DECISÃO ARBITRAL
PEDIDO DE ANULAÇÃO
RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE LITÍGIOS
LITÍGIOS DE CONSUMO
Sumário


1 - Por força do disposto no artigo 46º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro), a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º.
2 - O tribunal estadual não pode conhecer do mérito da questão ou questões decididas na arbitragem: tais questões, se alguma das partes o pretender, devem ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas.
3 - A Lei sobre Resolução Alternativa de Litígios (Lei n.º 144/2015 de 8 de setembro) é aplicável aos procedimentos quando os mesmos sejam iniciados por consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou prestação de serviços, celebrados ou prestados a consumidores em Portugal.
4 - Os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados de onde decorre que o consumidor tem o direito potestativo de recorrer à arbitragem, tendo de submeter-se a ela o prestador de serviços essenciais.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A Autora “EMP01..., SA” pediu a anulação da sentença arbitral proferida, em 22/12/2023, pelo Tribunal Arbitral de Consumo Do ... no âmbito do processo de reclamação n.º ...23..., por se verificar a existência de uma decisão que se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem (nulidade prevista no artigo 46.º, n.º 3 alínea a), subalínea iii) da LAV), por se verificar a existência de decisão com falta de fundamentação (violação do artigo 46.º, n.º 3 alínea a), subalínea vi) da LAV) e por se verificar a existência de uma decisão contrária à ordem pública (nulidade prevista na subalínea ii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV).
Citada a ré AA, não foi oferecida qualquer oposição.
Foi junta cópia certificada da sentença arbitral.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se devidamente representadas em juízo.
O processo é o próprio e inexistem outras nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
Não existe prova a produzir nos presentes autos, relevando para a apreciação da causa a facticidade que emerge dos próprios autos do processo arbitral.
Por outro lado, finda a fase dos articulados e uma vez produzida a prova a que houver lugar, nos termos da al. d), do n.º 2, do art. 46º da Lei n.º 63/2011, de 14/12, que aprovou a Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), a ação especial de anulação de decisão arbitral segue a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações.
O processo foi aos vistos e inscrito em tabela.

Importa decidir se a sentença proferida deve ser anulada e em caso afirmativo as suas consequências, devendo verificar-se:

1 - se o tribunal arbitral se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem;
2 -   se ocorreu falta de fundamentação
3 - se o conteúdo da sentença ofendeu os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

III. Fundamentação de Facto

A sentença tem o seguinte teor:
“A demandante AA formalizou em 18 de julho de 2023, junto do ..., reclamação contra a demandada EMP01..., SA, nos termos da qual peticionou o reconhecimento da inexistência de dívida de €357,63.
Alega que deixou de ser cliente da reclamada no ano de 2022. Que rececionou na data uma comunicação com informação de dívida àquela de €357,63, com o que não concorda nem reconhece, o que reclamou. Ainda invocou a prescrição.
Juntou cópia do requerimento de injunção (processo n.º 70294/23....).
A demandada contestou alegando, por exceção, a litispendência e, em síntese:
A demandada intentou, no passado dia 30/06/2023, um procedimento de injunção contra a reclamante, para cujo peticionado remete. Refere que a exceção de litispendência visa impedir que uma causa que se encontra a ser julgada num tribunal, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou repetição de decisões, o que depende da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, o que alega estar verificado no caso em apreço e conclui que o pedido da reclamante é precisamente que não se considere como devido o valor peticionado pela reclamada na injunção intentada pela mesma.
A demandada veio, ainda, depois, informar que o processo de injunção se encontra a aguardar decisão quanto ao apoio judiciário da reclamante e requereu a junção da cópia das faturas em causa.
Saneador

1. Do Tribunal Arbitral e da sua competência
A Lei nº 144/2015 de 8 de setembro transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo (RAL), e estabeleceu os princípios e regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios e o respetivo enquadramento jurídico (artº19).
Assim, a Lei RAL é aplicável aos procedimentos quando os mesmos sejam iniciados por consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, celebrados ou prestados a consumidores residentes em Portugal.
O Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do .../Tribunal Arbitral, faz parte integrante da Rede de Arbitragem de Consumo, sendo um meio de resolução alternativa de litígios, promove a resolução de conflitos de consumo relativos à compra e venda de bens e prestação de serviços, concretizados no seu âmbito geográfico (tudo como decorre do seu Regulamento - artes 1° a 5°).
Pelo que, este tribunal é material e territorialmente competente, uma vez que está em causa um processo de conflito de consumo, iniciado por consumidor, decorrente da celebração de um contrato de prestação de serviços com um profissional, na sua área de residência.
(Segue-se decisão acerca do valor da causa)
Por outro lado, e ainda, os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados (artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 alínea b) da LSPE e artigo 10.º n.º 1 do Regulamento)
Ainda de acordo com o Regulamento do ... (artigo 19.º) aplica-se a este processo subsidiariamente e com as necessárias adaptações, a Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011 de 14 de dezembro)
2. Das exceções - prescrição e litispendência
A Lei 23/96 de 26 de julho criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais e incluiu o serviço de fornecimento de energia elétrica no elenco dos serviços públicos abrangidos (art° 1º, n°s 1 e 2, alin. b)).
Consagrou, ainda, e no artº 10ª que, "o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação" (n° 1) e, "se por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro dos seis meses após aquele pagamento" (n° 2).
Ainda, "o prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial" -n° 4.
Posto isto,
A injunção, ora em apreço, à qual foi atribuído o nº 70294/23...., tem data de 30.06.2023 e peticiona como se retira do requerimento as faturas:
...72, de €44,05 vencida em 28.03.2022, encontrando-se em dívida o valor de €44,05, relativa ao período de faturação de 28.01.2022 a 28.02.2022
...57, de €46,06, vencida em 02.11.2021, encontrando-se em dívida o valor de €9,39, relativa ao período de faturação entre 28.08.2021 a 28.09.2021
...34, de €29,64, vencida em 19.04.2022, encontrando-se em divida o valor de €29,64, relativa ao período de faturação entre 28.01.2022 a 08.03.2022, ...36, de €33,27, vencida em 02.12.2021, encontrando-se em divida o valor de €33,27, relativa ao período de faturação entre 28.09.2021 a 28.10.2021
...92, de €25,41, vencida em 01.02.2022, encontrando-se em divida o valor de €25,41, relativa ao período de faturação entre 25.11.2021 a 28.12.2021
...05, de €24,85, vencida em 03.11.2021, encontrando-se em divida o valor de €24,85, relativa ao período de faturação entre 28.09.2021 a 30.09.2021
...00, de €33,23, vencida em 03.03.2022, encontrando-se em divida o valor de €33,23, relativa ao período de faturação entre 28.12.2021 a 28.01.2022
...54, de €31,34, vencida em 29.12.2021, encontrando-se em divida o valor de €31,34, relativa ao período de faturação entre 28.10.2021 a 25.11.2021
no total de €231,18, a que acrescem €36,90 de custos de cobrança, €76,50 de taxa de justiça devida pela propositura da injunção e juros de mora vencidos de €13,05, tudo no total de €357,63
Quanto à questão da prescrição, e em face do disposto no artº 10°, supracitado, a apresentação da fatura não é suficiente para impedir a prescrição do direito ao recebimento do preço do serviço prestado, o que ocorre pelo decurso do prazo e em seis meses.
Ainda, trata-se de uma prescrição extintiva já que não está em causa a presunção do pagamento da obrigação, o que se enquadra do esprito no legislador.
O prazo inicia-se a partir do momento em que o direito puder ser exercido e, se o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo de prescrição (art° 306°, n° 1).
Para os efeitos do serviço aqui em causa, deverá ser atendido e para o início da contagem do prazo, conforme o pacifico entendimento da doutrina, o termo do período a que diz respeito a fatura (ou seja, do período de faturação).
Ocorrendo acerto de faturação ou pagamento parcial, o direito ao recebimento da diferença caduca no prazo de seis meses a contar do pagamento parcial (n° 2 do art® 10°).
Verifica-se, na presente injunção, que relativamente à fatura ...57, de €46,06, vencida em 02.11.2021, se encontra em dívida o valor de €9,39.
Nada foi alegado, por nenhuma das partes, quanto ao motivo da diferença - se por acerto de faturação ou pagamento.
Por outro lado, a prescrição interrompe-se nos termos do artº 323º do Cód. Civil, pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (nº 1).
Veja-se o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, n° 97648/21.9YIPRT-A.G1 de 30.06.2022, in http://www.dgsi.pt/itrg (...)
Tendo em conta o período de faturação das faturas apresentadas pela Demandada EMP01..., SA, e até a data do respetivo vencimento, constata-se que sobre aquele já tinham decorrido mais de seis meses (relativamente a todas as faturas), à data da entrada do requerimento de injunção em 30.06.2023.
Ainda, como se confirmou, o processo de injunção aguarda ainda decisão quanto ao apoio judiciário solicitado pela Reclamante.
Pelo exposto, se conclui pelo decurso do prazo de prescrição relativamente a todas as faturas mencionadas no requerimento de injunção, no valor total de €231,18.
Por outro lado, sempre se dirá que o processo está submetido a arbitragem necessária, como se verificou supra, prevista no n° 1 do artº 15° da LSPE.
E, que se traduz na proteção dos consumidores, materializa-se na unidirecionalidade do procedimento e significa que a capacidade ativa de iniciar o procedimento cabe, apenas, ao consumidor, enquanto pessoa singular, e não ao fornecedor de bens e serviços.
Posto isto, fica prejudicada a apreciação da exceção invocada pela Demandada quanto à litispendência.
Veio, também, a Demandante requerer que seja reconhecida a inexistência da dívida de €357,63.
3. Das ações de simples apreciação
Designa-se ação de simples apreciação negativa aquela através da qual se pretende uma declaração formal da inexistência de um direito ou facto jurídico (cfr. a) do nº 3 do artº 10° do CPC).
Atente-se no Acórdão da RC nº 50/09.1TBALD.C1, de 16.10.2012, http://www.dgsi.pt/: (…)
Refere o artº 341º do Cód Civil que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo certo que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n° 1 do art° 342º).
No entanto, dita o art° 343°, n° 1 do CC que "nas ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga".
Pelo que, a prova da celebração do contrato, dos termos acordados, do serviço prestado e do respetivo valor, e (in) cumprimento competia à aqui Demandada.
Ora, a Demandada nada alegou quanto a esta matéria e ao contrato de fornecimento de energia elétrica.
Motivo pelo qual não se prova a existência da dívida da Demandante à Demandada.
E, a prova cabia à Demandada.
C - Decisão
Termos em que se decide declarar
a) Procedente a prescrição invocada relativamente às faturas, no valor de € 231,18 (duzentos e trinta e um euros e dezoito cêntimos): ...72, ...57,...34, ...36,    ...92, ...05, ...00, ...54”.
b) como inexistente a dívida remanescente de €126,45 (cento e vinte e seis euros e quarenta e cinco cêntimos) da responsabilidade da Demandante AA perante a Demandada EMP01..., SA”.

Vejamos, então.
Por força do disposto no artigo 46º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro), a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º.
Assim, em regra, não pode ser interposto recurso perante o tribunal estadual da sentença arbitral que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo arbitral, mesmo que dele não conheça. Tal só pode ocorrer se as partes tiverem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e se a decisão não se fundar na equidade, nem for obtida mediante composição amigável – neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/10/2023, processo n.º       28/23.2YRGMR.G1 (Sandra Melo), in www.dgsi.pt.
Por outro lado, por força do disposto no nº 9 do artigo 46º da Lei da Arbitragem Voluntária, o tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões decididas na arbitragem: tais questões, se alguma das partes o pretender, devem ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas.
Os fundamentos da anulação das sentenças arbitrais estão taxativamente estabelecidos, no nº 3 do artigo 46º da Lei da Arbitragem Voluntária:
“ 3 - A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou
iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou
iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou
vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 42.º ou
vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º ; ou
b) O tribunal verificar que:
i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;
ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.”

“Na ação de anulação o tribunal não pode reavaliar a decisão, alterando-a em matéria de facto e/ou de direito. Esta é uma função típica do tribunal de recurso, que está vedada na ação de anulação que tem, assim, natureza meramente cassatória” – Jorge Morais Carvalho, A resolução alternativa de litígios em matéria civil e comercial nos últimos 50 anos em Portugal, Revista Julgar, n.º 52, pág. 107.

Um dos fundamentos invocados pela autora é a falta de especificação dos fundamentos de facto na sentença arbitral.
O n.º 3 do artigo 42º da Lei da Arbitragem Voluntária impõe que “A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”
O dever de fundamentação das decisões tem em vista um conjunto de objetivos que são fundamentais no nosso estado de direito: contribui para a eficácia das decisões, conseguindo-se o seu respeito, não só pela força da autoridade, mas também pela razão; podendo ser, pois, um fator de legitimação, permite o controlo da decisão, possibilitando a sindicância do processo lógico e racional que lhe esteve na base, impedindo, desta forma, decisões arbitrárias e garantindo a transparência do processo decisório e o respeito da independência e da imparcialidade das decisões – cfr. Acórdão desta Relação supra citado.
Ora, se é certo que a sentença em causa não especificou em número próprio os factos que considerou provados, a verdade é que decidiu as questões suscitadas pela demandada, em sede de saneador, atendo-se à matéria de facto por si introduzida nos autos e que, mais não é do que a relativa ao processo de injunção que intentou contra a ali demandante, designadamente, considerando as faturas que estão em causa, datas e valores das mesmas, bem como data de entrada da injunção.
Tanto basta para que se perceba o processo lógico e racional que esteve na base da decisão e os factos que foram determinantes para a mesma e que conduziram à solução jurídica, pelo que inexiste a imputada falta de fundamentação, não tendo a sentença sido proferida com violação dos requisitos estabelecidos no n.º 3 do artigo 42 da LAV, pelo que não se encontra preenchido o disposto no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea vi), da LAV, não ocorrendo, assim, esta causa de anulação da sentença.

Pretende, também, a autora, que a sentença seja anulada por violação do disposto no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iii) da LAV, que dispõe que “A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a parte que faz o pedido demonstrar que a sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta”.
Ora, também aqui a autora não tem razão.
Entende a autora que o ... não é competente para os litígios de prestadores de serviços contra consumidores, o que era o caso, considerando que a demandada já havia intentado processo de injunção contra a demandante. Entende que o processo que correu termos no Tribunal Arbitral emerge de um litígio instaurado por um prestador de serviços contra um consumidor.
Salvo o devido respeito, a autora incorre num erro de análise. O ... não está a conhecer do litígio consubstanciado no processo de injunção, mas sim de uma obrigação contratual resultante de contrato de prestação de serviços prestado a um consumidor, através de um procedimento iniciado pelo próprio consumidor.
A Lei sobre Resolução Alternativa de Litígios (Lei n.º 144/2015 de 8 de setembro) é aplicável aos procedimentos quando os mesmos sejam iniciados por consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou prestação de serviços, celebrados ou prestados a consumidores em Portugal. Ora, como bem se refere na sentença em análise, este Tribunal Arbitral (...) faz parte integrante da Rede de Arbitragem de Consumo, sendo um meio de resolução alternativa de litígios e promovendo a resolução de conflitos de consumo relativos à compra e venda de bens e prestação de serviços, concretizados no seu âmbito geográfico (tudo como decorre do seu Regulamento – artigos 1.º a 5.º).
O que está em causa no processo arbitral não é a análise do requerimento de injunção que corre no tribunal judicial, mas sim um conflito de consumo, iniciado por um consumidor e decorrente da celebração de um contrato de prestação de serviços com um profissional, na sua área de residência. Nem o Tribunal Arbitral se pronunciou quanto ao mérito do processo de injunção instaurado pelo prestador de serviços contra o consumidor.
Acresce que os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais, como é o caso, estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados (artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) da LSPE e artigo 10.º nº 1 do Regulamento), pelo que, também por aqui, este Tribunal arbitral não podia eximir-se a decidir.
Do que decorre que a decisão do Tribunal Arbitral não é nula, por não se encontrar preenchida a causa de nulidade a que se refere o artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iii) da LAV.

Finalmente, considera a autora que a sentença deve ser anulada por se verificar que o seu conteúdo ofende princípios inerentes à ordem jurídica portuguesa que se mostram imprescindíveis ao regular funcionamento da justiça, configurando assim uma violação da ordem pública – artigo 46.º, n.º 3, alínea b), subalínea ii) da LAV – por não se afigurar admissível num Estado de Direito que em simultâneo o mesmo litígio esteja a ser apreciado em diferentes Tribunais.
Ora, independentemente da questão que tem vindo a ser discutida na doutrina quanto a saber se neste artigo, ao falar-se em ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado português, se deve considerar como suficiente a ofensa a princípios da ordem pública interna – de que a autora dá extensa nota na sua petição inicial – e tendendo nós a considerar como defensável que uma sentença arbitral contrária à ordem pública (ainda que apenas interna) deveria  ser sempre suscetível de anulação – neste sentido, Jorge Morais Carvalho, no artigo publicado na revista Julgar, n.º 52, já supra citado – entendemos que não é o caso desta sentença arbitral.
Já vimos que a demandante/consumidora iniciou um procedimento contra um prestador de serviços, procedimento esse respeitante a obrigações contratuais resultantes de contrato de prestação de serviços, prestados a consumidora residente em Portugal. Fê-lo ao abrigo das leis e regulamentos que estabelecem a competência para tal e utilizando os mecanismos destinados a proteger os utentes de serviços públicos essenciais, aí se incluindo o serviço de fornecimento de energia elétrica.
A consumidora apresentou a reclamação em causa quando foi confrontada com faturas emitidas pela ora autora, apresentadas em requerimento de injunção contra si interposto.
Como se verifica, dos factos provados, a injunção tem data de 30/06/2023 e a reclamação foi apresentada em 18/07/2023, tendo aí sido decidido que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado, que constava das faturas em causa, estava prescrito, à data de entrada do requerimento de injunção que, conforme foi confirmado pela Sra. Juíza, aguardava, ainda, decisão quanto ao apoio judiciário solicitado pela reclamante.
Como se diz, e bem, na sentença arbitral, “o processo está submetido a arbitragem necessária, como se verificou supra, prevista no n,º 1 do artigo 15.º da LSPE. E que se traduz na proteção dos consumidores, materializa-se na unidirecionalidade do procedimento e significa que a capacidade ativa de iniciar o procedimento cabe, apenas, ao consumidor, enquanto pessoa singular e não ao fornecedor de bens e serviços. Posto isto, fica prejudicada a apreciação da exceção invocada pela demandada quanto à litispendência”.
O direito da consumidora de apresentar a reclamação que apresentou, não pode ser posto em causa, desde logo por se tratar de arbitragem necessária quando despoletada por ação expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, devendo concluir-se, assim, que o consumidor tem o direito potestativo de recorrer à arbitragem, tendo de submeter-se a ela o prestador de serviços essenciais.
Acresce que o efeito pretendido pela reclamante é, exatamente, o de paralisar a injunção através da declaração de que o direito reclamado pelas faturas estava prescrito. Ou seja, não há, aqui, litispendência – artigos 580.ºe 581.º do CPC -, no sentido de que não se repete uma causa, pois apesar de os sujeitos serem os mesmos, o pedido é diferente e oposto e, como se disse, estava na disponibilidade da demandante/consumidora, despoletar a intervenção do tribunal arbitral quando teve conhecimento das faturas cujo pagamento lhe estava a ser exigido.
Inexistem, assim, fundamentos para anular a sentença arbitral.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a ação de anulação de decisão arbitral que, em consequência, se mantém.
Custas pela autora.

***
Guimarães, 11 de julho de 2024

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira