PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CAUSA DE PEDIR DEFICIENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário


I- A manifesta improcedência a que se refere o art.º 590º, nº 1, do NCPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre os quais figura a falta da causa de pedir, a qual não se confunde com uma causa de pedir deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta.
II – No caso de serem susceptíveis de sanação, a existência de deficiências no requerimento inicial não implica rejeição liminar, caso em que o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido art.º 590º.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

EMP01..., Unipessoal, Lda
veio intentar a presente providência cautelar não especificada, contra
EMP02...,
pedindo que:
a) se determine o registo predial imediato da presente providência, ficando a requerida impedida de vender ou realizar qualquer tipo de contrato sobre o prédio descrito sob o nº ...67 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...35º rústico, actual artigo ...99º urbano, e o prédio descrito sob o n.º ...60 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...40º a terceiros até decisão da acção principal a instaurar após emissão da certidão de destaque para cumprimento do acordado, outorga do contrato promessa e responsabilização da requerida nos termos legais;
b) seja o presente procedimento cautelar decretado sem a audição da requerida;
c) seja a requerida impedida de vender ou realizar qualquer tipo de contrato sobre o prédio descrito sob o nº ...67 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...35º, actual artigo ...99º urbano, e o prédio descrito sob o n.º ...60 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...40º a terceiros até decisão da acção principal a instaurar para cumprimento do acordado, outorga do contrato promessa ou documento particular autenticado e responsabilização da requerida nos termos legais.
d) e bem assim para se abster de, em relação aos mesmos prédios, celebrar quaisquer outros contratos promessa, de compra e venda, com eficácia real ou meramente obrigacional, arrendamentos ou contratos de qualquer outra natureza, que possam onerar os bens em causa, devendo igualmente a requerida abster-se de constituir hipotecas ou outras garantias sobre os bens em causa, reais ou pessoais ou por qualquer outra forma dispor dos referenciados prédios.

No despacho liminar, o tribunal a quo proferiu a decisão seguinte:
«[..]
No caso sub iudice, a EMP01..., Unipessoal, Ld.ª, NIPC ...57, com sede na rua ..., ..., ..., ..., propôs o presente procedimento cautelar comum contra a EMP02..., instituição particular de solidariedade social, NIPC ...45, com sede no ..., rua ..., ... ..., peticionando que se:
“a) Determine o registo predial imediato da presente providência, ficando a Requerida impedida de vender ou realizar qualquer tipo de contrato sobre o prédio descrito sob o nº ...67 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...35º rústico, atual artigo ...99º urbano, e o prédio descrito sob o n.º ...60 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...40º a terceiros até decisão da ação principal a instaurar após emissão da certidão de destaque para cumprimento do acordado, outorga do contrato promessa e responsabilização da Requerida nos termos legais;
b) Seja o presente procedimento cautelar decretado sem a audição da Requerida pelas razões supra expostas;
c) Seja a Requerida impedida de vender ou realizar qualquer tipo de contrato sobre o prédio descrito sob o nº ...67 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...35º, atual artigo ...99º urbano, e o prédio descrito sob o n.º ...60 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da União de freguesias ... e ... sob o artigo ...40º a terceiros até decisão da ação principal a instaurar para cumprimento do acordado, outorga do contrato promessa ou documento particular autenticado e responsabilização da Requerida nos termos legais.
d) E bem assim para se abster de, em relação aos mesmos prédios, celebrar quaisquer outros contratos promessa, de compra e venda, com eficácia real ou meramente obrigacional, arrendamentos ou contratos de qualquer outra natureza, que possam onerar os bens em causa, devendo igualmente a Requerida abster-se de constituir hipotecas ou outras garantias sobre os bens em causa, reais ou pessoais ou por qualquer outra forma dispor dos referenciados prédios.”.
A requerente fundamenta a sua legitimidade para propor o presente procedimento cautelar não especificado no direito à execução especifica do contrato promessa de compra e venda celebrado com a requerida que teve por objeto os referidos prédios que poderá ser exercido uma vez obtida a certidão de destaque identificada no art. 27º do requerimento inicial.
Assim sendo, a alegação do primeiro dos pressupostos das providências cautelares não especificadas - a possibilidade séria da existência do direito - foi efetuada.
Mas o que dizer relativamente ao requisito enunciado sob a alínea b) - periculum in mora?
A requerente não alegou comportamentos da requerida que possam consubstanciar qualquer lesão no direito em que assenta o presente procedimento cautelar ou dos quais decorra a seriedade e atualidade da ameaça daquela lesão e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
Limitou-se a referir que “a demora na decisão da própria providência permitirá à Requerida vender os imóveis identificados a terceiros, o que já constou que pretendem fazer” e que essa venda a terceiros importará “um grave, sério e avultado prejuízo”.
Na verdade, a requerente não alegou um único comportamento da requerida que traduza a sua intenção de proceder à venda a terceiros dos prédios objeto do contrato promessa celebrado entre ambas ou de celebrar qualquer outro negócio que tenha por objeto esses mesmos bens e, consequentemente, que inviabilize o exercício do direito de execução específica do contrato promessa celebrado entre as partes.
A alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjetivo, decorrentes do “consta”, do “ouve-se”, do “diz-se” não bastam, por si só, para se considerar provado o requisito em análise. É, por demais, evidente, que se torna necessário demonstrar que existem razões objetivas, convincentes, capazes de explicar e fundamentar as providências cautelares requeridas. 
Por outro lado, a requerente não alega um único prejuízo que possa decorrer do não cumprimento do contrato prometido pela requerida, nem qualquer factualidade que signifique a gravidade da lesão sofrida face a esse incumprimento e que esta possa ser dificilmente reparável.
Note-se que o carácter grave e dificilmente reparável da lesão remete para uma situação de perigo na mora relativamente à decisão definitiva do litígio. A providência visa remover o periculum in mora e assegurar a efetividade do direito ameaçado.
A gravidade da iminente lesão deve aferir-se em função da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, não merecendo acolhimento as lesões de gravidade reduzida, nem aquelas que, sendo embora graves, sejam facilmente reparáveis.
E para se aquilatar do caráter dificilmente reparável da lesão iminente (futura), importa verificar se o risco que a situação implica é excessivo relativamente ao risco normal associado à pendência de uma ação normal visando a composição definitiva do litígio ou a sua realização coerciva e se o decretamento da providência implica prejuízo superior ao dano que visa evitar.
Importaria, pois, quanto a estes pressupostos que a requerente tivesse alegado aspetos da situação económica/financeira da requerida que demonstrassem a impossibilidade ou dificuldade de reparação dos reais prejuízos que pudesse sofrer com o impedimento do exercício do direito de execução especifica, os quais, de resto, omitiu e não quantificou.
Por último, crê-se que nem o tempo relativo ao decurso de uma ação declarativa sob a forma de processo comum ponha, por si só, em risco a efetividade do direito de execução especifica que a requerente pretende fazer valer oportunamente.
Ora, não tendo sido alegados factos que permitam concluir (de forma indiciária) a existência de previsíveis lesões “graves e dificilmente reparáveis” decorrentes da eventual atuação da requerida e que só possam ser evitadas mediante o decretamento das providências cautelares requeridas, conclui-se que o presente procedimento cautelar é manifestamente improcedente, sendo inequívoca a inviabilidade das pretensões da requerente.
Significa, assim, que mesmo a provarem-se todos os factos que a requerente descreveu no requerimento inicial, nunca se poderia decretar posteriormente a pretendida providência por não se verificar, pelo menos, o requisito do justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação.
Esta “manifesta improcedência” deve, à luz do disposto no artigo 590.º n.º 1, conduzir ao indeferimento liminar do requerimento inicial.
E nem se diga que o Tribunal deveria antes convidar a requerente a aperfeiçoar a sua petição, a fim de concretizar o circunstancialismo factual que faça antever o justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação.
É certo que o artigo 590.º n.º 4 dispõe que “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”.
Mas desta norma decorre que o dever de o Tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado pressupõe que há “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”.
Ora, no caso em análise, a ausência completa de alegação da factualidade apontada não consubstancia nenhum dos vícios descritos no n.º 4 do artigo 590.º, não se impondo a formulação do convite mencionado nesta norma.
Nesta conformidade, não se tendo alegado factos que permitam concluir (de forma indiciária) o referido o justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação, conclui-se que o presente procedimento cautelar é manifestamente improcedente, sendo inequívoca a inviabilidade da pretensão da requerente.
Face ao exposto, indefere-se liminarmente o requerimento inicial, ao abrigo do disposto nos arts. 226, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do C.P.C.
Custas a cargo da requerente – art. 527º, nº 1, do C.P.C.
Registe e notifique.».
Inconformada com esta decisão, a requerente interpôs recurso de apelação, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
“1ª A presente sentença é recorrível nos termos do disposto nos artigos 629º, n.º 1, 631º, n.º 1, 644º, n.º 1, al. a); 645º, n.º 1, al. a) e 647º, n.º 1, todos do CPC, pois o valor da presente causa é superior à alçada do tribunal de primeira instância, tendo a sentença absolvido os Requeridos e julgado o pedido improcedente, pelo que a sucumbência é superior a metade da citada alçada. Assim, a presente sentença admite recurso. - cfr. artigo 637º, n.º 2 do CPC.
2ª Foi alegado pela Requerente:
18º
Prejuízos estes de vários milhões de euros, atendendo aos compromissos e custos assumidos pela Requerente e que serão devidamente apurados, sendo dificilmente reparáveis tais prejuízos caso a Requerida não outorgue a escritura pública a que se reporta o contrato promessa ou documento particular autenticado, como se comprometeu com a Requerente e venda os imóveis em questão a um terceiro.
20º
A nível civil pelos prejuízos e danos causados de milhões de euros.
22º
O prejuízo causado à Requerente é muito grave atendendo ao valor de vários milhões de euros de prejuízo causado, sendo muito difícil reparar o mesmo atendendo ao seu montante e aos compromissos e negócios assumidos pela Requerente e que não poderá cumprir caso a Requerida não cumpra com o acordado e venda os imóveis identificados supra a terceiros.
26º
Isto porque, a Requerente tem parceiros empresariais no presente negócio que devido à demora e atuação da Requerida se recusaram a entrar com as subsequentes tranches de capital para o projeto em questão, entrando com elas apenas na data da outorga da escritura pública mencionada,
27º
Além de a atuação da Requerida ter implicado que para a outorga da escritura pública mencionada fosse obtida uma certidão de destaque da parte urbana a emitir pelo Município ..., certidão esta que a Requerida deveria ter obtido e não obteve, porque apenas se tornou necessária devido à atuação desta contrária às indicações da Requerente.
28º
Pelo que a Requerente solicitou a mencionada certidão de destaque, a qual se encontra em apreciação na presente data e, reitere-se, não seria necessário caso a Requerida tivesse participado o Modelo 1 do IMI conforme minuta remetida e de acordo com o regime do simplex que permitiria o destaque direto da parcela, tendo a atuação de má fé da Requerida atrasado a outorga da escritura pública mencionada. – Docs. 18 a 20
29º
A Requerida foi informada de tudo o supra exposto, a qual se limitou a ameaçar considerar resolvido o contrato promessa.
30º
Isto quando o próprio parceiro empresarial da Requerente agendou a escritura, cuja realização não foi possível devido à certidão de destaque ainda não estar emitida. – Docs. 21 a 23
31º
A presente providência deverá ser submetida a registo predial imediato a remeter pela secretaria, o que se requer, uma vez que a demora na decisão da própria providência permitirá à Requerida vender os imóveis identificados a terceiros, o que já constou que pretendem fazer e que tal terá sido a causa de remeterem a missiva supra junta, tudo atendendo aos compromissos assumidos pela Requerente, variações de preços de mercado, custos e despesas permanentes que importam um grave, sério e avultado prejuízo para a Requerente, o qual será irreparável com a venda dos imóveis pela Requerida a terceiros.
33º
Aliás, sempre se diga que se a Requerida tiver conhecimento do presente processo tudo fará para de imediato vender os imóveis identificados supra ou celebrar qualquer outro tipo de contrato, nomeadamente onerativo dos mesmos,
34º
temendo a Requerente que, ao o fazer impossibilite o cumprimento do acordado, tornando impossível a reparação dos prejuízos sofridos por esta,

A factualidade supra alegada conjugada com o teor dos documentos juntos, nomeadamente a missiva da Requerida a afirmar que considerava o contrato resolvido com perda do sinal, ou seja, valores pagos pela Requerente nos termos do contrato, compromissos assumidos com terceiros, atrasos nos recebimentos devido à atuação da Requerida e perdas de vários milhões de euros no projeto desenvolvido e que não poderá ser executado conforme resulta do próprio PIP junto aos autos demonstram claramente o prejuízo grave e ameaça de prejuízo muito grave. Tudo acrescido da falta de produção da prova indicada para demonstrar essa mesma gravidade de prejuízo, pois não foi ouvida a prova testemunhal, fundamental nesta matéria.

O Tribunal a quo não teve em consideração as particularidades do caso concreto, prova junta e prova requerida que não produziu, o que consubstancia nulidade que expressamente se argui para os devidos efeitos legais.

Foi alegado o seguinte:
23º
Por email de 29/05/2023 foi remetido à Requerida minuta do Modelo 1 do Imi para que esta submetesse o mesmo eletronicamente, por tal ser legalmente exigível e não o poder fazer a Requerente, de forma a participar o PIP aprovado e criar os artigos urbanos a desanexar do rúdtico para outorga da escritura pública mencionada. – Docs. 12 a 15
24º
Sucede que a Requerida não realizou a participação conforme solicitado, não obstante a tal se sencontrar obrigada nos termos do contrato promessa supra junto, e apenas em 16/01/2024 apresentou o Modelo 1 do IMI n.º ...00, o qual deu origem não aos lotes de acordo com o PIP, mas apenas a um terreno para construção conforme caderneta que se junta, tudo à revelia e sem o acordo e indicação da Requerente, a qual não tem sequer acesso ao Modelo 1 do IMI mencionado. – Docs. 16 e 17
25º
Tal facto, além de extremamente demorado em relação à minuta remetida, veio causar graves problemas à Requerente para conseguir outorgar a escritura pública mencionada.
31º
A presente providência deverá ser submetida a registo predial imediato a remeter pela secretaria, o que se requer, uma vez que a demora na decisão da própria providência permitirá à Requerida vender os imóveis identificados a terceiros, o que já constou que pretendem fazer e que tal terá sido a causa de remeterem a missiva supra junta, tudo atendendo aos compromissos assumidos pela Requerente, variações de preços de mercado, custos e despesas permanentes que importam um grave, sério e avultado prejuízo para a Requerente, o qual será irreparável com a venda dos imóveis pela Requerida a terceiros.
33º
Aliás, sempre se diga que se a Requerida tiver conhecimento do presente processo tudo fará para de imediato vender os imóveis identificados supra ou celebrar qualquer outro tipo de contrato, nomeadamente onerativo dos mesmos,
34º
temendo a Requerente que, ao o fazer impossibilite o cumprimento do acordado, tornando impossível a reparação dos prejuízos sofridos por esta,

Resulta clara a atuação da Requerida no sentido de atrasar a outorga da escritura pública e procurar justificar uma resolução do contrato enquanto diligenciava pela venda dos imóveis a terceiros. Esta factualidade igualmente seria demonstrada pela prova documental requerida e testemunhal indicada não produzidas, que consubstancia nulidade que expressamente se argui.

Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Processo nº 644/16.9T8PVZ.P233 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/644-2017-116297837:
I - É válido o contrato - promessa de compra e venda que tenha por objecto uma parcela a destacar de um prédio rústico.
II - Enquanto o destaque não tiver sido efectuado, não é lícito o recurso à acção de execução específica.
III - Tal circunstância não obsta, porém, que seja instaurado procedimento cautelar como preliminar de uma acção de execução específica daquele contrato.
IV - O destaque da parcela apenas tem que estar efectuado quando for instaurada a acção de execução específica.

A sentença Recorrida viola o disposto nos artigos 227º, 233º, 234º, 235º, todos do Código Civil e artigos 362º e 368º, todos do Código de Processo Civil.”.
O tribunal a quo admitiu o recurso e indeferiu a dispensa do contraditório, tendo ordenado a citação da requerida para os efeitos previstos no art.º 641º, nº 7, do NCPC.
Citada, a requerida veio contra-alegar, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Foram dispensados os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.

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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).

No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as de saber:

a) se ocorre nulidade por não ter sido produzida a prova oferecida pela requerente;
b) se, no caso, se verifica erro de julgamento, por não estarem verificados os pressupostos do indeferimento liminar.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra e ainda os seguintes factos, emergentes de actos praticados no processo:
3.1.1. No requerimento inicial, no que respeita ao requisito do “justo e fundado receio de lesão grave e de difícil reparação”, a requerente alegou:
“13º
Devido ao contrato aceite entre ambas as partes, e de forma a poder ser outorgado o contrato promessa e a escritura pública, a Requerente assumiu compromissos de valores avultados (vários milhões de euros), elaborando projetos e tudo o mais necessário para aprovação do PIP.
14º
Por carta datada de 06 de julho de 2022 teve a Requerente conhecimento que foi aprovado o PIP.
15º
Pelo que por carta de 08 de julho de 2022 informou a Requerida de tal facto, agendando a outorga do contrato promessa para 21 de julho de 2022, pelas 11:00 horas no cartório do Doutor AA, remetendo toda a documentação comprovativas de tal facto à Requerida.
16º
Sucede que a Requerida não compareceu à outorga do contrato promessa, conforme se comprometera. Pelo que a Requerente apresentou notificação judicial avulsa, agendando a outorga do contrato promessa para 05 de agosto de 2022, pelas 11:00 horas no Doutor AA, para o que a Requerida foi devidamente notificada. - Tudo conforme resulta da notificação judicial avulsa e demais documentos que se juntam e cujo teor se dá aqui por reproduzido. – Docs. 3 a 10
17º
Tal facto constitui a Requerida em responsabilidade criminal, civil e disciplinar, pois causou à Requerente avultados prejuízos patrimoniais e não patrimoniais com a não outorga do contrato promessa e celebração da escritura pública. Contudo a Requerente conseguiu que em 14/11/2022 fosse outorgado pela Requerida o contrato promessa, conforme documento que se junta e cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais, tendo o preço de venda aumentado para 580.000,00€. – Doc. 11
18º
Prejuízos estes de vários milhões de euros, atendendo aos compromissos e custos assumidos pela Requerente e que serão devidamente apurados, sendo dificilmente reparáveis tais prejuízos caso a Requerida não outorgue a escritura pública a que se reporta o contrato promessa ou documento particular autenticado, como se comprometeu com a Requerente e venda os imóveis em questão a um terceiro.
19º
Os quais serão exigidos a nível criminal, por a atuação da Requerida ser subsumível ao disposto no artigo 217.º do Código Penal.
20º
A nível civil pelos prejuízos e danos causados de milhões de euros.
21º
A nível disciplinar por os representantes da Requerida não terem dado cumprimento à deliberação da Requerida ao não outorgarem a escritura pública ou documento particular autenticado conforme deliberado, de má fé, como se exporá infra.
22º
O prejuízo causado à Requerente é muito grave atendendo ao valor de vários milhões de euros de prejuízo causado, sendo muito difícil reparar o mesmo atendendo ao seu montante e aos compromissos e negócios assumidos pela Requerente e que não poderá cumprir caso a Requerida não cumpra com o acordado e venda os imóveis identificados supra a terceiros.
23º
Por email de 29/05/2023 foi remetido à Requerida minuta do Modelo 1 do Imi para que esta submetesse o mesmo eletronicamente, por tal ser legalmente exigível e não o poder fazer a Requerente, de forma a participar o PIP aprovado e criar os artigos urbanos a desanexar do rúdtico para outorga da escritura pública mencionada. – Docs. 12 a 15
24º
Sucede que a Requerida não realizou a participação conforme solicitado, não obstante a tal se encontrar obrigada nos termos do contrato promessa supra junto, e apenas em 16/01/2024 apresentou o Modelo 1 do IMI n.º ...00, o qual deu origem não aos lotes de acordo com o PIP, mas apenas a um terreno para construção conforme caderneta que se junta, tudo à revelia e sem o acordo e indicação da Requerente, a qual não tem sequer acesso ao Modelo 1 do IMI mencionado. – Docs. 16 e 17
25º
Tal facto, além de extremamente demorado em relação à minuta remetida, veio causar graves problemas à Requerente para conseguir outorgar a escritura pública mencionada.
26º
Isto porque, a Requerente tem parceiros empresariais no presente negócio que devido à demora e atuação da Requerida se recusaram a entrar com as subsequentes tranches de capital para o projeto em questão, entrando com elas apenas na data da outorga da escritura pública mencionada,
27º
Além de a atuação da Requerida ter implicado que para a outorga da escritura pública mencionada fosse obtida uma certidão de destaque da parte urbana a emitir pelo Município ..., certidão esta que a Requerida deveria ter obtido e não obteve, porque apenas se tornou necessária devido à atuação desta contrária às indicações da Requerente.
28º
Pelo que a Requerente solicitou a mencionada certidão de destaque, a qual se encontra em apreciação na presente data e, reitere-se, não seria necessário caso a Requerida tivesse participado o Modelo 1 do IMI conforme minuta remetida e de acordo com o regime do simplex que permitiria o destaque direto da parcela, tendo a atuação de má fé da Requerida atrasado a outorga da escritura pública mencionada. – Docs. 18 a 20
29º
A Requerida foi informada de tudo o supra exposto, a qual se limitou a ameaçar considerar resolvido o contrato promessa.
30º
Isto quando o próprio parceiro empresarial da Requerente agendou a escritura, cuja realização não foi possível devido à certidão de destaque ainda não estar emitida. – Docs. 21 a 23
31º
A presente providência deverá ser submetida a registo predial imediato a remeter pela secretaria, o que se requer, uma vez que a demora na decisão da própria providência permitirá à Requerida vender os imóveis identificados a terceiros, o que já constou que pretendem fazer e que tal terá sido a causa de remeterem a missiva supra junta, tudo atendendo aos compromissos assumidos pela Requerente, variações de preços de mercado, custos e despesas permanentes que importam um grave, sério e avultado prejuízo para a Requerente, o qual será irreparável com a venda dos imóveis pela Requerida a terceiros.
32º
A Requerente declara, pois, pretender o registo imediato da presente providência, ficando a Requerida impedida de vender ou realizar qualquer tipo de contrato sobre os imóveis supra identificados a terceiros até decisão da ação principal a instaurar para cumprimento do acordado, outorga da escritura pública a que se reporta o contrato promessa ou documento particular autenticado e prévia emissão da mencionada certidão de destaque e responsabilização da Requerida nos termos legais.
33º
Aliás, sempre se diga que se a Requerida tiver conhecimento do presente processo tudo fará para de imediato vender os imóveis identificados supra ou celebrar qualquer outro tipo de contrato, nomeadamente onerativo dos mesmos,
34º
temendo a Requerente que, ao o fazer impossibilite o cumprimento do acordado, tornando impossível a reparação dos prejuízos sofridos por esta, (…)”.
*
*
3.2. Fundamentos de direito

3.2.1. Da nulidade por não ter sido produzida a prova indicada pela recorrente
A recorrente pretende que se declare ocorrer nulidade pelo facto do tribunal recorrido não ter produzido a prova indicada no requerimento inicial.
Afigura-se-nos, pois, que a mesma veio invocar uma nulidade processual e não propriamente uma nulidade da decisão recorrida.
Com efeito, as nulidades processuais não se confundem com as nulidades específicas da sentença, nem com o erro de julgamento (de facto ou de direito).
Na verdade, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615º do NCPC.
Assim, as nulidades da sentença são vícios intrínsecos dela e como tal tipificados na lei, mormente no nº 1, do referido art.º 615º: a falta de assinatura do juiz, a ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, a oposição entre as suas premissas e a conclusão, a ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, a omissão pronuncia sobre questões que devesse apreciar ou o conhecimento de questões que lhe estava vedado ou a decisão além ou em objecto diverso do pedido.
Por outro lado, do art.º 195º, nº 1 do NCPC resulta que nulidade do processo é a consequência invalidante expressamente cominada na lei para a omissão de um acto de processo nela prescrito, para a prática de um acto de processo contrário ao por ela estabelecido ou de uma irregularidade cometida no processo que possa influir no exame ou na decisão da causa.
Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 176, referia que nulidades do processo "são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais.".
Daí que Fernando Amâncio Ferreira trace a seguinte linha delimitadora entre nulidades do processo e da sentença: "A distinção entre nulidades de processo e nulidades de sentença consiste fundamentalmente no seguinte: enquanto as primeiras se identificam com quaisquer desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido, as segundas resultam da violação da lei processual por parte do juiz ao proferir alguma decisão, situando-se no âmbito restrito da elaboração de decisões judiciais desde que essa violação preencha um dos casos contemplados no n.º 1 do artigo 668.º [actual art.º 615º]" (in, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, 2005, p. 51 e seguinte).
Tendo isso presente, decorre com suficiente clareza que ao arguir a nulidade por não ter sido realizada a prova por si indicada, a recorrente não está a apontar a nenhuma das situações previstas no art.º 615º, nº 1 do NCPC para conseguir invalidar a decisão recorrida (nulidade da sentença) mas, outrossim, a sinalizar a omissão pelo tribunal recorrido de um acto que, na sua perspectiva, era exigido pela lei (nulidade, por omissão, de acto de processo).
Estando em causa uma nulidade processual, é de fazer notar ainda que, em regra, o meio processual adequado à invocação de nulidades processuais não é a interposição de recurso, mas sim a arguição do vício do acto perante o tribunal onde corre o processo.
Porém, caso o acto afetado de nulidade esteja coberto por uma decisão judicial ou quando a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível ou esta pressuponha o acto viciado, então o meio próprio é a impugnação da decisão através de recurso, como é o caso, pois o tribunal recorrido limitou-se a proferir um despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial por manifesta improcedência da providência cautelar requerida. Cfr., neste sentido, entre muitos outros, o ac. desta Relação de Guimarães de 15.12.2022, processo nº 469/20.7T8AVV-A.G1, acessível in www.dgsi.pt.
Ora, o indeferimento liminar é uma vertente do despacho liminar que permite ao juiz logo indeferir o requerimento inicial, nos casos especialmente previstos na lei (v.g. art.º 590º, nº 1 do NCPC). Esse despacho está reservado apenas para os casos em que seja manifesta a falta insuprível de pressupostos processuais de conhecimento oficioso ou que seja manifesta a improcedência do pedido.
Prevendo a lei a possibilidade legal de indeferimento liminar é evidente que, desde que reunidos os pressupostos relativos à prolação de semelhante despacho, o juiz não está obrigado a produzir qualquer meio probatório.
O despacho de indeferimento liminar pressupõe a existência duma situação de tal forma manifesta que permite, só por si, tomar uma decisão de forma conscienciosa, sem necessidade de realização prévia de qualquer acto processual. Ou seja, o vício verificado é de tal modo grave que o juiz só pode indeferir liminarmente o requerimento inicial.
Ou seja, perante uma situação de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial por manifesta improcedência do pedido, torna-se evidentemente inútil a prática de qualquer acto de instrução ou de discussão.
No caso, como vimos, o tribunal recorrido entendeu que a recorrente não alegou factos demonstrativos do periculum in mora, tendo concluindo ser manifesta a improcedência da providência cautelar pretendida.
A questão assim apreciada não carecia de produção de qualquer prova, sendo claramente de natureza meramente jurídica, cabendo no âmbito da previsão do aludido art.º 590º, do NCPC.
Por conseguinte, o vício que a recorrente assaca à decisão recorrida não consubstancia a apontada nulidade, tendo antes a ver com um eventual erro de julgamento no tocante à apreciação liminar da presente providência.
Com efeito, o tribunal a quo, ao ter indeferido liminarmente a providência em apreço, abstendo-se de averiguar os factos invocados pela ora recorrente, não cometeu qualquer nulidade, porquanto tal abstenção foi feita no pressuposto da manifesta improcedência da providência. Poderá apenas estar em causa, como já adiantamos, um erro de julgamento, que apreciaremos de seguida.
Nesta conformidade, conclui-se pela improcedência da nulidade invocada.
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3.2.2. Do erro de julgamento, por não estarem verificados os pressupostos do indeferimento liminar da providência cautelar requerida.
Nos termos do art.º 590º, nº 1 do NCPC, “nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-lhe o disposto no artigo 560º.”.
Este normativo legal não pode deixar de ter aqui aplicação, como regra geral que é, por força do disposto no art.º 549º, nº 1, do NCPC.
Deste modo, havendo motivo para indeferimento in limine, o juiz deve proferir despacho de harmonia com aquele normativo legal, evitando, desse modo, a realização de diligências que à partida já se anunciam como inúteis, face àquele que será necessariamente o desfecho da acção/ procedimento/incidente.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 674-675: “Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição. […] ponderar-se-ão as consequências que uma ou outra das opções terá na evolução do processo, no confronto com princípios gerais, como o da celeridade, o da adequação formal (art. 547º), o da economia processual ou o do exercício pró-ativo do dever de gestão processual (art. 6º). Tratar-se-á sempre, contudo de situações tendencialmente excepcionais, em que se verifique grave inconveniente na manutenção da situação irregular até que se atinja a fase tipicamente destinada à prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento.”.
Assim, o indeferimento liminar apenas deve ter lugar quando “a improcedência da pretensão […] for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial” - cfr. ac. da RE de 2.10.2018, relatora Albertina Pedroso, disponível in www.dgsi.
Alerta ainda Salvador da Costa, em consonância com a apontada doutrina e jurisprudência, que a “ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso a que a lei se reporta” (in, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Almedina, 5ª edição, p. 95 e 96).
Isto porque, conforme decorre dos nºs 2 a 4, do art.º 590º, do NCPC, qualquer deficiência, independentemente da sua gravidade e relevância, se for susceptível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento, obsta a que o juiz considere que essa falta conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.
Com efeito, é pacificamente aceite que foi intenção do legislador estabelecer no nosso ordenamento jurídico positivo uma acentuação dos poderes do juiz de direcção do processo, o que conduz a que a existência de deficiências da petição ou requerimento inicial não implica rejeição liminar, pois, se as deficiências forem susceptíveis de sanação, o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como expressamente impõe o preceituado no nº 4 do aludido art.º 590º.
Dito de uma forma mais incisiva: se a deficiência for susceptível de sanação através de aperfeiçoamento, o requerimento inicial não pode ser liminarmente indeferido.
Por isso, perante uma concreta deficiência, o essencial não está em saber as consequências da manutenção da deficiência, mas sim se esta é ou não susceptível de sanação. Se o for, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento.
A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adopção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta.”. Cfr. ac. desta Relação de Guimarães de 27.05.2021, processo nº 1106/21.8T8BRG.G1, acessível in www.dgsi.pt; e ainda no mesmo sentido os acs. da RE de 29.09.2022, processo nº 956/22.2T8TMR.E1 e da RP de 22.02.2021, processo nº 5196/20.2T8VNG.P1, ambos consultáveis no mesmo sítio.
Posto isto, importa saber se, no caso concreto, havia fundamento para o tribunal recorrido indeferir liminarmente o requerimento inicial, nomeadamente, por se tratar de uma situação de manifesta improcedência.
Conforme resulta do despacho recorrido, o tribunal a quo indeferiu liminarmente a presente providência cautelar, dizendo, para além do mais, que, no caso vertente, a factualidade alegada não autoriza a concluir pelo periculum in mora.
Note-se que, de harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 362º do NCPC, sob a epígrafe «Âmbito das providências cautelares não especificadas», «Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
Por sua vez, o nº 1 do art.º 368º, do mesmo diploma legal preceitua: «A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.».
Não se questiona que, para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, nos termos do art.º 362º, do NCPC, impõe-se, essencialmente, a verificação, da existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, bem como o fundado receio que alguém cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, antes que seja proferida decisão de mérito em ação proposta ou a propor.
Dessa forma, não é despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado, assegurando consequentemente a efectividade do direito que está a ser posto em causa ou ameaçado, para além do prejuízo decorrente do decretamento da providência não dever exceder o dano que com a mesma se pretende evitar.
Precisando um pouco mais, diga-se que para a imposição de uma medida ou providência cautelar, o art.º 368º, do NCPC, pressupõe a existência, embora analisada em termos sumários, de um direito na esfera jurídica do requerente, quando formula a sua pretensão, pese embora a medida cautelar não perca a sua natureza instrumental relativamente à acção proposta ou a propor, reafirmando-se quanto ao receio de lesão grave e dificilmente reparável, a inexigibilidade de um juízo de estrita certeza, presente, contudo que, em ambos os casos, o juízo a fazer deverá assentar numa realidade, ainda que evidenciada indiciariamente, e não em considerações sem uma base factual que as suporte, devendo verificar-se, no concerne ao justo receio, a ocorrência de prejuízos reais e certos, em termos de uma prudente avaliação de tal realidade, e não em apreciação ou juízos de cariz meramente subjectivo, emocionalmente determinados.
Ainda quanto ao receio, fundado, de lesão grave e dificilmente reparável, importa reter que não é qualquer consequência desvantajosa que possa advir ao requerente, deverá sim revestir-se de gravidade, aferida pelas repercussões negativas que provavelmente ocorram para quem se diz lesado, mas também deverá de ser irreparável ou de difícil reparação, em termos de forma objectiva considerados, só assim se justificando a intromissão, provisória determinada, na esfera jurídica de outrem.
Por tudo isto, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in, Código Processo Civil, p. 26) circunscrevem as hipóteses de indeferimento liminar do requerimento inicial de um procedimento cautelar a quatro casos: “por manifesta inexistência do direito, manifesta impossibilidade de a situação receada causar lesão do direito, manifesta inadequação da providência pretendida para afastar a ameaça, não podendo ter aplicação a 1ª parte do art. 376-3, ou a ocorrência de falta de pressuposto insuscetível de sanação.”.
Voltando ao caso em apreço, analisados os presentes autos, afigura-se-nos que nenhuma dessas situações se verifica.
As duas últimas hipóteses não ocorrem nem foram invocadas na decisão recorrida.
Por outro lado, não é caso de manifesta inexistência do direito, tendo o tribunal recorrido dado por adquirido que os factos alegados são suficientes para a demonstração sumária do direito invocado.
 Por fim, afigura-se-nos perceptível a factualidade em que a requerente baseia o periculum in mora.
Na verdade, a recorrente alegou de forma expressa que a requerida vem actuando de má-fé, adoptando comportamentos dificultadores do cumprimento do contrato promessa celebrado entre as partes e que, não obstante ter sido alertada para as consequências nefastas de tal incumprimento, ameaçou resolver o contrato, tendo em vista alienar a terceiros os imóveis prometidos vender.
Mais alegou a recorrente no requerimento inicial que a actuação da requerida lhe causou, causa e causará prejuízos no futuro, na ordem dos milhões de euros, em consequência de não poder concretizar um projecto empresarial, prejuízo esse “muito difícil reparar … atendendo ao seu montante e aos compromissos e negócios assumidos pela Requerente.” (o sublinhado é nosso).
Deste modo, não se pode acompanhar o tribunal recorrido quando afirma que a requerente “não alegou um único comportamento da requerida que traduza a sua intenção de proceder à venda a terceiros dos prédios objeto do contrato promessa celebrado entre ambas” e que não alegou factos que demonstrassem “a impossibilidade ou dificuldade de reparação dos reais prejuízos que pudesse sofrer com o impedimento do exercício do direito de execução especifica”.
É verdade que a requerente não concretizou os negócios e os compromissos alegadamente por si assumidos, concretização essa que se perfila como interessante para o apuramento dos factos atinentes ao invocado periculum in mora.
Mas, como se diz no ac. da RG de 21.05.2021 acima citado, “[m]esmo numa situação em que não são alegados todos os factos que compõem a causa de pedir, desde que esta exista e seja perceptível, é admissível o aperfeiçoamento, carreando o demandante para os autos todos os elementos fácticos que a integram.”
Ou seja, ainda que tenha reputado a alegação de insuficiente ou incompleta, sobre o tribunal recorrido recaía o poder-dever, contemplado nos normativos do art.º 590º, nºs 2 a 4, do NCPC, de convidar ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, de molde a enunciarem‑se de forma clara e suficiente os factos complementares ou concretizadores da causa de pedir.
Em face do exposto, impõe-se, pois, julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento do procedimento cautelar comum, com a prolação, se assim o tribunal recorrido o entender necessário, de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
As custas são da responsabilidade da recorrida atento o seu decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento do procedimento cautelar comum, nomeadamente com a prolação, se necessário, de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Custas do recurso a cargo da recorrida.
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Guimarães, 11.07.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. José Cravo
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Raquel Baptista Tavares