RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL DO ADVOGADO
INEFICÁCIA DE CASO JULGADO
SEGURADORA NÃO DEMANDADA
Sumário


I - O resultado da ação destinada a efetivar a responsabilidade civil profissional do advogado, intentada pelo lesado apenas contra o segurado, não vincula a seguradora do segurado, numa ação posterior instaurada pelo lesado contra essa companhia de seguros.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 19.153,69, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou ter movido uma ação judicial contra BB, advogado, a quem havia conferido procuração com vista à instauração de uma ação judicial, que o mesmo não interpôs, tendo o causídico sido condenado a pagar ao Autor, a título de indemnização por responsabilidade profissional, a quantia global de € 11.574,00, acrescida de juros de mora, valor que nunca lhe pagou. A Ré é responsável pelo seu pagamento, e bem ainda das custas de parte reclamadas no processo, em atenção ao contrato de seguro que havia celebrado com a Ordem dos Advogados e que cobria a responsabilidade civil profissional do advogado em questão.

*
A Ré contestou, por impugnação e exceção, invocando, inter alia, a ineficácia do caso julgado da anterior ação movida pelo Autor, que defendeu só ter força de caso julgado entre as partes, e, concomitantemente, requereu a intervenção acessória provocada de BB.
Alegou ainda, com relevo, a existência de «um potencial conluio entre autor e segurado da ré, Dr. BB, com vista a perpetrar fraude ao contrato de seguro dos autos.»
O Autor exerceu o contraditório.
*
1.2. No saneador foi decidido o seguinte:
«2.1. Pela R. foi alegada a exceção da “ineficácia do caso julgado”.
Na sua tese, não tendo sido demandada na primeira ação referida pelo A. nem chamada a intervir para aí fazer valer qualquer dos seus direitos, tem que se ter como terceira relativamente ao decidido nesses autos, pelo que a sentença condenatória proferida no âmbito do referido processo judicial é-lhe absolutamente ineficaz e inoponível quanto à matéria de facto provada que terá que ser discutida e analisada nos presentes autos.
Foi exercido o contraditório, pugnando o A. pela tese contrária.
Cumpre decidir.
2.2. A R. não tem razão.
O segurado não fez intervir naquela ação a sua seguradora.
Isto basta para, nos presentes autos, se poder afirmar a extensão da autoridade do caso julgado.
Na verdade, no caso de pagamento da indemnização, sempre a seguradora pode intentar ação de regresso contra o segurado a fim de com ele discutir os termos dessa condenação.
Não pode é, por inércia do segurado, impor-se ao lesado a nova prova de um conjunto de factos delitivos já reconhecidos contra o segurado e apreciados e decididos por sentença já transitada.
Com efeito, seria incompreensível que o lesado perante o lesante tivesse uma sentença condenatória e perante a seguradora do lesante obtivesse uma sentença absolutória por falta da referida intervenção (que só ao segurado pode ser imputável).
A cobertura dos riscos do próprio contrato de seguro é também essa.
Há já vária jurisprudência sobre esta questão neste sentido.
Pelo exposto, declaro que não se verifica a aludida exceção.».
*
1.3. Nesse despacho consignou-se ainda:
«IV. Nos termos do artigo 596.º do Código de Processo Civil, o objeto do litígio é o seguinte:
- Obrigação (principal e de juros) da R. indemnizar o A. ao abrigo de contrato de seguro - ramo responsabilidade civil profissional (mandato forense).
V. Decidida que se mostra a questão suscitada ao abrigo do caso julgado, não constitui, portanto, objeto do litígio a obrigação de indemnização, por facto ilícito contratual, culposo e causalmente danoso, a que o segurado está obrigado perante o A. (pois tal matéria de facto deve ser julgada assente).
Também não constitui objeto do litígio, pelos mesmos motivos, a questão suscitada pela R. relativa ao nexo causal entre os factos e o dano e a questão da discussão do dano ao nível do “dano da perda de chance”.
A questão da franquia é questão de direito pois a matéria de facto a tal respeito mostra-se reconhecida pelas partes (trata-se da cláusula 9 das condições particulares).
A questão do ressarcimento das custas de parte (que se mostram documentadas) também é questão de direito (saber-se se está ou não tal pagamento coberto pela apólice).
Finalmente, tendo sido peticionados juros moratórios a partir da citação e defendendo a R., a haver lugar a eles, o seu vencimento apenas após o trânsito em julgado da decisão (por, na sua tese, só aí se ter tornado líquido o montante peticionado pelo A.), tal questão é, também ela, de direito.
O único tema probatório é, em consequência, o seguinte:
1. Verificação dos pressupostos de exclusão do âmbito de cobertura da apólice.»
*
1.4. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da decisão referida em 1.2., formulando as seguintes conclusões:

«1. O despacho saneador-sentença proferido violou o disposto no artigo 522.º do Código Civil.
2. Nos termos do disposto no artigo 522.º do Código Civil, o caso julgado condenatório não é oponível aos condevedores que não foram parte no processo.
3. A decisão recorrida violou os limites do caso julgado ao decidir impor à ora recorrente a decisão proferida no processo n.º 1833/16...., por força do caso julgado.
4. Entre estes autos e os que correram termos sob o n.º de processo 1833/16...., não existe a tríplice identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos, a que se alude no n.º 1 do artigo 581.º do Código de Processo Civil.
5. Pelo que, não se formou caso julgado com a decisão transitada em julgado no processo n.º 1833/16.... em relação à ré ora recorrente.
6. A ré ora recorrente não foi demanda nem chamada a intervir na acção que correu termos sob o n.º de processo 1833/16.....
7. Sendo a recorrente terceira juridicamente interessada a decisão proferida na acção com o n.º 1833/16.... não lhe é oponível, não se formando autoridade de caso julgado quanto a ela.
8. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 580.º, 581.º, 619.º e 621.º, todos do Código de Processo Civil, artigo 522.º do Código Civil, e artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
9. A interpretação conjugada das normas constantes dos artigo 580.º, 581.º e 619.º, do Código de Processo Civil e 522.º do Código Civil, no sentido de que é admissível a verificação do caso julgado na sua vertente positiva sem que se encontrem verificados os requisitos de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, é incompatível com o princípio do acesso ao direito e aos tribunais (designadamente na sua dimensão de direito a um processo equitativo), consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, mais se revelando incompatível com o direito a um processo justo e equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.»
*
O Autor não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido.
*
1.5. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pela Ré, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil[1]), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa decidir se a sentença que condena o segurado numa indemnização faz caso julgado positivo relativamente à seguradora, que não foi parte na ação, e, na negativa, quais as consequências a extrair. Dito de outro modo, trata-se de saber se a sentença proferida na ação proposta pelo lesado contra o lesante, transitada em julgado, vale na ação posterior (presente ação) proposta pelo lesado contra a seguradora do lesante, que não interveio na primeira, como autoridade do caso julgado.
***
II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório que antecede.
**
2.2. Do objeto do recurso
Na decisão recorrida considerou-se que a seguradora está vinculada ao resultado da ação entre o lesado e o lesante. No entender do Tribunal recorrido, trata-se de matéria inequívoca: como «o segurado não fez intervir naquela ação a sua seguradora», isso é quanto «basta para, nos presentes autos, se poder afirmar a extensão da autoridade do caso julgado
A nosso ver, é uma questão que não é inteiramente consensual na jurisprudência, mas a corrente largamente maioritária aponta precisamente em sentido contrário ao decidido, colhendo dos ensinamentos da melhor doutrina, que se nos afigura tendencialmente uniforme. É elucidativo da atual corrente jurisprudencial maioritária o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.02.2024 (Jorge Arcanjo), proferido no processo 4730/20.2T8BRG.G2.S1[2], que tem a peculiaridade de incidir sobre um caso idêntico e paralelo ao dos autos, pois trata-se do mesmo negócio jurídico e o advogado visado é também o mesmo, apenas diferindo quanto à pessoa da demandante.
Importa traçar, resumidamente, o quadro aplicável ao caso vertente, contexto em que relevam os conceitos de caso julgado material e de autoridade do caso julgado.
Diz-nos o artigo 628º do CPC que a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
Forma-se então o caso julgado, que não é mais do que a insusceptibilidade de impugnação ou modificação[3] da decisão decorrente do seu trânsito em julgado[4]. O caso julgado pode ser formal ou material: o primeiro «só tem um valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida»; «o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada»[5]. Formam caso julgado formal as decisões sobre questões ou relações de caráter processual (art. 620º, nº 1, do CPC). Já as decisões sobre a relação material controvertida formam caso julgado material, pois, nos termos do artigo 619º, nº 1, do CPC, «transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.» E, segundo o artigo 621º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).»
Por conseguinte, o caso julgado material confere força obrigatória à decisão de mérito, dentro dos limites em que julga.
Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificativos da ação onde foi proferida a sentença: as partes, o pedido e a causa de pedir (artigos 580º e 581º do CPC). Se o objeto da decisão transitada no primeiro processo for idêntico, no que respeita a esses três elementos identificativos, ao do processo subsequente, a sentença daquele vale neste como exceção de caso julgado, evitando-se que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão anterior – artigo 580º, nº 2, do CPC.
O caso julgado é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso e que determina a absolvição da instância (artigos 577º, alínea i), 578º e 576º, nºs 1 e 2, do CPC).
Da exceção de caso julgado distingue-se a autoridade do caso julgado de sentença transitada. Uma e outra constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica, enquanto duas faces da especial qualidade da decisão transitada em julgado.
O caso julgado material implica um efeito negativo e um efeito positivo, sendo em face deles que se distingue a exceção de caso julgado e a autoridade do caso julgado. O efeito negativo, reconduzido à exceção de caso julgado, consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, quando se verifica a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; o efeito positivo, designado por autoridade do caso julgado, consiste em a solução nele compreendida adquirir força vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou noutros tribunais, ou seja, nas palavras de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6], tem «o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição)».
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, «[a] excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente»[7].
Portanto, enquanto a exceção de caso julgado tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir , a autoridade do caso julgado impõe a primeira decisão como pressuposto da segunda decisão de mérito e implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo atuar independentemente da mencionada tríplice identidade.
A jurisprudência dominante tem vindo a entender que, relativamente à autoridade do caso julgado, não é necessária a verificação da tríplice identidade suprarreferida – sujeitos, pedido e causa de pedir –, mas exige sempre que exista identidade de partes.
São elucidativos da aludida corrente jurisprudencial, os seguintes acórdãos do STJ:
- de 26.11.2020 (Manuel Tomé Gomes), proferido no processo 7597/15.9T8LRS.S1: «Nesta linha, a extensão da autoridade do caso julgado não depende da verificação integral ou completa da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, o efeito de caso julgado só vinculará e aproveitará a quem tenha sido parte na respetiva acção ou a quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos.»
- de 21.06.2022, processo 43/21.0YHLSB.L1-A.S1: «A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as acções, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art. 3º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial. (…) O caso julgado, tanto na vertente negativa, como na positiva, tem, em princípio, apenas eficácia entre as partes, ou seja, possui eficácia meramente relativa, o que se justifica em face dos princípios do dispositivo e do contraditório.»
- de 27.02.2024 (Jorge Arcanjo), processo 4730/20.2T8BRG.G2.S1: «Discute-se se a autoridade do caso julgado exige a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.581 do CPC. A este propósito, tem-se entendido que não se pode prescindir da identidade subjectiva, por exigência do princípio do contraditório, limitando-se a independência à identidade objectiva.»
- de 11.11.2020 (Maria da Graça Trigo), processo 214/17.4T8MNC.G1.S1: «Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira.»
- de 11.01.2024 (Nuno Pinto Oliveira), processo 1736/20.5T8VCD-A.P1.S1: «A autoridade de caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo só poderia ser invocada num segundo processo se estivesse preenchido o requisito da identidade subjectiva.»
- de 12.12.2023 (Maria dos Prazeres Beleza), processo 141/21.0YHLSB-A.L1.S1: «I. Para que uma decisão possa valer com força e autoridade de caso julgado em processo diverso daquele no qual foi proferida, não se exige a repetição em simultâneo dos três elementos de identificação de uma acção, que permitem concluir pela repetição de causas: sujeitos, pedido e causa de pedir. II. O que fundamenta a especial protecção da força e autoridade de uma decisão transitada, para além do prestígio dos tribunais, é a certeza e segurança na definição dos direitos sobre os quais incide. III. O relevo deste valor explica os mecanismos que a lei processual prevê para a sua defesa. IV. A vinculação a uma decisão transitada em julgado exige que os titulares de relações juridicamente afectáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo, e que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado. V. O princípio do contraditório exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos.»
- de 12.10.2023 (Fernando Baptista), processo 4006/20.5T8PRT.P1.S1: «A jurisprudência do STJ vem admitindo, em linha com a doutrina tradicional12, que a figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objectiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjetiva entre as duas causas (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 25-11-2014, de 24-03-2015, de 06-11-2018, de 26-02-2019, de 30-06-2020, de 11-11-2020, de 22-06-2021, de 21-06-2022, de 29-09-2022, de 25-03-2021 e de 02-03-2023). Podemos, pois, afirmar, como princípio geral, que a verificação da figura da autoridade do caso julgado pressupõe, para além do trânsito em julgado da decisão anterior e da existência de uma relação de prejudicialidade entre as duas causas, a identidade subjetiva entre as mesmas, exigindo que as partes no processo em que foi proferida a decisão a impor sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão.»
- de 29.09.2022 (Catarina Serra), processo 5138/05.5YXLSB-F.L1.S1: «A autoridade de caso julgado não prescinde da identidade de partes, pressupondo que as partes no processo em que foi proferida a decisão a impor sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão. O efeito reflexo do caso julgado produz-se quando a acção tenha decorrido entre todos os interessados directos (activos e passivos) na tutela jurisdicional de determinada situação. Assim, sempre que se puder dizer que se esgotou o universo de sujeitos com legitimidade para discutir a questão, a respectiva decisão tem autoridade de caso julgado, impondo-se em qualquer outro processo em que tal questão seja pressuposto ou fundamento da decisão.»;
- de 24.10.2019 (Maria João Vaz Tomé), processo 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2: «A inoponibilidade do caso julgado a terceiros representa um corolário do princípio do contraditório. Pode, nesta sede, falar-se do princípio da relatividade da sentença. A eficácia subjetiva do caso julgado encontra-se a priori excluída perante terceiros que fazem valer um direito autónomo, fundado numa relação jurídica diversa daquela que foi objeto de decisão anterior, ou que se assumem como titulares de um direito incompatível com aquele reconhecido pelo caso julgado formado inter alios. (…) Também pela ausência de identidade de sujeitos nas duas ações, não pode outrossim falar-se de autoridade do caso julgado. Tanto a exceção como a autoridade de caso julgado pressupõem a identidade de sujeitos em ambas as ações.»;
- de 28.03.2019 (Manuel Tomé Gomes), processo 6659/08.3TBCSC.L1.S1: «A autoridade do caso julgado não depende de verificação integral da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, esse efeito de caso julgado só vinculará quem tenha sido parte na respetiva ação ou quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos.»
- de 30.04.2020 (Maria dos Prazeres Beleza), processo 257/17.8T8MNC.G1.S1; «A diversidade de sujeitos perante os quais são vinculativas as decisões proferidas ou a proferir impede a invocação da força e autoridade do caso julgado, pois não há uma excepção de caso julgado a defender.»;
- de 21.06.2022 (Nuno Ataíde das Neves), processo 43/21.0YHLSB.L1-A.S1: «O caso julgado material, como autoridade de caso julgado, pressupõe sempre uma relação de prejudicialidade, no sentido de que o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto da ação posterior, sendo pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta venha a ser proferida. A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as acções, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art. 3º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial.»
Já Alberto dos Reis, na década de 40 do século passado, referia que «estender a eficácia da sentença a terceiros, estranhos ao processo, que não intervieram nele, que não foram ouvidos nem convencidos, que não foram colocados em condições de dizer da justiça, de alegar as suas razões, de exercer qualquer espécie de influência na formação da convicção do juiz – é uma violência que pode redundar numa iniquidade.»[8]
É precisamente na doutrina atual que a aludida corrente jurisprudencial se apoia, segundo a qual a autoridade do caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos em ambas as ações. Embora com algumas nuances, é essa a posição assumida por Miguel Teixeira de Sousa[9]O caso julgado apenas vincula em regra, as partes da acção, não podendo, também em regra, afectar terceiros. Isto é: quanto ao âmbito subjectivo, o caso julgado possui, em geral, uma eficácia meramente relativa. Estas regras são um dos reflexos do princípio do contraditório (artº 3º, nºs 1 a 3), no sentido de que, quem não pôde defender os seus interesses num processo pendente, não pode ser afectado pela decisão que nele foi proferida.»), Rui Pinto[10]O efeito positivo do caso julgado tem por sujeitos os destinatários da decisão: as partes da relação processual, nas decisões proferidas mediante pedido; os sujeitos referidos na decisão, nas decisões proferidas oficiosamente (…) Em suma: o caso julgado abrange os sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objeto da decisão; dito de outro modo, os limites subjetivos do caso julgado coincidem com os limites subjetivos do próprio objeto da decisão. (…) Mas também à semelhança do que sucede com o efeito negativo, também o efeito positivo interno abrange não apenas as pessoas que sejam as mesmas do ponto de vista da sua qualidade física (i.e., as que efetivamente estiveram no processo), mas também aqueles que sejam os mesmos sujeitos do ponto de vista da sua qualidade jurídica (cf. artigo 581.º, n.º 2).»), Lebre de Freitas[11], Francisco M.L. Ferreira de Almeida[12] e Mariana França Gouveia[13] (na vertente da autoridade de caso julgado, «a decisão ou as decisões tomadas na primeira acção vinculam os tribunais em acções posteriores entre as mesmas partes relativas a pedidos e/ou causas de pedir diversos»).
Tradicionalmente, quanto à extensão do caso julgado a terceiros, apela-se à distinção entre «terceiros juridicamente indiferentes» (a quem a decisão não produz nenhum prejuízo jurídico, não interferindo com a existência e validade do seu direito), «terceiros juridicamente prejudicados» (titulares de relações jurídicas independentes e incompatíveis com o caso julgado alheio), «terceiros titulares de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes por decisão transitada» e «terceiros titulares de relações paralelas à definida pelo caso julgado alheio ou com ela concorrentes».
Não nos parece relevante para o caso dos autos aprofundar essa matéria dos limites subjetivos do caso julgado. Há apenas que reconhecer a existência de situações em que o que se encontra decidido numa ação é vinculativo para terceiros, ou seja, para quem não foi parte nessa ação. É o caso, entre outros, do disposto no artigo 622º do CPC, quanto aos efeitos das decisões relativas a estados pessoais, e do estabelecido no artigo 522º do CCiv, quanto à extensão a todos os devedores solidários de uma decisão absolutória proferida quanto a um deles.
Mas a regra geral é a de que ninguém pode ser atingido pelos efeitos de uma decisão proferida num processo em que não foi parte[14].
A situação dos autos insere-se precisamente nessa regra: o que foi definido entre o lesado e o lesante numa primeira ação, não pode ser oposto, numa ação posterior instaurada pelo lesado, contra a companhia seguradora do lesante.
Como impressivamente salienta Miguel Teixeira de Sousa[15], em comentário ao acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17.10.2019, que abordava uma situação semelhante à dos presentes autos:
«O acórdão em análise insere-se numa recente orientação menos feliz do STJ: a vinculação da seguradora ao resultado da acção entre o lesado e o lesante. A verdade é que esta vinculação representa uma clara violação do princípio do contraditório, dado que ela implica que a seguradora fica vinculada a um resultado processual para o qual não teve nenhuma possibilidade de contribuir.
Entre outros aspectos, cabe lembrar o estabelecido nos art. 522.º e 531 CC, no âmbito das obrigações solidárias, e no art. 635.º CC, no domínio das relações entre o credor e o fiador. Todos estes preceitos estabelecem que uma decisão desfavorável não é oponível ao devedor, ao credor ou ao fiador. Não se trata de nenhumas regras excepcionais, mas antes de regras que são expressão da regra geral segundo a qual a ninguém pode ser imposto um dever se o vinculado não tiver participado na respectiva acção.
Aliás, cabe recordar que o lesado pode propor a acção contra o lesante e a seguradora ou até apenas contra a seguradora. Quer dizer: o lesado tem várias hipóteses de demandar a seguradora, não aproveita nenhuma delas e pretende opor o resultado de uma acção em que a seguradora não interveio a esta mesma seguradora? É claro que não pode ser!»
No caso dos autos, importa ter em conta o regime do seguro de responsabilidade civil profissional dos advogados e, consequentemente, a natureza da intervenção da Ré enquanto seguradora. São as normas de direito material que regem as relações respetivas que nos permitem apurar se a Ré está vinculada ou não ao decidido na anterior ação que correu termos entre o Autor e o segurado.
Para o efeito são pertinentes as normas do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 09 de setembro, e do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril.
Segundo resulta tanto da p.i. como da contestação, entre a Ré e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil (segundo a noção do art. 137º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro[16]), titulado pela apólice nº ...58, junta como documento nº 1 da contestação. Trata-se de um seguro de responsabilidade civil profissional em que são segurados, entre outros, os advogados inscritos na Ordem dos Advogados e garante a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da advocacia e a consequente indemnização pelos danos causados por dolo, erro, omissão ou negligência profissional de advogado, com um limite de € 150.000,00 por sinistro e uma franquia de € 5.000,00.
Estamos perante um seguro de grupo. Segundo o artigo 76º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, «o contrato de seguro de grupo cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar». É uma modalidade de contrato de seguro que pressupõe a existência de três sujeitos de direito distintos: o segurador, o tomador do seguro e os segurados, entendidos estes últimos como «as pessoas ligadas ao tomador de seguro por um vínculo que não seja o de segurar».
No caso, o tomador do seguro foi a Ordem dos Advogados e os segurados, entre outros, os advogados com inscrição em vigor naquela Ordem.
Posto isto, dentro da dicotomia seguro facultativo/seguro obrigatório, cabe agora qualificar o contrato de seguro dos autos.
Como nota preliminar, aponta-se a predominância da corrente jurisprudencial que qualifica o contrato de seguro de responsabilidade profissional emergente da atividade de advocacia como sendo um seguro obrigatório. Nesse sentido, podem citar-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.05.2015 (231/10.5TBSAT.C1.S1 – Martins de Sousa), e de 14.12.2016 (5440/15.8T8PRT-B.P1.S1 – António Silva Gonçalves), da Relação do Porto de 11.10.2017 (379/13.4TVPRT.P1 – Rui Moreira) e de 09.11.2017 (9108/16.0T8PRT-A.P1 – Inês Moura), da Relação de Évora de 17.12.2015 (601/13.7TBTMR-A.E1 – Acácio Neves), de 20.10.2016 (688/14.5TBTNV.E1 - Mário Coelho) e de 27.04.2017 (580/11.5TBCTX.E - Graça Araújo), de 08.11.2018 (139/14.5T8BJA.E1 – Mário Coelho), da Relação de Coimbra de 13.11.2018 (236/14.7TBLMG.C1 – Ferreira Lopes) e da Relação de Lisboa de 22.09.2015 (1496/09.0YXLSB.L1-1 - Isabel Fonseca), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Para proceder à apontada qualificação releva o artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que sob a epígrafe “responsabilidade civil profissional” dispõe:
«1 - O advogado com inscrição em vigor, as sociedades profissionais de advogados e as sociedades multidisciplinares devem celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua atividade. 2 - As condições mínimas do seguro são fixadas por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e das finanças. 3 - Quando a responsabilidade civil profissional do advogado se fundar na mera culpa, o montante da indemnização tem como limite máximo o correspondente ao fixado para o seguro na portaria referida no número anterior, devendo o advogado inscrever no seu papel timbrado a expressão 'responsabilidade limitada'. 4 - O disposto no número anterior não se aplica sempre que o advogado não cumpra o estabelecido no n.º 1 ou declare não pretender qualquer limite para a sua responsabilidade civil profissional, caso em que beneficia sempre do seguro de responsabilidade profissional mínima de grupo de (euro) 50.000, de que são titulares todos os advogados não suspensos.»
Decorre do nº 1 do aludido preceito que constitui obrigação do advogado, inerente ao exercício da sua atividade, celebrar e manter um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Utilizando o legislador o vocábulo “deve” em vez de “pode”, isso só pode significar que não está na disponibilidade do advogado optar entre celebrar ou não celebrar tal contrato de seguro. Trata-se, portanto, de uma norma imperativa e que tem subjacente a salvaguarda do interesse público em proteger as pessoas que recorrem a advogados dos riscos de uma atuação geradora de responsabilidade, além de garantir uma maior liberdade e segurança de atuação ao advogado, aliviando-o do constrangimento sempre inerente ao receio de errar.
Mas o referido artigo ainda prevê um outro contrato de seguro, sobre o qual rege o nº 4. Tal norma impõe à Ordem dos Advogados a celebração, enquanto tomador de seguro, de um seguro de grupo, igualmente de responsabilidade civil profissional, de que são segurados todos os advogados com inscrição em vigor na Ordem. Também este é um seguro obrigatório, uma vez que em caso algum a Ordem dos Advogados pode deixar de o celebrar (neste sentido, o acórdão do STJ de 14.12.2016, assim como a generalidade dos demais já mencionados).
Sendo um contrato de seguro obrigatório, não são oponíveis ao lesado, alheio à relação contratual titulada pela apólice, as exceções de direito material fundadas nas relações estabelecidas entre o tomador de seguro e/ou o segurado e a seguradora, na parte em que as exceções versam sobre o incumprimento por parte do segurado – ou do tomador de seguro – de deveres contratualmente fixados. É isso precisamente que resulta do nº 4[17] do artigo 101º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), ao estabelecer que «o disposto nos nºs 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efetuar, com os limites referidos naqueles números»[18].
Por conseguinte, o eventual incumprimento por parte do segurado, do tomador ou até do beneficiário do seguro para com o segurador não impede este de satisfazer a indemnização devida ao lesado, ficando, no entanto, com direito de regresso contra aquele incumpridor. Mais, nos termos do artigo 146º, nº 1, do RJCS, «o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente ao segurador.»
Daqui resulta que sendo a seguradora a responsável pelo pagamento das indemnizações devidas por ato culposo do segurado, que pode ser diretamente demandada, nada impede que o lesado/autor de intentar a ação simultaneamente contra a seguradora e o segurado, pois se é certo que a obrigação da seguradora resulta do contrato de seguro, ao lado desta existe a do segurado (advogado), enquanto responsável pelo facto danoso. Todavia, a lei não impõe ao lesado a demanda conjunta da seguradora e do segurado/lesante. Pode o lesado optar por demandar só o lesante, só a seguradora ou ambos, em regime de litisconsórcio voluntário, porque a interpelação direta da seguradora é uma possibilidade e não uma obrigatoriedade, como ocorre no contrato de seguro automóvel.
O regime do seguro obrigatório dos advogados difere assim do regime relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação. De acordo com o disposto no artigo 64º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente (a) contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório e (b) contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o aludido limite.
Assim, caso o montante indemnizatório se contiver dentro do capital mínimo obrigatório, a ação terá de ser intentada apenas contra a seguradora.
Diferentemente, no caso do seguro obrigatório dos advogados, como se refere no mencionado acórdão do STJ de 27.02.2024 (Jorge Arcanjo), proferido no processo 4730/20.2T8BRG.G2.S1, «verifica-se uma obrigação plural solidária, porque o credor pode exigir a prestação de qualquer dos devedores, qualquer dos obrigados (segurado e /ou seguradora) pode ser demandado à escolha do credor, e o pagamento da indemnização libera a prestação do outro devedor (art. 512 nº 1 CC) (cf., por ex., Ac STJ de 29/5/2003 (proc. nº 02A041), em www dgsi.pt). Podemos concluir que a obrigação da Ré Seguradora se apresenta solidária perante o lesado, embora se trate de solidariedade imperfeita (art. 512 nº 1 e 2 CC) pelo que tem aplicação a norma do art. 522 CC sobre o caso julgado – “O caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor”. O legislador, adaptando a eficácia do caso julgado ao condicionalismo específico das obrigações solidárias, adoptou uma posição intermédia, consoante a sentença seja condenatória ou absolutória, ao permitir que a sentença transitada em julgado em relação a um dos devedores aproveite aos restantes (salvo quando se basear em razões pessoais do demandado), mas não os prejudique.
Daqui resulta que sendo o caso julgado condenatório, ele não é oponível aos condevedores que não foram parte do processo
Em anotação ao artigo 522º do CCiv, Pires de Lima e Antunes Varela[19] escrevem: «Como consequência da primeira parte do artigo, se o caso julgado for condenatório, não pode ser oposto aos condevedores que não foram partes no processo, para evitar naturalmente que eles sejam vítimas da negligência do demandado ou até do conluio entre credor e devedor accionado. (…) Como se sabe, a regra aceite no direito processual civil é a da eficácia relativa do caso julgado. A sentença só vale contra as próprias partes na acção em que foi proferida e não em face de terceiros (…)».
Antunes Varela[20], em obra autónoma, desenvolve ainda mais a questão: «A razão justificativa da solução está no intuito de facultar aos devedores a arguição de todos os meios de defesa e a produção de todos os meios de prova que disponham, não os vinculando ao resultado de uma acção em que não puderam dizer de sua justiça, nem os sujeitando ao possível conluio do credor com o devedor demandado, no sentido de este lhes facilitar a obtenção da sentença favorável. A solução não constitui nenhuma injustiça para o credor, visto este ter sempre a possibilidade de demandar simultaneamente todos os devedores, embora a ausência eventual de alguns deles lhe possa causar maiores custos e dificuldades.
Se o não fez e mais tarde sofre as consequências da omissão, sibi imputet.»
Revestindo a situação dos autos um manifesto caso de solidariedade passiva dos devedores da indemnização – segurado e seguradora –, em que qualquer deles responde pelo cumprimento integral da indemnização atribuída ao lesado, a sentença condenatória do segurado proferida em ação para efetivação de responsabilidade civil profissional do advogado não tem eficácia de caso julgado para com a seguradora não demandada, nem interveniente nessa ação.
A norma do artigo 522º do CCiv expressamente afasta a tese defendida na decisão recorrida sobre a «extensão da autoridade do caso julgado.» Não pode ser convocada a autoridade do caso julgado para a resolução do diferendo entre Autor e Ré, pois esta não está vinculada a uma decisão proferida num processo em que não participou. A sentença, relativamente à Ré, não tem a eficácia de autoridade do caso julgado, pelo que é nítida a violação do seu direito de defesa ao lhe ser imposta pelo despacho recorrido, com violação do artigo 522º do CCiv, a decisão anterior. É patente a inoponibilidade da decisão anteriormente proferida, por imposição do princípio do contraditório, e a autoridade do caso julgado não era invocável, ao contrário do que o Autor fez na petição inicial.
Por isso, vale a orientação consagrada no citado acórdão do STJ de 27.02.2024, para uma situação inteiramente idêntica à dos presentes autos, em que tanto o segurado (advogado) como a seguradora são os mesmos (até os nºs dos processos são quase idênticos e sucessivos - 1833/16.... e 1835/16....): «Numa acção de responsabilidade civil profissional, a sentença que condena o segurado numa indemnização não faz caso julgado positivo relativamente à Seguradora, que não foi parte na acção.»
Não só é a solução legalmente acertada, como está de harmonia com o disposto no artigo 8º, nº 3, do CCiv: «Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito.»
Em consequência da ineficácia do caso julgado relativamente à Ré, o despacho destinado a enunciar os temas da prova carece de ser reformulado, pois o tema probatório não se circunscreve à «verificação dos pressupostos de exclusão do âmbito de cobertura da apólice.»

Termos em que procede a apelação.
***
III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, decide-se revogar o despacho recorrido, na parte impugnada, declara-se que a sentença proferida na ação com o nº 1833/16...., do Juízo Local Cível de Braga – Juiz ..., não faz caso julgado positivo relativamente à ora Recorrente e determina-se que na 1ª instância seja proferido despacho a reformular os temas da prova.
Custas a suportar pelo Recorrido.
*
*
Guimarães, 11.07.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alexandra Rolim Mendes
José Carlos Dias Cravo



[1] De ora em diante, CPC.
[2] Acessível, como todos os demais citados no presente acórdão, em www.dgsi.pt.
[3] A lei processual garante a imodificabilidade da decisão transitada em julgado por duas vias: por um lado, consagra a chamada exceção dilatória de caso julgado, que é de conhecimento oficioso, impedindo a propositura de uma nova ação destinada a apreciar questão já solucionada por decisão anterior (arts. 577º, al. i), 578º, 580º e 581º do CPC); por outro, prevenindo a hipótese de essa exceção não haver oportunamente funcionado e de virem a formar-se duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, prescreve a prevalência, não da última, mas da primeiramente transitada em julgado – artigo 625º, nº 1, do CPC.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 567.
[5] Autor e obra citada, pág. 569.
[6] Código de Processo Civil, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 749.
[7] O objecto da sentença e o caso julgado material, BMJ 325, pág. 171 e segs.
[8] Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (BFDUC), Vol. XVII (1940-1941), pág. 208.
[9] Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 588 e segs.
[10] Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar Online, novembro 2018, pág. 28 e segs.
[11] Um Polvo Chamado Autoridade de Caso Julgado, Revista da Ordem dos Advogados (ROA), a.79, nºs 3-4 (jul.-dez. 2019), págs. 691-722 e A Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado, ROA, pág. 613 (acessível em https://portal.oa.pt/media/132095/jose-lebre-de-freitas.pdf).
[12] Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, pág. 601 e segs.
[13] A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina, pág. 499.
[14] É uma regra que remonta ao direito romano, onde se enunciava que «res inter alios iudicata tertio neque nocet neque prodest». Por outro lado, também nas Ordenações (livro 3º, título 81, pr.) se estabelecia que «a sentença não aproveita nem empece mais que às pessoas entre quem é dada».
[15] In Blog do IPPC, entrada de 13.11.2019.
[16] «No seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros».
[17] Este preceito constitui uma manifestação especial do regime geral de inoponibilidade das exceções pelo segurador ao terceiro lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil consagrado no art.147º do mesmo RJCS, cujo nº 1 dispõe que «o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro».
[18] Os nºs 1 e 2 do referido artigo 101º, que tem por epígrafe a “falta de participação do sinistro”, dispõem assim:
«1 - O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause.
2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorreto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador».
No artigo 100º do RJCS prevêem-se as obrigações inerentes à participação do sinistro, dispondo o nº 1 que «a verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento».
[19] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 404.
[20] Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, págs.735 e 736.