DEVER DE PROBIDADE PROCESSUAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DIREITO DE DEFESA
Sumário

1- É a violação do dever geral de probidade que emerge do art.º 8º do Código de Processo Civil, de forma dolosa ou gravemente negligente, que configura a litigância de má fé.
2- Não é pela circunstância de o R. contestar o direito que a A. faz valer em juízo, correspondente à entrega de elementos contabilísticos, vindo posteriormente a entregar os mesmos, que se pode, sem mais, afirmar a violação dolosa ou gravemente negligente do referido dever geral de probidade.
3- Demonstrando a posição do R. ao longo dos autos que o mesmo exerceu o seu direito de defesa de forma séria e convicta, correspondente à invocação, não só da falta de interesse atendível da A. na obtenção dos elementos contabilísticos peticionados, por já lhe terem sido anteriormente entregues pelo R. (no âmbito dos serviços que prestou à A.), mas igualmente da existência do seu direito de crédito sobre a A. no referido valor de € 1.999,14, a condicionar a entrega dos elementos contabilísticos solicitados, não há lugar a falar da condenação do mesmo como litigante de má fé.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Casa do Povo (…) propôs acção declarativa com processo comum contra L.M, pedindo a condenação do R.:
- A facultar à A. ou à empresa R., SROC, Lda., na pessoa do seu representante, e prestar toda a colaboração na auditoria das contas a efectuar à A., no período compreendido entre 1/1/2011 e 31/12/2021, designadamente fornecendo todos os elementos contabilísticos que lhe sejam solicitados em especial o SAF-T da contabilidade da A. do período de 1/1/2011 a 31/12/2021 (11 exercícios) antes do apuramento dos resultados ou, em alternativa, extractos de todas as contas financeiras (1 a 89) do período de 1/1/2011 a 31/12/2021, antes do apuramento dos resultados, em suporte Excel e, ainda, o balancete analítico em 31/12/2021 (onze exercícios) antes do apuramentos dos resultados, em suporte Excel;
- No pagamento à A. de sanção pecuniária compulsória no montante de € 200,00 por cada dia que o R. não cumpra com a entrega peticionada, a contar da data da citação e até seu efectivo e total cumprimento ou, se assim não for entendido, a contar da data da prolação da decisão judicial que julgar o mérito da acção e até seu efectivo e total cumprimento.
Para sustentar a sua pretensão alega, em síntese, que determinou uma auditoria às suas contas e procedimentos, para o período de 1/1/2011 a 21/12/2021, período em que o R. prestou os seus serviços de contabilista certificado à A., até se ter desvinculado da mesma em Outubro de 2021, e sendo que para tanto necessita de documentos contabilísticos que se encontram na posse do R., que não tem colaborado com a A., apesar de obrigado a tal pelos seus deveres legais de contabilista certificado e de ter sido solicitado para o efeito pela A., por mais de uma vez.
Citado, o R. apresentou a sua contestação onde alega, em síntese, não ser contabilista certificado, nem inscrito na respectiva Ordem, e não ter sido o responsável pelas contas da A., uma vez que se limitava exclusivamente a realizar o lançamento das facturas /recibos/vencimentos, registando apenas o total da receita e despesa anual, que entregava pessoalmente à administração da A., mais alegando que nunca dispôs de suporte informático que permitisse fornecer o SAF-T da contabilidade, e que quanto ao suporte Excel e balancete analítico, os mesmos foram sendo sempre entregues à A., que os tem em arquivo. Mais alega que o seu programa informático de contabilidade apresentou erros de acesso, sendo o custo para o desbloquear de € 1.999,14, pelo  que só poderá fornecer os documentos solicitados pagando a referida quantia, o que fará se a A. lha disponibilizar. Conclui pela improcedência da acção.
A A. respondeu à matéria de excepção constante da contestação.
Em audiência prévia foi proferido despacho saneador e fixado o valor da causa, mais sendo dispensada a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Ainda antes da realização da audiência final o R. apresentou (em 29/1/2024) requerimento com o qual procedeu à apresentação de um conjunto de documentos, invocando que como os mesmos deu cumprimento à obrigação de apresentação dos elementos contabilísticos peticionados pela A., mais alegando que para a obtenção desses elementos teve de despender a quantia de € 1.999,14, não prescindindo do exercício do “direito de regresso contra quem sem fundamento o exigiu”.
A A. pronunciou-se sobre os documentos juntos pelo R., aí invocando, para além do mais, que os mesmos “não satisfazem integralmente o solicitado”.
Já durante a audiência final a A. veio requerer a condenação do R. como litigante de má fé, tendo o R. exercido o contraditório quanto a tal pretensão.
Encerrada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Nos termos e com os fundamentos supra expostos,
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i.     Declara-se verificar-se inutilidade superveniente da presente lide, e consequente determina-se a extinção da instância (cf. artº 277º e) do Código de Processo Civil);
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ii.    Não se condena, por falta de fundamento legal, o Réu em sanção pecuniária compulsória desde a data da sua citação;
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iii.   Não se condena o Réu como litigante de má-fé.
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Custas pelo Réu (cf. artº 536º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Civil – porquanto a inutilidade da lide lhe é imputável)”.
A A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. Salvo o devido respeito e melhor opinião e não obstante estarem em causa factos essenciais ao conhecimento do mérito da causa, designadamente no que respeito diz à punibilidade do R. como litigante de má – fé, errou notoriamente o julgador na apreciação da matéria de facto que lhe foi dado a conhecer.
2. Resulta das declarações prestadas pelo legal representante da empresa R., SROC, Lda. (…), gravadas no ficheiro áudio 411-23.3 T8RGR e supra transcritas, que aquele contactou verbalmente o R. solicitando-lhe a colaboração e o fornecimento dos elementos contabilísticos necessários à realização do relatório da auditoria.
3. Este facto, pese embora a sua importância, não consta do capítulo dos factos provados porque deverá ser aditado avançando-se com a seguinte redacção: 12-A Para os efeitos mencionados em 11 e 12 o legal representante da R., SROC, Lda., - (…) contactou, ainda, verbalmente o Réu, em vão, para-lhe fornece esses elementos”.
4. Errou também, notoriamente na apreciação da matéria de facto o Tribunal recorrido, ao não dar por assente o alegado no artigo 11º da petição inicial, confirmado pelo depoimento da testemunha R.C. supra transcrito. E confessado pelo R. em depoimento de parte, conforme resulta do teor da Assentada inserta na Acta de Discussão de Audiência e Julgamento de 16 de Fevereiro de 2024 pelo que,
5. Sendo irretractável a confissão à luz do disposto no art.º. 465º, nº 1 do C.P.Civil. deverá ser aditado aos factos provados que 14. A- Até 13 de Outubro de 2023, data da instauração da petição inicial, o R. ignorou as interpelações referidas em a 14º supra.
6. O facto 26 da matéria assente contêm um lapso de escrita devendo a menção ao “Autor” ser substituída por “Réu” nos termos do artigo 614º, n.º 1 do C. P. Civil.
7. A incompatibilidade manifesta do conteúdo do ponto 20 e 26 dos factos dados por assentes – num menciona-se que no futuro o Réu terá que despender a verba de 1.999,14 €, noutro que o réu já despendeu (pretérito perfeito) esse valor- em conjugação com o teor do documento 23 (recibo) junto aos autos pelo Réu em 29 de Janeiro de 2024, referência Citius 47805806, dita por manifesto erro na apreciação da prova e remissão para o disposto no art.º 647º, alínea a) do C. P. Civil que,
8. Deve ser eliminado dos factos dados por provados o ponto 20. E o ponto 26 deve ser reformulado nos seguintes termos: 26. O Réu teve que despender a quantia de 1999, 14€, em 10 de Maio de 2023 para poder aceder ao Programa de Contabilidade instalado no seu computador”.
9. A análise critica do depoimento prestado pelo Réu em 22 de Fevereiro de 2024 e supra reproduzido -ficheiro áudio 411-23.3 T8RGR 2024-02-22-16-30-46 –com o mencionado recibo emitido pela empresa informática M.S., Lda., em nome do Réu, no valor de 1.999,14€, recibo 23024/223, datado de 10 de Maio de 2023, impõe, por erro manifesto na apreciação da matéria de facto que, deverá o ponto 23 da matéria dada por assente ser complementado de forma a dele constar: 23. Os documentos entregues nos autos pelo Réu a 29 de Janeiro de 2024 (documentos com referência Citius 5553504) estavam em poder do mesmo desde 10 de Maio de 2023 e poderiam ter sido entregues na contestação em 10 de Novembro de 2023 ou na audiência prévia de 25 de Janeiro de 2024.
10. Atento o depoimento - gravado no ficheiro áudio 4111-23-3 T8RGR-2024-02-16-15-10-47- se oportunamente o réu entregasse os elementos que lhe foram, insistentemente, pedidos o relatório final teria sido distinto e espelhado a realidade da situação financeira da Autora pelo que, por erro manifesto na apreciação da matéria de facto e configurar um elemento constitutivo da litigância de má-fé, deverá ser ditado à matéria de facto provada o seguinte: 27 - Tivesse o réu oportunamente fornecido os elementos que lhe foram solicitados teria o resultado da auditoria sido diferente Em resultado do réu não ter fornecido à empresa de auditoria os elementos que lhe foram solicitados o relatório final elaborado por essa empresa apresenta resultados distintos da realidade”.
11. O concreto e especial circunstancialismo que levou à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide por o réu ter procedido à entrega os elementos em discussão nos autos, cumprindo com o peticionado, mormente ser possuidor desses documentos desde Maio de 2023 ou seja, logo após ter sido interpelado pela autora;
12. Porque faltou à verdade, transmitindo informação falsa em 16º da contestação, sem qualquer causa justificativa apenas os remeteu aos autos, poucos dias antes da audiência de discussão de julgamento que, por sua culpa, se prolongou por três sessões exigindo a presença de 5 testemunhas e a disponibilização dos escasso recursos judiciais;
13. O elevado prejuízo da conduta omissiva do réu, ao retirar efeito útil ao relatório de auditoria qualificam o comportamento do recorrido como entorpecedor da justiça, atentatório dos valores do direito,desconforme com um processo justo e lealcom uma postura inadequada, deliberada livre e conscientemente censurável, não se tendo coibido de a exercer e por isso, senão dolosa, pelo menos negligentemente grave.
14. E por preenchimento dos respectivos pressupostos deve o réu ser condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização a processar, à luz do art.º 543º do C. P. Civil, como incidente abarcando todos os prejuízos decorrentes de uma lide reprovável sendo que, ao assim não entender atentou a decisão recorrida contra o preceituado no art.º 542º, nº 1 e 2, alíneas b), c) e d), segmento final, do C. P. Civil.
O R. apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se com a apreciação da conduta do R. como litigante de má fé.
Com efeito, e não obstante a A. indicar que o “recurso visa a reapreciação - fáctica e jurídica - da decisão judicial, douta aliás, que declarou a inutilidade superveniente da lide e absolveu o R. da condenação como litigante de má – fé”,  porque “enferma de manifesto erro na interpretação da matéria de facto e de Direito aplicável”, do mesmo modo identificando nas conclusões da alegação do recurso quais as alterações a introduzir na decisão da matéria de facto constante da sentença, apenas peticiona a alteração do terceiro segmento do dispositivo da sentença (aquele de onde decorre a absolvição do R. como litigante de má fé). Aliás, e em bom rigor processual, a A. nem sequer detinha legitimidade para interpor recurso da sentença, quanto aos restantes segmentos decisórios, tendo presente o disposto no nº 1 do art.º 631º do Código de Processo Civil.
Assim, e no âmbito do conhecimento daquela questão incidental (a litigância de má fé) torna-se inútil estar a apreciar as pretendidas alterações à decisão de facto que ficou a constar da sentença, porque tal decisão de facto não subsiste por si só, mas apenas se apresenta como um meio para a decisão do mérito da causa.
Com efeito, e impondo o art.º 640º do Código de Processo Civil, em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas.
É que, face ao disposto no referido art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto apenas tem por objecto os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas, bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultam da instrução da causa (para além dos factos notórios e daqueles que o tribunal tem conhecimento em consequência do exercício das suas funções).
E é por isso que, como ficou já afirmado no acórdão de 24/4/2019 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Laurinda Gemas e disponível em www.dgsi.pt), “a jurisprudência dos Tribunais superiores vem reconhecendo que “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objectivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um acto absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)””.
Ora, no caso concreto, o fim pretendido pela A. através do recurso é a revogação da decisão incidental que não condenou o R. como litigante de má fé, substituindo-a por outra que o condene nessa qualidade, em multa e indemnização (a favor da A.). Ou seja, não está em questão decidir do mérito da causa, no sentido da apreciação da pretensão da A. de obter a condenação do R. na entrega de determinados elementos documentais, porque foi reconhecido que tal pretensão já se mostra satisfeita através da entrega que o R. efectuou em 29/1/2024, assim tendo sido afirmada a inutilidade superveniente da lide, determinante da extinção da instância. E, nessa medida, torna-se igualmente inútil estar a reapreciar a matéria de facto, porque o elenco de factos provados que consta da sentença já não serve o referido propósito de conduzir à alteração de qualquer decisão relativa ao mérito da causa.
É certo que a verificação dos pressupostos do art.º 542º do Código de Processo Civil não dispensa a apreciação da actuação concreta do R. no âmbito da presente acção, e em confronto com a pretensão da A.
Só que tal actuação concreta do R. retira-se directamente dos elementos constantes dos autos, não havendo assim lugar à aplicação do disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil, em sede do conhecimento do incidente em questão, e afirmando-se, por esta forma, a inutilidade da apreciação da impugnação apresentada pela A. à decisão de facto.
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Delimitada pela forma acima referida a única questão que é objecto do presente recurso, e tendo por assente que a factualidade com relevo para o conhecimento dessa questão é a que resulta das incidências processuais acima relatadas, importa então recordar que, como decorre do nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil, diz‑se litigante de má fé aquele que, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de funda­mento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como já referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7/10/2004 (relatado por Maria Laura Leonardo e disponível em www.dgsi.pt), “a acção é um instrumento posto à disposição dos interessados para fazerem valer em juízo as suas pretensões.
No artº 266º-A do CPC [que corresponde ao art.º 8º do Código de Processo Civil de 2013] consagra-se um dever geral de probidade. “As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.”
É a violação deste dever (conduta ilícita), de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má fé”.
E como já referiu este Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 5/5/2011 (relatado por Octávia Viegas e disponível em www.dgsi.pt), “a parte está obrigada a uma pesquisa séria e intensa da verdade dos factos que traz a juízo, tendo uma actuação diligente, usando das precauções exigidas pela mais elementar prudência, a própria de um bom pai de família, naquelas circunstâncias concretas”, sob pena de ser condenada como litigante de má fé.
Mas aí igualmente se refere que “o conceito de litigância de má fé previsto no art. 456 do C.P.Civil [que corresponde ao art.º 542º do actual Código de Processo Civil] não abrange os casos de manifesto lapso, lide meramente ousada, pretensão ou oposição cujo decaimento resultou de fragilidade de prova, de dificuldade em apurar os factos e da sua interpretação e de defesa convicta e séria de uma posição que não obteve merecimento.
A condenação como litigante de má fé só deve ser proferida quando se estiver perante uma situação em que se manifeste inequivocamente uma conduta dolosa ou gravemente negligente da parte, quando dos autos resultam apurados factos que demonstram o exercício abusivo do direito de acção ou de defesa, o qual deve proporcionar às partes a possibilidade de dirimir as questões de facto e de direito de forma equilibrada e razoável, sem receios de sanções decorrentes do entendimento do tribunal sobre as questões que lhe são submetidas”.
Aliás, esta mesma linha interpretativa é aquela que decorre da jurisprudência e da doutrina mencionadas na sentença, cuja repetição aqui se dispensa.
Por outro lado, e aplicando ao caso concreto tais considerações, ficou afirmado na sentença, para além do mais, que:
Temos por certo que ao Réu, na qualidade de anterior responsável pela contabilidade da Casa do Povo (…), era exigível a colaboração com a empresa de auditoria.
Tal encontra-se expressamente previsto no artº 1161º d) do Código Civil, com as devidas adaptações (ex vi artº 1156º do mesmo diploma legal), mesmo tratando-se o Réu de contabilista não certificado – e, destarte, não TOC nem inscrito na respectiva ordem nem submetido às normas que pressupõem essa qualidade profissional.
O Réu veio alegar que para fornecer a informação pretendida que não se encontrava em arquivo físico nas instalações da Casa do Povo (…) tornava-se necessário suportar a despesa de € 1.999,14 (vide matéria de facto dada como provada), pretendendo receber tal quantia da Autora (vide contestação apresentada nos autos).
O Réu manteve tal entendimento quando procedeu à entrega de tal informação nos autos – vide requerimento com referência citius 5553504 – onde declara não prescindir do recebimento da quantia que se viu obrigado a desembolsar para ter acesso ao seu programa informático, que “bloqueou” por motivo alegadamente não imputável ao mesmo.
Ora,
Mesmo que a argumentação do Réu (pedido de pagamento dos custos para obtenção da informação a disponibilizar) não fosse julgada meritória (conforme supra exposto, não ficou claro o que sucedeu ao programa informático do Réu, e porque o mesmo se terá visto forçado a desembolsar a quantia em questão), tal não pode equiparar-se a uma recusa injustificada de cumprimento, um capricho, um devaneio, uma vontade de prejudicar a parte contrária.
Sendo certo que a conduta do Réu não nos parece ortodoxa [desde logo, a falha na resposta às solicitações que a instituição com a qual colaborou durante cerca de 30 (trinta) anos], não a subsumiremos à previsão do instituto da litigância de má-fé, porquanto a mesma não nos parece tão gravosa como tal instituto prevê e visa sancionar.
Sendo também concebível que tendo a Autora acesso à informação em falta a 29 de Janeiro de 2024 eventualmente seria possível incorporar a mesma na auditoria, nem que com uma mínima prorrogação de prazo para a entrega do Relatório Final – entregue que foi à Autora duas semanas após”.
Já a A. entende que a conduta censurável do R. corresponde:
- à falta de resposta do mesmo às sucessivas interpelações para apresentação dos elementos contabilísticos necessários à realização da auditoria que a A. ordenou às suas próprias contas e procedimentos administrativos;
- à circunstância de o R. já ter tais elementos contabilísticos em seu poder quando apresentou a contestação, o que se demonstra pela circunstância de já ter pago à empresa informática que possibilitou o acesso aos mesmos, e ainda assim ter afirmado na contestação que não tinha acesso aos referidos elementos;
- à circunstância de o R. ter podido apresentar tais elementos contabilísticos bem antes do momento em que o fez, assim fazendo com que o resultado da auditoria fosse diferente do que foi, e bem ainda deixando que o litígio fosse prolongado sem necessidade, com a realização da audiência final e com a produção desnecessária da prova testemunhal.
Começando pelo argumento da falta de resposta do R. às sucessivas interpelações, todas elas prévias à propositura da acção, torna-se evidente que tal circunstância não se enquadra em qualquer um dos pressupostos em que assenta a verificação da litigância de má fé, acima enunciados.
Com efeito, apenas na vertente da violação do dever de colaboração a que respeita a al. c) do nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil se poderia enquadrar esse comportamento omissivo do R.
Todavia, e como acima já ficou referido, o dever de cooperação a que se reporta a referida al. c) é aquele que emerge dos art.º 7º e 8º do Código de Processo Civil, ou seja, o que respeita à actuação das partes no âmbito da sua intervenção processual, e não qualquer inobservância do princípio da boa fé a que as partes estão sujeitas, no âmbito da relação material de onde decorre o direito que se pretende fazer valer em juízo.
Ou seja, e dito de forma mais simples, a circunstância de o R. ignorar as solicitações da A. (por si e por terceiros), assim determinando a necessidade de propositura da acção, como forma de a A. fazer valer o seu direito à obtenção dos elementos solicitados ao R., em virtude da não entrega dos mesmos, nos termos que lhe foram solicitados, torna-se absolutamente irrelevante para a afirmação de qualquer conduta do R. que preencha o conceito de litigância de má fé que emerge do art.º 542º do Código de Processo Civil.
Já relativamente à conduta do R. no âmbito do processo, é certo que o mesmo alegou na contestação (apresentada em 10/11/2023) que não podia entregar à A. os elementos contabilísticos solicitados porque só tinha acesso informático aos mesmos se despendesse € 1.999,14 para obter esse acesso, o que faria na medida em que a A. lhe disponibilizasse tal quantia.
Também é certo que com o requerimento de 29/1/2024, com o qual o R. juntou aos autos os elementos contabilísticos em questão, invocou o mesmo que a obtenção de tais elementos lhe havia custado os referidos € 1.999,14, remetendo para o recibo (que também juntou) emitido por M.S., Ld.ª, datado de 19/5/2023, e respeitante à liquidação da factura 23002/88, de 10/5/2023, nesse valor.
Ou seja, a partir desse documento pode-se afirmar que em 19/5/2023 o R. já havia desembolsado o valor de € 1.999,14 que o mesmo alegou ser o montante que tinha de despender para poder ter acesso informático aos elementos contabilísticos que a A. lhe tinha solicitado.
Não obstante, não é correcto afirmar, sem mais, que já tendo o R. pago esse montante, então já tinha os elementos em seu poder, quando foi citado e quando apresentou a sua contestação, não sendo verdadeira a alegação aí contante de que não tinha os elementos em questão e que teria de desembolsar tal montante para os obter. É que a demonstração do pagamento da quantia de € 1.999,14, desacompanhada da factura respectiva e, mais importante ainda, com desconhecimento dos concretos termos em que o R. acordou com a referida M.S., Ld.ª a obtenção do acesso aos elementos em questão, não é suficiente para afirmar peremptoriamente que ao tempo da apresentação da contestação já estavam em poder do R. os elementos contabilísticos em questão, bem podendo suceder que a prestação dos serviços de acesso a esses elementos tivesse sido acordada com um prazo que ultrapassou o momento da apresentação da contestação.
Do mesmo modo, e tendo o R. igualmente invocado que era à A. que competia pagar os referidos € 1.999,14, para que entregasse os elementos contabilísticos em questão (situação que a A. nunca aceitou), a questão do momento do pagamento e do momento em que o R. passou a ter tais elementos à sua disposição torna‑se meramente instrumental da posição de fundo assumida pelo mesmo, no que respeita à pretensão da A.
Dito de forma mais simples, a simples existência do recibo em questão é insuficiente para afirmar que o R. alterou a verdade dos factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa, com dolo ou negligência grave, quando na contestação alegou (ponto 17) que “é obrigado a pagar o montante de 1.999,14 € à representante da empresa SAGE nos Açores (M.S., Lda) para desbloquear o programa da contabilidade dos anos 2010/2021, o que não tem interesse em fazê-lo pois já não trabalha para a A.”, igualmente alegando (ponto 21) que “quanto à entrega de extractos de todas as contas financeiras (de 1 a 89) do período de 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2021 (onze exercícios) antes dos apuramentos dos resultados em suporte Excel, só o consegue fazer pagando à empresa M.S., Lda, agente do SAGE Portugal nos Açores a quantia de 1.999,14 € (…)”, “o que fará, se a A lhe disponibilizar essa quantia” (ponto 22).
Por último, e relativamente à entrega dos elementos em questão apenas em 29/1/2024 (ou seja, a menos de um mês da data designada para a realização da audiência final, e quando todas as testemunhas já estavam notificadas para comparência na mesma), atente-se que não é a posição do R. que determina a manutenção da instância e a consequente realização da audiência final, mas antes a posição da A., que perante tal junção documental e o despacho de 30/1/2024, no sentido de vir “esclarecer se os documentos ora juntos satisfazem a sua pretensão, ou se pelo contrário mantém na íntegra o peticionado”, veio referir (requerimento apresentado em 15/2/2024, um dia antes da data designada para a realização da audiência final) que:

A extensa lista de documentos apresentada pelo R. implicou que, só agora a A. possa emitir opinião, necessariamente condicionada técnica do pedido mas,

Uma sua análise (apressada) leva à conclusão que não satisfazem, integralmente, o solicitado.

Esta posição, contudo, poderá ser alterada pois que, em sede de audiência de discussão e julgamento será efectuada a audição de uma testemunha perita nesta matéria de contabilidade. e o que por ele for transmitido vai levar a que a A. reduza, ou não, o pedido.”,
e assim requerendo que “seja postergada para audiência de discussão e julgamento a posição final do A. neste capítulo da alteração do pedido”.
Do mesmo modo, importa atentar que no referido requerimento de 29/1/2024 o R. continuou a manifestar a sua pretensão de ser ressarcido pela A. do referido montante de € 1.999,14, mantendo o entendimento que a pretensão da A. não tinha fundamento, desde logo porque, como tinha alegado na contestação (ponto 15), “quanto ao suporte Excel e balancete analítico em 31/01/2021 (11 exercícios) antes do apuramento dos resultados em formato excel (…), foram sempre entregues pessoal e anualmente na sede da A para a elaboração das Atas, não se percebendo, portanto, porque razão teria agora de reenvia-las”.
Do mesmo modo, ainda, importa atentar que se a auditoria foi concluída sem que a empresa responsável pela mesma tivesse acesso aos elementos contabilísticos em questão, daí resultando um relatório que não espelha a realidade que se pretendia alcançar, tal não se reconduz a qualquer uma das circunstâncias elencadas no nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil, mas apenas se está perante uma forma peculiar de entender o conteúdo e fim de uma auditoria, que ao R. não pode ser imputada.
Com efeito, se pelo menos desde a contestação do R. era sabido que existiam e estavam na posse (informática) do mesmo os elementos contabilísticos pretendidos pela A. para a realização da auditoria, e se a auditoria visava, como alegado pela A. (art.º 5º da P.I.), “obter um conhecimento cabal da situação económica – financeira da A. seus encargos e responsabilidades e, muito principalmente, dissipar suspeições”, então só se pode afirmar que, ou a auditoria podia ser concluída sem tais elementos (o que significa que a A. não tinha qualquer interesse nos mesmos e, consequentemente, interesse atendível em propor a acção), ou a auditoria só podia ser concluída com tais elementos (o que significa que a empresa auditora e a A. sempre teriam de aguardar pela decisão final da acção que conhecesse da pretensão da A., ou pela entrega voluntária dos mesmos elementos pelo R., como sucedeu).
Dito de forma mais simples, os invocados “resultados distintos da realidade” da auditoria, mesmo existindo, não são devidos a qualquer actuação do R. nesse sentido, mas antes à actuação da A. e/ou da empresa que contratou para a realização da auditoria, situação à qual o R. é, naturalmente, alheio, e não representam qualquer acção do mesmo que se deva considerar como entorpecedora da acção da justiça e da actividade do tribunal ou, sequer, como apta a conseguir qualquer objectivo ilegal (e na medida em que se configurasse como objectivo ilegal a obtenção de tais “resultados distintos da realidade”).
Em suma, a posição do R. ao longo dos autos demonstra que o mesmo exerceu o seu direito de defesa de forma séria e convicta, já que tal posição corresponde à invocação, não só da falta de interesse atendível da A. na obtenção dos elementos contabilísticos solicitados, por já lhe terem sido anteriormente entregues pelo R. (no âmbito dos serviços que prestou à A.), mas igualmente da existência do seu direito de crédito sobre a A. no referido valor de € 1.999,14, a condicionar a entrega dos elementos contabilísticos solicitados.
Do mesmo modo, o protelamento do processo e a dilação na obtenção dos elementos contabilísticos em questão pela A. não é imputável a qualquer conduta do R. que se possa afirmar como violadora do dever geral de probidade a que o mesmo estava sujeito, desde logo porque estão afastados quaisquer indícios de falta de diligência e prudência na forma como pautou a sua intervenção processual.
Nesta medida, e não se podendo reconduzir a actuação processual do R. a qualquer exercício abusivo do seu direito de defesa, não há que fazer qualquer censura ao decidido pelo tribunal recorrido, no sentido de o mesmo não dever ser condenado como litigante de má fé, assim improcedendo as conclusões do recurso da A.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se o segmento da sentença recorrida que não condenou o R. como litigante de má fé.
Custas do recurso pela A.

11 de Julho de 2024
António Moreira
Paulo Fernandes da Silva
Orlando Nascimento