RESPONSABILIDADE CIVIL
PERDA DE CHANCE
ADVOGADO
SEGURO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I) Atento o disposto no artigo 101.º, n.º 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é inoponível ao autor (lesado/beneficiário de contrato de seguro), alheio à relação contratual titulada pela apólice de seguro de responsabilidade civil profissional, a invocação pela seguradora de que ocorreu falta de oportuna comunicação ou participação dos factos geradores de uma reclamação por responsabilidade civil.
II) O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.
III) Verificada a instauração de uma ação para efetivação de responsabilidade civil pelo réu – advogado – em representação do autor -lesado em acidente de viação – proposta contra o Instituto de Seguros de Portugal/Fundo de Garantia Automóvel, em razão de se desconhecer o condutor interveniente no acidente e tendo sido julgada improcedente tal ação, em virtude de não ter o autor produzido a correspondente prova, por não ter sido satisfeita a 2.ª prestação da taxa de justiça – que o autor não pagou, sem que o réu o tenha avisado para proceder ao respetivo pagamento - e por o advogado réu não ter comparecido em audiência de discussão e julgamento, vindo a inviabilizar, com tal conduta, a produção da prova arrolada pelo autor, determinou o réu que o autor perdesse a oportunidade de produzir a correspondente prova e de obter vencimento da referida causa que, com elevada probabilidade e de forma consistente e séria, teria lugar.
(Sumário elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1. Relatório:
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1. “A” instaurou a presente ação declarativa comum contra “B” pedindo a condenação do réu “a pagar-lhe uma indemnização pelos danos sofridos em consequência dos factos que se encontram descritos na presente petição inicial (e tendo em conta também tanto quanto consta da certidões judiciais anexas) do montante de € 200,000,00 (duzentos mil euros), acrescido de juros à taxa legal desde a citação e até integral pagamento”.
Para tal alegou, em síntese, que:
-O Réu é Advogado e, no exercício do mandato que pelo Autor lhe foi conferido, o representou numa ação de responsabilidade civil, proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel, pelos danos sofridos num acidente de viação de que foi vítima, dado não ter sido possível identificar o veículo ou respetivo condutor responsável pelo sinistro;
- Essa ação, proposta pelo Réu, veio a merecer uma decisão de absolvição do pedido, na medida em que, por um lado, o Réu não compareceu na audiência final (nem o Autor ou as testemunhas por si arroladas, que não tiveram conhecimento do seu agendamento) e, por outro lado, não foi feita a liquidação da taxa de justiça devida para a produção de prova em julgamento (nomeadamente, a inquirição de testemunhas), tudo por motivo exclusivamente imputável ao Réu;
- Tal situação configura um incumprimento contratual do Réu, que não agiu com a diligência exigível, de acordo com as suas capacidades, as regras deontológicas vigentes para o exercício da profissão e com as circunstâncias do caso;
- O Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais por cujo ressarcimento o Réu é responsável, estando também em vigor, à data dos factos uma apólice de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrada entre a chamada e a Ordem dos Advogados, destinada a acautelar eventuais obrigações de indemnização por efeito da atividade profissional dos nela inscritos.
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2. Na sua contestação, o Réu, para além de ter impugnado parte dos factos alegados na petição inicial, excecionou a prescrição do direito do Autor e alegou que não liquidou a taxa de justiça apenas por lapso, já que liquidou a multa, só tendo pago a taxa mais tarde; e não compareceu na audiência de julgamento mencionada na ação por, nesse dia, não se encontrar em condições de saúde que lhe permitissem ali comparecer, tendo-se deslocado ao hospital, onde lhe foi decretada a incapacidade temporária absoluta para o trabalho, tendo, por isso, demonstrado em juízo o seu justo impedimento. Invocou, ainda, a falta de nexo de causalidade entre o evento de que o Autor foi vítima e o dano alegado, atenta a falta de prova quanto à forma de ocorrência do acidente; pelo que, ainda que tivesse sido regularmente liquidada a taxa de justiça, nem por isso teria sido efetuada a prova necessária para que o Autor obtivesse uma sentença condenatória. Terminou pedindo a procedência da exceção perentória ou a sua absolvição do pedido e, ainda, a condenação do Autor como litigante de má-fé.
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3. Posteriormente veio a ser deduzida, por iniciativa do Réu, e admitida, a intervenção principal da MAPFRE – SEGUROS GERAIS, S.A. para na ação intervir do lado da Ré.
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4. Citada, a referida interveniente contestou alegando, em síntese, que apenas teve conhecimento dos factos alegados na petição, ocorridos em 2013, aquando da participação feita pelo Réu em 03.02.2017 pelo que, de acordo com o princípio conhecido como “claim made”, só garante a cobertura dos riscos acordados se a primeira reclamação dos danos lhe for feita durante o período de vigência da apólice que, no caso, foi de 01.01.2014 até 01.01.2018. No mais, impugnou a factualidade alegada pelo Autor e alegou que não resulta, da exposição do Autor, que estejam reunidos os pressupostos essenciais e cumulativos da responsabilidade civil profissional do Réu.
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5. O Autor deduziu resposta às contestações.
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6. Foi elaborado despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, tendo sido julgadas improcedentes as exceções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade passiva, invocadas pela chamada.
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7. Teve lugar audiência de discussão e julgamento com produção probatória.
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8. Após, em 25-10-2023, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
“a) condeno o Réu a pagar ao Autor a quantia correspondente à franquia da apólice de seguro n.° (…)58 - Mapfre, Seguros Gerais, S.A., no valor de € 5000 (cinco mil euros);
b) condeno a Chamada a pagar ao Autor, a título de indemnização pela responsabilidade civil profissional do Réu transferida pela apólice identificada em a), já deduzida da franquia, a quantia de € 44.440,43 (quarenta e quatro mil, quatrocentos e quarenta euros e quarenta e três cêntimos);
c) absolvo os demandados do restante pedido (…)”.
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9. Não se conformando com esta decisão, dela apela a chamada, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, “julgando a acção integralmente improcedente, julgue a Reconvenção integralmente procedente”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I. Os factos constantes dos pontos 2, 3 e 4 da Fundamentação de Facto da Sentença recorrida devem ser julgados não provados, atenta a inexistência de prova nesse sentido, muito menos indiciária.
II. Tanto à data dos factos dos Autos e, por maioria de razão, à presente data, se desconhece a intervenção de qualquer outro veículo no acidente que o A. foi vítima.
III. Nenhuma prova existia à data dos factos dos Autos, como nenhuma prova foi, também, produzida nos presentes Autos, suscetível de se concluir pela intervenção de qualquer outro veículo no acidente sofrido pelo A..
IV. Da instrução da causa resultou provado que “Todas as testemunhas arroladas pelo Autor no processo referente ao acidente de viação só chegaram ao local do mesmo depois da ocorrência .”, conf. ponto 55 da Fundamentação de Facto da Decisão Recorrida.
V. Da Participação de Acidente de Viação constante da certidão junta com a p. i. (doc. 3) não resulta a existência de qualquer testemunha ocular.
VI. A única testemunha apresentada pelo A., alegadamente com algum conhecimento sobre o acidente ocorrido foi FP, o qual, não assistiu ao alegado acidente de viação e, como tal, do seu depoimento não resulta que o A. tenha sido “abalroado por um veículo automóvel ”.
VII. Nos Autos não existe qualquer outro meio de prova que permita concluir que no acidente sofrido pelo A. tenha intervindo qualquer outro veículo.
VIII. Desconhece-se o que terá motivado o acidente sofrido pelo A. - se um problema de saúde ou qualquer outro - o que resulta dos Autos é que inexiste qualquer prova da intervenção de outro veículo ou da culpa (exclusiva) do mesmo na ocorrência do acidente sofrido pelo A..
IX. O Tribunal “a quo” recorreu-se de provas indiciárias inexistentes, na medida em que a Participação de Acidente de Viação foi elaborada, 5 dias após o acidente, e exclusivamente com base em declarações de quem não assistiu ao acidente, nem sabia, naturalmente, o local de qualquer embate.
Por outro lado,
X. Do depoimento da única testemunha com conhecimento direto dos factos em causa (RJ), na mesma senda das declarações de parte do Réu, resulta que os factos constantes dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida sempre teriam de ser julgados não provados e os factos constantes das alíneas e), h) e i) da Fundamentação de Facto dos Autos que o Tribunal “a quo” julgou como não provados julgados provados.
XI. Os facos constantes dos pontos 18 e 19, foram julgados pelo Tribunal “a quo”, quando da instrução da causa resulta que o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento ao não julgar tais factos por não provados, atenta a ausência de prova para o efeito.
XII. O A. não logrou provar os danos alegados na ação judicial subjacente aos presentes Autos, sendo certo que, nessa ação judicial, como resulta do ponto 24 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida, “O Réu Fundo de Garantia Automóvel contestou a acção, declarando desconhecer a veracidade dos factos alegados pelo Autor e impugnando, nos termos e para os efeitos do n° 3 do então art° 490° do C.P.C., a letra, teor e assinatura dos documentos juntos com a petição inicial.»» e “Em 11 de Fevereiro de 2013, foi elaborado despacho saneador na referida acção, cujo teor consta da referida certidão judicial anexa, sendo levada à base instrutória toda a matéria factual alegada pelo Autor. ", conf. ponto 25 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida.
XIII. O facto constante do ponto 48 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida é manifestamente conclusivo e não corresponde à realidade dos factos, pelo que deve ser eliminado da Fundamentação de Facto dos Autos.
XIV. Não foi por “por inexistência de produção de prova em especial com relação aos factos relacionados com a ocorrência do acidente e respectivas sequelas, " que a ação judicial subjacente aos presentes Autos foi julgada improcedente e, como resulta dos presentes Autos, ainda que o A. tivesse produzido prova testemunhal, essa mesma ação judicial sempre seria julgada improcedente. Em todo o caso,
XV. Da aplicação do direito à matéria de facto dos Autos sempre resultaria a improcedência da presente ação judicial, por inexistência de dano de perda de chance.
XVI. Do ponto 55 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida foi julgado provado e encontra-se definitivamente assente que “Todas as testemunhas arroladas pelo Autor no processo referente ao acidente de viação só chegaram ao local do mesmo depois da ocorrência.”.
XVII. Ainda que no processo subjacente aos presentes Autos o A. tivesse produzido prova, jamais o A. lograria comprovar a intervenção de qualquer outro veículo no acidente que sofreu e, em consequência, a ação judicial subjacente aos presentes Autos sempre seria julgada improcedente por inexistência de qualquer prova quanto à ocorrência do acidente de viação que constituía a causa de pedir, o que determina, também, a improcedência da presente ação judicial, por inexistência da necessária probabilidade real e séria de a ação judicial subjacente aos presentes Autos poder ser julgada procedente.
XVIII. O dano cujo ressarcimento o Apelante peticiona nos Autos sempre se teria de limitar a uma “perda de chance”, como tem vindo a ser considerado pela doutrina e jurisprudência nacionais.
XIX. Do facto constante do ponto 55 da Fundamentação de Facto dos Autos e da prova produzida não resultaram provados factos que permitam ao Tribunal concluir pelo “grau de probabilidade de obtenção da vantagem ” ou da “probabilidade real, séria e esperável” de sucesso da pretensão do Apelante na ação judicial de acidente de viação.
XX. Ao Decidir como Decidiu o Tribunal “a quo violou, nesta parte, o disposto nos artigos 342.°, 483.°, n.° 1 e 563.° do Código Civil, pelo que, deve a Decisão recorrida ser anulada e substituída por Decisão que julgue a presente ação judicial totalmente improcedente, por inexistência de dano de perda de chance. Por fim.
XXI. O sinistro que é imputado ao Réu foi do conhecimento deste no ano de 2013, quando o contrato de seguro celebrado com a ora Apelante apenas teve o seu início no dia 01.01.2014, motivo pelo qual não é temporalmente aplicável aos factos dos Autos, sob pena de violação do disposto nos artigos 139.° e 44.°, n.° 2, 37.°, n.° 2 al. e) e 48.°, n.°s 2 a 5 do RJCS.
XXII. A responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial sempre se teriam de se considerar excluídos das garantias acordadas através do contrato de seguro celebrado com a Apelante, o que é oponível ao A., ora Apelado, por força do disposto no artigo 48.° do RJCS, uma vez que estamos perante um seguro de interesse alheio ou a favor de terceiro.
XXIII. Uma cláusula claims made nada se confunde com o âmbito de aplicabilidade temporal do contrato no qual tal cláusula se encontre prevista, erro em que incorreu o Tribunal “a quo”.
XXIV. Ao Decidir como Decidiu o tribunal “a quo” violou, por isso, o disposto nos artigos 405.°, n.° 1, e 406.° do Código Civil, 37.°, n.° 2, al. e), 44.°, n.° 2, 48, n.°s 2, 3, 5 e 6, 137.° e 139.° do RJCS, bem assim como o artigo 3.°, n.° 1, al. a) da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro dos Autos.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência:
a) Devem os factos constantes dos pontos 2, 3 e 4 da Fundamentação de Facto ser julgados não provados.
b) Devem os factos constantes dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida ser julgados não provados.
c) Dever ser julgados provados os factos constantes das alíneas e), h) e i) da Fundamentação de Facto dos Autos que o Tribunal “a quo” julgou como não provados.
d) Os factos constantes dos pontos 18 e 19 devem ser julgados como não provados.
e) Deve o facto constante do ponto 48 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida ser eliminado da mesma por conter matéria manifestamente conclusiva.
f) A Decisão recorrida alterada em conformidade com a alteração da matéria de facto.
g) A Apelante absolvida do pedido, atenta a inexistência de dano de perda de chance.
h) Deve a Apelante ser absolvida do pedido, atenta a inaplicabilidade temporal do contrato de seguro aos factos dos Autos”.
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10. Dos autos não consta terem sido apresentadas contra-alegações.
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11. O requerimento recursório foi admitido por despacho de 22-05-2024.
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12. Remetidos os autos a este Tribunal de recurso e inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
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I) Impugnação da decisão de facto:
A) Se a matéria constante dos pontos 2, 3 e 4 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada?
B) Se a matéria constante dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada e a constante das alíneas e), h) e i) dos factos não provados da decisão recorrida, deve transitar para a matéria de facto provada?
C) Se a matéria constante dos pontos 18 e 19 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada?
D) Se a matéria constante do ponto 48 dos factos provados deve ser eliminada?
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II) Impugnação da decisão de direito:
E) Se procede a invocação da recorrente de que o contrato de seguro não cobre os factos dos autos?
F) Se a ação deverá ser julgada improcedente, por inexistência de dano de perda de chance?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. No dia 17 de Junho de 2011, pelas 17h46m, o Autor circulava, conduzindo um velocípede de sua propriedade, na Estrada Municipal 1205 no sentido Santa Eulália - Monfirre, concelho de Mafra.
2. Foi então abalroado por um veículo automóvel que seguia no mesmo sentido, tendo o Autor e o seu velocípede sido projectados para a faixa de rodagem do sentido contrário.
3. O veículo automóvel que abalroou o Autor pôs-se em fuga, nunca tendo sido possível obter a sua identificação, nem a do respectivo condutor.
4. O Autor circulava junto à berma direita da faixa de rodagem, respeitando as demais regras rodoviárias.
5. Em consequência deste acidente, o Autor sofreu graves ferimentos, tendo sido transportado para o Hospital de S. Francisco Xavier, em Lisboa, e, no dia seguinte, para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Amadora- Sintra, onde ficou internado.
6. Aquando do seu internamento, o Autor apresentava várias escoriações na face, nos membros superiores e inferiores, tendo sido submetido a diversos exames, na sequência dos quais foi apurado ter sofrido um traumatismo crânio-encefálico e torácico.
7. Foi ainda diagnosticado ao Autor o seguinte: broncopneumonia/pneumonia de aspiração; hipertensão arterial essencial; lesão renal aguda; anemia normocita normocrómica; traumatismo crânio-encefálico com focos de contusão parietais e frontal esquerdo; traumatismo torácico com fratura da clavícula, omoplata e arcos costais à direita.
8. O Autor manteve-se internado até 06.07.2011.
9. Durante o período de internamento, o Autor esteve imobilizado e, por isso, sentiu-se angustiado e impotente.
10. Esteve, ainda, afastado do convívio familiar e social.
11. Apesar de ter tido alta médica, o Autor temeu por, a partir daí, ficar num estado de incapacidade ou com diminutas capacidades física e intelectual.
12. Seguiu-se um acompanhamento médico permanente, sujeitando-se o A. a diversas consultas, exames e tratamentos, motivo pelo qual se encontrou em situação de incapacidade temporária para o trabalho desde o dia 7 de julho de 2011 até 2 de março de 2012 e que, aliás, se veio a prolongar até 30 de julho de 2013, data em foi reformado por invalidez em resultado da incapacidade decorrente das lesões e sequelas do acidente.
13. Após o acidente, o Autor padeceu de insónias, de ansiedade e humor depressivos, recordando-se sucessivas vezes do momento do acidente.
14. O Autor praticava habitualmente ciclismo, o que teve de abandonar devido às sequelas do acidente.
15. Deixou de ter condições para exercer os cargos de gerente nas sociedades de que é sócio: (…) Pneus, Lda., (…) Leitões, Lda. e Transportes (…), Lda.
16. Depois da baixa, necessitou da ajuda de terceiros durante o período de reabilitação de aproximadamente 8 meses.
17. Devido à diminuição das suas capacidades de audição e visão, o Autor ficou impedido de conduzir veículos pesados, o que fazia habitualmente, devido à sua ocupação profissional e à das empresas que é sócio e era gerente.
18. O Autor suportou todas as despesas médicas decorrentes do acidente.
19. O Autor suportou a remuneração pelo trabalho de auxílio pessoal prestado por uma terceira pessoa, em montante não concretamente apurado, durante o seu período de recuperação em casa.
20. Devido ao acidente, o Autor ficou com a sua bicicleta danificada, sem condições de poder ser utilizada normalmente, a qual havia sido adquirida por quantia não inferior a € 2000.
21. Visando obter o ressarcimento pelos prejuízos quer patrimoniais, quer não patrimoniais decorrentes do acidente e respectivas sequelas, o Autor procurou o ora Réu, advogado, conferindo-lhe, no respectivo escritório, a respectiva procuração forense.
22. No uso da mesma e em representação do Autor, o ora Réu, em 17 de Setembro de 2012, fez intentar contra o Instituto de Seguros de Portugal - Fundo de Garantia Automóvel, uma acção declarativa que foi distribuída com o n° (…)19/12.1T2SNT, à 25 Secção, Juiz 5, do então Juízo de Grande Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, posteriormente Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 2 da Comarca de Lisboa Oeste.
23. Ali foi deduzido o pedido de condenação do Réu no pagamento da quantia de € 149.520,23, acrescido de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
24. O Réu Fundo de Garantia Automóvel contestou a acção, declarando desconhecer a veracidade dos factos alegados pelo Autor e impugnando, nos termos e para os efeitos do n° 3 do então art° 490° do C.P.C., a letra, teor e assinatura dos documentos juntos com a petição inicial.
25. Em 11 de Fevereiro de 2013, foi elaborado despacho saneador na referida acção, cujo teor consta da referida certidão judicial anexa, sendo levada à base instrutória toda a matéria factual alegada pelo Autor.
26. Em 8 de Março de 2013, o ora Réu, ali mandatário do Autor, apresentou o requerimento probatório constante de fls. 199 e seguintes do referido processo, arrolando como testemunhas, a apresentar, FP, SR, PA, SL, SJ e QM.
27. Requereu também que fossem desenvolvidas diligências no sentido de ser obtida a identificação dos militares da GNR que se deslocaram ao local do sinistro, com vista a prestarem o respectivo depoimento testemunhal.
28. Os referidos militares foram identificados como sendo BM e AR.
29. Na sequência daquela identificação e da junção aos autos de diversa documentação, o ora Réu, em 20 de junho de 2013, na já aludida qualidade, apresentou um requerimento probatório aditando como testemunhas MC, AJ, MV, LM, PF, SB, SM, BM e AR, cuja notificação requereu.
30. Por despacho proferido em 02.04.2013, foi designado o dia 6 de Novembro de 2013 para a audiência de julgamento.
31. Na sequência desse despacho, o Réu não procedeu ao pagamento, nem transmitiu ao Autor que o fizesse, da 25 prestação da taxa de justiça, pelo que, em 26.09.2013, aquele foi notificado pela secção de processos para proceder a tal pagamento, acrescido da multa prevista no artigo 14°, n.° 3 do R.C.P.
32. O ora Réu diligenciou pelo pagamento da multa, mas não procedeu ao pagamento da 25 prestação da taxa de justiça, nem transmitiu ao Autor, ou a alguém por ele, que o fizesse.
33. No dia 6 de Novembro de 2013, dia designado para o julgamento, feita a chamada pelas 09h30m, o Réu não se encontrava presente.
34. Repetida tal chamada às 9h45m, manteve-se a ausência do Réu, tendo a Sr5 Juíza titular do processo determinado que se aguardasse por mais 10 minutos.
35. Pelas 10 horas, e seguindo as instruções da Sr5 Juíza, a Sr5 Escrivã Auxiliar NC contactou telefonicamente o escritório do Réu, sendo atendida por uma sua colaboradora, CM, que informou que o Réu ali não se encontrava, acrescentando que o iria contactar via telemóvel, no sentido de saber o que se passava, para o que necessitava de breves minutos após o que contactaria o Tribunal.
36. A referida CM veio então a informar que o Réu não iria apresentar-se na audiência de julgamento por se encontrar numa consulta de anestesia, tendo programada uma cirurgia para o dia 11 de Novembro seguinte.
37. Veio então a ser proferido o despacho que se transcreve: “Feita que foi a chamada à hora programada nem o Autor nem o seu I.Mandatário se encontravam presentes. Passados 30 minutos, por ordem da Signatária, a secção de processos contactou o escritório do I. Mandatário do Autor, solicitando informação acerca da sua comparência ou não ao julgamento e a pessoa que atendeu, comunicou que o Sr. advogado não estava e que o ia contactar via telemóvel, após o que este comunicaria o que entendesse a este Tribunal. — Passados alguns minutos a mesma pessoa contactou este Tribunal afirmando que o Sr. advogado, I. Mandatário do Autor não viria ao julgamento dado que tinha ido a uma consulta médica e bem assim que tinha marcada uma cirurgia para o próximo dia 11 de Novembro. - A isto acresce que se mostra por pagar a 2- prestação da taxa de justiça, devida nos autos, conforme art° 14° do Regulamento das Custas Processuais, não obstante a Secretaria tenha cumprido o preceituado pelo n° 3 deste art° 14° e haja já decorrido o prazo para que o Autor viesse proceder ao pagamento dessa 2- prestação da taxa de justiça. --- Assim sendo, ao abrigo do disposto pelo art° 14° n° 4 do citado Regulamento das Custas Processuais, impõe-se determinar a impossibilidade de realização, das diligência de prova requeridas ou que venham a ser requeridas pelo Autor. --- Por outro lado, tendo em conta a falta ao julgamento do I.Mandatário do Autor não se descortina, motivo que possibilite o adiamento da audiência de julgamento, tendo em conta o previsto pelo art° 603°, n° 1 do C.P.C., na versão da Lei 41/2013 de 26 de Junho aplicável ao caso por força do artigo 5°, n° 1 diploma preambular, salientando-se que a comparência a uma consulta médica e a existência de uma cirurgia programada, não integra, sem mais, o conceito de justo impedimento que nos é dado pelo art° 140° do mesmo C.P.C. --- Assim sendo, porque não existe qualquer impedimento da banda do Tribunal para a realização do presente julgamento e porque esta audiência de julgamento, foi marcada após ter sido providenciado o acordo prévio relativamente a esta data (e tendo aqui presente a previsão do art° 151°, n° 2, do C.P.Civil e o equivalente anterior art° 155° do C.P.C. pré vigente) como se dizia, não se vê motivo para o adiamento deste julgamento e, nestes termos, determina-se que se proceda à realização do julgamento.”
38. No dia agendado para realização do julgamento, encontravam-se presentes as testemunhas MC, AJ, MV, LL, PC, SB, SJ, BM e AR, as quais não foram inquiridas nos termos do despacho ali proferido em acta.
39. As testemunhas FP, SR, PA, SL, SJ e QM, todas a apresentar, não se encontravam presentes.
40. Não havendo qualquer prova a produzir, os mandatários da Ré e da Interveniente Instituto de Solidariedade e Segurança, produziram alegações orais, sendo de seguida encerrada a audiência e determinada a conclusão dos autos para prolação de decisão.
41. Às 10h37m26s do dia 6 de Novembro de 2013, deu entrada nos autos, via Citius, um requerimento de CM, invocando a qualidade de secretária autorizada do Réu, requerendo o reagendamento da audiência por motivo da alegada consulta de anestesia e intervenção cirúrgica agendada para 11 de Novembro.
42. No dia 7 de Novembro, às uh48m37s, foi apresentado via Citius novo requerimento pela referida CM juntando aos autos um Boletim de Situação Clínica e um comprovativo da marcação da referida operação cirúrgica.
43. Na sequência daqueles requerimentos foi determinado, por despacho de 18 de Novembro de 2013, que se notificasse ao ora Réu a decisão proferida em sede de audiência julgamento no dia 6 de Novembro, o que a Secção cumpriu.
44. Em 19 de novembro de 2013, o ora Réu entregou via Citius um requerimento alegando que por lapso, após a notificação efectuada pelo tribunal, apenas liquidou a guia referente à multa pela falta de pagamento atempado da 25 prestação da taxa de justiça, embora mantivesse intenção de vir a liquidar esta última.
45. E com o referido requerimento juntou o comprovativo de pagamento da quantia correspondente à 25 prestação da taxa de justiça com data de 18 de novembro de 2013.
46. Na qualidade de mandatário do ali e aqui Autor, o Réu, em 9 de janeiro de 2014, interpôs recurso da decisão proferida na audiência de julgamento do dia 6 de novembro anterior.
47. Em 24 de fevereiro de 2014 foi proferido o despacho que não admitiu o recurso.
48. Veio a ser proferida sentença na qual, por inexistência de produção de prova em especial com relação aos factos relacionados com a ocorrência do acidente e respectivas sequelas, julgou a acção improcedente.
49. Como questão prévia naquela sentença, foram apreciadas as questões emergentes dos requerimentos apresentados pelo ora Réu em 6, 7 e 14 de Novembro, tendo-se considerado que não fora invocada nem comprovada qualquer situação de justo impedimento que obstasse à realização da audiência final.
50. O ora Réu não deu conhecimento ao Autor desta sentença, da qual, na qualidade de advogado do Autor, veio a interpor, em 15 de maio de 2014, recurso de apelação, em cujas alegações questionou o decidido na audiência de 6 de novembro de 2013 no que tange ao facto da mesma ter sido realizada na sua ausência e também questionando os fundamentos do decidido como “questão prévia”, na sentença final.
51. Por decisão singular de 05.03.2015, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, não tendo sido requerida a intervenção da conferência (artigo 652°, n.° 3 do C.P.C.).
52. Também desta decisão não foi dado pelo Réu conhecimento ao Autor.
53. Instado várias vezes pelo Autor e/ou pela esposa sobre o estado do processo, o Réu foi dizendo que ainda não havia decisão final, mesmo após o trânsito em julgado da sentença de improcedência da acção, o que fez durante vários meses.
54. Só no início de 2017, depois de ter pedido ao seu actual mandatário que tentasse apurar o que se passaria com o processo e após diligências por este levadas a cabo, é que o Autor veio a ter conhecimento dos factos supra elencados.
55. Todas as testemunhas arroladas pelo Autor no processo referente ao acidente de viação só chegaram ao local do mesmo depois da ocorrência.
56. No início de 2017, o Réu foi contactado pelo Mandatário do Autor no sentido de informá-lo de que iria recorrer a meios judiciais para que o Réu indemnizasse o Autor.
57. Em 02.02.2017, o Réu comunicou este facto à AON Portugal - Corretores de Seguros, S.A., com referência à apólice n.° (…)58 - Mapfre, Seguros Gerais, S.A..
58. Entre a interveniente Mapfre, S.A. e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do ramo de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.° (…)58.
59. Através do referido contrato, a interveniente assumiu a responsabilidade civil profissional dos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados em prática individual ou societária, com o limite de € 150.000,00 por sinistro, entre outros riscos bem como com a franquia de € 5000 por sinistro.
60. O contrato de seguro foi celebrado pelo período de 12 meses, com data de início às 00:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2014 e termo às 00:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2015, tendo esta apólice sido renovada para o ano de 2015 e para os anos de 2016 e 2017.
61. Ficaram expressamente excluídas da cobertura desta apólice as reclamações: «Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período do seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação» (artigo 3°, a) da condição geral de responsabilidade civil profissional).
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
Não existem outros factos provados, designadamente:
a) Que, no ano do acidente, o Autor tinha programado gozar um período de férias no Brasil, o que não pôde fazer (artigo 21° da petição inicial);
b) Que, durante o período de 8 meses em que esteve com baixa médica, o Autor deixou de receber a totalidade das remunerações das funções de gerente das sociedades (artigo 22° da p.i.);
c) Que, no dia agendado para realização da audiência final, o Réu não se encontrava em condições de saúde que lhe permitissem exercer a sua actividade, tendo-se deslocado ao Hospital dos Lusíadas, onde lhe foi decretada a sua imediata incapacidade temporária e absoluta para o trabalho até à data da consulta seguinte (artigos 20° e seguintes da contestação);
d) Que, atendendo à gravidade do estado de saúde evidenciado pelo Réu, lhe foi imediatamente marcada uma intervenção cirúrgica para o dia 12.11.2013 e não antes por impossibilidade de vaga hospitalar (artigo 23° da contestação);
e) Que o Autor trabalha diariamente no seu estabelecimento comercial (…) Leitões, Lda., assumindo tarefas de elevado esforço físico (artigo 32° da contestação);
f) Que o Autor preferiu não avisar as testemunhas a apresentar da data do julgamento ou lhes disse para não estarem presentes (art. 48° da contestação);
g) Que o Autor se tivesse desinteressado do destino da acção, atenta a circunstância de nenhuma das testemunhas por si arroladas ter presenciado o acidente (artigo 50° da contestação);
h) Que o Autor bem sabia da data do julgamento e que esteve sempre ao corrente do estado do processo (artigos 57° e 58° da contestação);
i) Que o Autor tenha tido conhecimento do justo impedimento invocado pelo réu (art. 61° da contestação);
j) Que a presente acção constitui uma retaliação pela ocorrência do divórcio entre o ora Réu e a afilhada do Autor (art. 80° da contestação).
(…)
Não existem quaisquer outros factos provados, sendo a demais matéria dos articulados alegação de factos instrumentais, conclusivos e/ou considerações de Direito.
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4. Fundamentação de Direito:
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I) Impugnação da decisão de facto:
Na sequência da alegação que desenvolve, conclui a recorrente que devem ser efetuadas na selecção factual realizada pelo Tribunal recorrido, as alterações que preconiza (cfr. conclusões recursórias I a XIV).
Esta alegação encontra-se desenvolvida na motivação das alegações, onde a recorrente convoca os meios de prova que, em seu entender, determinam ta conclusão probatória.
Com tal invocação, a recorrente visa colocar em crise a matéria de facto selecionada pelo Tribunal recorrido.
Vejamos:
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO, em www.dgsi.pt, respeitando a esta base de dados todos os acórdãos infra citados, salvo indicação diversa).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, rel. PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, rel. MÁRIO BELO MORGADO).
Contudo, firmou-se jurisprudência no sentido de que “nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa” (assim, o Acórdão do STJ n.º 12/2023, D.R, 1.ª Série, n.º 220, p. 44 e ss.).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Pº 6095/15T8BRG.G1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Pº 6871/14.6T8CBR.C1, rel. MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
No caso dos autos, a recorrente visa impugnar os factos selecionados pelo Tribunal recorrido, nos termos sobreditos, pugnando pelas alterações que concretiza.
Ora, no presente caso, constam das alegações da apelante, quer os concretos pontos de facto a que se dirige a sua impugnação, com indicação da decisão que, em concreto, deveria ser proferida em alternativa, bem como, mostram-se indicados os meios de prova que, em seu entender, justificam uma tal decisão, pelo que, se mostram observados os ónus impugnatórios contidos no artigo 640.º do CPC.
Cumpre, pois, apreciar a impugnação de facto deduzida.
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A) Se a matéria constante dos pontos 2, 3 e 4 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada?
Nas conclusões I a IX das alegações de recurso, a recorrente visa que os pontos 2, 3 e 4 dos factos provados enunciados na decisão recorrida sejam dados como não provados, por entender que inexiste prova de tais factos.
Invoca, em suma, que se desconhece a intervenção no acidente de que o autor foi vítima de qualquer outro veículo e que todas as testemunhas arroladas pelo autor só chegaram ao local depois da ocorrência do acidente, concluindo que “nenhuma prova foi, também, produzida nos presentes Autos, suscetível de se concluir pela intervenção de qualquer outro veículo no acidente sofrido pelo A.”, sendo que, também, da participação de acidente de viação - constante da certidão junta com a p. i. (doc. 3) - não resulta a existência de qualquer testemunha ocular. Mais alegou – extratando afirmações referentes ao respetivo depoimento – que “a única testemunha apresentada pelo A., alegadamente com algum conhecimento sobre o acidente ocorrido foi FP, o qual, não assistiu ao alegado acidente de viação e, como tal, do seu depoimento não resulta que o A. tenha sido “abalroado por um veículo automóvel”. Salienta que se desconhece “o que terá motivado o acidente sofrido pelo A. - se um problema de saúde ou qualquer outro - o que resulta dos Autos é que inexiste qualquer prova da intervenção de outro veículo ou da culpa (exclusiva) do mesmo na ocorrência do acidente sofrido pelo A.”, referindo ainda que “as medições efetuadas” no auto de notícia foram elaboradas como base em declarações de quem não assistiu ao acidente, nem sabia o local do embate (ilustrando tais afirmações com apelo ao depoimento prestado pela testemunha BM, nos termos que concretizou).
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento.
Conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto – sujeito a livre apreciação do julgador - se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respetivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objeto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal ou por declarações de parte, deve ser efetuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa atividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 607.º, n.º 4, do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objetiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjetiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo atuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
De todo o modo, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que a prova pessoal produzida se pronuncie sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
No caso, o Tribunal recorrido expressou qual a fonte da sua convicção probatória, nos seguintes termos:
“O tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência, analisada e ponderada criticamente e à luz das regras de experiência e do senso comum.
Antes do mais, o Tribunal considerou as peças processuais e elementos probatórios provenientes do proc. n.° (…)19/12.1T2SNT, cujas cópias constam dos autos, juntas com a petição inicial, e que serviram relevantemente para prova, quer da própria tramitação do processo - pontos 22. a 49. dos factos provados - quer da forma como ocorreu o acidente de viação e danos verificados na esfera do Autor, conjugadamente com a prova testemunhal produzida na presente acção.
Assim, daquele processo, valeram: cópia da petição inicial subscrita pelo ora Réu, acompanhada de procuração forense subscrita pelo aqui Autor, bem como da contestação oferecida pelo ali Réu, Fundo de Garantia Automóvel; do despacho saneador/enunciação de factos assentes e base instrutória proferido em tal acção, subsequentes requerimentos probatórios apresentados pelo ora Réu, na qualidade de mandatário do aqui Autor e despacho que designou dia para realização da audiência final; despacho proferido em acta datada de 06.11.2013; expediente junto àqueles autos pelo ora Réu, para alegação e prova de justo impedimento, bem como despacho, inserido na sentença de improcedência da acção, que julgou tal incidente não provado; alegações de recurso e respectiva decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a improcedência do incidente, com o consequente trânsito em julgado da sentença de improcedência da acção.
quanto aos elementos probatórios referentes ao acidente e lesões sofridas pelo Autor, também provenientes daquela acção e juntos pelo ora Réu com a respectiva petição inicial, na qualidade de Mandatário do ali demandante - pontos 1. a 20. dos factos provados -, considerou-se: a participação de acidente de viação; a nota de alta do Hospital Fernando Fonseca; os certificados de incapacidade para o trabalho; a documentação clínica, incluindo imagens médicas e relatório de avaliação neuropsicológica elaborado pela Dra. GM; facturas referentes a despesas hospitalares, médicas e medicamentosas.
Valeu ainda, da prova documental oferecida já no âmbito da presente acção, o relatório médico elaborado pelo Dr. TL em Novembro de 2018 e a declaração, proveniente do ISSS e datada de Outubro de 2018, referente à concessão de pensão de invalidez ao Autor desde Julho de 2013.
A estes elementos, cumpre adicionar a prova testemunhal produzida em audiência nos presentes autos, reveladora do conhecimento directo da situação vivida pelo Autor, e que serviu para contextualizar e densificar o teor dos documentos provenientes da anterior acção.
Assim, a esposa e o filho do Autor, SR e SJ, descreveram o período vivido por este após o acidente, quer na fase de internamento hospitalar, quer durante a recuperação em casa, e, também, quanto às sequelas que o mesmo veio a sofrer (de acordo, aliás, com os relatórios médicos supra referidos); descreveram, também, com espontaneidade e aparente sinceridade, as circunstâncias em que, proposta a acção de indemnização contra o FGA, iam providenciando pelas diligências necessárias ao andamento do processo, conforme indicações do Réu (nomeadamente, o pagamento de taxas de justiça e indicação de testemunhas), bem como o acompanhamento que faziam, indagando este sobre o estado da acção, especialmente procurando saber quando seria marcado o julgamento. O depoimento destes familiares, apesar da proximidade e do evidente envolvimento na situação dos autos (especialmente a esposa do Autor), foi credível e coerente.
Considerou-se, também, o depoimento das testemunhas QL, antiga e actual funcionária/o das empresas do Autor; a primeira, que revelou muita serenidade e objectividade, tornando absolutamente credível a alegação de que aquele passou a ser uma pessoa muito diferente após o acidente; acrescentando que são notórias as sequelas com que o Autor ficou, mencionando a consciência que o próprio tem das suas limitações, quando identifica as situações em que o seu “cérebro antigo funciona”; quanto ao processo, a testemunha SL foi também credível, quando confirmou a espera da família pelo andamento da acção, a estranheza com a demora e, finalmente, a surpresa com que tomaram conhecimento de que o julgamento já tinha ocorrido com a consequente improcedência da acção; o segundo, que com naturalidade confirmou que actualmente o Autor “passeia para cima e para baixo” para se “distrair”, dado ter perdido a capacidade de se ocupar de trabalhos de responsabilidade ou que impliquem esforço físico.
Finalmente, a testemunha FP que, sendo pessoa totalmente estranha aos Autores, depôs de forma sincera, empenhada e objectiva, consciente da importância do seu contributo para o apuramento da forma como ocorreu o acidente de que o Autor terá sido vítima, dado, como afirmou, ter sido o primeiro a chegar ao local onde este se encontrava caído, segundos depois de ter por si passado uma viatura a grande velocidade após uma curva. Este depoimento foi, pois, de grande relevância, por ter servido de suporte em termos de prova indirecta ou indiciária, também conhecida por prova por presunção: do conjunto de proposições de facto comprovadas - como foram, por exemplo, as medições feitas no auto de notícia e os factos relatados pela testemunha FP - foi possível, com recurso à lógica e às regras da experiência de vida, concluir pela demonstração de um outro facto (o de que o Autor foi atropelado por um automóvel) como consequência dos anteriores. Como se salienta, por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.10.2018 (no âmbito de processo penal), «o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.» E foi o que aconteceu, de facto, na situação dos autos - os dados indiciários recolhidos quanto à efectiva ocorrência de um abalroamento são sólidos, precisos e coerentes, portanto, com aptidão para sustentar a convicção da verificação do facto a provar.
Tudo isto contrastou, quer com a prova testemunhal produzida pelo Réu, quer com as declarações prestadas por este em juízo. Assim, a única testemunha que revelou ter algum conhecimento directo dos factos - mas apenas, os concernentes à acção - foi RJ, funcionário do escritório do Réu. Mas o seu depoimento foi tendencioso e parcial, tendo fornecido uma descrição dos factos que se revelou inverosímil, à luz das regras de experiência comum e do bom-senso; por exemplo, afirmou que tudo aconteceu normalmente, mas não tem qualquer explicação para o facto de apenas ter sido liquidada a multa devida pelo não pagamento atempado da 25 prestação da taxa de justiça; não tem, também, qualquer explicação para o facto de o Autor não ter comparecido em Tribunal no dia agendado para o julgamento, apesar de, como declarou, o mesmo ter aceitado o desfecho do processo com aparente naturalidade, tendo concordado com a decisão do Réu de interpor recurso da sentença, suportando a respectiva taxa de justiça. Ora, tudo isto constitui uma versão dos factos muito pouco credível, sendo certo que a justificação fornecida (também pelo Réu), de que a presente acção constituiria uma revanche do Autor face ao divórcio do Réu de uma afilhada sua, para além de não se mostrar ancorada em nenhum elemento probatório minimamente sustentado, o que reforça a inverosimilhança desta versão, parece ser uma explicação muito pouco credível face à gravidade das alegações e, em suma, à prova produzida.
O próprio Réu, nas suas declarações de parte, foi inconstante e incongruente, até, com a alegação constante da própria contestação: é disso exemplo patente a declaração que fez de que informou o Autor do dia e hora do julgamento, quando essa alegação, de indiscutível relevância, não consta da contestação, que se centrou, nesta parte, na suposta existência de justo impedimento - que aquele Tribunal, aliás, não reconheceu - registando-se, aliás, que a contestação menciona repetidamente a intervenção de uma colaboradora do escritório do Réu,CM, que tão- pouco foi arrolada como testemunha.
o Autor, também em declarações de parte, pese embora alguma imprecisão no seu depoimento (explicável, também, pelo estado em que ficou após o acidente), revelou coerência com os demais elementos probatórios disponíveis nos autos. (…)”.
Em função deste juízo probatório, o Tribunal recorrido deu, nomeadamente, como assente o que ficou a constar dos pontos 2, 3 e 4 dos factos provados.
Ora, ouvida por este Tribunal de recurso, na íntegra, a gravação dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento – em particular, os depoimentos convocados de FP, do autor e de BM e aquilatados e sopesados todos os documentos admitidos nos autos, certo é que, na apreciação conjugada desses meios de prova, não se encontra fundamento bastante para fundar a edificação probatória sustentada pela apelante a respeito da aludida factualidade, no sentido de se poder concluir pela sua indemonstração probatória.
De facto, desde logo, “considerando alguma margem de prudente aleatoriedade que a lei concede ao julgador em sede de apreciação probatória e a relevância dos princípios da imediação e da oralidade direta para aferir da veracidade/eticidade do verbalizado, a censura da convicção do julgador apenas é possível – máxime nos casos em que esta é determinantemente alicerçada em prova pessoal – quando os elementos probatórios esgrimidos pelo recorrente não apenas a sugiram, mas antes a imponham” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2022, Pº 1222/20.3T8LRA.C1, rel. CARLOS MOREIRA).
Ou seja: No âmbito de meios de prova pessoais (v.g. prova por declarações de parte, depoimentos testemunhais) onde imperam os princípios da oralidade e da imediação probatória (pressupondo um contacto direto e pessoal entre o julgador de 1.ª instância e os aludidos meios de prova) e sujeitos a livre apreciação do juiz, a alteração, pelo Tribunal de recurso, da convicção formada em 1.ª instância apenas se justificará quando os elementos probatórios impuserem a alteração, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, e não, apenas, quando essa alteração possa surgir como uma alternativa ou sugestão relativamente aos meios de prova produzidos.
Tal asserção assenta na circunstância de, ao invés do que sucede no julgamento efetuado em 1.ª instância, o Tribunal de recurso não dispõe, na sua plenitude (desde logo, por reapreciar, apenas por refração, nomeadamente com base no registo de depoimentos sedimentado no suporte da gravação sobre eles efetuada, sem poder aquilatar, com toda a plenitude, as pausas, os silêncios, os olhares, a posição, etc. de quem depõe), sob todas as perspetivas em que tal sucede no Tribunal recorrido, da possibilidade de aferir da credibilidade de tais meios de prova produzidos em direto contacto com o julgador do Tribunal recorrido.
Ora, esta imposição, no sentido de dever ser outra a conclusão probatória que não a que o Tribunal recorrido alcançou, não se comprova na situação em apreço, não se patenteando algum erro de apreciação das provas ou de fixação dos factos materiais da causa.
De facto, os elementos aquilatados por este Tribunal de recurso, a respeito dos mencionados pontos da matéria de facto, concorrem no mesmo sentido alcançado pelo Tribunal de 1.ª instância.
Efetivamente, ao invés do pugnado pela recorrente, PF foi concludente – pelo modo como explicitou – em relacionar a carrinha branca que por si passou com a ocorrência do acidente que vitimou o autor e que presenciou 60 metros à frente.
A prova de um facto não se completa apenas, ou sobretudo, na maior parte dos casos, por uma relação direta entre uma afirmação ou realidade e um facto, mas decorre, muitas vezes, de inferências ou indícios que inculcam ou permitem inferir que uma determinada ocorrência teve lugar num determinado sentido.
Conforme bem assinalou o Tribunal recorrido, “a testemunha PF que, sendo pessoa totalmente estranha aos Autores, depôs de forma sincera, empenhada e objectiva, consciente da importância do seu contributo para o apuramento da forma como ocorreu o acidente de que o Autor terá sido vítima”, evidenciou que foi a primeira pessoa a chegar ao local onde o autor se encontrava caído “segundos depois de ter por si passado uma viatura a grande velocidade após uma curva”, permitindo ao Tribunal recorrido inferir que o acidente teve lugar em tal decorrência, ou seja, em virtude de abalroamento do autor por um automóvel que com ele embateu.
A mera circunstância de não haver testemunhas “oculares” ou diretas de acidente de viação não infirmam a possibilidade de o Tribunal concluir que o embate se deu da forma que apurou, pois, quer o facto de o autor se encontrar caído, lesionado, sem outra explicação (como assinalado, aliás, pelo Tribunal recorrido), quer a circunstância de FP ter chegado ao local onde este se encontrava poucos segundos após o veículo que referiu o ter passado, nos termos que concretizou, bem como os elementos documentais carreados – em particular, a participação do acidente de viação que descreve o ocorrido, sem discrepâncias ou sem outras “versões” factuais - , levam a tornar mais provável que a ocorrência factual se tenha dado pela forma como foi apurada, nomeadamente, nos pontos n.ºs. 2, 3 e 4 dos factos provados, do que por qualquer outro motivo.
Note-se que, aliás, o próprio réu – advogado – descreveu ao longo de 49 artigos da petição inicial da ação que sob o n.º 22219/12.1T2SNT a ocorrência de acidente em termos muito aproximados aqueles que foram apurados na descrição factual vertida na decisão recorrida, credibilizando a versão factual que o autor veio, nos presentes autos, invocar.
Em suma, compreende-se, de forma cabal e suficiente, que o Tribunal recorrido tenha logrado formar positiva convicção probatória sobre a realidade dos factos afirmados como provados nos pontos 2, 3 e 4 dos factos provados, sem que, ao invés do pugnado pela recorrente, se mostre demonstrado, inequivocamente, que tal realidade não teve lugar.
A impugnação deduzida a este respeito pela recorrente, soçobra.
*
B) Se a matéria constante dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada e a constante das alíneas e), h) e i) dos factos não provados da decisão recorrida, deve transitar para a matéria de facto provada?
Considera ainda a recorrente que a matéria dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada e a constante das alíneas e), h) e i) dos factos não provados da decisão recorrida, deve transitar para a matéria de facto provada.
Entende a recorrente que o Tribunal recorrido desconsiderou o depoimento da testemunha José Ramos em consonância com as declarações de parte do réu.
Depois de extratar diversos segmentos do depoimento prestado pela testemunha José Ramos, sem que, contudo, os analisasse criticamente, a recorrente conclui que, do mesmo “resulta não só o seu conhecimento direto dos factos, contrariamente ao ocorrido com as testemunhas arroladas pelo A. - sua mulher e filho, (claramente interessados no desfecho da presente ação judicial), como a sua valoração consistente, serena, com razão de ciência e, de todo, credível face às regras da experiência comum, contrariamente ao que quis fazer crer o Tribunal “a quo”, imbuído que estava de instinto protetor de uma das partes, em detrimento da independência que seria expetável”, concluindo que, não corresponde à realidade que tal testemunha não tenha “qualquer explicação para o facto de apenas ter sido liquidada a multa devida pelo não pagamento atempado da 2a prestação da taxa de justiça;”, pois tal foi explicado - foi entregue ao A. a guia para pagamento da multa e o duc para pagamento da taxa de justiça. Como apenas receberam do A. o pagamento da guia relativa à multa, foi esta desde logo junta ao processo judicial, aguardando-se a entrega, por parte do A. do comprovativo (…)”.
Importa, desde logo, salientar que o réu advogado admitiu o não pagamento tempestivo da 2.ª prestação da taxa de justiça referente ao processo n.º 22219/12.1T2SNT, conforme decorre do por si alegado nos artigos 15.º e ss. da contestação apresentada.
Ora, da conjugação dos diversos meios de prova produzidos nos autos, quer pessoais, quer documentais, não se afere algum erro manifesto na apreciação probatória realizada pelo Tribunal recorrido, a respeito da aludida factualidade, nem ela assenta em qualquer indevida valoração do depoimento das testemunhas arroladas pelo autor.
De forma circunstanciada e objetiva, o Tribunal recorrido evidenciou os termos em que cada elemento probatório contribuiu, ou não, para a formação da sua convicção probatória, não se alcançando que a formação da respetiva convicção tenha sido indevida ou patentemente errada.
O Tribunal recorrido não deixou, em particular, de assinalar que o depoimento de RJ, funcionário do escritório do réu, foi tendencioso e parcial, por ter descrito uma descrição dos factos que se afigurou inverosímil, nos termos concretizados pelo Tribunal recorrido na motivação da decisão de facto, para cujos termos se remete e a que se mostram integralmente em consonância com o que se retira da audição do mencionado depoimento a que se acedeu.
Inexiste, pois, motivo para a procedência de qualquer dos termos da impugnação de facto deduzida pela apelante, a respeito dos pontos 31, 32, 50, 52, 53 e 54 dos factos provados, ou do vertido nas alíneas e), h) e i) dos factos não provados.
*
C) Se a matéria constante dos pontos 18 e 19 dos factos provados da decisão recorrida deve ser dada como não provada?
Nos pontos 18 e 19 dos factos provados da decisão recorrida ficou consignado que:
“18. O Autor suportou todas as despesas médicas decorrentes do acidente.
19. O Autor suportou a remuneração pelo trabalho de auxílio pessoal prestado por uma terceira pessoa, em montante não concretamente apurado, durante o seu período de recuperação em casa”.
Considera a impugnante que ocorreu erro de julgamento por o Tribunal recorrido não ter considerado não provada tal factualidade, tendo invocado o seguinte:
“(…) O A. não logrou provar os danos alegados na ação judicial subjacente aos presentes Autos, sendo certo que, nessa ação judicial, como resulta do ponto 24 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida, “O Réu Fundo de Garantia Automóvel contestou a acção, declarando desconhecer a veracidade dos factos alegados pelo Autor e impugnando, nos termos e para os efeitos do n°3 do então art°490°do C.P.C., a letra, teor e assinatura dos documentos juntos com a petição inicial.».
E, “Em 11 de Fevereiro de 2013, foi elaborado despacho saneador na referida acção, cujo teor consta da referida certidão judicial anexa, sendo levada à base instrutória toda a matéria factual alegada pelo Autor. ”, conf. ponto 25 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida.
Pelo que, com o respeito que é devido, que é muito, não se entende como pode o Tribunal “a quo” dar como provados factos constantes da documentação junta com a petição inicial da ação judicial subjacente aos presentes Autos e que, nestes Autos, não foi objeto de prova.
Em consequência, devem os factos constantes dos pontos 18 e 19 da Fundamentação da Facto da Decisão recorrida ser julgados não provados”.
Conforme se salientou, a alteração, pelo Tribunal de recurso, da convicção formada em 1.ª instância apenas se justificará quando os elementos probatórios impuserem a alteração, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, e não, apenas, quando essa alteração possa surgir como uma alternativa ou sugestão relativamente aos meios de prova produzidos.
Ora, nenhuma das invocações efetuadas pela recorrente determina ou impõe a alteração do decidido, não abalando a convicção probatória alcançada pelo Tribunal recorrido.
De facto, o mero inconformismo da recorrente ou a sua falta de entendimento sobre a razão justificativa da convicção alcançada pelo Tribunal recorrido não equivale à verificação de erro de julgamento que, desse modo, não se mostra evidenciado.
Consequentemente, a impugnação de facto correspondente, improcede.
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D) Se a matéria constante do ponto 48 dos factos provados deve ser eliminada?
Entende ainda a apelante que o vertido no ponto 48 dos factos provados deverá ser eliminado, por corresponder à inclusão de matéria conclusiva.
No referido ponto 48 ficou consignado o seguinte: “48. Veio a ser proferida sentença na qual, por inexistência de produção de prova em especial com relação aos factos relacionados com a ocorrência do acidente e respectivas sequelas, julgou a acção improcedente”.
Vejamos:
De acordo com o que constava dos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e) e 511.º do CPC de 1961, na redação ultimamente vigente, a base instrutória deveria conter a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual incidiriam as diligências instrutórias de prova e de julgamento. Estas normas harmonizavam-se com a disposição contida no artigo 513.º do mesmo Código (com a epígrafe “Objecto da prova”), no qual se consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
No novo e vigente Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “[r]elativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”.
Ora, conforme se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “Será, pois, admissível que a enunciação dos temas da prova, actualmente prevista no n.º 1 do artigo 596.º do nCPC, assuma um carácter genérico e até, por vezes, aparentemente conclusivo, apenas devendo ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.
Todavia, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, ali se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir.
Não obstante a redacção dada ao artigo 410º do nCPC, nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os factos constante dos articulados apresentados pelas partes que a produção de prova e respectivos meios incidirão, como se infere dos artigos 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do nCPC, e não sobre os respectivos temas de prova enunciados.
São de igual modo os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º do nCPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Acresce que decorre do artigo 413.º do nCPC, que reproduziu sem alteração o artigo 515.º do aCPC, que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, mantendo-se, assim, intocável o princípio da aquisição processual.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos (…)”.
Ou seja: “A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio (…).
Haverá ações em que os temas da prova surgirão com maior concretização, embora não seja necessário (nem sequer aconselhável, na maior parte dos casos) que cada tema corresponda a um facto puro e simples, e haverá ações em que os temas da prova se apresentarão numa formulação de pendor mais genérico ou até mesmo conclusivo (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 699-700).
De todo o modo, como sublinham estes mesmos Autores (ob. cit., p. 701), “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.
Assim, não obstante o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC (onde se dispunha que: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”) não se encontrar no CPC em vigor, certo é que, da fundamentação da sentença devem constar factos, o que, desde logo, deriva da previsão do artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
Contudo, nem sempre, na prática, se torna evidente se estamos perante absoluta matéria conclusiva ou de direito ou ainda em face de matéria de facto.
Conforme se escreveu – ainda no âmbito do precedente CPC - no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2003 (Pº 8271/03, rel. MARIA JOSÉ MOURO, CJ, 2003, t. I, pp. 79-87): “A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei”.
Na mesma linha e também no âmbito do CPC de 1961, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-1992 (Pº 003400, rel. DIAS SIMÃO) que: “Nem sempre é fácil a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, podendo mesmo afirmar-se que a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa (…). Como critério geral de distinção pode dizer-se que é de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica. Acontecendo, porém, que o conceito normativo mencionado na lei seja igual ao conceito empiríco, utilizando aquela expressão de uso corrente na linguagem comum, nesse caso, poder-se-à quesitar empregando-se as palavras da lei, na medida em que, tomando-se esse conceito no seu sentido vulgar para este reservado”.
Em termos gerais, com referência aquilo que se verteu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009 (Pº 08S3441, rel. VASQUES DINIS) pode considerar-se que: “Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”.
Assim, como princípio, não deve enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.
Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.
Isso mesmo tem sido assinalado, em diversos arestos, pela jurisprudência, exemplificativamente se citando os seguintes (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES): “Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2020 (Pº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-11-2019 (Pº 3875/18.3T8MTS.P1, rel. RITA ROMEIRA): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 109/17.1T8ACB.C1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES): “Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Pº 338/17.8YRPRT, rel. FILIPE CAROÇO): “O desaparecimento da previsão do nº 4 do art.º 646º do antigo Código de Processo Civil não significa que a fundamentação de facto da sentença, tal como delineada na primeira parte do n° 3 e no n° 4 do artigo 607º do atual Código de Processo Civil tenha passado a poder incidir também sobre matéria conclusiva e de direito. Em termos gerais, o facto corresponde a um estado ou acontecimento que se configura como uma realidade passível de constatação e apreensão, seja ele um facto do mundo exterior (facto externo) ou um facto da vida psíquica (facto interno: o dolo, o conhecimento de determinadas circunstâncias, uma determinada intenção)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Pº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, rel. ROSA TCHING): “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO): “Face ao Novo Código de Processo Civil é na sentença que o juiz declara quais os factos que julga provados e os que julga não provados. A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017 (Pº 809/10.7TBLMG.C1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA): “A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado. Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2015 (Pº 819/11.7TBPRD.P1.S1, rel. JOÃO TRINDADE): “Em face do NCPC (2013), haverá que considerar, de uma forma inovadora, que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista. É possível agora ao juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no nº 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu nº 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013 (Pº 400/09.0PAOVR.C1.P1, rel. EDUARDA LOBO): “Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2004 (Pº 04B652, rel. FERREIRA GIRÃO): “O vocábulo janela pertence ao mundo dos vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável; Consequentemente, não se deve dar como não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, o vocábulo janela, quando incluído na decisão da matéria de facto sem qualquer discriminação das suas características - tal como, aliás, foi alegado”.
Assim: “Se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas”, estendendo-se as dificuldades de delimitação também no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 4372/09.3TTLSB-A.L1-4, rel. DURO CARDOSO).
Noutros arestos tentou-se mais uma aproximação:
- “É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na percepção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual. Dentro da matéria conclusiva devem distinguir-se os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2014, Pº 2138/10.7TBPRD.P1, rel. CARLOS GIL); e
- “Não são meros “juízos conclusivos” as expressões que têm um sentido perfeitamente apreensível na linguagem comum e cujo significado é totalmente apreendido na linguagem corrente, podendo até dizer que hoje em dia são os mesmos utilizados muitas vezes na vox populi” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 145/18.0T8SRP.E1, rel. ELISABETE VALENTE).
No caso, a afirmação de que, no processo precedente, veio a ser proferida sentença onde, “por inexistência de produção de prova em especial com relação aos factos relacionados com a ocorrência do acidente e respectivas sequelas”, a ação veio a ser julgada improcedente, não traduz matéria conclusiva, que deva ser objeto de eliminação, mas sim, matéria eminentemente factual, na medida em que, efetivamente, a mesma é, objetivamente, aferida e aferível em face da prova documental correspondente, em que se baseia a referida decisão e que foi junta pelo autor aos autos com o requerimento apresentado em juízo em 15-10-2019 (cfr. decisão de 09-04-2014, proferida no processo n.º 22219/12.1T2SNT), com a qual tem plena concordância e assento objetivo.
Efetivamente, conforme, a dado passo, se lê na decisão recorrida, transcrevendo a decisão proferida no processo n.º 22219/12.1T2SNT: “Compulsada a matéria de facto provada, verifica-se que a acção proposta pelo Réu enquanto mandatário do Autor, de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, mereceu sentença de improcedência, transitada em julgado. Verifica-se, também, que o Réu procurou justificar a sua ausência da sessão de audiência final, agendada nesses autos, com recurso ao incidente do justo impedimento (previsto no artigo 140° do C.P.C.), o qual foi, do mesmo modo, julgado improcedente. Finalmente, demonstrou-se que, nessa audiência final, e apesar da ausência do Réu como mandatário do Autor (também demandante nessa acção, naturalmente), nenhuma das testemunhas arroladas por este foram inquiridas: não só porque não compareceram (não tendo sido notificadas, aquelas que o deveriam ter sido), mas porque, ainda que tivessem comparecido, estaria o Tribunal impedido de as inquirir, por não ter sido liquidada a segunda prestação da taxa de justiça devida - tudo conforme consta bem explicitado e fundamentado no despacho proferido em sede de sentença pelo Tribunal Judicial de Sintra no processo identificado em 22.: cf. ponto 37. dos factos provados. Sendo certo que a improcedência da acção se deveu, fundamentalmente, à falta de prova, pelo aí Autor, dos factos constitutivos da sua causa de pedir; nomeadamente, como ali se pode ler, «o Tribunal não conta com elementos objectivos de prova que permitam garantir que teve intervenção outro veículo automóvel; que permitam estabelecer a dinâmica do acidente (...). Também, quanto a todos os demais factos não provados, o Tribunal não contou com elementos documentais que permitissem declarar tais factos como provados, sendo sabido que não ocorreu a produção de qualquer prova testemunhal (não tendo, ainda, sido requerida prova pericial ou outra).».
Inexiste, pois, motivo para a eliminação do que ficou vertido no ponto 48 dos factos provados.
*
II) Impugnação da decisão de direito:
*
E) Se procede a invocação da recorrente de que o contrato de seguro não cobre os factos dos autos?
Aludindo aos factos provados n.ºs. 33, 37, 40, 43, 44, 57, 58, 60 e 61 da decisão recorrida, vem a apelante invocar que “o alegado sinistro que é imputado ao Réu nos presentes Autos foi do conhecimento deste no ano de 2013, quando o contrato de seguro celebrado com a ora Apelante apenas teve o seu início no dia 01.01.2014”, que “[o] contrato de Seguro celebrado com a ora Apelante não é aplicável aos factos dos Autos, atenta a inaplicabilidade temporal do mesmo, por força da data de conhecimento dos referidos factos por parte Réu, sob pena de violação do disposto nos artigos 139.° e 44.°, n.° 2, do RJCS, nos termos do qual «O segurador não cobre sinistros anteriores à data da celebração do contrato quando o tomador do seguro ou o segurado deles tivesse conhecimento nessa data.»”.
Mais alegou a recorrente que:
“Neste sentido, Decidiu o Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo judicial n.° 761/19.3T8PVZ.P1, por Acórdão datado de 08.06.2022 “III - No seguro de responsabilidade civil são configuráveis cláusulas de delimitação temporal da garantia que a subscrevam atendendo ao momento: a) da prática do facto gerador da responsabilidade (action commited basis); b) da manifestação do dano (loss occurrence basis); ou da sua reclamação (claims made basis), independentemente de o facto gerador ter sido praticado antes do início da vigência do contrato e desde que o tomador do seguro ou o segurado não tivesse conhecimento do sinistro à data da celebração do contrato.
IV - A cláusula inserta no contrato, no sentido de que “ficam expressamente excluídas da cobertura da _presente apólice, as reclamações por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do _período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação ”, nada de diferente estabelece relativamente ao estatuído no art. 44.°, n.°2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (inexistência do risco), traduzindo-se numa regra delimitadora do âmbito de garantia da apólice.”[sublinhado e negrito nossos]
Daí que, nos termos acordados, e consta do ponto 61 da Fundamentação de Facto da Decisão recorrida.
Ficaram expressamente excluídas da cobertura desta apólice as reclamações: «Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período do seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação» (artigo 3°, a) da condição geral de responsabilidade civil profissional).Ora,
Nos termos previstos na alínea e) do n.° 2 do artigo 37.° da Regime Jurídico do Contrato de Seguro , do texto da apólice deve constar “o âmbito temporal do contrato ”; isto é, “deve ser determinado o momento dentro do qual o sinistro deve ocorrer para que se constitua a obrigação do segurador” .
"No seguro de responsabilidade civil são configuráveis as cláusulas de delimitação temporal da garantia que a circunscrevam ao momento:a)da prática do facto gerador de responsabilidade (action commited basis);b)da manifestação do dano (loss occurrence basis);c)da sua reclamação (claims made basis), independentemente de o facto gerador ter sido praticado antes do início da vigência do contrato (como resulta do n° 3) e desde que o tomador do seguro ou o segurado não tivesse conhecimento do sinistro à data da celebração do contrato (art. 44.°, n° 2)"   .[negrito nosso]
"A responsabilidade da seguradora é definida por referência não à ocorrência durante o período de vigência do contrato ao ato negligente ou omissão praticado pelo segurado, isto é, o facto danoso, mas à realização de uma pretensão de indemnização («claim») feita contra ele” .
“As cláusulas claims made delimitam o âmbito temporal da cobertura, atendendo ao momento da reclamação feita ao segurado - fazem coincidir o sinistro com a reclamação (daí a sua designação claims made). Deste modo o «sinistro é definido como a notificação/apresentação ao segurado de uma reclamação de danos efetivada, por terceiro prejudicado, durante a vigência da apólice, respeitadas as suas demais disposições»" .
No sentido acima exposto, decidiu o douto Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão datado de 13.07.2017, no âmbito da Revista n.° 923/12.4TBPFR.P1.S1, em que foi Relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Fernando Bento e Adjuntos os Exmos. Senhores Juízes Conselheiros Drs. A. Abrantes Geraldes e Tomé Gomes, nos termos do qual:
«(...) importa referir que a mencionada cláusula de exclusão deverá_funcionar no caso de se entender que o Réu (...), conhecendo os factos determinativos da sua responsabilidade profissional e a potencialidade de servirem de fundamento a uma reclamação, era razoável exigir-lhe que prevenisse a possibilidade dessa reclamação ocorrer sob a _ forma da _presente acção.Ora, nesse âmbito, não custa a admitir que, perante o falado condicionalismo em que ocorreu a não apresentação de contestação no aludido processo movido ao Autor, com as inerentes consequências (sua condenação), deveria o Réu (...) contar, já antes do início da vigência do contrato de seguro, que aquele último (o Autor) poderia reagir, como reagiu, ao instaurar a _presente acção.E, sendo essa a interpretação a conceder ao quadro circunstancial em que ocorreram as faladas omissões de patrocínio imputáveis ao Réu (...), cremos poder concluir-se; à semelhança do ponderado pelo tribunal “a quo ”, estar o sinistro excluído da cobertura do seguro celebrado com a Interveniente Seguradora.
Por via disso, não poderá a identificada seguradora ser responsabilizada pela indemnização arbitrada a_ favor do Autor
Nada mais se nos oferecendo dizer, improcede também a argumentação tendente à responsabilização da Seguradora cuja exclusão é mais que evidente.» [negrito e sublinhados nossos]
Concluindo a referida Decisão judicial que «(…) VI - Independentemente de o seguro de responsabilidade civil de advogado ser obrigatório, prevendo-se nas condições especiais da apólice estarem excluídas da cobertura do seguro as reclamações “por qualquer facto ou circunstância conhecida do segurado à data do início do período de seguro e que já tenha gerado ou possa razoavelmente vir a gerar reclamação ”, não pode a Seguradora interveniente ser responsabilizada pela indemnização arbitrada ao autor uma vez que, perante a não apresentação da contestação com a inerente condenação daquele na anterior acção que correu termos (na qual assumia a posição de réu), já o advogado (aqui réu), deveria contar, antes do início da vigência do contrato de seguro, que o autor poderia reagir, como reagiu, intentando a presente acção.». Acresce que,
Nos termos previstos no n.° 2 do artigo 48.° do RJCS “O tomador do seguro cumpre as obrigações resultantes do contrato, com excepção das que só possam ser cumpridas pelo segurado.”.[sublinhados nossos]
E, só o segurado, no caso o Réu, caso mais ninguém o transmita, tem conhecimento de qualquer ação ou omissão geradora de responsabilidade civil no exercício da sua profissão de advogado.
Dos respetivos n.°s 5 e 6 da referida disposição legal resulta que “Nafalta de disposição legal ou contratual em contrário, são oponíveis ao segurado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, mas não aqueles que advenham de outras relações entre o segurador e o tomador do seguro. ”. e “No seguro por conta de quem pertencer e nos casos em que o contrato tutele indiferentemente um interesse yroyrio ou alheio, os n.os 2 a 5 são aplicáveis quando se conclua tratar-se de um seguro de interesse alheio.”. [sublinhado e negrito nossos]
Dúvidas não restam, por isso, que o Réu advogado, a julgar-se provada a factualidade alegada pelo Apelado, o que não se concebe, mas se equaciona por dever de patrocínio, teve conhecimento dos erros profissionais que lhe são imputados pelo A. no ano de 2013, em data anterior da celebração e vigência do contrato de seguro celebrado com a Apenate.
Motivo pelo qual a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial sempre se teriam de se considerar excluídos das garantias acordadas através do contrato de seguro celebrado com a Apelante, atento o acima exposto.
Termos em que, também no caso dos Autos, com o respeito que é devido, que é muito, se impunha ao Tribunal “a quo” a conclusão de que a responsabilidade pelos factos imputados nos autos ao Réu se encontra excluído das garantias acordadas através do contrato de seguro celebrado com a Apelante, atenta a sua inaplicabilidade temporal.
Desconsiderando a inaplicabilidade temporal ora exposta, e em erro, considerou o Tribunal “a quo”, em erro, que “(...) verifica-se que o Réu foi informado pelo Autor, no princípio de 2017, de que pretendia accioná-lo judicialmente com vista ao ressarcimento de danos provocados por aquele (naturalmente, no âmbito da acção proposta contra o FGA que foi julgada improcedente), tendo logo em Fevereiro desse ano o mesmo comunicado este facto à correctora de seguros por referência à apólice da chamada - pontos 56. e 57. dos factos provados.
Por esta razão, não colhe, também, a alegação da interveniente de que não está verificada a sua obrigação de indemnizar, atento o disposto no artigo 44°, n.° 2 do RJCS: é que, apesar de os factos serem anteriores, o Réu só no princípio de 2017 (necessariamente, antes de 2 de Fevereiro, data da participação do sinistro) tomou conhecimento da intenção do Autor de reagir judicialmente contra si - veja-se, aliás, que da factualidade provada resultou que o próprio Autor, enquanto lesado, só nessa altura teve conhecimento dos factos ilícitos imputados ao Réu.».
Mostrando, assim, o Tribunal “a quo” desconhecimento do que uma cláusula claims made nada se confunde com o âmbito de aplicabilidade temporal do contrato no qual tal cláusula se encontre prevista.
Ao Decidir como Decidiu o tribunal “a quo” violou, por isso, o disposto nos artigos 405.°, n.° 1, e 406.° do Código Civil, 37.°, n.° 2, al. e), 44.°, n.° 2, 48, n.°s 2, 3, 5 e 6, 137.° e 139.° do RJCS, bem assim como o artigo 3.°, n.° 1, al. a) da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro dos autos (…)”.
Trata-se de argumentação semelhante à expendida pela recorrente na contestação que apresentou nos autos, onde veio invocar causa de exclusão da cobertura “Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro celebrado, que configurou como exceção perentória (cfr. artigos 20.º a 53.º de tal articulado).
Neste ponto, verifica-se que, no contrato de seguro foi estipulado, no artigo 3º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” (cfr. página 9 do documento n.º 1 junto com a contestação da recorrente), a exclusão da cobertura da apólice das reclamações “Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação”.
E, nos termos do artigo 8.º da mesma cláusula estabelece-se – sob a epígrafe “CONDIÇÕES APLICÁVEIS ÀS RECLAMAÇÕES” – que “o tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:
a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice” (n.º 1).
Porém, dispõe o artigo 101.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (abreviadamente, designado por RJCS, aprovado pelo D.L. n.º 72/2008, de 16 de abril) que:
“Artigo 101.º
Falta de participação do sinistro
1 - O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause.
2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.
3 - O disposto nos números anteriores não é aplicável quando o segurador tenha tido conhecimento do sinistro por outro meio durante o prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior, ou o obrigado prove que não poderia razoavelmente ter procedido à comunicação devida em momento anterior àquele em que o fez.
4 - O disposto nos n.os 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números.”.
Assim, qualquer temática relacionada com a invocada falta de oportuna comunicação/participação dos factos potencialmente geradores de uma reclamação por responsabilidade civil não é oponível ao autor, como invocado lesado, podendo apenas fundamentar um direito de regresso contra o segurado (o réu advogado).
Isso mesmo foi afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-10-2019 (Pº 1510/18.9T8VRL-A.G1, rel. JOAQUIM BOAVIDA) onde se concluiu que:
“Os contratos de seguro previstos no artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados revestem natureza de seguro obrigatório. Estando em causa um contrato de seguro obrigatório, não é oponível ao autor, enquanto lesado (beneficiário), alheio à relação contratual titulada pela apólice, a excepção peremptória de direito material fundada na falta de oportuna comunicação/participação dos factos potencialmente geradores de uma reclamação por responsabilidade civil”.
Em semelhante sentido, vd. o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-03-2024 (Pº 30927/21.0T8LSB.L1-2, rel. PEDRO MARTINS), sublinhando a inoponibilidade ao lesado das cláusulas de exclusão fundadas no incumprimento pelo segurado de deveres de participação do sinistro à seguradora.
Assim, atento o disposto no artigo 101.º, n.º 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é inoponível ao autor (lesado/beneficiário de contrato de seguro), alheio à relação contratual titulada pela apólice de seguro de responsabilidade civil profissional, a invocação pela seguradora de que ocorreu falta de oportuna comunicação ou participação dos factos geradores de uma reclamação por responsabilidade civil.
Contudo, certo é que, relativamente à invocada exceção, o Tribunal recorrido não deixou de emitir oportuna pronúncia, no mesmo sentido.
De facto, conforme decorre da ata da audiência prévia realizada em 25-05-2021, o Tribunal recorrido julgou improcedente a invocada exceção, aduzindo o seguinte:
“Da exclusão decorrente do conhecimento prévio do sinistro e falta de comunicação da ocorrência do mesmo:
Veio a Interveniente invocar excepção peremptória da exclusão da sua responsabilidade, requerendo a sua absolvição do pedido, alegando, em síntese que a participação do sinistro é um ónus do segurado, ora Réu, e que no caso dos autos, os factos alegados geradores de responsabilidade civil do Réu ocorreram no ano de 2013, pelo que à data da celebração e vigência do contrato de seguro celebrado com a Interveniente, o Réu tinha perfeito conhecimento dos factos e circunstâncias que lhe são imputados na petição inicial e que o Autor poderia responsabilizá-lo pelos danos alegadamente decorrentes do mesmo.
Cumpre apreciar e decidir.
Resultam demonstrados os seguintes factos com interesse para a decisão da excepção deduzida:
1. Entre a Interveniente MAPFRE – SEGUROS GERAIS, S.A. e a ORDEM DOS ADVOGADOS foi celebrado um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do Ramo de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º (…)58.
2. Através do referido contrato, a Interveniente assume a responsabilidade civil profissional dos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados em prática individual ou societária, com um limite de € 150.000,00 por sinistro, entre outros riscos.
3. O contrato de seguro referido foi celebrado pelo período de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2014 e termo às 0:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2015, tendo esta apólice sido renovada para o ano de 2015 e para o ano de 2016.
4. Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: “Por qualquer facto ou circunstância conhecidos so segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação” (artigo 3.º da condição especial de responsabilidade civil profissional).
Impõe-se saber se a Interveniente pode pretender que a sua responsabilidade seja excluída, por verificação da previsão do art.º 3.º al. a) das condições particulares da apólice, que excluí da cobertura da mesma as reclamações por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação, entendendo a Interveniente que, no caso, o Advogado Réu segurado teve anterior conhecimento do facto susceptível de poder vir a gerar reclamação (regista-se, no entanto, que nos autos esta questão é controvertida, estando o seu esclarecimento dependente de prova a produzir, o que não impede porém que o tribunal possa avaliar desde já da possível aplicação desta cláusula).
Em primeiro lugar, importa referir que a alínea a) do artigo 3.º das condições particulares do contrato celebrado, encontra acolhimento no regime jurídico, não estando por isso em causa a sua invalidade.
Contudo, uma coisa é a validade da cláusula em questão e uma outra diferente é a possibilidade da mesma poder vir a ser oposta aos terceiros lesados, enquanto beneficiários de um contrato de seguro obrigatório.
Este art.º 3.º al. a) não deixa de estar relacionado com o dever de participação do sinistro. Dir-se-á que é uma cláusula que deixa na dependência do comportamento do segurado a aplicação da apólice de seguro, já que a partir do momento em que o mesmo tem conhecimento do facto susceptível de gerar reclamação tem naturalmente o dever de o participar, conforme decorre do art.º 100.º da Lei do Contrato de Seguro.
Se a primeira parte da previsão desta cláusula não nos oferece dúvida, ao excluir da cobertura da apólice qualquer facto ou circunstância que já tenha gerado reclamação, uma vez que a ter havido reclamação anterior a mesma se verificou no âmbito de uma outra apólice accionando-a, estando por isso excluído da apólice em vigor, já a segunda parte – que possa razoavelmente vir a gerar reclamação - vem contemplar precisamente as situações em que o segurado não cumpriu o dever de efectuar a reclamação do sinistro, após ter conhecimento do mesmo.
Regula o art.º 101.º, com a epígrafe “FALTA DE PARTICIPAÇÃO DE SINISTRO”, as consequências resultantes do incumprimento do dever de participação do sinistro previsto no art.º 100.º, nos seguintes termos:
“1 - O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause.
2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.
3 - O disposto nos números anteriores não é aplicável quando o segurador tenha tido conhecimento do sinistro por outro meio durante o prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior, ou o obrigado prove que não poderia razoavelmente ter procedido à comunicação devida em momento anterior àquele em que o fez.
4 - O disposto nos n.os 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números.”
Do n.º 4 deste artigo resulta que o legislador quis conferir uma especial protecção aos lesados, no âmbito dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, considerando o interesse público que lhes é subjacente, ao estabelecer que não lhes são oponíveis as limitações que o próprio contrato de seguro pode prever no caso de não ser cumprido o dever de participação.
Em face do regime exposto, já se vê que não são oponíveis ao lesado beneficiário, enquanto terceiro, as excepções que são previstas num contrato em que o mesmo não é parte e que se referem ao incumprimento ou omissão por parte do segurado ou do tomador do seguro dos deveres que para eles decorrem de tal contrato ou da lei, sem prejuízo do direito de regresso da seguradora, contemplado no art.º 101.º n.º 4 da Lei do Contrato de Seguro, não lhe sendo por isso oponível a excepção de pré-conhecimento prevista no indicado art.º 3.º al. a). Neste sentido, pronunciou-se também, a respeito de situação idêntica, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2016.
Em conclusão, a cláusula de pré-conhecimento prevista no art.º 3.º al. a) das condições particulares da apólice não é oponível ao Autor, enquanto terceiro lesado, beneficiário do contrato de seguro obrigatório, podendo ser accionada a apólice à primeira reclamação, embora o facto gerador do dano tenha tido lugar em momento anterior, nos termos do art.º 7.º das condições particulares e ainda que o segurado tenha tido conhecimento anterior de tal facto.
Pelo exposto, improcede a excepção suscitada pela Interveniente.”.
Assim – ainda que se possa entender que relativamente a tal questão não se produziu o efeito de caso julgado formal (sobre o ponto vd., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-02-2024, Pº 377/22.7T8MGR.C1, rel. SÍLVIA PIRES) e que, nessa medida, poderia constituir matéria recursória - , certo é que, todavia, inexiste motivo para a alteração da decisão já proferida (sendo certo que, também na decisão recorrida, o Tribunal recorrido reafirmou o entendimento de que inexistia causa de exclusão da responsabilidade da chamada: “(…) Compulsada a factualidade apurada nos autos, também à luz da posição que, oportunamente, este Tribunal já assumiu quanto à inoponibilidade, nomeadamente a terceiros lesados, do princípio claim made invocado pela Chamada constante do artigo 3°, a) das condições gerais (cf. ponto 61. dos factos provados e o despacho proferido em sede de audiência prévia), verifica-se que o Réu foi informado pelo Autor, no princípio de 2017, de que pretendia accioná-lo judicialmente com vista ao ressarcimento de danos provocados por aquele (naturalmente, no âmbito da acção proposta contra o FGA que foi julgada improcedente), tendo logo em Fevereiro desse ano o mesmo comunicado este facto à correctora de seguros por referência à apólice da chamada - pontos 56. e 57. dos factos provados.
Por esta razão, não colhe, também, a alegação da interveniente de que não está verificada a sua obrigação de indemnizar, atento o disposto no artigo 44°, n.° 2 do RJCS: é que, apesar de os factos serem anteriores, o Réu só no princípio de 2017 (necessariamente, antes de 2 de Fevereiro, data da participação do sinistro) tomou conhecimento da intenção do Autor de reagir judicialmente contra si - veja-se, aliás, que da factualidade provada resultou que o próprio Autor, enquanto lesado, só nessa altura teve conhecimento dos factos ilícitos imputados ao Réu.”).
A questão correspondente, suscitada pela recorrente, deverá, pois, improceder.
*
F) Se a ação deverá ser julgada improcedente, por inexistência de dano de perda de chance?
A recorrente conclui no presente recurso que, da aplicação do direito aos factos “sempre resultaria a improcedência da presente ação judicial, por inexistência de dano de perda de chance”, sendo que, se encontra assente – ponto 55 dos factos provados – que “Todas as testemunhas arroladas pelo Autor no processo referente ao acidente de viação só chegaram ao local do mesmo depois da ocorrência.”, concluindo que, “[a]inda que no processo subjacente aos presentes Autos o A. tivesse produzido prova, jamais o A. lograria comprovar a intervenção de qualquer outro veículo no acidente que sofreu e, em consequência, a ação judicial subjacente aos presentes Autos sempre seria julgada improcedente por inexistência de qualquer prova quanto à ocorrência do acidente de viação que constituía a causa de pedir, o que determina, também, a improcedência da presente ação judicial, por inexistência da necessária probabilidade real e séria de a ação judicial subjacente aos presentes Autos poder ser julgada procedente” (cfr. conclusões XV a XVII).
E remata a recorrente: “XIX. Do facto constante do ponto 55 da Fundamentação de Facto dos Autos e da prova produzida não resultaram provados factos que permitam ao Tribunal concluir pelo “grau de probabilidade de obtenção da vantagem” ou da “probabilidade real, séria e esperável” de sucesso da pretensão do Apelante na ação judicial de acidente de viação”.
Na sentença recorrida, depois de se tecerem considerações, em geral, acerca do instituto da responsabilidade civil do advogado, procedeu-se à subsunção jurídica da situação factual apurada nos autos, nos seguintes termos:
“(…) Atentemos ao caso sub judice.
Compulsada a matéria de facto provada, verifica-se que a acção proposta pelo Réu enquanto mandatário do Autor, de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, mereceu sentença de improcedência, transitada em julgado. Verifica-se, também, que o Réu procurou justificar a sua ausência da sessão de audiência final, agendada nesses autos, com recurso ao incidente do justo impedimento (previsto no artigo 140° do C.P.C.), o qual foi, do mesmo modo, julgado improcedente. Finalmente, demonstrou-se que, nessa audiência final, e apesar da ausência do Réu como mandatário do Autor (também demandante nessa acção, naturalmente), nenhuma das testemunhas arroladas por este foram inquiridas: não só porque não compareceram (não tendo sido notificadas, aquelas que o deveriam ter sido), mas porque, ainda que tivessem comparecido, estaria o Tribunal impedido de as inquirir, por não ter sido liquidada a segunda prestação da taxa de justiça devida - tudo conforme consta bem explicitado e fundamentado no despacho proferido em sede de sentença pelo Tribunal Judicial de Sintra no processo identificado em 22.: cf. ponto 37. dos factos provados. Sendo certo que a improcedência da acção se deveu, fundamentalmente, à falta de prova, pelo aí Autor, dos factos constitutivos da sua causa de pedir; nomeadamente, como ali se pode ler, «o Tribunal não conta com elementos objectivos de prova que permitam garantir que teve intervenção outro veículo automóvel; que permitam estabelecer a dinâmica do acidente (...). Também, quanto a todos os demais factos não provados, o Tribunal não contou com elementos documentais que permitissem declarar tais factos como provados, sendo sabido que não ocorreu a produção de qualquer prova testemunhal (não tendo, ainda, sido requerida prova pericial ou outra).»
Está, portanto, provado o incumprimento ilícito, pelo Réu, do mandato que lhe foi conferido pelo Autor, não havendo muito mais a acrescentar sobre esta parte do objecto da acção: esta foi improcedente por motivo imputável à actuação do Réu, que podia e devia ter agido de outra forma - demonstrados estão, portanto, os pressupostos relativos ao facto ilícito e culposo.
Cumpre então apreciar da existência do dano e do eventual nexo de causalidade entre o mesmo e aquela actuação já caracterizada como ilícita e culposa.
Sabe-se que o dano se consubstancia, segundo a causa de pedir na presente acção, no prejuízo que o Autor sofreu como mandante - eminentemente, sob a forma de lucros cessantes - pela circunstância de não ter sido ressarcido pelas lesões e perdas por si sofridas na sequência do acidente de viação de que foi vítima, e que justificou a propositura da acção na qual o Réu foi seu mandatário forense.
Como se lê no recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência em matéria de dano de perda de chance processual (n.° 2/2022, de 05.07.2021 ), o Supremo Tribunal de Justiça acentua a noção de que, numa acção de responsabilidade civil por perda de chance processual, como a presente, é necessária a prova de que existiria uma probabilidade séria e consistente de ganho da acção patrocinada pelo Advogado Réu.
Este mesmo Aresto, aliás, salienta que não está em causa a certeza de que o resultado final dos processos seria favorável ao mandante, mas sim e “apenas” que este, em face da falta do mandatário, perdeu chance de ganhar a acção; admite-se, pois, que não é possível afirmar, com absoluto rigor, qual seria o resultado dos processos caso o Advogado tivesse procedido diligentemente; mas deve ser seguro que o mandante, em razão dessa falta, perdeu “hipóteses” de ganhar o processo.
Num quadro, doutrinal e jurisprudencial, em que a perda de chance surge já como um dano autonomizado, este não estará, necessariamente, no resultado final desfavorável do processo (no não ganhar ou no perder o processo); mas, sim, como se afirma no Acórdão, «na própria perda da possibilidade/oportunidade de obter um resultado favorável (de ganhar ou de não perder o processo), decorrente do evento lesivo do mandatário e, por conseguinte, o que está sob indemnização é um dano intermédio (em relação ao dano final): o dano autónomo e emergente da perda de oportunidade de sucesso (e não o dano final do resultado desfavorável do processo).» Sendo que só a perda de chance consistente e séria configura um dano indemnizável, cabendo a respectiva prova ao lesado. E «se, como é o caso, em razão do comportamento indevido dum mandatário, o desenrolar e o desfecho normal dum processo não aconteceu e nem alguma vez acontecerá, não pode exigir-se que o dano decorrente de tal comportamento indevido seja objecto de uma certeza absoluta, ou seja, a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (e das certezas relativas). A aferição dum tal dano exigirá a comparação entre uma situação real, actual, e uma situação hipotética, igualmente actual, sendo a prognose sobre a evolução hipotética do processo comprometido que irá permitir determinar a certeza relativa do dano. E do “hipotético”, do que não aconteceu e nunca acontecerá, do que depende de diversas variáveis e imponderáveis, poderá sempre dizer- se que não há certezas, que se está a ficcionar e que um qualquer juízo de prognose será sempre aleatório, porém, não é este o plano em que o direito se move para validar um juízo de prognose, antes se bastando com a satisfação das exigências colocadas pela teoria da causalidade adequada.» Em suma, a probabilidade de perda de chance tem sempre de ficar apurada, uma vez que, sem tal apuramento, não se poderá falar em dano certo (e, naturalmente, sem este não pode haver indemnização). Tal apuramento terá que ser feito, pois, «na apreciação incidental - o já chamado ‘‘julgamento dentro do julgamento” - a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano da perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o acto lesivo (a falta do mandatário [e o não pagamento da segunda prestação da taxa de justiça, a este também imputável]), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a acção comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (...) e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo. Apreciação/decisão hipotética em que (...) se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (...) teria tido (...) sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (...) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (...) do dano.»
No caso dos autos, a prova produzida é suficientemente consistente no sentido em que aquela acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação tinha consistentes hipóteses de vir a obter vencimento.
Com efeito, foi possível apurar, como já antes se referiu, que o Autor foi, efectivamente, vítima de acidente de viação, através de atropelamento/abalroamento por uma viatura automóvel que não foi possível identificar, razão pela qual a acção de responsabilidade civil foi proposta contra o Instituto de Seguros de Portugal/Fundo de Garantia Automóvel, nos termos (genericamente) que constam da petição inicial elaborada pelo ora Réu. Na verdade, apesar de não ter sido identificada nenhuma testemunha ocular desse acidente, o certo é que a prova indirecta disponível, supra mencionada (tendo sido decisivo o depoimento da testemunha FP) - a mesma que, em condições normais, teria sido produzida em juízo naquela acção - era de molde a formar uma convicção segura de que a queda do Autor na sua bicicleta não aconteceu por qualquer outro motivo”.
Também de acordo com a prova produzida, foi possível apurar (e também teria sido na outra acção) que o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelas lesões ocorridas no acidente, em termos tais que, no âmbito do regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (D.L. n.° 291/2007, de 21.08.), seria muito provável a condenação do FGA, em montante indemnizatório, calculado à luz do artigo 562° do Código Civil. Recorde-se que o artigo 562° do C.C. estabelece, quanto à obrigação de indemnizar, o princípio da reconstituição natural: «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», sendo que, nos termos do artigo seguinte (563°), essa obrigação de indemnização só existe «em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não tivesse sofrido a lesão». A aplicação daquele princípio básico só é postergada quando, nos termos do n.° 1 do artigo 566° do C.C., a restauração natural não for possível, não repare integralmente os danos ou quando se revele excessivamente onerosa para o devedor. A indemnização será, assim, fixada em dinheiro (princípio da indemnização específica), de acordo com a chamada teoria da diferença, consagrada no n.° 2 do artigo 566°, do C.C.: a sua medida será calculada tendo como referência a situação real do lesado e a situação hipotética deste, se a lesão não tivesse ocorrido. O que se traduzirá na diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se inexistissem danos. O n.° 3 do mesmo artigo 566° rege para os casos em que os danos não podem ser valorados no seu quantum exacto, surgindo então a sua apreciação equitativa.
Compulsados os pedidos formulados na anterior acção e ponderados os respectivos valores à luz dos critérios legais supra enunciados, temos como certa a probabilidade de o Autor ter vindo a receber indemnização, quer a título de danos patrimoniais, quer a título de danos não patrimoniais, apesar da relativa limitação de prova que foi efectuada nos presentes autos. Enfim, esta demonstração conforma a tal possibilidade séria/significativa, a que alude o Acórdão, que permite imputar tal certeza relativa ao facto lesivo (que fez com que o processo judicial não se desenrolasse ou que decorresse anormalmente).
No que respeita ao primeiro grupo de danos, encontramos, com segurança, danos físicos e psíquicos, merecedores de ressarcimento - pontos 5. a 13. dos factos provados - e, também, prejuízos relacionados com as despesas relacionadas com a sua recuperação - pontos 18. e 19. do mesmo elenco. Contudo, dos valores peticionados na anterior acção, verifica-se que muitos deles foram peticionados em valores redondos, sem concretização fundamentada. Pelo que, atendendo aos elementos disponíveis, é legítimo apurar os valores referentes às despesas médicas - € 8.840,23 - e à despesa com o auxílio de terceira pessoa durante cerca de 8 meses (considerando o cômputo diário médio, de dias úteis durante 4 a 6 horas) - € 5600,00.
Já quanto às dores, internamento hospitalar, dificuldades de recuperação e sequelas - é este um conjunto de danos enquadráveis num grande “bolo” que tanto poderemos qualificar como quantum doloris como, mais amplamente e de acordo com a tendência jurisprudencial mais moderna, mais amplamente caracterizável como dano biológico, considerado este, nas palavras do Acórdão do STJ de 05.12.201712, «na sua reparabilidade em qualquer caso e independentemente das consequências morais e patrimoniais que, da redução da capacidade laborativa, dele possam derivar.» Assim, por dano biológico, deve entender-se, como resume este Aresto, «qualquer lesão da integridade psicofísica que possa prejudicar quaisquer actividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade»; ou, como também bem sintetiza o Acórdão do STJ de 13.05.2014, «(...) o dano biológico é constituído pela lesão à integridade físico-psíquica, à saúde da pessoa em si e por si considerada, independentemente das consequências de ordem patrimonial. Abrange as tarefas quotidianas que a lesão impede ou dificulta e as repercussões negativas em qualquer domínio em que se desenvolva a personalidade humana. A lesão à saúde constitui prova, por si só, da existência do dano .O dano biológico constitui, nesta medida, "um dano base ou dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em caso de lesão da integridade físico-psíquica, e sempre lesivo do bem saúde"; se, para além desse dano, se verifica um concreto dano à capacidade laboral da vítima, este já é um "dano sucessivo ou ulterior e eventual; não um dano evento, mas um dano consequência", representando "um ulterior coeficiente ou plus de dano a acrescentar ao dano corporal". Assim, mais do que a afectação da capacidade de ganho, susceptível de se repercutir numa perda de rendimento, que no caso não se provou, importa considerar o dano corporal em si, o sofrimento psico-somático que afecta a disponibilidade do autor para o desempenho de quaisquer actividades do seu dia-a-dia. Trata-se, pois, de indemnizar o dano corporal sofrido a se, quantificado por referência a um índice 100 (integridade físico-psíquica total), e não qualquer perda efectiva de rendimento ou da concreta privação da capacidade de angariação de réditos». Considerando que o dano biológico, nos termos assim caracterizados, inclui, por exemplo, a situação de reforma de invalidez em que o Autor actualmente se encontra, imputável às limitações psíquicas derivadas do acidente - é possível adiantar que o Autor poderia receber, pelo menos, o valor de € 20.000,00, como expressão de um cálculo equitativo de uma indemnização provável, de entre vários cenários possíveis (que só poderiam confirmar- se, ou não, na própria acção de responsabilidade civil).
Finalmente, quanto a outro tipo de despesas (seja danos emergentes, seja como lucros cessantes), a única prova efectuada, com segurança, foi o valor referente à bicicleta em que o Autor seguia, no valor de pelo menos € 2000 (ponto 20. dos factos provados e elenco dos factos não provados).
É certo que, no âmbito da anterior acção, o Autor poderia ter logrado demonstrar mais abrangentemente a dimensão dos danos (emergentes e lucros cessantes) que, por consequência, poderiam integrar valores indemnizatórios mais alargados. Mas, como já vimos antes, estamos a ponderar no campo das probabilidades (onde também é possível prefigurar a hipótese de improcedência da acção) no quadro da perda de chance- em que cumpre apurar e atribuir, não o que o Autor haveria de receber por conta da anterior acção, mas o que este deixou de poder ganhar por aquela não ter seguido o seu rumo expectável; sendo que, para atingir este desiderato, cumpre levar em linha de conta, quer as limitações da presente acção, quer as da anterior (por exemplo, a circunstância de não ter sido promovida a realização de exame médico- legal de avaliação do dano corporal).
Quanto ao segundo grupo, dos danos não patrimoniais stricto sensu, isto é, tal como considerados no âmbito do artigo 496° do Código Civil, rege o princípio de que só serão indemnizáveis aqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. É este um núcleo de danos que, pela sua própria natureza, traduzem perdas insusceptíveis de uma avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens não integráveis no património da pessoa lesada. Do que se trata, na verdade, não é de quantificar este género de danos, nem tão pouco, afirmar “quanto” valem. Trata-se, sim, de atribuir um montante que possa servir de reparação ou satisfação por perdas que são irrecuperáveis . Assim, a nossa lei condicionou a responsabilidade por danos não patrimoniais apenas em relação àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ganhando particular relevo, mais uma vez, a equidade, aliada às circunstâncias referidas no artigo 494° do mesmo Código e o restante circunstancialismo em que ocorreram os danos (n.° 3 do citado artigo 496°); «a indemnização, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização .».
Na situação sub judice, há a ponderar, como elementos constitutivos do direito à indemnização por danos não patrimoniais: a circunstância de o acidente ter sido totalmente fortuito do ponto de vista do Autor, sem que este, como sinistrada, algo tenha feito para contribuir para o mesmo; o longo período de recuperação e a situação de diminuição das suas capacidades em que o Autor ficou após o acidente, com as repercussões a nível pessoal e profissional.
Tudo visto e ponderado, e à luz da jurisprudência existente sobre a matéria, julga-se adequado fixar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, uma compensação de € 15.000,00.
Temos, assim, que o valor do ressarcimento que o Autor deixou de obter com a acção de indemnização em que o Réu falhou no cumprimento das suas obrigações, contratuais e estatutárias, pode computar-se, equitativamente, no total de € 49.440,23 (€ 34.440,23 + € 15.000,00) (…)”.
Vejamos:
“Numa sociedade baseada no respeito pela justiça, o advogado desempenha um papel proeminente. A sua missão não se limita à precisa execução de um mandato, no âmbito da lei. Num Estado de direito, o advogado é indispensável à justiça e aos justificados de que tem a responsabilidade de defender os direitos e liberdades: ele é tanto conselheiro, como defensor do seu cliente» (é o que se lê logo no ponto 1 do preâmbulo do Código de Deontologia dos Advogados da União Europeia, aprovado pelo Regulamento n.º 25/2001 da Ordem dos Advogados, publicado no D.R., II Série, n.º 271, de 22 de Novembro de 2001, p. 19420 e ss.)”.
Com semelhante alcance, pode dizer-se que, “nas sociedades modernas, o Advogado exerce uma profissão de importância crucial, verdadeiramente essencial e imprescindível. (…) Para demonstrar a absoluta indispensabilidade da profissão de Advogado, basta que nos lembremos que, em média, pelo menos uma vez na vida, todos temos a necessidade de procurar o auxílio e os préstimos de um Advogado” (assim, Isabel Sarsfield Rodrigues; “A responsabilidade civil profissional do advogado”, in Prémio Dr. João Lopes Cardoso – Trabalhos Premiados, vol. II, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Almedina, Coimbra, 2005, p. 143).
A tal não é alheia a crescente conflitualidade ou o surgimento de novas áreas do direito, que exigem respostas pragmáticas e eficazes, que implicam que o Advogado tenha um vasto manancial de conhecimentos jurídicos, pelo que, a sua função nunca poderá ser exercida, em absoluto, por qualquer outra pessoa.
O advogado, cuja origem etimológica deriva da expressão latina «ad vocatus» (que significa «o que foi chamado», designando a mesma, no Direito romano, a terceira pessoa que o litigante chamava perante o juízo para falar a seu favor ou defender os seus interesses) é um elemento indispensável na administração da justiça e, nessa medida, “deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem” (cfr. artigo 88.º, n.º 1, do E.O.A. em vigor).
Num normal contrato de mandato as obrigações do mandatário resultam do disposto no artigo 1161.º do Código Civil, sendo fundamentalmente os deveres de praticar os atos jurídicos acordados; de informar o mandante sempre que para tal seja solicitado; de prestar contas e de restituir o que lhe foi entregue em execução ou no exercício e não despendeu no cumprimento do contrato.
Mas o mandatário forense tem um elenco de deveres mais alargado sendo alguns resultantes do exercício de uma atividade de interesse público (deveres para com a Ordem dos Advogados, para com a sociedade, para com os Colegas e Magistrados e para com o Estado, na sua vertente de administração da Justiça).
Assim, estatutariamente, definem-se como obrigações profissionais do advogado, a honestidade, a probidade, a rectidão, a lealdade, a cortesia e a sinceridade (cfr. artigo 88.º, n.º 2, do E.O.A.).
Nos termos consignados no vigente E.O.A., a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca, tendo o advogado o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas (cfr. artigo 97.º, n.ºs. 1 e 2 do E.O.A.).
O advogado tem, designadamente, os seguintes deveres perante o cliente:
- Não aceitar o patrocínio ou a prestação de serviços profissionais se não tiver sido livremente mandatado pelo cliente (ou por outro advogado em representação do cliente, ou por nomeação por entidade competente – cfr. artigo 98.º, n.º 1, do EOA);
- Não deve aceitar o patrocínio de uma questão se souber, ou dever saber, que não tem competência ou disponibilidade para dela se ocupar prontamente (a menos que atue conjuntamente com outro advogado com tais competência e disponibilidade) (cfr. artigo 98.º, n.º 2, do EOA);
- Recusar o patrocínio em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária e recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado (cfr. artigo 99.º, n.ºs. 1 e 2, do EOA);
- Não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes (cfr. artigo 99.º, n.º 3, do EOA);
- Cessar de agir por conta de todos os clientes, se surgir conflito de interesses entre dois ou mais clientes ou se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência (cfr. artigo 99.º, n.º 4, do EOA);
- Abster-se de aceitar novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de sigilo relativamente aos interesses de anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos derivarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente (cfr. artigo 99.º, n.º 5, do EOA);
- Dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca, assim como prestar, sempre que lhe for solicitado, informação sobre o andamento das questões que lhe forem colocadas, sobre os critérios que utiliza na fixação dos seus honorários e sobre a possibilidade e forma de obter apoio judiciário (cfr. artigo 100.º, n.º 1, al. a) do EOA);
- Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja inibido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade (cfr. artigo 100.º, n.º 1, al. b) do EOA);
- Aconselhar toda a composição que ache justa e equitativa (cfr. artigo 100.º, n.º 1, al. c) do EOA);
- Não celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objeto das questões confiadas (cfr. artigo 100.º, n.º 1, al. d) do EOA);
- Não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas (cfr. artigo 100.º, n.º 1, al. e) do EOA);
- Dar aplicação devida aos valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados e prestar contas ao cliente de todos os valores, objetos e documentos do cliente em seu poder, bem como, restituir ao cliente os valores, objectos e documentos do cliente, quando cesse a representação (cfr. artigo 101.º do EOA).
O advogado, a exemplo dos demais profissionais liberais, assume, designadamente, por via do mandato firmado com o respetivo cliente, que recorre aos seus serviços, os deveres supra enunciados.
Assim, o causídico pode também ser responsabilizado civilmente (podendo concorrer tal responsabilidade, com outros tipos de responsabilidade) se incumpre ou cumpre defeituosamente a sua prestação.
“Os profissionais liberais, cuja função “permite à liberdade exprimir-se, à pessoa desenvolver-se, à responsabilidade exercer-se” incorrem em responsabilidade civil profissional quando faltam aos deveres específicos que lhes são impostos” (assim, Isabel Sarsfield Rodrigues; “A responsabilidade civil profissional do advogado”, in Prémio Dr. João Lopes Cardoso – Trabalhos Premiados, vol. II, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Almedina, Coimbra, 2005, p. 148).
Com efeito, como sublinhou o Conselheiro Afonso de Melo, “não vigora entre nós a regra britânica da não responsabilidade do advogado perante o seu cliente, salvo no caso de comportamento doloso – “advocates’ immunity”. Mas se qualquer sucumbente pudesse pedir ao seu advogado indemnização pelo facto de a lide lhe ter sido desfavorável, só poucos mártires exerceriam a profissão (…). O que se pode afirmar é que, em princípio, o “risco processual” recai sobre o cliente” (“Responsabilidade Civil de Mandatário Judicial”, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 26, Mai.-Jun. 2003, p. 26).
Assim, o advogado, no exercício da sua actividade incorrerá em responsabilidade quando viola deveres jurídicos a que está obrigado por força da lei ou de negócio jurídico.
Contudo, como assinala Isabel Sarsfield Rodrigues (“A responsabilidade civil profissional do advogado”, in Prémio Dr. João Lopes Cardoso – Trabalhos Premiados, vol. II, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Almedina, Coimbra, 2005, p. 150), “em matéria de responsabilidade civil profissional do Advogado o único ponto de consenso parece ser o de que os Advogados podem ter de responder civilmente, nos termos gerais, por acção ou omissão. Respondem porque fazem o que não devem ou porque não fazem o que devem. Encontrando-se este ponto assente, pouco mais é consensual. A principal discussão prende-se com saber se os Advogados respondem extracontratualmente ou contratualmente”.
Assim, tendo presente o contorno do contrato firmado entre o mandante e o seu mandatário, o incumprimento do contrato – ainda que pelo desrespeito pelos deveres acessórios que a deontologia impõe – gera, em princípio, responsabilidade contratual.
Moitinho de Almeida (Responsabilidade Profissional do Advogado, 2.ª Ed., p. 13) refere que “se o advogado não cumpre ou cumpre defeituosamente as obrigações que lhe advém do exercício de certo mandato (ou outro) que firmou com o constituinte, tacitamente ou mediante procuração, incorre em responsabilidade civil contratual; se o advogado praticou acto ilícito lesivo dos interesses do seu constituinte, já a sua responsabilidade civil para com o mesmo constituinte é extracontratual ou aquiliana. Em grande parte dos casos, porém, a responsabilidade civil do advogado para com o cliente é, simultaneamente, contratual e extra contratual.”.
Já António Arnaut (Iniciação à Advocacia, p. 113 ss.) considera que a responsabilidade civil do advogado não se pode radicar no contrato de mandato não sendo, em consequência, contratual.
No campo da responsabilidade médica – que tem importantes pontos de similitude com a do advogado – Álvaro Rodrigues escreve no estudo “Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos” (in “Direito e Justiça”, vol. XIV, 2000, n.º 3 – Separata, p. 197) que: “No caso concreto da responsabilidade médica, não temos dúvidas em afirmar, que se estabelece uma relação contratual, entre o médico no seu consultório e o doente que o procura, a não prestação dos cuidados médicos ou um tratamento deficiente do lesado integra o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso por parte do médico. E, mesmo nos casos em que ocorre um dano, aparentemente, estranho à relação contratual (por parecer não decorrente da própria prestação debitória) como é o caso de uma lesão vascular ou secção de um nervo importante produzida por imperícia ou desatenção do cirurgião ou o clássico exemplo da queimadura provocada inadvertidamente pelo radiologista, só ocorrerá responsabilidade contratual, por violação dos deveres laterais, independentemente do dever primário da prestação (violação essa que desencadeia responsabilidade contratual)”.
Mas, se é certo que, quer o médico, quer o advogado são procurados, e com eles se celebram contratos, (à excepção, nos médicos que exercem em, e na dependência laboral, de clínicas ou outro tipo de estabelecimento de saúde ou de advogados que, nos mesmos termos, exercem a sua actividade agindo não como mandatários por si mas sendo essa qualidade a da entidade que os emprega. Estes casos, melhor se enquadram na responsabilidade contratual da entidade que fornece o serviço ou actividade tendo os respectivos profissionais o tratamento de meros comissários nos termos do artigo 500.º do Código Civil, sem prejuízo de se tratar de responsabilidade extra contratual se a entidade que fornece o serviço for pública, o que não acontece na advocacia), o certo é que, é normal na advocacia o mandato forense ser conferido pessoalmente a um (ou vários) profissionais ainda que internamente organizados em sociedades de advogados. Por isso, e como regra, a responsabilidade do advogado para com o cliente é contratual desde que o ilícito se traduza no incumprimento do, especifica ou genericamente clausulado (aqui incluindo os deveres colaterais deontológicos), no mandato forense, só sendo extra contratual se o ilícito consistir em conduta violadora de outros deveres – ou normas legais – não precisamente contratuais. Já a responsabilidade do advogado para com terceiros é sempre extra contratual.
Por vezes, o mesmo facto ilícito pode integrar os dois tipos de responsabilidade (cf., em abono deste entendimento, os Profs. Rui de Alarcão, in “Direito das Obrigações”, 1983, 210 e Miguel Teixeira de Sousa, apud “Concurso de Títulos de Aquisição de Prestação”, 1988, 136; mas em sentido contrário, e no domínio da lei anterior, o Dr. Jaime Gouveia, “Responsabilidade Contratual”, 1933, 227 e ss e agora o Prof. Almeida Costa).
Porém, só uma delas pode ser invocada como causa de pedir ou se considerar-se estar-se perante uma situação de concurso aparente de normas a situação contratual consome a extra contratual (ob. cit – 455 e ss.).
São conhecidas as semelhanças e as diferenças entre os dois tipos de responsabilidade, pelo que, não se vislumbra qualquer necessidade de aqui estar a repetir polémica que densamente povoa os compêndios jurídicos atinentes a tais discussões.
De todo o modo, sempre se assinale que, para além da presunção de culpa consagrada para a responsabilidade contratual (n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil) em contraposição à necessidade da sua alegação e prova na responsabilidade aquiliana (n.º 1 do artigo 487.º), põe-se a questão da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais nos casos de responsabilidade contratual. Assim, quem segue na linha do Prof. A. Varela defende que esses danos não são indemnizáveis nesta sede. (cfr. “Das Obrigações em Geral”, 7.ª ed., II, 106, RLJ – 123-253 e com o Prof. Pires de Lima, “Código Civil Anotado” – I, 501 – anot. 8 ao artigo 496).
Cumpre, tão só, assinalar que a actuação do advogado pode ser geradora de responsabilidade contratual (e assim o será em regra, por incumprimento ou defeituoso cumprimento do contrato assumido para com o respectivo cliente), mas também, se sublinha que, em vários casos, o fundamento de responsabilidade poderá assentar na responsabilidade extracontratual, podendo suceder até que, o mesmo acto ou omissão do advogado possa gerar responsabilidade contratual ou extracontratual, uma vez que, este profissional liberal está sujeito ao cumprimento quer de deveres contratuais, quer de deveres deontológicos.
Como se disse, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 2006 (proc.º n.º 06A2723), conclui-se poderem coexistir ambos os tipos de responsabilidade (contratual e aquiliana), “mesmo para com o cliente, dependendo do facto ilícito se traduzir no incumprimento de cláusula (ou dever) do mandato forense ou se tratar de violação de outro dever, ou preceito legal, não integrado precisamente no contrato de mandato. (cf., Dr. L.P. Moitinho de Almeida, 2.ª ed., 13). Mas só uma pode ser invocada”.
A obrigação assumida pelo advogado perante o cliente é, em princípio, apenas uma obrigação de meios, em que o advogado apenas promete desenvolver uma prestação profissional diligente com vista a atingir um determinado resultado.
A prestação de serviços do advogado é, em regra, uma obrigação de meios, considerando que o advogado, por mais bem intencionado e mais bem preparado que esteja para desempenhar a sua função não tem como assegurar, com a necessária precisão, o resultado da actividade esperado pelo seu cliente (v.g. no caso de uma causa judicial em que o cliente é autor, claro está, o ganho da causa).
Vem aqui a propósito a clássica distinção entre obrigações de resultado e obrigações de meios.
É complexa a obrigação que o advogado promete ao cliente. Quando promete que vai propor a acção, contestar ou recorrer, promete um resultado.
O que não pode ou não deve é prometer o êxito do respectivo litígio.
Toda a acção judicial tem um resultado que pode ser mais ou menos provável mas que é sempre incerto e, assim, aleatório, dependendo de muitos factores imponderáveis como a prova, as oscilações da jurisprudência, as divergências da doutrina influentes, etc.
Não pode portanto o advogado prometer ao cliente que satisfará o interesse deste último que é o de obter uma decisão favorável.
Diz-se aqui que a obrigação do advogado é de meios, prometendo apenas uma prestação profissional diligente com vista a conseguir aquele resultado.
“Por isso põe à disposição do seu representado a sua competência profissional e o seu cabedal de experiência, escolhendo ele os meios técnicos que considere adequados, não estando neste ponto obrigado a seguir as instruções do mandante nos termos estabelecidos no art. 1161.º a) do Código Civil” (assim, Afonso de Melo; «Responsabilidade Civil de Mandatário Judicial», in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 26, Mai.-Jun. 2003, p. 26; cfr. também Édouard de Lamaze e Christian Pujalte; L’Avocat, Le Juge et la Déontologie; PUF, 2009, Paris, p. 146).
A doutrina distingue entre obrigações de meios, obrigações de resultado e obrigações de garantia (cf. Gomes da Silva; O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, I, 363 e ss; Vaz Serra – “Impossibilidade superveniente por causa não imputável ao devedor e desaparecimento do interesse do credor”, in BMJ 46º, p. 20 e Manuel de Andrade, apud Rui de Alarcão, Teoria Geral das Obrigações, 2.ª ed., pp. 51 e 411 ss).
“Entende-se por obrigação de meios o dever de desempenho de uma actividade contratada, com diligência, zelo, ou mesmo com o emprego da melhor técnica e perícia para se alcançar resultado pretendido; ou seja, ao exercer a actividade, o contratado não se obriga à ocorrência do resultado, apenas age na intenção de que ele aconteça.
Na obrigação de resultado, por sua vez, o devedor obriga-se a alcançar um fim específico.
Verifica-se, por conseguinte, a inadimplência do contratado se o resultado contratado não ocorrer, podendo o faltoso responder por perdas e danos” (assim, Paulo Correia, «Da responsabilidade civil do advogado pelo incumprimento dos deveres de competência e de zelo», in Revista do Ministério Público, ano 30, Jul.-Set. 2009, n.º 119, pp. 166-167).
Ricardo Lucas Ribeiro, por sua vez, define “as obrigações de resultado como sendo aquelas, em virtude das quais o devedor fica adstrito, em benefício do credor, à produção de um certo efeito útil, que actua satisfatoriamente o interesse creditório final ou primário, isto é, o interesse que em último termo o credor se propõe alcançar”; já nas obrigações de meios “o devedor se obriga apenas a desenvolver uma actividade ou conduta diligente em direcção ao resultado final (realização do interesse primário do credor) mas sem assegurar que o mesmo se produza” (Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, Almedina, Coimbra, 2010, p. 19).
A diligência no exercício de uma actividade direccionada é, em si mesma um resultado, daí haver quem chame este último tipo de “obrigações de diligência” muito embora a diligência seja, afinal, exigível no cumprimento de qualquer obrigação.
Assim, a distinção entre meio e resultado tem apenas a ver com o efeito final alcançado com a conclusão do negócio: Se o credor busca um técnico (ou um perito) que ponha a sua arte (ou engenho) para alcançar certo objectivo mas não o possa garantir (garantindo apenas que tudo fará para o conseguir) a obrigação será de meios; se, contudo, o mesmo credor acorda com o técnico (ou perito) que lhe obtenha determinado efeito e este lho garante “ab initio” (e se mostra em condições de o obter) a obrigação será de resultado.
Mas, em ambas o devedor terá de usar da sua máxima diligência e rigor (“the best of his ability”) quando, tratando-se de um profissional, o mandato exija conhecimentos técnicos da sua especialidade.
Assim, como se concluiu no acórdão do S.T.J. de 29/04/2010 (relatado pelo Cons. Sebastião Póvoas, no processo n.º 2622/07.0TBPNF.P1.S1 e constante em http://www.dgsi.pt) “sendo, v.g., um advogado ou um médico não basta a diligência do homem médio (a aferir no cotejo com o comportamento “de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, para utilizar a terminologia do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil) como comportamento padrão ficcionado pela lei.
É que aqui a culpa é apreciada “in abstracto” (“bonus pater famílias” ou “reasonable man”) apelando-se para o paradigma de conduta que teria uma pessoa medianamente cuidadosa.
Se, porém, ainda que fora da apreciação “in concreto”, o que está em causa é a conduta de um profissional de certa arte, a diligencia exigível terá de encontrar-se no modo como se investigou, actualizou, adequou e aplicou os conhecimentos da sua especialidade.
Ora, tal exige um muito maior rigor do que se espera do cidadão médio.
Quando este recorre ao médico ou ao advogado procura que ao seu serviço - e no estudo, diagnóstico ou prognose do seu caso – esteja um especialista que investiu intelectualmente na respectiva ciência e seja dotado de conhecimentos inacessíveis ao comum das pessoas e enquadrados por uma moldura de regras deontológicas – deveres acessórios – que o resguardam de certa leviandade.
Por tudo isso, a diligência neste tipo de obrigações é acrescida e potenciada e, sendo embora uma obrigação de meios, estará na fronteira da de resultados.
Não se olvide, finalmente, que o advogado goza de autonomia técnica que lhe confere uma margem de liberdade de actuação por vezes não perfeitamente compatível, com o espartilho contratual puro.
Para que haja responsabilidade civil profissional do advogado pelos seus actos ou omissões, será necessário verificarem-se pressupostos, que são de ocorrência cumulativa e que são idênticos aos requisitos comuns da responsabilidade civil.
Assim, para que haja responsabilidade civil profissional do advogado é necessário que se verifique: a) um acto voluntário (positivo ou omissivo) do agente; b) o carácter ilícito desse acto; c) a culpa do seu autor; d) a ocorrência de um dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário é o facto ou acto dominável ou controlável pela vontade, ou seja, um comportamento ou uma forma de conduta humana. Especificamente, a responsabilidade civil do advogado perante o cliente assentará, em geral, na não realização da prestação a que estava obrigado perante o cliente. Neste ponto, interessará saber qual a obrigação de prestar que estava a cargo do advogado: uma obrigação de meios? Ou também uma obrigação de resultado?
A ilicitude consiste na ofensa de interesses a que a lei empresta tutela jurídica. Na responsabilidade obrigacional do advogado perante o cliente, a ilicitude resulta da desconformidade entre a conduta devida (a realização da prestação) e o comportamento observado pelo advogado. Essa desconformidade traduz-se na inexecução da obrigação para com o cliente. A referência à conduta profissional diligente do advogado não traduz apenas um esforço concretizador do padrão de adequação da prestação do advogado ao cliente – o que para efeitos de imputação nos remeteria para o pressuposto da culpa – mas antes, e sobretudo, para a própria prestação debitória.
O nexo de imputação do facto ao lesante consiste na ligação em termos de causalidade adequada entre aquele e uma conduta do agente merecedora de reprovação ou de censura do direito.
É o agir de certo modo quando atenta a sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
No caso do advogado, tal como em geral, tal nexo pode materializar-se quer no dolo, quer na negligência, sendo que, por via da aplicação da norma do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, no caso de responsabilidade contratual, existirá presunção de culpa do advogado.
Ou seja, cabe ao advogado «provar que o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procedeu de culpa sua – art. 799.º, n.º 1, do Código Civil.
Como se sabe, sucede o oposto na responsabilidade extracontratual pois aí incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa – art. 487.º, n.º 1, do Código Civil.
A presunção estabelecida no n.º 1 do art. 799.º aplica-se seja de resultado seja de meios a obrigação do devedor» (cfr. Afonso de Melo; «Responsabilidade Civil de Mandatário Judicial», in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 26, Mai.-Jun. 2003, p. 27).---
A culpa será apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias – cfr. artigos 487.º, n.º 2, e 799.º, n.º 2, do Código Civil.
No caso dos advogados, não prevê a lei critério especial de culpa, pelo que, haverá que considerar o critério abstracto do «bom pai de família».---
Como refere Afonso de Melo («Responsabilidade Civil de Mandatário Judicial», in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 26, Mai.-Jun. 2003, p. 28), “um homem razoável não assume obrigações para as quais não tem aptidão.---
Deve entender-se que o advogado tem culpa quando não cumpre ou cumpre mal porque não tem a suficiente preparação profissional para a causa que aceitou patrocinar”.
O nexo de causalidade do facto para produzir o evento danoso existe quando entre ambos interfere uma relação de causalidade adequada, por forma a considerar-se que este é consequência normal e necessária daquele.
Na obrigação de indemnizar - de regime comum à responsabilidade civil contratual e extracontratual - não cabem todos os danos sobrevindos ao facto constitutivo de responsabilidade, exigindo-se entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do que a simples coincidência ou sucessão cronológica.
E, nesse âmbito, “o problema pode ser visto sob uma dupla perspectiva. Num aspecto positivo, quando se diz que o lesado, para obter a indemnização, tem de alegar e provar o nexo de causalidade entre o prejuízo e o facto a que a lei liga certa responsabilidade. Num aspecto negativo, para significar que o réu pode afastar a relação de causalidade que parecia envolvê-lo, provando-se a existência de uma causa estranha que lhe não é imputável” (assim, Antunes Varela; Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, p. 851).
A lei consagrou quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias, pelo que só a causa adequada à produção do dano é que é de ter como relevante.
Como resulta do disposto no artigo 563.º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe relativamente aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (teoria da causalidade adequada).
E, se há casos que não suscitam especiais dificuldades de aplicação de tal teoria, certo é que, em muitos outros, é de grande dificuldade a sua aplicação.
Ilustrando o problema no campo da responsabilidade civil do advogado, Afonso de Melo («Responsabilidade Civil de Mandatário Judicial», in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 26, Mai.-Jun. 2003, p. 28) coloca as seguintes questões: “No caso, porém, de o constituinte se lamentar de ter prescrito o seu direito de ser indemnizado porque o advogado não intentou a acção em devido tempo, como é?
Se toda a acção tem um resultado aleatório, como pode ele afirmar que a acção judicial omitida teria sido julgada (total ou parcialmente) procedente? Que indemnização deixou de receber por culpa do advogado? Qual a situação que existiria e que deve ser responstituída se a acção tivesse sido proposta (art. 562.º do Código Civil)?
Os tribunais franceses e italianos têm usado o conceito de ”perte d’une chance”, de aliás multi-usos, para julgarem que tal perda (da oportunidade de ganhar a acção) constitui para o autor um dano patrimonial em si (há decisões do Supremo Tribunal espanhol no sentido de que se trata de um dano moral).
Não vá sem se dizer que a Cour de Cassation já decidiu que a noção de “perte d’une chance” não pode servir para contornar dificuldades da prova quanto ao nexo causal.
Por cá a perda de uma “chance” tem sido utilizada, sem usar o nome, quando o lesado alega danos derivados de ter perdido a oportunidade de concorrer a uma promoção profissional ou de se apresentar a exame, donde resultou um atraso na carreira ou no percurso académico.
Considera-se provado o dano quando demonstrado que o lesado tinha toda a probabilidade de ter êxito no concurso ou no exame.
Ora, recentemente, o acórdão do STJ de 03/02/99, C.J., VII, 2, p. 73 (…) decidiu precisamente, invocando a teoria da causalidade adequada, que procedia a acção contra o advogado que por inércia culposa deixara prescrever o direito do autor, porque resultava plenamente provável que o mesmo autor conseguisse provar na acção proposta fora de prazo, os danos que sofreu em consequência de acidente de viação (…)”.
O tema da «perda de chance» tem, na realidade, vindo a ser desenvolvido na doutrina e na jurisprudência, embora tal suceda, de forma mais coerente e sistemática no estrangeiro (designadamente, em Espanha e no Brasil -cfr., Luís Medina Alcoz, “Hacia una nueva teoria general de la causalidade n la responsabilidad civil contractual (y extracontratual): La doctrina de la pérdida de oportunidades”, in Revista da Asociación Española de Abogados Especializados en Responsabilidad Civil Y Seguro, n.º 30, 2.º Trimestre de 2009, pp. 31-74, disponível também em http://www.asociacionabogadosrcs.org/revistas/RC%2030.pdf; L. Fernando Regiero Campos, no estudo “La responsabilidad civil de abogados en la jurisprudência del Tribunal Supremo”, in Revista da Asociación Española de Abogados Especializados en Responsabilidad Civil Y Seguro, n.º 21, 1.º Trimestre de 2007, pp. 21-44, disponível também em http://www.asociacionabogadosrcs.org/ revistas/revista21.pdf; Fernando Gómez Pomar, “Pleitos tengas: perdida de un litigio, responsabilidad del abogado y daño moral”, in Revista Indret, Julho de 2003, disponível em http://www.indret.com/pdf/154_es.pdf; Roberta Veras de Lima Brito, em “A responsabilidade civil por perda de uma chance no direito brasileiro – evolução, posição doutrinária, posição jurisprudencial e admissibilidade”, in Revista da ESMAPE – Escola Superior de Magistratura de Pernambuco, Recife, vol. 12, n.º 26, Jul.-Dez. 207, pp. 269-296; José Barbosa Serafim; Responsabilidade Civil do Advogado pela Perda de uma Chance; UNISUL - Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2008, disponível em http://portal2.unisul.br/content/navitacontent_/userFiles/File/cursos/cursos_graduaçao/Direito_Tubarao/monografias/Jos_Barbosa_Serafim.pdf, Raphael Leite Guedes, em “A responsabilidade civil do advogado pela perda de uma chance”, estudo disponível em http://www.esmarn.org.br/revistas/index.php/revista_teste1/article /view/69/61).
São já numerosas as sentenças que declaram a responsabilidade do advogado por omitir informação ao cliente, por revelar segredo confiado pelo mesmo ou por perder os documentos que lhe tinham sido entregues no início da relação contratual.
“A ”perda de chance” é uma categoria geral de danos em que se incluem todos aqueles casos em que o agente do dano, com a sua acção ou omissão interrompeu um processo com o qual a vítima tinha probabilidades de conseguir um ganho ou evitar uma perda, por se ecnontrar em situação idónea para tanto” (assim, Maria Cármen Crespo Mora, “Algunos Aspectos Problemáticos de La Responsabilidad Civil de Los Abogados en Derecho Español”, in Revista Chilena de Derecho Privado, n.º 12, Julho de 2009, pp. 106 e 119, estudo também disponível em http://www.scielo.cl/pdf/rechdp/n12/art03.pdf).
Nestes ordenamentos estrangeiros têm-se considerado como situações de perdas de «chance», no âmbito da responsabilidade civil do advogado, entre outras: A falta de propositura de acção judicial, não obstante existir mandato para o efeito; a falta de estudo do processo e de devido aconselhamento do cliente; a não interposição de recurso por existência de instrução em contrário; a omissão na produção/requisição de provas; o extravio dos autos; a falta de apresentação de defesa; o deixar transcorrer prazos (de caducidade, de prescrição, ou prazos processuais para a contestação da demanda ou para a apresentação de recursos) (vd. sobre um detalhado elenco de casos, no direito espanhol, vd. o já citado estudo de L. Fernando Regiero Campos).
Em Portugal, alguma doutrina tem, contudo, procurado circunscrever a temática da «perda de chance» existindo já algumas considerações expendidas sobre o tema.
Assim, Armando Braga (A Reparação do Dano Corporal da Responsabilidade Extracontratual, pág. 125) conclui que: “O denominado dano de perda de chance tem sido classificado como dano presente.Este dano consiste na perda da probabilidade de obter uma futura vantagem sendo, contudo, a perda de chance uma realidade actual e não futura. Considera-se que a chance de obter um acréscimo é um bem jurídico digno de tutela. A vantagem em causa que poderia surgir no futuro deve ser aferida em termos de probabilidade. O dano de perda de chance reporta-se ao valor da oportunidade perdida (estatisticamente comprovável) e não ao benefício esperado. O dano da perda de chance deve ser avaliado em termos hábeis, de verosimilhança, e não segundo critérios matemáticos, sendo o quantum indemnizatório fixado atendendo às probabilidades de o lesado obter o benefício que poderia resultar da chance perdida. É precisamente o grau de probabilidade de obtenção da vantagem (perdida) que será decisivo para a determinação da indemnização”.
Também Carneiro da Frada (Direito Civil, Responsabilidade Civil, Método do Caso, Almedina, Coimbra, 2010, p. 103) aborda esta temática, nos termos seguintes:---
“Um exemplo de dano é conhecido por “perda de chance”, praticamente por desbravar entre nós. Entre as suas áreas de relevância encontra-se a da responsabilidade médica : se o atraso de um diagnóstico diminui em 40 % as possibilidades de cura do doente, quid juris ? Já fora deste âmbito, como resolver também o caso da exclusão de um sujeito a um concurso, privando-o da hipótese de o ganhar? Uma das formas de resolver este género de problemas é a de considerar a perda de oportunidade como um dano em si, como que antecipando o prejuízo relevante em relação ao dano ( apenas hipotético, v. g. ausência de cura, perda de concurso, do malograr das negociações por outros motivos), para cuja ocorrência se não pode asseverar um nexo causal suficiente. Mas então tem de se considerar que a mera possibilidade de uma pessoa se curar, apresentar-se a um concurso ou negociar um contrato consubstancia um bem jurídico tutelável. Se, no plano contratual, a perda de oportunidade pode desencadear responsabilidade de acordo com a vontade das partes (que erigiram essa chance a bem jurídico protegido pelo contrato), no campo delitual esse caminho é bem mais difícil de trilhar (…). Ainda assim surgem problemas, agora na quantificação do dano, para o qual um juízo de probabilidade se afigura indispensável. Derradeiramente, não podendo ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art. 563, nº3, do C.C.)”.
Rute Teixeira Pedro (A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Centro de Direito Biomédico, n.º 15, Coimbra Editora, 2009, pp. 179 e 232), conclui que:
“A perda de chance, enquanto tal, está ausente do nosso direito.
Em Portugal, poucos são os autores que se referem à noção de perda de chance e, quando o fazem, dedicam-lhe uma atenção lateral e pouco desenvolvida (…).
Pode, porém, entender-se que paira nas entrelinhas de decisões judiciais portuguesas, estando subjacente a algumas delas em que os tribunais expendem um raciocínio semelhante ao que subjaz a esta teoria, sem, no entanto, se lhe referirem”.
Júlio Gomes (in Revista Direito e Justiça, Vol. XIX; 2002, II), por seu turno, conclui que: “A mera perda de uma chance não terá, em geral, entre nós, virtualidades para fundamentar uma pretensão indemnizatória (…). Na medida em que a doutrina da perda de chance seja invocada para introduzir uma noção da causalidade probabilística, parece-nos que a mesma deverá ser rejeitada entre nós, ao menos de jure condito (…).
Admitimos, no entanto, um espaço ou dimensão residual da perda de chance no direito português vigente: referimo-nos a situações pontuais, tais como a situação em que ocorre a perda de um bilhete de lotaria, ou em que se é ilicitamente afastado de um concurso ou de uma fase posterior de um concurso. Trata-se de situações em que a chance já se densificou o suficiente para, sem se cair no arbítrio do juiz, se poder falar no que Tony Weir apelidou de uma quase propriedade, de um bem”.
Finalmente, Paulo Mota Pinto (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual, vol. I, p. 1103) refere o seguinte: “Não parece que exista para já, entre nós, base jurídico-positiva para apoiar a indemnização de perda de chance.
Antes parece mais fácil percorrer o caminho de inversão do ónus da prova, ou da facilitação da prova, da causalidade e do dano, com posterior redução da indemnização, designadamente por aplicação do art. 494 do Código Civil, do que fundamentar a aceitação da perda de chance como tipo autónomo de dano, por criação autónoma do direito para a qual faltam apoios (…)”.
Como se salientou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/2010 (relatado pelo Cons. Azevedo Ramos, no processo n.º 1410/04.0TVLSB-L1.S1 e constante em http://www.dgsi.pt): “O dano de “perda de chance” consiste na perda da probabilidade de obter uma futura vantagem. A vantagem em causa deve ser aferida em termos de probabilidade, reportando-se o dano de “perda de chance” ao valor da oportunidade perdida e não ao benefício esperado. A mera perda de uma “chance” não terá, em geral, virtualidade jurídico-positiva para fundamentar uma pretensão indemnizatória. Só em situações pontuais ou residuais pode ser atendida, tais como em situações em que ocorre a perda de um bilhete de lotaria, ou em que se é ilicitamente afastado de um concurso, ou do atraso de um diagnóstico médico que diminuiu substancialmente as possibilidades de cura de um doente”.
O dano traduz-se na afetação que o lesado sofre nos interesses materiais ou espirituais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
O dano “representa a supressão ou diminuição de uma situação favorável que estava protegida pelo ordenamento” (assim, Gonçalo Castilho dos Santos; A Responsabilidade Civil do Intermediário Financeiro perante o Cliente; Estudos sobre o Mercado de Valores Mobiliários; Almedina, Coimbra, 2008, pp. 216).
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem, em diversas situações, apreciado situações de concretização do dano da “perda de chance”, do seguinte modo:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2024 (Pº 11/22.5T8AGH.L1-7, rel. ANA RODRIGUES DA SILVA):
“ A perda de chance é indemnizável desde que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil e se possa concluir, com um elevado índice de probabilidade, que existiu uma vantagem ou benefício que se perdeu em virtude de um determinado evento, por forma a concluir pela existência de um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano final;  Assim sendo, carecem de ser provados os factos integradores da responsabilidade civil, bem como factos relativos à probabilidade de um desfecho diferente caso o acto lesivo não tivesse ocorrido e ainda a existência de danos em virtude de tal facto, incumbindo ao lesado a prova dessa probabilidade”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2024 (Pº 12771/17.0T8LSB.L1-6, rel. MARIA DE DEUS CORREIA): “O advogado, no exercício das suas funções, deve agir na defesa dos interesses do cliente de acordo com as boas regras da profissão (leges artis) mas sempre com independência e autonomia técnica; a obrigação que assume, enquanto mandatário, perante o seu mandante é uma obrigação de meios e não de resultado. Os comportamentos positivos ou omissivos que traduzem falta de diligência profissional devem constituir conditio sine qua non do insucesso da ação ou da defesa, obstando per se a que o autor ganhe o que reclamava ou perca o que lhe era reclamado, pois só se assim for, se perspetiva a atribuição de indemnização por perda de chance. Para além dos requisitos gerais da responsabilidade civil, destacam-se duas condições necessárias para que se verifique a obrigação de indemnizar com fundamento na “perda de chance”: (i) Em primeiro lugar, a existência de uma falta grave do mandatário forense que, por si só, seja idónea a impedir um desfecho jurídico desfavorável ao mandante; (ii) Em segundo lugar, a probabilidade elevada de que esse desfecho favorável pudesse ter-se verificado, se não tivesse ocorrido a referida falta grave, o que pressupõe a realização do chamado “julgamento dentro do julgamento”. O montante da indemnização a arbitrar não tem, de ser igual, e em regra não será, à totalidade do pedido do autor ou ao prejuízo que o réu deixaria de suportar, caso, como se trata no caso em análise, tivesse vindo a ser decidido favoravelmente o recurso que não chegou a ser admitido, pois não se pode cair num excesso de responsabilização, com o correspondente “enriquecimento do lesado”, nem na transformação do lesante em verdadeiro garante da concretização da chance. Na fixação do quantum indemnizatório, não podendo ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará, equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, de acordo com o disposto pelo artigo 566º, nº 3, do Código Civil”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023 (Pº 12426/19.1T8LRS.L1-8, rel. CARLA SOUSA OLIVEIRA): “O mandato forense é um contrato de mandato atípico sujeito ao regime especial do Estatuto da Ordem dos Advogados, sendo-lhe ainda aplicável o regime civilistico do mandato constante dos art.ºs 1157º a 1184º do CC. No exercício do mandato forense, o advogado não se obriga a obter ganho de causa, mas sim a utilizar, com diligência e zelo, os seus conhecimentos técnico-jurídicos de forma a defender os interesses do seu cliente, utilizando os meios ajustados ao caso, segundo as “leges artis”, com o objectivo de vencer a lide, visto tratar-se de uma obrigação de meios, e não de resultado. O incumprimento dos deveres adstritos ao advogado pela celebração do contrato de mandato pode determinar a sua responsabilidade civil contratual pelos danos daí decorrentes para o mandante e, consequentemente, a obrigação de indemnizar. A prática de um acto processual fora do prazo legal ou a utilização de um meio processual desadequado, fazendo soçobrar a pretensão de interposição de recurso, constituem indubitavelmente uma violação dos específicos deveres do advogado e das normas que os consagram. Demonstrado o incumprimento, decorre do art.º 799º, nº 1, do CC, uma presunção de culpa do obrigado, incidindo sobre o réu o ónus de alegação e prova de que o incumprimento não procede de culpa sua. O ressarcimento por “perda de chance”, encarado como uma nova e autónoma espécie de dano, não visa indemnizar a perda do resultado querido, mas antes e apenas a oportunidade perdida enquanto um direito em si mesmo violado com uma conduta ilícita. A verificação do dano por “perda de chance” exige a demonstração da consistência e seriedade da perda da oportunidade de obter uma vantagem (ou de evitar um prejuízo) segundo um juízo de probabilidade tido por suficiente, independente do resultado final frustrado, que terá de ser aferido casuisticamente, em função dos indícios factualmente provados. Para haver dano da “perda de chance” susceptível de indemnização, não basta a prova da conduta ilícita do advogado consubstanciada no incumprimento do mandato, não basta a prova do acto/facto lesivo, uma vez que segundo o instituto jurídico invocado não há reparação sem estar também provada a existência dum dano e causado por tal acto/facto ilícito, sendo também necessário que esse incumprimento pudesse conduzir, com um elevado grau de probabilidade, à procedência da pretensão do lesado. Numa acção destinada a apurar a responsabilidade civil do advogado no âmbito de um contrato de mandato forense, deve o lesado demonstrar que existia uma probabilidade séria e real de a sua pretensão ter sido reconhecida, caso o mandante tivesse actuado com a diligência devida, o que implica fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento”, atentando no que poderia ser considerado como altamente provável pelo tribunal da causa (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-04-2023 (Pº 852/14.7TBVRL.G1.S1, rel. LUIS ESPÍRITO SANTO): “A figura da perda de chance processual traduz-se numa situação de desvantagem patrimonial que se consubstancia na privação da oportunidade de o lesado obter um resultado favorável em processo judicial, o qual é causalmente imputável à conduta ilícita do profissional por si escolhido (e que desempenha essa actividade no seu interesse), concretizando-se na falta de atenção, zelo ou diligência no exercício técnico das respectivas funções profissionais que impede o sucesso (integral ou parcial) da lide. O seu objecto consiste, portanto, na frustração da obtenção de um resultado positivo futuro, mas susceptível de verificação actual, embora nunca se possa considerar como totalmente assegurada (e infalível) a sua efectiva ocorrência”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2022 (Pº 2759/17.7T8VNG.P2.S1, rel. JORGE DIAS): “Não é toda a perda de chance que pode ser reconhecida como um dano indemnizável, mas, apenas, a perda de chance que se manifeste consistente e séria e com um grau razoável de concretização. Para haver indemnização por perda de chance, a probabilidade de ganho de causa há-de ser razoavelmente elevada, deve verificar-se uma “possibilidade real” de sucesso que se malogrou, competindo ao lesado a alegação e prova dessa probabilidade de êxito. E tem de verificar-se um nexo de causalidade entre a aludida perda de chance e os prejuízos patrimoniais demonstrados em concreto”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-09-2022 (Pº 3675/16.5T8MTS.P1, rel. ANA PAULA AMORIM): “O dano de perda de chance processual apenas ocorre perante a forte probabilidade de, não fora o ato de terceiro, o lesado se encontrar em condições de poder evitar a condenação no pedido, ou seja, se tal omissão do advogado contendeu com um sério, real e muito provável desfecho da ação favorável ao lesado. Trata-se, assim, de apurar da possibilidade real de se alcançar um determinado resultado positivo, mas de verificação incerta. Recai sobre o lesado o ónus da prova do nexo de causalidade e do dano”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-02-2022 (Pº 6112/15.9T8VIS.L1-7, rel. ANA RESENDE): “Em termos gerais, pode definir-se a perda de chance, como a perda da possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável, sendo acolhido como um dano autónomo, consubstanciando-se numa frustração irremediável, por ato ou omissão de terceiro, da verificação da obtenção de uma vantagem, que de forma probabilística era altamente razoável supor que fosse atingida ou na verificação de uma desvantagem que razoavelmente seria de supor não ocorrer, caso não se verificasse essa omissão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2020 (Pº 1976/17.4T8VRL.G1.S1, rel. TOMÉ GOMES): “No caso de perda de chances processuais, importa fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento” no sentido da solução jurídica altamente provável que o tribunal da ação em que a parte ficou prejudicada viesse a adotar. Embora tal apreciação se inscreva, enquanto tal, em princípio, em sede de questão de facto, extravasando, nessa medida, os fundamentos do recurso de revista, deve admitir-se que possa, ainda assim, envolver erros de direito sobre a apreciação da prova ou do quadro normativo aplicável, estes sim passíveis de serem sindicáveis em sede de revista.. O ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado, como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, do CC) (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2019 (Pº 1052/16.7T8PVZ.P1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “O incumprimento dos deveres adstritos ao advogado pela celebração do contrato de mandato pode determinar a sua responsabilidade civil contratual pelos danos daí decorrentes para o mandante. O dever de defender diligentemente os interesses e objectivos visados pelo mandante não incluiu, porém, a obrigação de obter o ganho da causa, caracterizando-se a sua prestação como obrigação de meios e não de resultado. O ressarcimento por perda de chance, encarado como uma nova e autónoma espécie de dano, não visa indemnizar a perda do resultado querido, antes e apenas a oportunidade perdida enquanto um direito em si mesmo violado com uma conduta ilícita. A verificação do dano por perda de chance exige a demonstração da consistência e seriedade da perda da oportunidade de obter uma vantagem (ou de evitar um prejuízo) segundo um juízo de probabilidade tido por suficiente, independente do resultado final frustrado, que terá de ser aferido casuisticamente, em função dos indícios factualmente provados. Nessa apreciação casuística impõe-se ao tribunal realizar uma apreciação/representação que, em termos de probabilidade, permita perspectivar o que teria sido decidido no processo (critério do julgamento dentro do julgamento)”.
O Supremo Tribunal de Justiça formou, aliás, jurisprudência uniforme, no sentido de que, “o dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade” (assim, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022, de 26 de janeiro, publicado no DR, I, n.º 18/2022, de 26-01-2022, p. 20 e ss.).
Conforme se salientou neste aresto:
“(…) A verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a "chance", para poder ser indemnizável, seja "consistente e séria" e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.
Só assim a "chance" preencherá, num limiar mínimo, a certeza que é condição da indemnizabilidade do dano, só assim este pode ser considerado como objetivamente imputável ao ato lesivo e só assim se respeitará a regra (e a ideia de justiça) de que ao lesante apenas poderá ser imposto que responda pelos danos que causou.
Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar.
Assim como se argumenta, para recusar o dano da perda de chance, que o desfecho dum concreto processo judicial que não se chegou a desenrolar é uma certeza indemonstrável, também há quem afirme, no polo oposto, que um processo judicial não se acha perdido de antemão e que a mera pendência processual constitui um fator de pressão sobre a contraparte, pelo que, independentemente das circunstâncias concretas de tal processo e da sua prova, sempre, ocorrendo ato lesivo, haveria que conceder indemnização por dano da perda de chance.
Mas, com todo o respeito, não pode ser: à luz das regras e princípios vigentes de responsabilidade civil, só uma "chance" com um mínimo de consistência pode aspirar a exprimir a certeza ("relativa") do resultado comprometido (pelo ato lesivo) ser considerado provável.
Não há indemnização civil sem dano e este tem que ser certo, sendo que a certeza do dano de chance (que, por isso, merece a tutela do direito e ser indemnizado) está exatamente na probabilidade suficiente, em função da consistência da chance, do resultado favorável da ação comprometida.
Uma "chance" puramente abstrata e especulativa - isto é, independente da prova de qualquer concreta probabilidade - não é, de modo algum, um dano certo; assim como não atingirão a certeza exigível, não sendo indemnizáveis, as "perdas de chance" que correspondam a uma pequena probabilidade de sucesso da ação comprometida.
Concretizando um pouco mais, para estarmos perante uma chance com probabilidade de sucesso suficiente terá, em princípio e no mínimo, o sucesso da chance (o sucesso da provável ação comprometida) que ser considerado como superior ao seu insucesso, uma vez que só a partir de tal limiar mínimo se poderá dizer que a não ocorrência do dano, sem o ato lesivo, seria mais provável que a sua ocorrência.
Como no início admitimos, a incerteza, característica da perda de chance, acaba por dizer respeito quer ao nexo causal quer ao dano, pelo que pode objetar-se que uma coisa é o mínimo de relevância/consistência que a chance deve ter e outra, diversa, o limiar mínimo de prova necessária (o mínimo de standard probatório de probabilidade suficiente) para considerar demonstrado o nexo causal entre o facto lesivo e o resultado/dano e, nesta linha de raciocínio, a exigência percentual poderia ser superior em relação ao standard probatório (de probabilidade suficiente) e poderia ser inferior para se afirmar a seriedade e consistência da chance.
Mas, sem prejuízo da devida ponderação casuística, não parece que, no que diz respeito às perdas de chances processuais, tal distinção deva ser estabelecida, atenta a conexão entre o dano e o nexo causal, sendo a probabilidade deste que confere consistência à chance e esta consistência que alicerça o standard probatório.
Significa e impõe o que vem de dizer-se que, colocando-se num processo (como acontece no caso do processo do Acórdão fundamento e no caso deste processo) a questão da indemnização pelo dano da perda de chance, tal probabilidade - o mesmo é dizer, a consistência concreta da oportunidade ou "chance" processual que foi comprometida - tem sempre que ficar apurada/provada, uma vez que, sem a mesma estar apurada/provada, não se poderá falar em "dano certo" e sem este não pode haver indemnização.
Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental - o já chamado "julgamento dentro do julgamento" - a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o ato lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a ação comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance "consistente e séria") e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.
Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido - na perspetiva do tribunal que o teria que decidir - sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano.
Apreciação/decisão hipotética que acabará também por relevar para o quantum indemnizatório, uma vez que a indemnização deve corresponder ao valor da chance perdida e este valor será o reflexo do grau de probabilidade da perda de chance em relação à vantagem que se procurava e se perdeu em definitivo (24).
Assim, visando-se com tal apuramento estabelecer o preenchimento de requisitos da responsabilidade civil (dano e nexo causal), estão em causa (no subsequente processo, em que se pede a indemnização pelo dano da perda de chance) elementos/factos constitutivos do direito indemnizatório invocado pelo lesado/mandante, sendo este - face ao encargo que o ónus da prova, quando aos requisitos da responsabilidade civil, lhe coloca (cf. 342.º/1 do C. Civil) - que terá que fornecer os elementos que irão permitir apurar qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometida a falta do advogado (ou seja, os factos que irão permitir apurar que o processo comprometido tinha uma suficiente, no referido limiar mínimo, probabilidade de sucesso ou, dito por outras palavras, que a chance perdida era consistente e séria).
Não se ignora que tal apuramento - tal "julgamento dentro do julgamento" - nem sempre será fácil, havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão recorrido) a falta do mandatário na não interposição de recurso de apelação, poderá ser relativamente acessível averiguar, com elevada probabilidade, o desfecho que o processo teria tido sem tal falta do mandatário; e havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão fundamento) a falta na não apresentação tempestiva do requerimento probatório, será bem menos acessível estabelecer o desfecho que o processo (dependente de prova que não foi produzida) teria tido sem a falta do advogado.
Tanto mais que, repete-se, no incidental "julgamento dentro do julgamento", como juízo de prognose póstuma que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (tendo em vista reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), ou seja, o tribunal da ação de indemnização deve adotar a perspetiva do tribunal que teria que decidir o processo e não exatamente o seu prisma de decisão, uma vez que, insiste-se, o que está verdadeiramente em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo (reconstituição de que a decisão hipotética do processo, na perspetiva do tribunal que teria decidido o processo, é instrumental).
Não sendo isto iludível (a dificuldade em averiguar, em certos casos, a decisão hipotética), o certo é que o respeito pelas regras e princípios que regem a responsabilidade civil - a certeza do dano, a doutrina da causalidade adequada, a função essencialmente reparatória/ressarcitória da responsabilidade civil e a proibição do enriquecimento sem causa do lesado - não podem ser afastados, ainda que tal obste a uma responsabilidade generalizada das perdas de chance processual.
A violação de deveres específicos - voluntária e contratualmente assumidos - dos mandatários forenses, com o argumento da intrínseca incerteza relativa do desfecho dum processo judicial, não pode passar sempre incólume, mas a sua responsabilização tem que respeitar, sem voluntarismos, a segurança jurídica e ser rodeada dos necessários cuidados, não podendo prescindir, como se referiu, da imposição ao lesado do ónus de provar - seja fácil ou difícil - a verificação do dano (a consistência e seriedade da concreta chance processual comprometida), a suficiente probabilidade (no referido limiar mínimo) de obtenção de ganho de causa no processo em que foi cometida a falta pelo mandatário forense.
Questão diferente e a jusante da prova da existência de dano (da prova da consistência e seriedade da concreta chance processual comprometida), é a já referida questão da avaliação e fixação do quantum indemnizatório devido em caso de perda de chance consistente e séria.
Podendo dizer-se, aqui chegados, que será um pouco sofístico, com todo o respeito, invocar que pela teoria da diferença, consagrada entre nós no art. 566.º/2 do C. Civil, não se vê sequer onde esteja o dano, uma vez que, segundo tal teoria, o dano resultará da diferença entre o valor atual do património após o ato lesivo e o valor hipotético que o património deveria ter se o ato lesivo não se tivesse verificado e, justamente por isto, recorrendo à teoria da diferença, observa-se (um pouco sofisticamente) que as "chances" perdidas não se encontram no património atual do lesado e também não constariam no seu património hipotético, porque ou se teriam concretizado no benefício ou teriam de todo desaparecido.
O que sucede é que a teoria da diferença, enquanto método de quantificação do dano patrimonial (e não tanto para apurar da sua existência), não serve para quantificar um dano com as características do dano da perda de chance, razão pela qual há quem entenda que talvez seja preferível, em certas situações de perda de chance processual, sustentar que o cliente/mandante sofreu "uma incompreensível indignação pela ligeireza e leviandade com que o seu caso foi tratado" e, por isso, um dano não patrimonial a indemnizar equitativamente.
São coisas diferentes - ao lado dum dano patrimonial da perda de chance processual, pode existir uma dano não patrimonial decorrente da ansiedade que o incumprimento dos deveres pelo mandatário possa ter causado - devendo, todavia, reconhecer-se a dificuldade da prova do montante do dano da perda de chance, a dificuldade em quantificar a exata probabilidade de sucesso da chance/oportunidade de ganho do processo, o que por certo levará a que, em muitos casos, haja lugar à fixação equitativa, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, dum montante indemnizatório pelo dano da perda de chance; reparação por recurso à equidade que, no seguimento de tudo o que se referiu, só poderá acontecer - enfatiza-se especialmente, uma vez que é exatamente neste ponto que está o fulcro da divergência e contradição jurisprudenciais - após, no seguimento/termo do incidental "julgamento dentro do julgamento", se ter concluído pela consistência e seriedade da perda de chance, ou seja, após ter-se considerado provada a probabilidade suficiente (no referido limiar mínimo) de existência dum dano de chance indemnizável (sabido que a indemnização equitativa dum dano pressupõe que o dano está provado, ou seja, no caso, que a consistência e seriedade do dano da perda de chance está previamente provada, apenas se desconhecendo o valor exato do mesmo).
Probabilidade suficiente de verificação do resultado favorável que se perdeu (a tal chance consistente e séria), que há de extrair-se da factualidade alegada e provada pelo lesado, pelo que, sem tal factualidade, fica o tribunal (que julga o pedido de indemnização com base na perda de chance) sem elementos para poder concluir pela existência do dano da perda de chance, não podendo/devendo sequer passar ao momento seguinte respeitante à quantificação da indemnização.
Como refere Patrícia Cordeiro da Costa, "a chance indemnizável não é [...] uma chance abstrata e filosófica, no campo das possibilidades gerais, mas uma chance séria, concreta e consistente, apoiada numa probabilidade igualmente séria e consistente de ocorrência da vantagem perdida não fora o facto ilícito. Sob pena de se transformar a perda de chance num mecanismo de atribuição irrestrita de indemnizações, bastando a presença de uma mera suspeita de probabilidade, a ação de indemnização deve ser preparada, em termos de alegação de facto e de produção de prova, de forma a que o tribunal, na decisão a tomar, tenha dados de facto suficientes para, desde logo, concluir pela existência duma chance séria. [...] A indemnização pela chance perdida depende da prova efetiva da existência de uma chance séria [...]"
"A intervenção do art. 566.º/3 do C. C. só pode operar num momento em que o tribunal já estabeleceu a existência de uma chance séria e consistente, ainda que num intervalo de probabilidade mínima e máxima, mas permitindo o limite mínimo desse intervalo afirmar a existência de uma chance séria, faltando apenas quantificar a indemnização. Se persiste a dúvida quanto à existência de uma chance e à seriedade da mesma, o art. 566.º/3 não pode ser convocado para, com recurso à equidade, resolver um problema de falta de prova, nomeadamente em termos salomónicos. Esta norma destina-se a estabelecer um critério de quantificação da indemnização, não da prova dos factos.” (…)”.
Ora, no caso dos autos, o Tribunal recorrido sublinhou, nomeadamente, que, “a prova produzida é suficientemente consistente no sentido em que aquela acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação tinha consistentes hipóteses de vir a obter vencimento”, ilustrando que, “foi possível apurar (…) que o Autor foi, efectivamente, vítima de acidente de viação, através de atropelamento/abalroamento por uma viatura automóvel que não foi possível identificar, razão pela qual a acção de responsabilidade civil foi proposta contra o Instituto de Seguros de Portugal/Fundo de Garantia Automóvel, nos termos (genericamente) que constam da petição inicial elaborada pelo ora Réu” e que, apesar de não ter sido identificada testemunha ocular do acidente, a prova indirecta disponível, supra mencionada (tendo sido decisivo o depoimento da testemunha FP) (…) - era de molde a formar uma convicção segura de que a queda do Autor na sua bicicleta não aconteceu por qualquer outro motivo”.
Estas considerações, fundadas numa correta aferição dos factos apurados (veja-se, em particular, o que resulta da concatenação do vertido nos factos provados n.ºs. 21, 22, 23, 26 a 38), não merecem qualquer censura, culminando no apuramento de responsabilidade civil por banda do réu e, na decorrência do contrato de seguro existente, também da ora recorrente.
E, de facto, no apurado contexto, a demonstração vertida no facto provado n.º 55 é inócua no sentido de poder fazer concluir de modo diverso, pois, conforme se explicou na decisão recorrida, embora não tenha sido lograda ser efetuada prova direta da ocorrência do acidente nos moldes descritos pelo autor, a prova indireta carreada foi convincente e logrou formar positiva convicção no Tribunal recorrido – e também neste Tribunal de recurso – da ocorrência do acidente nos moldes apresentados pelo autor e que, nessa medida, poderia, com toda a probabilidade, determinar o vencimento de causa do autor na ação que o réu, por via do mandato que o autor lhe conferiu, oportunamente instaurou (o referido processo n.º 22219/18.1T2SNT).
Relativamente aos danos teceram-se na decisão recorrida, nomeadamente, as seguintes considerações:
Também de acordo com a prova produzida, foi possível apurar (e também teria sido na outra acção) que o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelas lesões ocorridas no acidente, em termos tais que, no âmbito do regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (D.L. n.° 291/2007, de 21.08.), seria muito provável a condenação do FGA, em montante indemnizatório, calculado à luz do artigo 562° do Código Civil. Recorde-se que o artigo 562° do C.C. estabelece, quanto à obrigação de indemnizar, o princípio da reconstituição natural: «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», sendo que, nos termos do artigo seguinte (563°), essa obrigação de indemnização só existe «em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não tivesse sofrido a lesão». A aplicação daquele princípio básico só é postergada quando, nos termos do n.° 1 do artigo 566° do C.C., a restauração natural não for possível, não repare integralmente os danos ou quando se revele excessivamente onerosa para o devedor. A indemnização será, assim, fixada em dinheiro (princípio da indemnização específica), de acordo com a chamada teoria da diferença, consagrada no n.° 2 do artigo 566°, do C.C.: a sua medida será calculada tendo como referência a situação real do lesado e a situação hipotética deste, se a lesão não tivesse ocorrido. O que se traduzirá na diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se inexistissem danos. O n.° 3 do mesmo artigo 566° rege para os casos em que os danos não podem ser valorados no seu quantum exacto, surgindo então a sua apreciação equitativa”.
E ali se concluiu que, “[c]ompulsados os pedidos formulados na anterior acção e ponderados os respectivos valores à luz dos critérios legais supra enunciados, temos como certa a probabilidade de o Autor ter vindo a receber indemnização, quer a título de danos patrimoniais, quer a título de danos não patrimoniais, apesar da relativa limitação de prova que foi efectuada nos presentes autos. Enfim, esta demonstração conforma a tal possibilidade séria/significativa, a que alude o Acórdão, que permite imputar tal certeza relativa ao facto lesivo (que fez com que o processo judicial não se desenrolasse ou que decorresse anormalmente)”.
Em face do exposto – em particular, dos trechos sublinhados supra - não se verifica ter existido erro de julgamento, nem violação de alguma das normas jurídicas brandidas pela recorrente, devendo ser dada resposta negativa à questão formulada.
Pode sintetizar-se o referido, formulando as seguintes proposições conclusivas:
1ª) O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade;
2ª) Verificada a instauração de uma ação para efetivação de responsabilidade civil pelo réu – advogado – em representação do  autor -lesado em acidente de viação – proposta contra o Instituto de Seguros de Portugal/Fundo de Garantia Automóvel, em razão de se desconhecer o condutor interveniente no acidente e tendo sido julgada improcedente tal ação, em virtude de não ter o autor produzido a correspondente prova, por não ter sido satisfeita a 2.ª prestação da taxa de justiça – que o autor não pagou, sem que o réu o tenha avisado para proceder ao respetivo pagamento - e por o advogado réu não ter comparecido em audiência de discussão e julgamento, vindo a inviabilizar, com tal conduta, a produção da prova arrolada pelo autor, determinou o réu que o autor perdesse a oportunidade de produzir a correspondente prova e de obter vencimento da referida causa que, com elevada probabilidade e de forma consistente e séria, teria lugar.
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Em conformidade com o exposto, sem outras considerações, por despiciendas, a apelação deduzida improcederá, com manutenção da decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
“Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre a apelante, que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique e registe.
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Lisboa, 11 de julho de 2024.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento.
Susana Maria Mesquita Gonçalves