar ou criminal por parte dos Magistrados que tiveram intervenção no processo.

Ora, este circunstancialismo afasta de imediato a hipótese de existir qualquer fundamento para proceder criminalmente contra a Magistrada do Ministério Público visada na “nova queixa-crime” do AA como tendo tido participação na multa que lhe foi aplicada.

O mesmo se diga relativamente à actuação da Magistrada do Ministério Público relativamente às “queixas-crime” apresentadas sucessivamente pelo AA contra o Magistrado Judicial.

Ao contrário do que pretende o denunciante, nada obrigava (ou obriga) o Ministério Público a dar conta aos denunciados de que foi apresentada uma queixa contra eles. Como é óbvio, o AA, além do mais, pretendia com as denúncias que apresentou contra o Juiz do processo n.º 2498/20.1... que este pedisse escusa, daí a “queixa-crime” contra quem deu andamento ao expediente.

Apesar das inúmeras denúncias que tem vindo a apresentar contra Magistrados, ignorou o AA que o Ministério Público competente para as apreciar é o que está junto ao Tribunal Superior àquele onde o Magistrado denunciado exerce funções. Ora, seria incorrecto que a Magistrada denunciada praticasse actos, como o de informar o denunciado, num inquérito para o qual não tinha competência para tramitar.

Como resulta do abundante expediente gerado pelo AA em ..., não foi sonegada à apreciação desta Procuradoria-Geral Regional pela Magistrada denunciada qualquer participação que tenha apresentado no Ministério Público de ....

Atento o exposto, porque não é pertinente qualquer diligência, declara-se encerrado o inquérito. Por outro lado, porque os factos denunciados não integram qualquer ilícito criminal, constituindo apenas uma forma do denunciante atacar decisões com as quais não concorda promovendo procedimento criminal contra quem decidiu com isenção e em obediência às normas legais aplicáveis, determina-se o arquivamento dos autos.

(…)

B. DECISÃO DO PEDIDO DE INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA-15-05-2023 [REF.ª ......70]:

INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA

1. Os presentes autos de inquérito tiveram origem com a denúncia datada de 23.01.2023 apresentada por AA contra a Sra. Magistrada BB e neles acabou por ser incorporado o Inquérito com o NUIPC 76/23.2..., por se reportar aos mesmos factos que o denunciante imputa à referida magistrada e que, a seu ver, constituem crimes de abuso de poder, denegação de justiça, infidelidade, falsificação, perseguição, difamação e extorsão.

2. A atuação daquela Senhora Procuradora da República, que tantos crimes cometeu, na visão do denunciante, verificou-se no inquérito 2498/20.1..., que correu termos no Departamento de ... do DIAP do Porto.

3. O Senhora PGA nesta Relação a quem foi distribuído o(s) inquérito (s), entendeu que nenhum crime estava verificado, pois os factos denunciados não integram qualquer ilícito penal, pelo que determinou o arquivamento dos autos.

4. Inconformado, o denunciante veio apresentar a presente reclamação hierárquica, sem, porém, adiantar que diligências, no seu ver, deveriam ter sido realizadas.

5. Nos termos do art. 262º nº1 do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

6. Ora, inexistindo crime, inexistem quaisquer diligências a realizar.

7. O princípio da legalidade a que está sujeita a atividade do Ministério Público tanto o obriga a promover o processo penal (pressupondo a sua legitimidade) sempre que adquira notícia de factos que integrem a prática de um crime, como de igual modo o obriga a não promover o processo penal sempre que os factos da denúncia não integram a prática de um crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 72).

8. Tal princípio vem, aliás, vertido com a devida proeminência no Novo Estatuto do Ministério Público, logo no seu artigo 2º, estando, pois, toda a atividade do Ministério Público sujeita à legalidade e especificamente a ação penal como se preceitua no artigo 4º, n.º1, alínea a).

9. Cumpre lembrar, como tem sido entendimento dos Tribunais superiores,

o “Tendo o denunciado a qualidade de magistrado, goza, no exercício da sua função, da garantia da irresponsabilidade quanto às suas decisões (art. 216.º, n.º 2, da CRP), que, embora não sendo absoluta, faz com que o juiz deva beneficiar da presunção hominis de integridade funcional.

o O princípio da irresponsabilidade dos juízes não isenta os magistrados de responsabilidade criminal. Mas o apuramento desta torna-se mais exigente, sendo necessário que os indícios da prática do crime estejam bem consolidados, especialmente quanto ao elemento subjectivo, que, de modo algum, pode estar fundamentado em meras afirmações conclusivas, sendo de exigir que se adiante um hipotético móbil para o pretenso crime.” (cfr. Ac. STJ de 13.01.2011, DGSI).

10. Acrescenta-se que, “No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente, até porque, a ser diferente, ou seja, de todas as vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do MP incorressem num crime de prevaricação, estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro.

II - A actuação contra direito é uma forma de acção gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD.” (cfr. Ac. STJ de 20.06.2012, DGSI).

11. Pelo exposto, inexistindo qualquer facto criminalmente relevante denunciado, falece fundamento legal para a reabertura dos presentes autos de inquérito, acompanhando-se, integralmente, o teor do despacho posto em crise.

Assim, não merece censura o despacho final proferido pelo Senhor Procuradora-Geral Adjunto, pelo que, consequentemente, não violando qualquer preceito legal, se decide mantê-lo nos seus precisos termos e negar provimento ao solicitado.

(…)

C. DESPACHO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE 19-05-2023 [REF.ª ......88]:

(…)

Uma vez que se mostram esgotados os meios de reacção contra o despacho de arquivamento, na sequência do que deixamos vertido no final do mesmo, cumpre-nos determinar a extracção de certidão para eventual procedimento criminal contra o aqui denunciante AA por eventual prática de factos integráveis no crime de denúncia caluniosa caluniosa, p. e p. pelo disposto no art.º 365.º, n.º 1, do Código Penal que teve como alvo a Magistrada do Ministério Público denunciada sem qualquer fundamento, bem como promover a condenação do mesmo AA na sanção a que se refere o disposto no art.º 276.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, pelo que se determina:

a). Seja extraída certidão de todo o processado que deverá ser remetida à Exma. Sr.ª Directora do Departamento de Investigação e Acção Penal ... para apreciação e eventual instauração de inquérito pela prática do crime de denúncia caluniosa por parte do aqui denunciante.

b). Considerando que o denunciante AA apresentou queixas contra uma Magistrada do Ministério Público referindo que esta promoveu que lhe fosse aplicada uma multa que considera ilegal e que ocultou participações criminais durante seis semanas que o mesmo apresentara contra o Magistrado Judicial titular do processo n.º 2498/20.1... a correr os seus termos no Juízo Local Criminal de ...;

Considerando também que as condutas da Magistrada denunciada tanto no processo onde promoveu a aplicação de multa ao AA por este ter faltado injustificadamente a diligência judicial, como no seu exercício no processamento das queixas que o mesmo apresentou contra o Magistrado Judicial, titular do processo em que é arguido, não só não integram qualquer ilícito penal, como são o resultado da normal aplicação das normas num também normal exercício das funções que lhe são cometidas;

Considerando, finalmente que o denunciante AA pretendeu com a apresentação de queixas sem qualquer fundamento entravar o andamento do processo em que é arguido, designadamente tentando levar os Magistrados que nele têm intervenção a pedir escusa;

Para apreciação e com a promoção no sentido de ser o AA condenado no pagamento da soma referida no disposto no n.º 5, do art.º 277.º do Código de Processo Penal, remeta os autos a fim de serem feitos conclusos ao Exmo(a). Sr.(ª) Desembargador(a) designado(a) para desempenhar as funções de Juiz de Instrução.

D. AA remeteu comunicação eletrónica em 08-06-2023 [REF.ª ....01], na sequência de notificação para exercício de contraditório.

E. APRECIAÇÃO DO REQUERIMENTO:

No presente incidente importa apreciar se estão verificados os pressupostos legais para a aplicação da sanção prevista no n.º 5, do artigo 277.º, do Código Processo Penal e, em caso afirmativo, graduar o montante da sanção a fixar na situação concreta.

Vejamos.

De acordo com a norma legal citada supra, a imposição ao denunciante ou queixoso de sanção processual entre 6 a 20 UC depende da verificação de dois pressupostos: a existência de arquivamento do inquérito por motivos abrangidos no n.º 1 do artigo 277.º do Código Processo Penal (1), e a utilização abusiva do processo (2).

As situações de arquivamento do inquérito que podem determinar a aplicação da aludida sanção pecuniária correspondem aos casos em que no inquérito se recolhe prova bastante de não ter sido cometido crime, por razões de facto ou de direito, sendo exemplo disso o que acontece quando os factos nem sequer são típicos; ou se obtém prova bastante de que o arguido não praticou os factos; ou ainda quando se verifica causa de inadmissibilidade legal do procedimento3.

No que concerne ao preenchimento do conceito de utilização abusiva do processo tem entendido a jurisprudência que se reporta a comportamento processual equivalente àquele que pode integrar a figura jurídica da litigância de má fé em processo civil (artigo 542.º, n.º 2, do CPC), sendo reveladoras de má-fé as condutas que desencadeiam a instauração de procedimento criminal visando fins que se afastam das finalidades do processo penal, ou em que sejam relatados factos manifestamente infundados e/ou inverídicos, atuando o denunciante com conhecimento da falsidade ou da evidente ausência de fundamento dos factos denunciados, ou ainda utilizando o processo para conseguir um objetivo ilegal ou reprovável4.

No caso presente, o inquérito desencadeado pelas denúncias apresentadas por AA (que originaram os processos n.º 709/23.0T9GDM e n.º 76/23.2...) findou com a prolação de despacho de arquivamento (mantido na decisão que apreciou o pedido de intervenção hierárquica), em que se considerou que os factos denunciados não integram qualquer ilícito criminal, constituindo apenas uma forma do denunciante atacar decisões com as quais não concorda promovendo procedimento criminal contra quem decidiu com isenção e em obediência às normas legais aplicáveis.

Face à matéria alegada no presente incidente, considera-se que a atuação processual do denunciante não se mostra caracterizada de molde a corresponder a utilização abusiva do processo, de acordo com os contornos definidos supra, não sendo possível extrair, com a devida segurança, a ilação de ter o mesmo atuado com exata perceção sobre a ausência de factos típicos nas denúncias que apresentou.

Por conseguinte, inexiste suporte factual e prova da presença de uso abusivo do processo por parte do denunciante, o que leva a concluir pela insuficiência de pressupostos da pretensão formulada no requerimento em análise.

III.

Pelo exposto, indefere-se o requerimento de aplicação da sanção prevista no artigo 277.º, n.º 5, do Código Processo Penal.»

Âmbito e objeto do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto uma decisão da relação, proferida em 1.ª instância, pela Senhora Juíza Desembargadora em funções de juiz de instrução, que indefere a aplicação da sanção prevista no n.º 5 do artigo 277.º do CPP, recorrível em matéria de direito para o Supremo Tribunal de Justiça [artigos 432.º, n.º 1, al. a), e 434.º do CPP], sendo o âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimitado pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP).

9. Dispõe o artigo 277.º, n.ºs 1 e 5, do CPP, cuja aplicação controvertida fundamenta o presente recurso:

«Artigo 277.º (Arquivamento do inquérito

1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.

(…)

5 - Nos casos previstos no n.º 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal.»

O n.º 5 deste preceito, que tem natureza processual sancionatória, foi aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que teve origem na Proposta de Lei n.º 109/X, omissa a quanto a esta alteração, vindo a resultar dos trabalhos parlamentares e dos Projetos de Lei n.º 369/X, do BE, e 370/X, do PCP.

10. A jurisprudência dos tribunais da relação, chamados a interpretar e a aplicar estas disposições, têm identificado elementos relevantes de interpretação do n.º 5 quanto ao conceito de «utilização abusiva do processo» penal, no âmbito do processo penal, fazendo-o corresponder ao de má-fé instrumental que encontra definição na al. d) do n.º 1 do artigo 456.º do anterior Código de Processo Civil (artigo 542.º, n.º 1, al. d), do novo CPC), o qual dispõe que:

«1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

(…)

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Excluem-se da previsão desta al. d) os casos de «má fé substancial» referidos nas alíneas a), b) e c) do mesmo preceito - dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar, alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa e omissão grave do dever de cooperação (assim, Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, Almedina, 1998, pp. 318ss, citando Alberto dos Reis e Manuel de Andrade).

11. Pode ler-se no acórdão de 27-11-2013, Proc. 512/11.0GBPRG.P1, da Relação do Porto, seguido nos acórdãos de 12-04-2016, Proc. 74/14.7TASTR-A.E1, da Relação de Évora, e de 16-03-2016, Proc. 1936/15.0T9CBR.C1, de 16-03-2016, Proc. 63/15.4GBFND.C1, e de 15-01-2014, Proc. 8776/11.3TDLSB.C1, da Relação de Coimbra: «(…) a condenação no pagamento da referida soma pecuniária tem natureza sancionatória, é uma sanção por utilização abusiva do processo, ou, como anota Paulo Pinto de Albuquerque, é uma sanção “que tem natureza disciplinar e ordenadora”. (…) Recorrendo, ainda, às anotações de Paulo Pinto de Albuquerque (…), “a condenação em custas criminais por denúncia com má-fé ou negligência grave pode ser cumulada com a condenação no pagamento da soma por utilização do processo, prevista no artigo 277.º, n.º 5, pois elas visam objectivos diferentes: uma sancionar o abuso do processo e a outra tributar as custas da instauração do processo (também assim, Conde Correia, 2007:30)”. (…) Abusiva será, seguramente, a utilização do processo penal para fins que não sejam os assinalados, pervertendo-o em instrumento de desígnios que lhe são alheios. (…) Fazer uma utilização abusiva do processo penal não é, em substância, diverso de “fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal” (al. d) do n.º 1 do art.º 456.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Reforma operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho). Assim, tanto faz uma utilização abusivo do processo aquele que apresenta uma queixa ou uma denúncia cuja falta de fundamento não ignora, ou não devia ignorar, ou que altera conscientemente a verdade dos factos, como aquele que usa o processo para conseguir um objectivo ilegal ou reprovável. (…) O que normalmente acontece é que alguém faz uma denúncia, apresenta uma queixa que dá origem a um processo e vem a apurar-se que a denúncia ou a queixa é completamente infundada e que o denunciante visou, tão só, um fim ilícito ou ilegítimo, caso em que deverá haver uma condenação nos termos do n.º 5 do artigo 277.º do Cód. Proc. Penal. (…) Necessário, mas também suficiente, é que se reúnam os elementos que permitam concluir, com segurança, que a denúncia ou a queixa são infundadas, que o denunciante ou queixoso não ignorava, ou não devia ignorar, a sua falsidade, ou que alterou conscientemente a verdade dos factos, ou ainda que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou reprovável.»

Neste sentido se pronuncia também Conde Correia, citando e seguindo dois destes acórdãos, de 27.11.2023 e de 15.1.2024 (Comentário, supra, nota 3).

12. Comentando esta disposição, com o recurso à mesma jurisprudência, referem João Paulo Bichão/Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5.ª ed., 2023, pp. 164-166):

«O novo conceito [de utilização abusiva do processo] respeita ao abuso do processo pelo próprio sujeito processual que a ele recorre, visando o legislador prevenir e reprimir o uso manifestamente reprovável do processo penal pervertendo-o em instrumento de desígnios alheios à realização da justiça criminal e em prejuízo de outrem nomeadamente quando a denúncia seja infundada ou quando o queixosos não ignorava ou não devia ignorar a falsidade dos factos denunciados, quando tenha alterado conscientemente a verdade dos factos ou ainda quando tenha usado o processo para conseguir um objetivo ilegal ou simplesmente reprovável (acórdão TRP, de 27.11.2013, processo 512/11. 0GBPRG.P1; e acórdão TRC, de 16.3.2016, processo 1936/15.0T9CNR.C1)».

13. Esta compreensão do conceito de “utilização abusiva do processo” (penal), que não deixa de abranger os chamados casos de má-fé «substantiva» do processo civil, deverá ter-se por aceitável em função dos princípios, finalidades e regras do processo penal, que, pelos interesses que prossegue, se distanciam do processo civil, nomeadamente dos poderes de disposição do processo na realização dos interesses privados que este visa tutelar.

Afigura-se que se deva exigir, tal como no processo civil, uma atuação com dolo ou negligência grave e que, por definição, a denúncia conduza à instauração e desenvolvimento de um processo suscetível de ser usado e que seja usado para as finalidades pretendidas, alheias às finalidades que lhe são próprias.

14. No caso dos autos, o Ministério Público, decidido o arquivamento do inquérito, ordenou a extração de certidão para instauração de inquérito contra o denunciante pela prática do crime de denúncia caluniosa e promoveu a aplicação do artigo 277.º, n.º 5, do CPP, por considerar que o denunciante fez uma utilização abusiva do processo.

Estava em causa uma situação em que o denunciante apresentou queixas-crime por crimes de abuso de poder, denegação de justiça, infidelidade, falsificação, perseguição, difamação e extorsão contra uma magistrada do Ministério Público por, alegadamente, esta ter promovido que lhe fosse aplicada uma multa que considera ilegal e ter ocultado participações criminais durante seis semanas que o mesmo apresentara contra o Magistrado Judicial titular do processo n.º 2498/20.1...

Extrai-se do despacho de arquivamento e do despacho que incidiu sobre a reclamação hierárquica que o denunciante se limitou a apresentar queixas-crime sem apresentar provas e que não foram feitas diligências no inquérito por, como diz este último despacho, destinando-se o inquérito a realizar diligências que visam investigar a existência de um crime (artigo 262.º, n.º 1, do CPP), «inexistindo crime, inexistem quaisquer diligências a realizar».

15. Ou seja, em rigor, as queixas apresentadas não deram, no caso, origem a um processo penal, o que, desde logo, obstaria a que pudesse haver uma utilização abusiva do processo.

Com efeito, o dito despacho de arquivamento, consubstanciou-se num despacho liminar proferido no uso dos poderes conferidos ao Ministério Público pela al. a) do n.º 2 do artigo 53.º do CPP, segundo o qual «compete em especial ao Ministério Público: a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes (…)». Como implicitamente é reconhecido no despacho que incidiu sobre a reclamação hierárquica do despacho de arquivamento onde se diz: «O princípio da legalidade a que está sujeita a atividade do Ministério Público tanto o obriga a promover o processo penal (pressupondo a sua legitimidade) sempre que adquira notícia de factos que integrem a prática de um crime, como de igual modo o obriga a não promover o processo penal sempre que os factos da denúncia não integram a prática de um crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 72). Nele se concluindo que «inexistindo qualquer facto criminalmente relevante denunciado, falece fundamento legal para a reabertura dos presentes autos de inquérito, acompanhando-se, integralmente, o teor do despacho posto em crise

16. Por outro lado, como o Ministério Público alega no requerimento de aplicação da sanção do artigo 277.º, n.º 5, do CPP, o denunciante «pretendeu com a apresentação de queixas sem qualquer fundamento entravar o andamento do processo em que é arguido, designadamente tentando levar os Magistrados que nele têm intervenção a pedir escusa».

Porém, não se mostra que, com a sua conduta, tenha atingido esse objetivo, sendo que a possibilidade de ser requerida a recusa, com efeito idêntico ao da escusa, da iniciativa do juiz, sempre constitui um meio processual à disposição dos sujeitos processuais, regulada no CPP, a que o denunciante poderia recorrer, com sujeição a regulamentação própria (artigo 43ss do CPP), que não depende de instauração de processo-crime (inquérito).

Assim sendo, mostra-se justificada a conclusão obtida no despacho recorrido no sentido de que «a atuação processual do denunciante não se mostra caracterizada de molde a corresponder a utilização abusiva do processo» e, consequentemente, de que «inexiste suporte factual e prova da presença de uso abusivo do processo por parte do denunciante, o que leva a concluir pela insuficiência de pressupostos da pretensão formulada no requerimento em análise

17. Acresce que, no recurso interposto, vêm invocadas razões que não foram alegadas no requerimento de aplicação da sanção – nomeadamente o uso de «linguagem imprópria, pouco urbana e ofensiva para com a denunciada com o propósito de a ofender, achincalhar e intimidar», a tramitação «tumultuosa» do processo n.º 2498/20.1..., a nomeação de «5 defensores ao arguido, os quais pediram sucessivas escusas», a «abundante experiência judiciária do requerido/denunciante» com condenações anteriores, o ter voltado a «injuriar, difamar com as suas denúncias infundadas uma cidadã que apenas exerceu corretamente e de forma adequada as suas funções» – que, por essa razão, sendo factos novos, não conhecidos na decisão recorrida, não podem ser consideradas no âmbito deste recurso.

18. Termos em que se conclui pela improcedência do recurso.

III. Decisão

19. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de junho de 2024

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Pedro Manuel Branquinho Dias (Adjunto)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

________


1. Veja-se também a acta da audiência de 12-10-2022 do processo n.º 2498/20.1... onde participaram o Magistrado Judicial e a Magistrada do Ministério Público alvo das denúncias do AA↩︎

2. A latere refira-se que o Magistrado denunciado solicitou escusa tendo no Acórdão da Relação do Porto em que foi decidida a questão ficado escrito o seguinte: Aliás, o que o comportamento processual provocatório do arguido contra o juiz induz, não só para juristas como até para o comum dos cidadãos, é a conclusão de que se trata de um comportamento destinado a evitar a realização do julgamento, designadamente pelo juiz que é o juiz natural.

  É certo que no processo 224/19.7..., em que o relator deste acórdão interveio como adjunto, votou no sentido de ser deferida a escusa, mas não só os contornos exatos do caso não são os mesmos, como também na altura ainda não se tinha apercebido da dimensão numérica dos casos de escusa e recusa em que o interveniente processual é o mesmo, curiosidade que foi despertada pela sucessão muito próxima de dois casos de escusa com um mesmo interveniente processual.

  E o que é mais, consultado na plataforma citius o livro de registo de decisões desta Relação, verificamos que incidentes de escusa e recusa de juiz, tendo como interveniente processual o arguido dos autos principais de que estes constituem incidente, além do dos presentes são 17 (Proc: 629/19.3..., 1188/20.0..., 512/15.1..., 1188/20.0..., 224/19.7..., 1188/20.0..., 629/19.3..., 485/15.0..., 782/18.3..., 1218/22.0..., 600/16.7..., 58/22.1..., 58/22.1..., 3529/22.6..., 224/19.7..., 512/15.1..., 600/16.7...), ocorridos entre 20.10.2021 e o momento atual, tendo como escusados ou recusados vários juízes de vários tribunais. Os resultados quanto às duas recusas apresentadas, os dois primeiros incidentes de que demos conta, foram de indeferimento ou de não admissão do incidente. Já quanto às escusas os resultados dos incidentes dividem-se entre o deferimento ou a negação, sendo que nas cinco últimas decisões em duas delas foram negadas as escusas.

  Os incidentes de recusa e de escusa neste tribunal da Relação não são assim tão frequentes, sendo que no período consultado a esmagadora maioria dos incidentes diziam respeito a processos em que era interveniente processual o arguido dos autos principais de que foi extraída a certidão para o presente incidente.

  Se este facto só por si causa estranheza, depois de lidas as várias decisões, vemos que os motivos aventados para a escusa prendem-se, na maior parte das vezes, com o facto de haver apresentação de queixas contra os magistrados envolvidos ou de queixas apresentadas ou anunciadas por estes contra o referido interveniente.

  Outro facto ainda que sai fora do comum é o de nos autos principais já terem sido nomeados 5 defensores ao arguido, os quais pediram sucessivas escusas à Ordem dos Advogados, a que acresce uma renúncia do mandatário constituído pelo arguido.

  Tudo visto, a conclusão a que chegamos é a de que num caso como o dos autos, em que no decurso do processo o arguido assume um comportamento provocatório contra o juiz, injuriando-o, e apresenta duas queixas contra este, ainda que o juiz no pedido de escusa anuncie que vai apresentar queixa contra o arguido, o cidadão comum, considerando a globalidade do sucedido, não fique com qualquer suspeita da imparcialidade do juiz, mas antes que se convença de que se trata de um comportamento processual destinado a evitar a realização do julgamento, designadamente pelo juiz que é o juiz natural.

3. Vd. João Conde Correia, Comentário judiciário do Código Processo Penal, Tomo III, págs. 1026-1027.

4. Vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-03-2016, proc. 1936/15.0T9CBR.C1; Acórdão Tribunal da Relação de Évora de 12-04-2016, proc. 74/14.7TASTR-A.E.1; Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 27-11-2013, proc. 512/11.0GBPRG.P1; Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2014, proc. 8776/11.3TDLSB.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.