ASSINATURA DE FAVOR
OPONIBILIDADE
RELAÇÕES IMEDIATAS E RELAÇÕES MEDIATAS
MÁ FÉ
Sumário


1 - A exceção consistente na assinatura de favor sendo oponível no domínio das relações imediatas, designadamente e em particular, nas relações entre o favorecente e o favorecido, já não o é nas relações mediatas, onde a letra de favor é equiparada à letra regular.
2 - O favorecente não pode opor ao portador, que não foi parte na convenção de favor, a exceção de favor. Subscreve a letra não pensando vir a pagá-la, mas terá de o fazer porque a obrigação cambiária é abstrata, independente da sua causa, que ficou fixada numa convenção extra-cartular.
3 - Ao endossado, portador da letra, não pode o aceitante opor exceção fundada nas suas relações com o sacador, sem provar que aquele procedeu conscientemente em seu detrimento, não sendo suficiente alegar o conhecimento das exceções que o devedor poderia opor ao portador precedente e o prejuízo consistente para o devedor na perda dessas exceções, sendo ainda necessário que a sua aquisição haja sido feita com violação da boa fé em detrimento do devedor.
4 - Ainda que terceiros conheçam a convenção extracambiária entre firmante de favor e favorecido, podem sempre exigir àquele o pagamento da letra, porque não devem ser considerados, só por esse motivo, possuidores de má fé”.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

Por apenso à execução que lhe move “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, veio a executada “EMP02..., Lda.” deduzir oposição mediante embargos de executado, pedindo a extinção da execução por a letra oferecida à execução resultar de um favor que fez à “EMP03... Unipessoal, Lda.”, sendo que a dívida não existia, nem existe, nada devendo à exequente, nem à sociedade que lhe endossou a letra.
Recebidos os embargos, contestou a exequente dizendo ser portadora legítima e de boa-fé da letra dada à execução, não lhe podendo ser oposta a relação comercial subjacente, cujas vicissitudes são inoponíveis ao endossado e portador, tendo a mesma sido aceite pela executada que assumiu uma obrigação cambiária de natureza abstrata e formal/literal independente de qualquer relação subjacente, não fazendo a exequente parte da relação comercial entre a “EMP03... Unipessoal, Lda.” e a executada.
Teve lugar a audiência prévia, onde foi tentada, em vão, a conciliação das partes e dada a palavra aos mandatários quanto à delimitação dos termos do litígio. Foi proferido despacho onde se considerou que “os autos reúnem já elementos suficientes para conhecer imediatamente do mérito da causa”, determinando “a notificação das partes, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC para, querendo, aderirem à posição por nós sufragada ou contraporem algum argumento que a tal obste”, tendo os mandatários declarado nada terem a opor a que se decida de mérito.

Foi proferido saneador-sentença que julgou a oposição à execução totalmente improcedente e, em consequência, determinou o normal prosseguimento da execução, condenando a embargante nas custas.

A embargante interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I. A Apelante, na Oposição mediante embargos, invocou os seguintes factos:
“30. O porquê das facturas indicadas em 3 supra!
31. Os representantes da EMP03... Unipessoal, Lda, tendo com consideração que ainda não tinham procedido à entrega das calças ao seu cliente, e, desde logo, ainda nada tinham recebido,
32. já tinham contraído obrigações junto de fornecedores, designadamente junto do fornecedor de tecido.
33. Estando a ser bastante pressionados para que procedessem a esse pagamento.
34. Pelo que pediram ajuda à Embargante, no sentido de que lhe faturassem o tecido e outras quantias, com aceite de letras de câmbio, para que as pudesse descontar previamente ao seu vencimento e assim proceder ao pagamento aos seus fornecedores, designadamente ao do tecido.
35. Denota-se que a Exequente dos presentes autos não terá sido alheia a este facto, porquanto lhe terá sido entregue uma letra para esse efeito. (Sublinhado nosso).
36. Nascem assim, estas facturas e a letra sub judice de um favor que a Embargante fez à EMP03... Unipessoal, Lda.”
II. Factos estes que são controvertidos, e que a sentença sub judice não determinou.
III. Porque controvertidos, estes factos deviam de ser sujeitos a prova em audiência de discussão e julgamento, o que o Tribunal a quo nem sequer considerou.
IV. A Embargante invocou que a Exequente tinha conhecimento e não era alheia aos factos por si invocados, pelo que com tal invocação pretendeu referir que, apesar disso, a Exequente aceitou o endosso que lhe foi efetuado pela EMP03... – Unipessoal, Lda.
V. Impõe-se a anulação da sentença sub judice e seja determinado que a presente Oposição mediante embargos siga os seus termos com a devida produção de prova.
VI. A sentença sub judice é nula, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1 d) do CPC e viola o disposto no art.º 595.º n.º 1 alínea b) ex vi o artigo 597.º alínea c) do CPC, os quais são aplicáveis à Oposição mediante embargos, nos termos do disposto no art.º 732.º n.º 2 do CPC.
VII. A Apelante alegou que a relação material controvertida era, como é, do perfeito conhecimento da Exequente, a qual sabia das vicissitudes das transações em curso.
VIII. Impondo-se, que seja dada à Apelante a oportunidade de prova de tais factos, ou seja que o endosso é oponível à Exequente.
Decidindo em conformidade com as conclusões agora aduzidas, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, contribuirão para a realização do Direito, fazendo cumprir a LEI e a JUSTIÇA.

A embargada contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se a embargante/executada pode opor ao portador as exceções fundadas nas relações pessoais dela com o sacador, ou se as mesmas são inoponíveis ao portador mediato que adquiriu a letra por endosso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Factos Provados
Compulsados os autos principais, em concreto, o requerimento executivo, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. No âmbito do processo de execução de que os presentes autos constituem apenso a Embargada/Exequente EMP01..., Unipessoal Lda reclama da Embargante/Executada EMP02..., Lda o pagamento da quantia de 9 942,00 € (Nove Mil Novecentos e Quarenta e Dois Euros).
2. A embargada/exequente fundou a execução referida em 1. no facto de ser legítima portadora da letra de câmbio n.º  ...22, com vencimento em 21/05/2023, no montante de 9.942,00 € (nove mil novecentos e quarenta e dois euros), cujo original foi junto aos autos principais por requerimento de 15-06-2023.
3. A Embargante EMP02..., Lda aceitou a letra de câmbio oferecida à execução, e onde consta como sacadora a EMP03... Unipessoal, Lda.
4. A EMP03... Unipessoal, Lda endossou a letra oferecida à execução à Exequente/ Embargada EMP01..., Unipessoal Lda.
5. Na oposição à execução a Embargante alega:
«2. A Embargante manteve relações comerciais com a sociedade EMP03... Unipessoal, Lda, com o número único de pessoa coletiva ...43 e sede social na Rua ..., ..., (...) Guimarães.
3. Estando em causa nos presentes autos, parcialmente, a “história” de duas faturas emitidas por aquela sociedade à Embargante:
a. Fatura n.º ...91 de 21/11/2022, com data de vencimento de 31/12/2023 e referente a “tecido linho ½ BR 1.50 52% linho 48 % algodão LC13E” “2376,10 mt”, no montante de 25.426,65 € (Vinte e cinco mil quatrocentos e vinte e seis euros e sessenta e cinco cêntimos);
b. Fatura n.º ... de 10/01/2023, com data de vencimento no mesmo dia, referente a “Mão de obra tentativa retificação encomenda” “Corte e Confeção Encomenda” e “Elástico”, no montante de 27.069,35 € (vinte e sete mil e sessenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos). (cfr. doc. n.º 1 e 2 em anexo)
4. Com base nestas duas faturas a Embargante aceitou duas letras:
a. Letra n.-º ...79 de 10/01/2023, com vencimento em 21/03/2023, no montante de 25.426,65 € (Vinte e cinco mil quatrocentos e vinte e seis euros e sessenta e cinco cêntimos).
b. Letra n.-º ...02 de 10/01/2023, com vencimento em 10/05/2023, no montante de 27.069,35 € (vinte e sete mil e sessenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos). (cfr. doc. n.º 3 e 4 em anexo)
5. A Embargante reformou a letra supra referida em a), amortizando 10% do montante ali inscrito, aceitando nova letra – Letra n.º ...05, de 21/03/2023, com vencimento em 21/04/2023, no montante de 22.883,94 € (vinte e dois mil oitocentos e oitenta e três euros e noventa e quatro cêntimos). (cfr. doc. n.º 5 em anexo)
6. No dia 03 de maio de 2023, Embargante e a EMP03... Unipessoal, Lda, acordaram em substituir a Letra n.º ...05, de 21/03/2023, com vencimento em 21/04/2023, no montante de 22.883,94 € (vinte e dois mil oitocentos e oitenta e três euros e noventa e quatro cêntimos), por três novas letras:
a. Letra n.º  ...22, com vencimento em 21/05/2023, no montante de 9.942,00 € (nove mil novecentos e quarenta e dois euros) – titulo dado à execução;
b. Letra n.º ...30, com vencimento em 21/06/2023, no montante de 9.942,00 € (nove mil novecentos e quarenta e dois euros);
c. Letra n.º  ...22, com vencimento em 30/06/2023, no montante de 3.994,20 € (três mil novecentos e noventa e quatro euros e vinte cêntimos). (cfr. doc. n.º 6 e 7 em anexo)
7. Com efeito, e como é do conhecimento da EMP03... Unipessoal, Lda, estas faturas e letras aceites não refletem o verdadeiramente acordo celebrado entre esta empresa e a Embargante.
8. Na verdade, a Embargante foi contactada pela EMP03... Unipessoal, Lda para que a auxiliasse na contratação de empresa de confeção para a produção de um número elevado de pares de calças, cujas quantidades constam dos documentos n.º 8 a 13 em anexo.
9. Inicialmente a Embargante declinou, porque não trabalha como intermediária entre empresas de confeção e empresas produtoras têxteis que por sua vez ainda vendem às grandes empresas de distribuição.
10. Porém, a Embargante, após muita insistência da EMP03... Unipessoal, Lda, pelo Sr.º AA, aceitou esta transação.
11. Certo é que, a Embargante se apercebeu posteriormente que este pedido tinha na sua base dificuldades financeiras da EMP03... Unipessoal, Lda, uma vez que não tinha credibilidade para contratar diretamente.
12. A mercadoria foi produzida e entregue nos meses de agosto e setembro de 2022.
13. Tendo surgido uma reclamação por parte da EMP03... Unipessoal, Lda no mês de outubro, ou seja um mês depois da última entrega, quando até já não o poderia fazer.
14. Sem prejuízo, a Embargante, após verificar que, na verdade, os produtos não estavam em conformidade efetuou uma reunião presencial em conjunto com todas as partes,
15. Onde foi referido pela EMP03... Unipessoal, Lda, na pessoa do Sr.º AA, que não queria que a Embargante procedesse aos arranjos necessários, pelo que decidiram fazê-lo internamente na sua própria confeção,
16. Isto porque, o cliente da EMP03... Unipessoal, Lda terá pedido a esta que pretendia que assim fosse.
17. Após terem decorrido cerca 3 ou 4 semanas o cliente da EMP03... Unipessoal, Lda acabou por não aceitar essas mesmas peças,
18. Facto que é totalmente alheio à Embargante.
19. Posteriormente, decidiu-se que a Embargante retificaria os produtos com a confeção contratada, os quais ficaram concluídos em 12/04/23.
20. Foram entregues os primeiros 60 pares de calças no dia 19/01/23 para serem efetuados testes e serem aprovadas as restantes.
21. A Embargante, no dia 02/02/23 questionou se já havia alguma resposta do cliente, porém não obteve resposta.
22. Entretanto são entregues mais 130 pares de calças no dia 02/02/23, continuado a Embargante sem resposta.
23. No dia 01/03/23 são entregues mais 470 calças e no dia 06/03/23 mais 130 pares.
24. Só em 13/03/2023, é que há a primeira resposta a dizer que o cliente não gosta do produto, sendo efetuada pela Embargante nova revisão a qual foi vista pela Embargante peça a peça e é informada a EMP03... Unipessoal, Lda no dia 12/04 que estavam prontas a ser levantadas,
25. Tendo a Embargante no dia 18/04/2023, obtido resposta por email referindo “estamos a aguardar resposta do cliente…”,
26. Sendo que em 26/04/2023 é a Embargante informada que o cliente já não quer a mercadoria.
27. Como se pode verificar a Embargante apenas era intermediária, tendo subcontratado a confeção das calças,
28. Tendo pago por esse serviço à confeção contratada.
29. E emitiu as faturas respetivas á EMP03... Unipessoal, Lda, que não pagou, pelos seus serviços prestados:
a. Fatura n.º ...49 de 26/09/2023, com vencimento em 27/09/2023, no montante de 8.202,87 € (oito mil duzentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos);
b. Fatura n.º ...31 de 11/01/2023, com vencimento em 12/01/2023, no montante de 14.012,41 € (catorze mil e doze euros e quarenta e um cêntimos);
c. Fatura n.º ...33 de 23/01/2023, com vencimento em 24/01/2023, no montante de 971,21 € (novecentos e setenta e um euros e vinte e um cêntimos);
d. Factura n.º ...35 de 07/02/2023, com vencimento em 08/02/2023, no montante de 2.104,28 € (dois mil cento e quatro euros e vinte e oito cêntimos);
e. Factura n.º ...39 de 28/02/2023, com vencimento em 01/03/2023, no montante de 7.607,80 € (Sete mil seiscentos e sete euros e oitenta cêntimos);
f. Factura n.º ...11 de 10/03/2023, com vencimento em 11/03/2023, no montante de 2.104,28 € (dois mil cento e quatro euros e vinte e oito cêntimos).
(cfr. doc. n.º 8 e 13 em anexo)
Isto posto,
30. O porquê das faturas indicadas em 3 supra!
31. Os representantes da EMP03... Unipessoal, Lda, tendo com consideração que ainda não tinham procedido à entrega das calças ao seu cliente, e, desde logo, ainda nada tinham recebido,
32. já tinham contraído obrigações junto de fornecedores, designadamente junto do fornecedor de tecido.
33. Estando a ser bastante pressionados para que procedessem a esse pagamento.
34. Pelo que pediram ajuda à Embargante, no sentido de que lhe faturassem o tecido e outras quantias, com aceite de letras de câmbio, para que as pudesse descontar previamente ao seu vencimento e assim proceder ao pagamento aos seus fornecedores, designadamente ao do tecido.
35. Denota-se que a Exequente dos presentes autos não terá sido alheia a este facto, porquanto lhe terá sido entregue uma letra para esse efeito.
36. Nascem assim, estas faturas e a letra sub judice de um favor que a Embargante fez à EMP03... Unipessoal, Lda.
37. E foram assinados documentos para que fosse dado o necessário tratamento contabilístico.
38. Porém, tal dívida não existia, como não existe.
39. Até porque os representantes da EMP03... Unipessoal, Lda estavam perfeitamente convencidos que o seu cliente aceitaria a encomenda e procederia ao pagamento,
40. Momento em que se acertavam as contas com a Embargante.
41. Mas, como é bom de ver, os representantes da EMP03... Unipessoal, Lda  “deram o dito pelo não dito”.
42. E arrogam-se agora credores de quantias que não lhes são devidas.
43. Basta atentar no descritivo das faturas para se poder concluir que não têm qualquer racional válido.
44. Numa delas a EMP03... Unipessoal, Lda refere vender tecido à Embargante o que é falso.
45. Nunca lhe tendo sido entregue a título de compra, qualquer tecido, estando claro que o negócio da EMP03... Unipessoal, Lda não é vender tecido.
46. E noutra factura, imputa responsabilidades à Embargante,
47. Que, como é evidente, numa situação normal, ou seja, diferente deste “combinado”, a Embargante nunca mas nunca aceitaria, até porque sempre cumpriu as entregas e nas retificações que se impunham.
48. Mas mais: como é que a Embargante poderia ter aceite pagar estas exorbitantes facturas, quando faturou os seus serviços prestados na intermediação da confeção das calças, como se verifica supra e em anexo das facturas emitidas pela Embargante.
49.Facturação essa que é de montante muito inferior à que lhe foi faturada….
50. E que nunca foi contestada pela EMP03... Unipessoal, Lda.
51.É assim evidente que a Embargante nada deve à EMP03... Unipessoal, Lda, pelo que o endosso não lhe é oponível, isto porque o crédito subjacente nunca existiu.»

Na sentença recorrida considerou-se que a embargante/executada não podia opor à exequente/embargada as exceções baseadas nas suas relações obrigacionais-creditícias com o sacador (relação material subjacente), pois que a exequente é estranha a essa relação. Com efeito, as exceções decorrentes das convenções extra cartulares em geral e as exceções causais apenas seriam oponíveis à exequente/embargada caso se demonstrasse que, ao adquirir a letra, esta procedeu conscientemente em detrimento da embargante. Uma vez que a embargante não alegou que a exequente tivesse agido de má fé ao aceitar o endosso das letras oferecidas à execução, sabendo que esse endosso tinha sido efetuado em detrimento da embargante, não pode a embargante opor ao portador as exceções que derivam da relação material subjacente ou relação fundamental.
Decorre das alegações de recurso que a apelante aceita este entendimento jurídico – aliás, unânime entre a jurisprudência e a doutrina – mas considera que, decorre da sua petição inicial, que alegou que a exequente tinha conhecimento e não era alheia aos factos por si invocados relativos às suas relações com a sacadora, pelo que considera que a sentença deve ser anulada para que a oposição prossiga os seus termos com a devida produção de prova. Sustenta-se nos factos por si alegados na petição inicial de oposição à execução – aliás, transcritos nos factos provados da sentença sob recurso – essencialmente no artigo 35.º, onde se pode ler “Denota-se que a exequente dos presentes autos não terá sido alheia a este facto (que os representantes da EMP03... Unipessoal, Lda pediram ajuda à embargante no sentido de que lhe faturassem o tecido e outras quantias com aceite de letras de câmbio, para que as pudesse descontar previamente ao seu vencimento e assim proceder ao pagamento aos seus fornecedores) porquanto lhe terá sido entregue uma letra para esse efeito”.
           
Nos autos está provado que, no âmbito do processo de execução, a embargada/exequente reclama da embargante/executada o pagamento da quantia de € 9.942,00, com base no facto de ser legítima portadora de uma letra de câmbio, com vencimento em 21/05/2023, nesse montante. Que a embargante aceitou a referida letra de câmbio, onde consta como sacadora a EMP03... Unipessoal, Lda. que a endossou à exequente/embargada.
Consta ainda da matéria de facto provada a alegação da embargante na oposição à execução.
Será despiciendo repetir o que consta e bem da sentença recorrida quanto aos fundamentos da oposição à execução fundada em título executivo distinto da sentença judicial – cfr. artigos 729.º e 731.º do Código de Processo Civil.
A embargante, como já vimos, não discute que assinou a letra no lugar do aceite e que a entregou à sacadora, bem como não impugna a validade do endosso.
O que a embargante alega é que nada deve à sacadora e que estamos perante uma letra de favor, que foi emitida a pedido da sacadora sem que tivesse subjacente um verdadeiro negócio jurídico.

A subscrição de favor oferece duas características:
- O subscritor não tem a intenção de vir a desembolsar o montante da letra - ele quer apenas, apondo nela a sua assinatura, facilitar, pela garantia que representa, a circulação do título, não deixando, porém, de agir com a consciência de ficar cambiariamente obrigado em virtude da subscrição;
- Subjacente á obrigação cambiária assumida pelo favorecente, não se encontra uma relação jurídica fundamental estabelecida entre ele e o favorecido, além da que decorre da própria convenção de favor – o favorecente torna-se obrigado apenas pelo “favor” e não porque já o fosse em virtude doutra relação extra-cartular.
A subscrição de favor tem como causa o próprio favor, e, nesses casos, pode o favorecente opor ao favorecido a exceção, já que a relação entre ambos é uma relação de garantia e assim, se o favorecido invocar contra o favorecente o direito emergente da letra, este, reportando-se à convenção entre ambos estabelecida, paralisará essa pretensão, pois é sabido que numa relação de garantia em caso algum o garante responde para com o respetivo beneficiário (Cfr. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, III, 1956, nº 13, pp. 52 e 53, citado no Acórdão da Relação de Guimarães de 04/10/2018, processo n.º 1047/14.5TBGMR-A.G1 (Jorge Teixeira) in www.dgsi.pt).
Característico, na letra de favor, é a assunção de uma obrigação cambiária que não tem correspondência com qualquer relação subjacente ou fundamental (além da própria convenção de favor).
Todavia, a exceção consistente na assinatura de favor sendo, naturalmente, oponível no domínio das relações imediatas, designadamente e em particular, nas relações entre o favorecente e o favorecido, já não o é nas relações mediatas, onde a letra de favor é equiparada à letra regular.
Como refere Ferrer Correia, “o favorecente subscreve a letra não pensando em vir a pagá-la, mas terá de a pagar se o pagamento lhe for exigido por um portador mediato”. (Cfr., pág. 49 da obra citada) “Subjacente à obrigação cambiária assumida pelo favorecente, não se encontra uma relação fundamental estabelecida entre ele e o favorecido, além da que decorre da própria convenção de favor. Isto não significa, porém, que a obrigação cambiária seja, nesta hipótese, destituída de causa; a subscrição foi feita por uma causa: o próprio favor. O favorecente não pode opor ao portador, que não foi parte na convenção de favor, a exceção de favor (art. 17º da LULL). Subscreve a letra não pensando vir a pagá-la, mas terá de o fazer porque a obrigação cambiária é abstrata, independente da sua causa, que ficou fixada numa convenção extra-cartular”.
“Não estando alegado que a exequente tenha participado na convenção de favor, a exceção de favor não lhe é pessoalmente oponível. O subscritor de favor aceitou, voluntariamente, responder perante os sucessivos possuidores do título; nenhum favor seria prestado se a subscrição do favorecente não envolvesse a obrigação de pagar. Honra-se o favor prestado, pagando. Pretendendo o portador que o aceitante (de favor) pague a letra, limita-se a exigir-lhe a responsabilidade a que voluntariamente se expôs” – Acórdão da Relação do Porto de 14/06/2007 processo n.º 0731353 (Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt.

Isto porque, como bem vem explanado na sentença, o documento que serve de suporte à ação executiva, é uma letra de câmbio – título de crédito à ordem pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a outra (sacado) que pague a si ou a terceiro (tomador) determinada importância em dinheiro (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 7.ª edição, Livraria Petrony, 1996, pág. 10, em anotação ao artigo 1.º dessa Lei).
E os títulos de crédito encontram-se sujeitos a uma disciplina jurídica própria, reflexo dos princípios da autonomia, literalidade e abstração que caraterizam a obrigação cambiária, da independência das várias obrigações incorporadas no título e da autonomia do direito do portador.
Importa, aqui, densificar esta caraterística da autonomia do portador, que é a autonomia do direito cambiário dos sucessivos titulares perante os anteriores que resulta da “circulação do título se reportar exclusivamente à passagem de mão da res que ele constitui, sendo unicamente pela sua relação com esta que o recetor fica, a título originário, investido na titularidade do direito cartular (Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Letra, Livrança, Cheque, Almedina, 2000, pág. 42).
Já a literalidade tem como corolário o facto da amplitude do direito em que o portador do título fica investido se medir pelo teor literal do documento, pelo que a reconstituição da obrigação se faz pela simples inspeção do título.
Pelo princípio da abstração entende-se a independência da letra face a qualquer causa debendi, já que os respetivos signatários ficam vinculados pelo simples facto de nele terem aposto a sua assinatura, sem poderem prevalecer-se de quaisquer meios de defesa derivados da relação jurídica que determinou a emissão do título.
Tudo isto é por demais sabido e vem corretamente enunciado na sentença sob recurso.
A questão que está na base do recurso tem como fundamento o disposto no artigo 17.º da LULL: “As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.

No caso dos autos, já vimos que estamos no domínio das relações mediatas, porque a letra se encontra na posse de uma pessoa estranha às convenções extra cartulares, podendo o portador demandar todos os intervenientes ou qualquer deles, sem preocupação pela relação jurídica fundamental estabelecida entre o aceitante e o sacador.
Assim, ao endossado, portador da letra, não pode o aceitante opor exceção fundada nas suas relações com o sacador, sem provar que aquele procedeu conscientemente em seu detrimento – Abel Delgado, obra citada, pág. 123.
Alega a embargante que a exequente tinha conhecimento e não era alheia aos factos por si invocados de que as letras em questão nasceram de um favor que a embargante fez à EMP03... Unipessoal, Lda.
Independentemente do que já atrás se disse quanto ao facto de a exceção de favor não ser pessoalmente oponível ao endossado/portador, deve ainda dizer-se que o alegado conhecimento por parte da embargada não é suficiente para integrar a exceção prevista na parte final do citado artigo 17.º da LULL.
É exigível, nos termos deste artigo, que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do sujeito cambiário que lhe opõe a exceção.
Para além do simples conhecimento, é necessário que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar, por esse facto, um prejuízo ao devedor (Abel Delgado, obra citada, pág. 123).
Vaz Serra, na RLJ, Ano 108.º, pág.123 e ss. ensina que “para ser aplicável a parte final do artigo 17.º da LULL não basta que o adquirente da letra a tenha adquirido conhecendo as exceções que o devedor poderia opor ao portador precedente e o prejuízo consistente para o devedor na perda dessas exceções, sendo ainda necessário que a sua aquisição haja sido feita com violação da boa fé em detrimento do devedor”.
Assim se entendeu, também, no Acórdão do STJ de 28/05/1996, in BMJ 457-393: “II – O facto de uma assinatura de favor não traduzir uma responsabilidade do favorecente para com o favorecido não implicará uma exceção invocável por aquele contra terceiro portador que não tenha tido qualquer tipo de intervenção no acordo de favorecimento, embora tenha conhecimento da situação existente. III – É legítimo, portanto, concluir-se que, ainda que terceiros conheçam a convenção extracambiária entre o firmante de favor e o favorecido, podem sempre exigir àquele o pagamento da letra porque não devem ser considerados, só por esse motivo, possuidores de má fé”.
Veja-se, ainda, o Acórdão da Relação do Porto de 14/06/2007, processo n.º 0731353 (Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt (já supra citado): “I – No domínio das relações (cambiárias) mediatas, o favorecente só pode opor a exceção de favor ao portador que, ao adquirir a letra por endosso, tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor. II – Ainda que terceiros conheçam a convenção extracambiária entre firmante de favor e favorecido, podem sempre exigir àquele o pagamento da letra, porque não devem ser considerados, só por esse motivo, possuidores de má fé”.
Neste último acórdão defendeu-se, aliás, conforme já referimos, que não estando alegado que a exequente tenha participado na convenção de favor, a exceção de favor não lhe é pessoalmente oponível. “O subscritor de favor aceitou, voluntariamente, responder perante os sucessivos possuidores do título; nenhum favor seria prestado se a subscrição do favorecente não envolvesse a obrigação de pagar. Honra-se o favor prestado, pagando. Pretendendo o portador que o aceitante (de favor) pague a letra, limita-se a exigir-lhe a responsabilidade a que voluntariamente se expôs”.

Resulta do exposto que a simples alegação da embargante de que a relação material controvertida era do conhecimento da exequente, desacompanhada de qualquer alegação relativa à má fé da exequente ao aceitar o endosso da referida letra ou de que a tenha adquirido procedendo conscientemente em detrimento da executada, não tem a virtualidade de integrar a exceção contida na parte final do artigo 17.º da LULL, pelo que podia conhecer-se imediatamente do mérito da causa, como se fez.

Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.
           
III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

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Guimarães, 11 de julho de 2024

Ana Cristina Duarte
Raquel Tavares
Joaquim Boavida